E em verdade vos digo: eu gosto de ler a Bíblia. Nem tanto por questões religiosas, mas pela linguagem e pelas histórias.
Talvez por isso tenha uma preferência clara pelo Antigo Testamento em detrimento do Novo. Não entendo algumas coisas — como o tratado de putaria que é o “Cântico dos Cânticos” continuou na Bíblia cristã é um mistério para mim –, mas de modo geral é infinitas vezes melhor que qualquer livro de mistério. Tem sangue, tem traição, tem sexo, tem fé e bondade. Se há um compêndio da raça humana, um livro que resuma tudo aquilo de que o homem é capaz, é o Antigo Testamento. É tão bom ver um herói como Sansão cair por causa de sua luxúria, ou Esther triunfar em toda a sua humanidade.
Mas com o Novo Testamento a coisa complica.
Com a possível exceção de João, nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Os Evangelhos foram escritos distantes no tempo e no espaço da Palestina; e portanto são relatos de “diz-que-diz”. São de uma época em que o apostolado buscava mais e mais discípulos. Daí o excesso de milagres; era uma época em que ninguém via nenhum, como agora, mas todo mundo acreditava. Pessoalmente, considero os Evangelhos uma série ininterrupta de deturpações da verdade histórica (ou quatro grandes livros de propaganda em uma época em que não havia o CONAR para coibir eventuais exageros) — mas nem por isso, que ao meu ver é uma qualidade, ele consegue ser atraente para mim.
Gosto da forma como os cristãos adaptaram sua religião ao gosto de Roma e do Oriente Médio. Os romanos têm uma certa fé na “Deusa Mãe”? Inventemos a Anunciação e a Imaculada Conceição, e tornemos Maria algo próximo de uma deusa (“daqui a dois mil anos hereges vão dizer que é o maior caso de hímen complacente da história, ou vão decorar a testa de José com belos adornos, mas isso não é problema nosso”). Os persas são dualistas e acreditam no demônio? Então a gente pega aquele anjo escroto, Lúcifer, que entre os judeus era basicamente um instrumento de Deus para garantir o livre arbírtrio, e o transformemos em um quase deus do Mal. Ah, os romanos têm uma tradição de estatuária? Mande aquela tradição judaica às favas e façamos ícones de santos.
(Sim, eu estou exagerando, e esse foi um processo que ocorreu lentamente, muitas vezes sem a participação da elite da Igreja; mas só aconteceu porque o cristianismo adotou uma certa flexibilidade teológica que tornou essas pequenas transformações possíveis.)
Segundo Gibbon a força do cristianismo está, principalmente, na noção de vida eterna (em uma época em que se acreditava que o fim do mundo estava próximo), na pureza da fé, no comportamento irrepreensível dos cristãos. Saramago define de forma diferente: a possibilidade de arrependimento é irresistível. Saber que se me arrependo de verdade as portas do Paraíso estão abertas para mim é, no mínimo, reconfortante.
É tanta coisa a favor que é difícil saber exatamente por que não gosto do Novo Testamento. Talvez o que me incomode é que ele é incapaz de dar o justo reconhecimento ao arquiteto do cristianismo: Saulo de Tarso. Sem São Paulo, o mais provável é que o cristianismo vicejasse durante um tempo como mais uma seita mística judaica, e sumisse como tantas outras.
Foi Paulo quem deu ao cristianismo aquele senso romano de universalidade que fez a religião se espalhar pelos quatro cantos do mundo. É como se à força da fé judaica ele desse aquele imperialismo romano. A idéia de que a salvação não pertencia ao povo escolhido, mas a todos aqueles que abraçassem Jesus.
O sujeito era absolutamente genial. Se alguém deu forma ao mundo ocidental como o conhecemos hoje, ele é sério candidato ao cargo. E, no entanto, quão pouco reconhecimento lhe dão, tadinho.