Vade retro

Tem um aroma agradável pairando no ar.

A se julgar pela quantidade de blogs americanos pró-Dean e pró-Clark, há uma revolta crescente contra o Grande Satã do Ocidente nas terras d’além Rio Grande.

Com a guerra no Iraque se estendendo indefinidamente, cada vez mais americanos têm a certeza de que entraram numa fria. Bush conseguiu universalizar a antipatia contra os EUA e sangrar as finanças do país mais rico do planeta.

Ao que tudo indica, parece seguir o mesmo destino de seu pai.

O mundo, penhoradamente, agradece.

A queda do Império Britânico

O que é a vida.

Quando os Beatles receberam seus MBE (Member of British Empire) em 1965, alguns veteranos de qualquer uma das guerras que a Inglaterra lutou no século passado devolveram suas medalhas em sinal de protesto e indignação.

Para eles, que arriscaram a vida pela pátria, era um insulto se verem reduzidos ao mesmo nível de uns roqueiros recém-saídos dos cueiros e metidos a espertos.

Agora é a vez de David Beckham receber uma comenda — em grau imediatamente maior que a MBE –, a OBE. Isso não é nada: há dois anos Lennox Lewis recebeu uma CBE (por sua vez imediatamente superior à OBE).

Já não se fazem mais homenagens como antigamente.

Aliás, já não se fazem mais impérios como antigamente.

Histórias da II Grande Guerra

Se alguém se interessa pela história da II Guerra Mundial vai encontrar neste site da BBC material muito interessante.

Conta histórias de ingleses durante a guerra. O povo dos dentes feios sofreu o diabo sob os bombardeios nazistas.

Ao mesmo tempo, é interessante ver como a história é sempre contada pelos vencedores. Berlim foi provavelmente mais maltratada do que Londres; basta ver filmes feitos logos após o fim da guerra para ver que os Aliados, mais do que simplesmente bombardear a cidade para vencer a guerra, resolveram liberar a raiva e a sede de vingança. Mas há poucas histórias de sobreviventes alemães que não sejam judeus ou nazistas importantes, provavelmente pelo simples fato de que lutaram do lado errado. Ninguém quer ouvir a história de seus sofrimentos.

Outro aspecto notável: o tempo está passando. E passando rápido. Ainda é possível conhecer veteranos da II Guerra, ouvir suas histórias em primeira mão. O avô de um sujeito que trabalhou comigo contava ao neto histórias de sua passagem pela FEB na Itália, onde deixara um braço. Contava como foram para lá completamente despreparados, e como foram vestidos, alimentados e equipados pelos americanos para servirem como bucha de canhão. Valorosos, corajosos, mas bucha de canhão. (Ou seria “bucha de canhão, mas valorosos e corajosos”?)

Essas histórias vão se acabando. Vão morrendo com seus protagonistas, assim como esse senhor. E de algo vivo, presente, a história no máximo se transforma em palavras imobilizadas em livros ou em um website.

Provavelmente nunca houve momento histórico tão fascinante como este. E nem tão efêmero.

Aturando o Halloween

Agora que já passou eu posso dizer: eu odeio Halloween.

Entendo que a gente importe algumas modas culturais dos anglo-saxões. Eles mandam no mundo há quase 400 anos, esse “intercâmbio de mão única” faz parte do negócio. Mas a comemoração do All Hallow’s Eve irlandês é incompreensível, pelo menos para mim, brasileiro e baiano.

(Quem quiser conhecer as origens do Halloween dê uma passada aqui.)

A facilidade com que o Halloween se espalhou por aqui tem uma explicação simples: uma elite que não cansa de abanar o rabo para tudo o que é americano, que tem vergonha de suas origens e vira o rosto para tudo o que tem cheiro de povo.

A história do Halloween pode até ser bonita, mas não é minha. Enquanto isso, o Brasil tem uma infinidade de tradições tão ou mais belas que o Halloween. Só para dar um exemplo, o candomblé tem uma riqueza de mitos impressionante. Trick or treat é especialidade, por exemplo, de Exu. Quem se veste de bruxa no dia 31 de outubro devia conhecer como Xangô carregou seu pai Oxalá, com as pernas quebradas, nas costas. Ou saber que, quando antes de beber derrama um pouco no chão “para o santo”, está pedindo permissão a Exu.

Tem mais. O sul tem o Negrinho do Pastoreio, o Curupira e o Caipora se espalham por todo o país. Se tem uma coisa de que o Brasil não precisa é de superstições importadas.

Mas podia ser pior. Nos Estados Unidos, os radicais religiosos ainda perdem tempo discutindo se o Halloween é só uma festinha de criança ou uma perigosa festa demoníaca.

Como perder uma guerra de cervejas

A campanha da Nova Schin é um exemplo de planejamento acurado com uma solução criativa simples de doer, que basicamente se limita a traduzir o planejamento da maneira mais obviamente ululante possível.

Não é sorte. A campanha é da agência do Eduardo Fischer, o mesmo que criou a mais brilhante campanha de cerveja de todos os tempos, a “No. 1” da Brahma. Não é sorte porque as duas campanhas são absolutamente diferentes, já que tratam de produtos e situações diferentes. É uma campanha brilhante, e o resultado é que a Nova Schin já tem que olhar para trás se quiser ver a Kaiser e a Antarctica.

Enquanto isso, as respostas da Brahma e da Antarctica são de uma pobreza estrondosa.

Na Veja desta semana a Brahma veiculou um anúncio em que diz que “Brahma é a minha cerveja e sempre será”. A Antarctica, por sua vez, está com um comercial em que seus bebedores usam fones de ouvido pra evitar o apelo da Schincariol e tomar sua cerveja em paz. Deve querer dizer que a Schin é apenas propaganda, na melhor das hipóteses.

As duas campanhas são medíocres. A da Brahma por dar um apelo ufanista quando não é cabível; a Brahma é uma cerveja, não é uma pátria, não é sequer um time de futebol. A Brahma só é a minha ou a sua cerveja até o momento em que aparecer outra melhor.

Quanto à da Antarctica, que cerveja vagabunda é essa, cujos consumidores são incapazes de resistir aos apelos de uma boa campanha, e só tomam sua Antarctica com os ouvidos tampados?

Enquanto escrevia os parágrafos acima pensei em pelo menos duas soluções melhores para os problema das duas cervejas que se vêm ameaçadas pela Nova Schin. Eis uma sinopse simples para um comercial bem mais pertinente: Fulano chega num bar, Sicrano oferece sua cerveja para que ele experimente, Fulano se recusa, Sicrano insiste, Fulano experimenta — e pede outra cerveja.

Mas talvez isso seja muito simples. É preciso arranjar uma piadinha, alguma coisa para complicar o que deveria ser simples. É como o general que insiste em criar situações táticas criativas numa guerra quando a situação pede um simples bombardeio, para arrebentar tudo de uma vez.

A Antarctica e a Brahma bem que podiam experimentar isso.

A Hard Day's Night

Acabando de assistir pela enésima vez a “Os Reis do Ié Ié Ié”, agora baixado gratuitamente da Internet em DivX, e lembrei dos absurdos que já disseram sobre esse filme.

O maior deles é que é o “primeiro videoclipe” da história. O que, cá para nós, é uma mentira absurda.

Todo mundo diz que os Beatles inventaram os videoclipes, o que é verdade. Mas não foi com esse filme: isso aconteceria 2 anos depois, quando para evitar o desgaste de correr as TVs para fazer divulgar suas novas músicas resolveram simplesmente gravar “promos” de Paperback Writer e Rain e mandá-los em seu lugar. Não pretendiam estar inventando nada, queriam apenas evitar mais cansaço numa rotina absurdamente exaustiva.

O que “Os Reis do Ié Ié Ié” tinham era uma linguagem rápida, inovadora até certo ponto, que mais tarde seria absorvida naturalmente pelos videoclipes.

Anos 80 e música

Por algum acaso, o Bia concordou que aquela lista da Rolling Stone é boa; discorda apenas em relação ao London Calling. E em achar que 4 discos dos Beatles é um excesso dispensável.

Bem, a observação sobre o London Calling me lembrou uma coisa: eu detesto os anos 80. De coração. Acho que, musicalmente, foi a década mais fraca da história, em que pesem o U2 e os Smiths. Mas ela começou sob o signo da New Wave, que nos brindou com sintetizadores enjoados e baterias amplificadas acima do limite do bom gosto; não podia ser diferente.

Não pode ser por acaso que a maior parte dos anos 80 foi dedicada a recondicionamentos da música feita nos anos 50 e 60; era uma pobreza absurda. Tudo bem, os anos 70 tiveram a disco music, mas em compensação tiveram o punk e o funk (curioso que ritmos tão diferentes tenham nomes tão parecidos), além da maturidade da soul music. E tinha o Led Zeppelin, ué.

Nos anos 80 a gente teve Michael Jackson e Madonna. E olha que, comparados à maior parte do que se via na época (Pet Shop Boys! Duran Duran!), eles eram geniais.

Nos anos 80 eu simplesmente não ouvia rádio. Pensava que era bobagem minha, que era sectarismo de um sujeito que se dedicava a ouvir tudo o que pudesse do rock and roll, de Little Richard a Sex Pistols. Mas não era. O fato de eu conseguir ouvir música hoje em dia é a prova, para mim, de que não era eu que estava errado; era o resto do mundo.

Não que isso seja incomum, claro.

Batman

Gosto de quadrinhos. Gosto de super-heróis. E de todos, o meu preferido é o Batman.

O Batman é um dos super-heróis mais críveis. Aquela história de o sol amarelo dar a força do Super-Homem é balela; além disso o sujeito pode tudo, é um chato. O Homem Aranha é legal, mas vamos admitir: se você fosse picado por uma aranha radioativa não ia desenvolver super-poderes, você ia era pegar um câncer.

O elemento básico em tudo isso é que ser um super-herói como o Super-Homem ou o Homem-Aranha era impossível para crianças e adolescentes como eu.

Mas o Batman, não. Eu não poderia ser Namor ou o Capitão Marvel — mas poderia ser o Batman. Em tese é possível: basta ver seus pais serem assassinados na sua frente, ser milionário e poder dedicar sua vida a combater o crime. Ele não tem nenhum super-poder; apenas treinou bastante para ser o que é.

Mas a verdadeira razão pela qual gosto do Batman é mais obscura: o sujeito é louco. Se há algum super-herói sempre na corda bamba, sempre a um passo de fazer uma grande cagada, é ele. Bruce Wayne é um monomaníaco paranóico, um sujeito bem parecido com os vilões que combate. E é isso que é fascinante nele.

Antigo e Novo Testamentos

E em verdade vos digo: eu gosto de ler a Bíblia. Nem tanto por questões religiosas, mas pela linguagem e pelas histórias.

Talvez por isso tenha uma preferência clara pelo Antigo Testamento em detrimento do Novo. Não entendo algumas coisas — como o tratado de putaria que é o “Cântico dos Cânticos” continuou na Bíblia cristã é um mistério para mim –, mas de modo geral é infinitas vezes melhor que qualquer livro de mistério. Tem sangue, tem traição, tem sexo, tem fé e bondade. Se há um compêndio da raça humana, um livro que resuma tudo aquilo de que o homem é capaz, é o Antigo Testamento. É tão bom ver um herói como Sansão cair por causa de sua luxúria, ou Esther triunfar em toda a sua humanidade.

Mas com o Novo Testamento a coisa complica.

Com a possível exceção de João, nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Os Evangelhos foram escritos distantes no tempo e no espaço da Palestina; e portanto são relatos de “diz-que-diz”. São de uma época em que o apostolado buscava mais e mais discípulos. Daí o excesso de milagres; era uma época em que ninguém via nenhum, como agora, mas todo mundo acreditava. Pessoalmente, considero os Evangelhos uma série ininterrupta de deturpações da verdade histórica (ou quatro grandes livros de propaganda em uma época em que não havia o CONAR para coibir eventuais exageros) — mas nem por isso, que ao meu ver é uma qualidade, ele consegue ser atraente para mim.

Gosto da forma como os cristãos adaptaram sua religião ao gosto de Roma e do Oriente Médio. Os romanos têm uma certa fé na “Deusa Mãe”? Inventemos a Anunciação e a Imaculada Conceição, e tornemos Maria algo próximo de uma deusa (“daqui a dois mil anos hereges vão dizer que é o maior caso de hímen complacente da história, ou vão decorar a testa de José com belos adornos, mas isso não é problema nosso”). Os persas são dualistas e acreditam no demônio? Então a gente pega aquele anjo escroto, Lúcifer, que entre os judeus era basicamente um instrumento de Deus para garantir o livre arbírtrio, e o transformemos em um quase deus do Mal. Ah, os romanos têm uma tradição de estatuária? Mande aquela tradição judaica às favas e façamos ícones de santos.

(Sim, eu estou exagerando, e esse foi um processo que ocorreu lentamente, muitas vezes sem a participação da elite da Igreja; mas só aconteceu porque o cristianismo adotou uma certa flexibilidade teológica que tornou essas pequenas transformações possíveis.)

Segundo Gibbon a força do cristianismo está, principalmente, na noção de vida eterna (em uma época em que se acreditava que o fim do mundo estava próximo), na pureza da fé, no comportamento irrepreensível dos cristãos. Saramago define de forma diferente: a possibilidade de arrependimento é irresistível. Saber que se me arrependo de verdade as portas do Paraíso estão abertas para mim é, no mínimo, reconfortante.

É tanta coisa a favor que é difícil saber exatamente por que não gosto do Novo Testamento. Talvez o que me incomode é que ele é incapaz de dar o justo reconhecimento ao arquiteto do cristianismo: Saulo de Tarso. Sem São Paulo, o mais provável é que o cristianismo vicejasse durante um tempo como mais uma seita mística judaica, e sumisse como tantas outras.

Foi Paulo quem deu ao cristianismo aquele senso romano de universalidade que fez a religião se espalhar pelos quatro cantos do mundo. É como se à força da fé judaica ele desse aquele imperialismo romano. A idéia de que a salvação não pertencia ao povo escolhido, mas a todos aqueles que abraçassem Jesus.

O sujeito era absolutamente genial. Se alguém deu forma ao mundo ocidental como o conhecemos hoje, ele é sério candidato ao cargo. E, no entanto, quão pouco reconhecimento lhe dão, tadinho.