Meus filhos da puta

Tenho mania de gostar de alguns grandes filhos da puta.

Como bom baiano, por exemplo, gosto de ACM. Ele é tudo de ruim que dizem dele — e competente, visionário, e autor de grandes respostas.

Gosto também de Figueiredo. Pela honestidade intelectual — era um bronco e não tentava dar uma de grande homem de letras, como Adelita — e pelo fato de preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo (no que me junto a ele de bom grado). Ninguém que goste tanto de cavalos pode ser má pessoa de todo.

Bill Clinton é um dos meus mestres. Não por ter sido presidente saindo de um buraco como o Arkansas; mas por ter protagonizado uma das cenas mais requintadas que o Salão Oval da Casa Branca já produziu. É preciso ser extremamente sofisticado para descobrir tão doces usos para um charuto.

Assis Chateaubriand, que beirava a monstruosidade, é outro dos meus ídolos. Um sujeito capaz de forçar Nelson Hungria a assinar a lei Teresoca, um sujeito que criou o império que criou, e que tinha a virulência verbal que ele possuía, só poderia entrar no meu panteão.

Talvez eles tenham qualidades que não tenho. Mas, como bronco e apaixonado por cavalos, desconfio que um dia posso chegar a presidente da República.

Word Pirates

Um site interessante no ar. O Word Pirates é dedicado àquelas palavras cujos significados foram sendo pervertidos ou modificados com o tempo e o mau uso. É um bastião da resistência filológica.

O exemplo mais óbvio é a palavra gay. Para algumas pessoas é revoltante que uma palavra tão bela, tão gostosa de se pronunciar, tenha sido apropriada por um grupo sexual — como se houvesse algo alegre, não em homossexuais, mas naquelas bichas velhas e sozinhas em busca de rapazes noite adentro (a mesma tristeza, a propósito, de homens velhos e solitários e desesperados por companhia jovem). De qualquer forma, a opção sexual de cada um não é um problema de triste ou alegre. É e pronto.

De qualquer forma, o site é uma prova de amor às palavras, em quaisquer línguas em que estejam.

Iara Iavelberg

Hoje ela deveria ser exumada, para que pudessem comprovar a causa de sua morte.

Segundo a versão oficial, ao se ver cercada em um apartamento em Salvador, Iara (namorada de Lamarca, e na época grávida) teria se suicidado. Ninguém jamais pôde comprovar essa versão, porque ninguém foi autorizado a abrir seu caixão.

Entretanto, há muito tempo conheço outra versão, passada por alguém que a teria ouvido de um dos participantes do cerco.

O banheiro onde ela se trancou foi metralhado pela repressão, a ponto de não sobrar quase nada da porta. Seu corpo, obviamente, não ficou em bom estado. Mas por um desses milagres da vida, seu rosto, belíssimo, continuava intocado.

Agora, 30 anos depois de sua morte, vai-se finalmente saber a verdade. E vamos ver como andam minhas fontes.

Amor é prosa; sexo é poesia

Da coluna do Arnaldo Jabor de hoje:

Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão.

O amor é uma construção do desejo. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre com tesão. Amor e sexo, são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno — depende da quantidade ingerida.

O sexo vem antes. O amor vem depois. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento. No sexo, o pensamento atrapalha.

O amor sonha com uma grande redenção. O sexo sonha com proibições; não há fantasias permitidas. O amor é o desejo de atingir a plenitude. Sexo é a vontade de se satisfazer com a finitude. O amor vive da impossibilidade — nunca é totalmente satisfatório. O sexo pode ser, dependendo da posição adotada. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos.

O amor é mais narcisista, mesmo entrega, na “doação”. Sexo é mais democrático, mesmo vivendo do egoísmo. Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do “outro”. O sexo, mesmo solitário, precisa de uma “mãozinha”. Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até na maior solidão e na saudade. Sexo, não — é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora. O amor vem de nós. O sexo vem dos outros. “O sexo é uma selva de epilépticos” (N. Rodrigues). O amor inventou a alma, a moral. O sexo inventou a moral também, mas do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge.

O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um caubói — quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: “Faça amor, não faça a guerra”. Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas. O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica.

O sexo sempre existiu — das cavernas do paraíso até as “saunas relax for men”. Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do seculo XII e, depois, relançado pelo cinema americano da moral cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem — o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção; sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira de controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria da sacanagen. O mercado programa nossas fantasias.

Não há “saunas relax” para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um “amorzinho” para iniciar. O amor virou um estímulo para o sexo.

O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa “grandeza”. O sexo é mais embaixo. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há “sexo seguro”, mas não há camisinha para o amor.

O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo, o sonho dos casados.

Amor precisa do medo, do desassossego. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente na perda. O grande sexo sente-se na tomada de poder. Amor é de direita. Sexo, de esquerda — ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta.

E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos fazer esquecer a morte. Ou não; sei lá…

O que eu poderia comentar?

O sub-tenente Towersey

Eu sinto um certo vazio quando vejo alguém falando que tal ou qual livro mudou sua vida. Nenhum livro mudou a minha; alguns até que chegaram perto, mas li todos eles — como Demian, The Catcher in the Rye — tarde demais, sempre. Pelo menos gosto de imaginar que foi por isso.

Mas alguns livros merecem um carinho especial. E um deles é “Como Era Verde Meu Vale”.

Ano passado comprei num sebo uma edição inglesa de How Green Was My Valley, um livro que li quando era pré-adolescente e que adorei. É só uma edição comum, tipo Círculo do Livro, que comprei apenas para poder ler no original. Sempre fui apaixonado pela linguagem majestosa e bíblica do livro.

No verso da capa há algumas informações escritas à mão, com as velhas e confiáveis canetas-tinteiro inglesas, pelo seu primeiro dono:

Sub-lieutenant Y.R. Towersey, R.N.V.R.
HMS Excellent
Portsmouth
May, 1941

Fiquei imaginando quem era o sujeito, a história que esse livro conta com apenas uns rabiscos em sua capa. Dias depois descobri que o Excellent não era um navio, ao contrário do que o nome faz indicar, mas uma ilha de treinamento naval construída por presos ao longo de 28 anos, no final do século XIX.

Em maio de 1941 o sub-tenente Towersey estava se preparando para ir à guerra. Tão estranho, e tão belo. Quem era ele?

O que esse livro pode ter representado para Towersey, preso numa academia naval, se preparando para lutar pela própria vida e para tirar a de outros, um livro que fala sobre valores familiares e força quando ele se prepara para enfrentar a morte? Não sei. Nunca vou saber.

Espero que o sub-tenente Towersey tenha sobrevivido, uma esperança que era certeza antes de saber que o Excellent não era propriamente um navio. Agora não sei mais.

Não tenho a mínima idéia do que aconteceu com Towersey. Decidi não tentar encontrar nenhuma informação sobre ele. Não quero sequer saber como esse livro veio parar em minhas mãos, 60 anos depois. Algumas coisas são mágicas quando você não sabe nada sobre elas.

Flipper

Neste fim de semana, no começo da manhã, eu estava assistindo a Flipper. É um remake do seriado original, que foi ao ar entre 1964 e 1968.

A nova série (nova nada; é de 1995, e durou só um ano, originalmente) traz uma série de diferenças. Agora a história, pelo que pude entender, se passa em um laboratório.

Eles não entenderam nada.

Esses executivos de Hollywood têm mania de transformar tudo o que reciclam, e o resultado raramente é convincente.

O que eles não compreenderam foi que deveriam, ao menos, respeitar a essência do seriado.

O Flipper original se passava num ambiente de total liberdade. Flipper não era propriedade de nenhum laboratório, era livre como um pássaro. Ele estava com aqueles meninos porque queria.

Liberdade, aliás, era a palavra chave. Eles moravam num paraíso praticamente selvagem, uma visão de praia que até hoje está no meu subconsciente, uma das Keys quaisquer da Flórida. Além disso, aquele era um universo totalmente masculino: o pai era um homem compreensivo e forte, um modelo perfeito de comportamento e figura de autoridade incontestável; e não havia uma mãe por perto, alguém para mandar você deixar de brincar com aquele golfinho estúpido e ir estudar. Para adolescentes isso pode parecer chato — um lugar sem mulher? — mas para crianças, é simplesmente perfeito.

Aquela vida era tudo o que uma criança poderia querer. Os elementos de identificação corretos, a liberdade quase utópica sem perder de vista a realidade, ainda que remota. Flipper seduzia porque oferecia uma visão bastante adequada ao imaginário infantil.

O novo seriado tenta, pelo visto, atingir adolescentes, e faz uma mistura indigesta que torna o seriado uma coisa esquisita para quem cresceu com Bud e Sandy.

Esses caras não entendem nada.

Mais notícias d'Além Rio Grande

Outra noticiazinha da Wired:

Bad Samaritan
A 62-year-old retired Florida schoolteacher will likely go to jail for traveling to Iraq as a human shield. To many, Faith Fippinger is a humanitarian, but to the U.S. government she’s a criminal. For three months, she taught in Iraqi schools and worked in hospitals. Back home, a letter from the U.S. Treasury Department informed her that going to Iraq and spending money there breached the U.S. economic embargo. Supporters argue her right to freedom of travel and speech and accuse the Bush administration of making an example of her. “It’s in regimes like Saddam Hussein’s where that freedom is not allowed,” Fippinger said. The U.S. Treasury Department says freedom of speech is a right but breaking the law of the United States is not a privilege.

Estou começando a ficar com vergonha daquelas defesas que fiz dos ideais americanos.

Percival

Em setembro de 1993 eu estava no Rio de Janeiro, mais preocupado com a praia sem sol no domingo seguinte, quando minha avó me mandou procurar um computador.

A recente abertura do mercado inundava o mercado de máquinas finalmente semelhantes ao que havia lá fora. Computadores, antes aquelas máquinas cheias de luzes e sons de seriados como Batman — e mais recentemente aquele bichinho com o qual você poderia causar a terceira guerra mundial, como no filme “Jogos de Guerra” — eram os mais novos objetos de desejo do país. Restava a mim procurar uma boa máquina pelo melhor preço.

É verdade que, de certa forma, minha relação com computadores já vinha de longa data. Em 1982 ou 1983 houve a primeira grande explosão da micro-informática no país. Em Aracaju, para onde eu tinha acabado de me mudar, uma loja chamada Micromundo oferecia o que havia de melhor no mercado; e durante um curto espaço de tempo meu xodó era um TK-85 da Prológica, que parecia um livro fechado, com teclas minúsculas de borracha, e que precisava de um gravador e de uma TV para funcionar. Não lembro do preço, mas parecia razoavelmente acessível — daí a preferência. Agora, se dinheiro não fosse problema eu sabia o que queria: um CP-500, um mondrongo absolutamente charmoso que vinha com um monitor próprio verde, de umas 7 polegadas. Aquilo, sim, era um computador de verdade.

Mas 10 anos haviam passado, e computadores não faziam parte de meus projetos de vida naquele momento. Na verdade, esqueci os computadores logo depois de vê-los pela primeira vez. Naquela primavera de 1993 uma máquina de escrever das comuns supria, com folga, as minhas necessidades. E eu tinha uma novinha, eletrônica, portátil, que começava a dominar completamente.

Acontece que presente de avó não se rejeita, muito menos um computador. Me restava pesquisar. E a pesquisa foi, naturalmente, muito menor do que deveria ser. Eu simplesmente pegava os cadernos de informática de O Globo e dava uma olhada nos anúncios. Não era nada animador. De repente eu me via às voltas com siglas inextricáveis como XT e AT, 386 e 486, ISA e VESA, laser, inkjet, RAM, scanner, winchester — ei, essa eu conhecia. Era aquela carabina americana usada pra matar tudo o que não prestava: bandido, bisão e índio. Eu sempre quis ter um rifle daqueles.

Que coisa. Quem imaginaria que computador tinha tanta placa? E tantos modelos diferentes? Eu pensava que computador era computador, caput. Precisava de mais? Aquilo me parecia mais incompreensível que a Santíssima Trindade.

Lição número 1 para quem compra o seu primeiro computador: por mais que você julgue saber, você nunca sabe nada.

Eu entendia tanto disso quanto entendo, hoje, de física quântica. E tinha a séria desconfiança de que aquelas palavras não passavam de um código terrível para esconder uma ofensa pesada à minha mãe, pobre mãe.

Com a ajuda de um tio, este pobre peregrino encontrou seu Moisés numa loja de uma galeria comercial na Visconde de Pirajá, em Ipanema. O nome da desgraçada era Luciana; a loja, Gigatronics. Foi ela quem me indicou a configuração ideal, que seria montada por ela mesma: um 386 DX 40, HD de 127 MB, 4 MB de RAM. E um monitor SyncMaster 3, e uma impressora Canon BJ-200. Foi o que eu comprei. Meu computador, segundo ela, já viria com o DOS e com o Windows instalados, absolutamente preparado para editoração eletrônica — a única aplicação que consegui descobrir para justificar a compra daquela coisa. A impressora, dizia ela, era a ideal para esse fim; novidade no país, imprimia em P&B e, somente ela, custaria 750 dólares. No total eu dançaria na bagatela de 2200 dólares — assim mesmo, dólares, em singelas notas de 100 com a cara feia de Benjamin Franklin sorrindo para mim, como se quisesse dar a entender que eu era um idiota. Afinal, aquilo tinha sido contrabandeado em dólares. Dava para comprar um ou dois Fuscas com aquele dinheiro. Era o dia 20 de setembro de 1993.

Saí da loja direto para o aeroporto, me achando o mais up-to-date dos up-to-dates. Eles foram gentis a ponto de me dar uma nota fiscal falsa, para que eu evitasse eventuais problemas com toda aquela muamba no aeroporto. Eu estava encantado. No avião, carregando comigo minha impressora, um sujeito perguntou se aquilo era uma impressora. Aquiesci. Ele perguntou se era uma jato-de-tinta. Orgulhoso, respondi que não: era uma bubble jet. De vez em quando, quando não consigo dormir à noite, fico pensando no sujeito e acho que ele ainda está rindo de mim.

Foi apenas em Aracaju que descobri que minha via-crúcis tinha apenas começado. Eu ainda precisava de um estabilizador. Comprei. E agora precisava de uma tomada trifásica com fio terra. E depois precisava disso. E daquilo.

Lição número 2 para quem compra o seu primeiro computador: você sempre precisa de mais alguma coisa.

Na verdade eu não sabia nada sobre computadores. Sempre pensei que era só ligar o bicho, escrever e gravar com um título qualquer, como “Matéria para O Que de 27/10/91” ou “Outdoor de julho para Rádio Atalaia”.

Não era nada disso. E eu demoraria muito para aprender, se não fosse a ajuda de um vizinho, Maurício. Foi ele quem descobriu que o DOS não estava completamente instalado, e que de Windows aquilo não tinha nem o cheiro.

Lição número 3 para quem compra seu primeiro computador: o vendedor vai enrolar você.

Eu já conhecia esse Maurício havia tempo. Mas foi o computador que nos aproximou. Ele tinha um 286, e os programas que me arranjou — meus primeiros passos na pirataria, confessados agora porque o crime já prescreveu — eram condizentes com a velocidade do seu computador. Ele me conseguiu o DOS e alguns programas monocromáticos para DOS, jogos que ocupavam quando muito 10 Kb, um editor de textos chamado Carta Certa que me fez perder muito material importante, coisas desse tipo. E com material como esse, eu jamais poderia utilizar o potencial da minha impressora.

A partir daí fui instalando outras coisas. Consegui o Windows 3.1 com uma amiga (ela depois seria deputada federal e autora de um projeto de lei acerca de direitos autorais, mas naturalmente também dava suas pirateadas), depois o Corel Draw 4, o PageMaker 4 — eu estava no jogo. E fui aprendendo tudo aos poucos. Aprendi até a me virar com o famoso sistema de arquivos “8.3”, que lhe obrigava a condensar um título desejável como “Relatório de Vendas do Quarto Trimestre” em um código como “RELVEN43.WRI”.

Obviamente escolhi o caminho mais difícil. Uma pessoa com um pouco de juízo e inteligência faz um curso e aprende o bê-a-bá. Idiotas fazem o que eu fiz: comprava todas as revistas de informática que encontrava pela frente. A PC World americana, por exemplo, virou minha bíblia pessoal. É provavelmente a revista que mais me lembra esses tempos heróicos, e certamente a base de todo o meu conhecimento em informática. Em pouco tempo eu já sabia tudo sobre o mercado de computadores, sobre a concorrência feroz entre a Intel e a AMD e absolutamente nada sobre como fazer um blend no Corel Draw!.

Esse é um momento importante na vida daquele que começa a sentir orgulho em ser chamado de micreiro. É quando o computador pega o coitado pela goela e o vicia completamente. Ele já sabe um pouco, acha que sabe muito, e começa a mexer no autoexec.bat, no config.sys. Começa a achar que seu computador é lento demais, que o novo 486 DX2-66 é que é um computador de verdade. Quer aquele programa que saiu agora e no qual não consegue ver nenhuma utilidade pessoal. O computador deixa de ser o meio para agilizar as coisas e passa a ser o fim absoluto. No mínimo é o fim das noites de sono. Pode também ser o fim de um namoro ou casamento, se o caso for muito grave.

O neófito então começa a falar de computadores para todo mundo. Computadores são necessários em todos os lugares, por menos aparente que essa necessidade seja. Seus amigos precisam de um, eles é que não sabem ainda. O novo disco do Nação Zumbi é maravilhoso, mas saiu uma nova placa de vídeo que torna seu PC uma bala. Coitado; ele canta, todo o tempo, as maravilhas da era da informática. Vira idéia fixa. E ele, como todo evangelista, vira um chato.

Triste sina essa, compartilhada alegremente por mim. Aquele computador, que recebeu o nome de Percival, ficou comigo durante 3 anos. Sofreu muito nas minhas mãos, e eu nas dele. Sua placa de vídeo jamais saiu de 640×480 em 256 cores, e eu nunca soube se isso se devia a ela vir quebrada ou a não terem me dado os drivers corretos. No final, ele estava dando mais do que podia, heróico como um bom cavalo, rodando programas pesados como o então recém-lançado Netscape e o Corel Draw.

3 anos, para um computador, é muito tempo, claro. Mas Percival, com seus GPFs, com seus ataques de Athens e Daniella, dois virii idiotas, com sua incapacidade de lidar com textos grandes, agüentou a labuta diária com galhardia e perseverança, apesar de duas trocas de HD.

Aos poucos, o velho e bom Percival foi se tornando cada vez mais importante. Ele deixava de ser um instrumento de trabalho para se tornar o melhor meio de lazer que eu conhecia. A minha experiência diante de um computador passou a ser muito mais rica do que seria diante de qualquer outra máquina. Numa máquina de escrever eu jamais poderia jogar Civilization, por exemplo.

Lição número 4 para quem compra o primeiro computador: computadores criam novas necessidades.

Em 1995 eu já podia me considerar o que chamam de usuário avançado. Quebrava bem o galho. Noites e noites foram varadas na frente dessa máquina de fazer loucos. Um pouco depois comprei meu primeiro modem, e comecei a acessar BBS’s a 2400 Kbps. E depois comecei a acessar a Internet em um modem Boca 28.800 Kps, completando para sempre a minha dependência do computador. Mas isso já é outra história.

Muito tempo depois (3 anos, eu já disse) comprei outro computador. Abandonei o Windows 3.11 e entrei no mundo do Windows 95. E aí termina a minha história de amor com o computador. Porque a máquina em si, no final das contas, perdeu quase toda a sua importância, valendo alguma coisa apenas se conectado a uma linha telefônica. E aqueles pequenos rituais de ajustar o computador passaram a se tornar cada vez menos necessários com os novos sistemas operacionais.

Deixei de comprar a PC World há muito tempo. De vez em quando passo no seu site, mas raramente vejo algo interessante. Percival foi aposentado, e com a discrição de sempre (afinal, não se pode esperar estardalhaço de um 386 em plena época dos Pentium IV) foi ocupar seu lugar num cantinho qualquer do quarto, esquartejado. Ele ficou ali por muito e muito tempo, sem utilidade, esperando o dia em que o Deus dos Computadores (provavelmente uma versão melhorada do DeepBlue) viesse buscá-lo para o seu último descanso.

Rio-Niterói III

Deixe-me considerar Niterói a “zona leste” do Rio. Em que outra cidade você sai das barcas e dá de cara com uma rodinha de choro tocando “Lamentos” de Pixinguinha, exatamente naquela hora, como uma espécie de pequeno consolo pela semana terrível, cansativa e frustrante que você pode ter tido?

Rio Niterói II

Nas barcas o passageiro tem apenas a vista da baía de Guanabara para se divertir. No catamarã, com janelas com insulfilm, resta-nos a televisão e uns episódios antigos de Mr. Bean. É óbvio que os passageiros das barcas não apenas pagam menos, como têm à disposição uma vista muito mais bonita. Mas ontem, pela primeira vez, percebi que Mr. Bean, odiado por mim até há pouco, não é ruim: pelo contrário, é capaz de belíssimas gags visuais, em algo que mistura Tati e Buster Keaton. E o episódio que eu vi, Goodnight Mr. Bean, é de uma crueldade espantosamente hilariante.