Göering e Speer

Quando lembro do nazismo prefiro não pensar em psicopatas como Hitler, Himmler e Goebbels. Tentar explicar o nazismo a partir de homens como eles é reforçar a idéia de que o fenômeno é inexplicável, porque loucura não se explica.

Mas o nazismo não era constituído apenas de loucos. E é aí que entram Speer e Göering.

Nenhum dos dois era um louco furioso. Eram basicamente oportunistas que viam no partido nazista uma grande oportunidade de ascensão social. Seriam comunistas na União Soviética, democratas nos Estados Unidos, militariam no PTB varguista. Seu anti-semitismo, que existia, não chegava à insanidade de Hitler. Sua coesão ideológica não ultrapassava os limites da loucura. Não seriam eles a propor Auschwitz, em condições normais.

Acho que o Holocausto foi o maior crime que já se cometeu contra a humanidade por uma razão: nunca, antes, se concebeu a idéia de industrializar a morte de seres humanos.

Mas para que se compreenda esse fenômeno é preciso lembrar que o nazismo, sob certos aspectos, foi muito mais mundano do que parece. Não foi uma epifania, foi apenas um resultado. É por isso que acredito, firmemente, que o nazismo é responsabilidade do povo alemão, sim. E culpa também. Só foi possível porque Hitler soube, magistralmente, explorar o sentimento de humilhação e derrota do povo; mas também porque o sentimento anti-semita era generalizado e, naquele momento, estava mais forte do que nunca. Hitler deu aos alemães o que eles queriam naquele momento. Se a coisa saiu do controle são outros quinhentos, que a essa altura não valem nada. Não se trata de marcar os ombros dos alemães de hoje com uma flor de lis, mas lembrar que isso aconteceu e que não deveria se repetir.

É falso classificar o nazismo como um evento isolado, uma espécie de explosão de irracionalismo em um momento específico da história. Não foi: foi um processo longo de formação da própria identidade nacional, de um sistema de crenças e ideologias que permitiram a cristalização de noções como o arianismo e o anti-semitismo como política de Estado.

Aquele foi um crime contra todos nós, porque uma das coisas que nos fazem humanos é dar um valor específico e sagrado à vida. Acho também que o grande erro dos judeus é não perceber esse fato. Se entendessem, não estariam cometendo crimes cada vez mais semelhantes na Palestina. A idéia de Golda Meir, citada pelo André Kenji, de que “depois do que os nazistas fizeram conosco podemos fazer o que quisermos” é uma prova disso. Esse, infelizmente, não é apenas o pensamento de uma ativista sionista em um momento de ruptura: virou a própria consciência da maioria dos israelenses. De certa forma, hoje em dia são os próprios judeus que minimizam a importância do Holocausto, ao tentar fazer dele um crime contra um povo, e não contra toda a humanidade. É como o Roger falou.

É de acordo com essa visão canalha que eles hoje proíbem casamentos de judeus com palestinos, exatamente como os nazistas fizeram a eles com a Lei de Proteção ao Sangue Alemão. E reconstroem o Gueto de Varsóvia, mas agora do outro lado. E assim criam as condições para que crianças palestinas se disponham ao suicídio terrorista. Não são mais suas crianças, e portanto não é tão hediondo assim.

Tudo isso porque acreditam, como Golda Meir, que sua cota de dor os libera para impingir a mesma dor em outros. É o que torna o Estado de Israel, hoje, desprezível e criminoso. E é o que os coloca, para mim, no mesmo nível de Göering e de Speer.

O Nazir falou das outras nações que fizeram vista grossa para o crescimento do nazismo. Eu acho que foi pior: apoiaram, porque naquele momento o nazismo lhes parecia melhor do que a alternativa comunista. Mas acho, também, que isso diz mais respeito à geopolítica (e aí não existem mesmo países inocentes) do que a questões mais claramente humanitárias. O que mancha, acima do normal, a história da Alemanha não é tanto a guerra — o expansionismo alemão foi uma das causas da Primeira, e nem por isso se julga a Alemanha uma criminosa naquele momento –, mas o anti-semitismo. É isso que não se pode esquecer.

O inimigo do meu inimigo

Uma conspiração de oficiais nazistas para assassinar Hitler no final da II Guerra já foi tema de vários filmes, e agora os conspiradores foram reconhecidos pelo primeiro-ministro Gerhard Schroeder como “patriotas“.

O reconhecimento tardio não é apenas um equívoco histórico. É também uma tentativa da Alemanha de se reconciliar a qualquer custo com a herança mais maldita que um país já carregou. Mostra que o desconforto alemão com a sua história está longe de acabar.

O reconhecimento tardio passa por cima de várias questões importantes. Por uma analogia torta, tenta fazer da tentativa de golpe de Estado uma espécie de ápice da resistência alemã. Tenta fazer crer ao mundo que o nazismo, afinal, não foi a coroação de um longo processo de formação da identidade nacional, e sim a conseqüência de um putsch numa cervejaria de Munique, restrito a uns poucos alucinados. Que a culpa pelo Holocausto não é da Alemanha, mas de uma excrescência histórica específica e impossível de se repetir, antes ou depois.

Infelizmente, não houve absolutamente nada de heróico nesse complô. O que se via ali eram oficiais nazistas, participantes entusiasmados da aventura expansionista e anti-semita alemã, desesperados ante o fracasso iminente. A tentativa de golpe nem longe se assemelha, por exemplo, à atuação dos maquis franceses. Não se tratava de resistência popular ao nazismo, nem mesmo de divergências ideológicas internas. O que estava em jogo, ali, eram as peles daqueles oficiais. Mais que “patriotas”, eram políticos oportunistas que se viam encurralados, percebendo que o sonho megalomaníaco tinha acabado, e que precisavam de um expediente que lhes permitisse escapar a um destino que, acertadamente, adivinhavam problemático.

Para que os conspiradores pudessem ser chamados com justiça de “patriotas” seria preciso que se insurgissem contra a base ideológica do nazismo. Seria preciso que acreditassem que o anti-semitismo foi o maior crime já cometido contra o gênero humano; e se isso for pedir demais, deveriam ao menos ter bem claro que as políticas interna e externa nazistas eram moralmente erradas, e não apenas um erro estratégico. Eles não discordavam do arcabouço moral ou ideológico do nazismo: basicamente, achavam apenas que tudo aquilo tinha sido mal conduzido. O problema de Hitler era não ter feito as coisas direito.

Há dois elementos básicos que constituem o nazismo. Um é o totalitarismo político combinado ao tradicional expansionismo teutônico; mas o que realmente o diferencia de outros regimes totalitários, como o fascismo, é o seu conteúdo anti-semita. Nisso a chata da Hannah Arendt (que criou o conceito delirante de “riqueza que não explora”) está corretíssima. A noção hedionda de que se pode estabelecer um sistema mecânico e extremamente funcional para a eliminação total de um povo cujo único crime era descender da tribo de Judá, e transformar isso em política de Estado, foi um momento único na história, e não pode ser esquecido ou minimizado com a glorificação de meros oportunistas.

Não era a Solução Final que horrorizava os conspiradores, muito menos o anti-semitismo; não era sequer a guerra que causou a morte de bem mais de 30 milhões de pessoas. O que os amedrontava era a perspectiva de declínio e queda, de fim de suas carreiras. Não são mais patriotas que Himmler tentando negociar a rendição alemã em meio ao caos de uma Berlim em ruínas, pouco antes de ser expulso do partido por Hitler.

E isso não é patriotismo. É política barata, pragmática, que qualquer vereador de cidade pequena entende e pratica. É sobrevivência. Seria preciso que se revoltassem contra a Noite dos Cristais, contra as meninas judias trancadas nos porões da Alemanha e escrevendo diários de desespero, contra os milhões morrendo na Rússia. Mas não fizeram isso, fizeram apenas o que qualquer rato faz quando o navio está afundando.

Louvar a memória de golpistas de última hora não é resgatar a dignidade alemã. É manipulação barata que visa, unicamente, maquiar a história e tornar um passado degradante algo mais palatável. A Alemanha, 60 anos depois da grande mancha em sua alma, ainda precisa desesperadamente de alguns exemplos que mostrem que o nazismo não pode ser confundido com a própria identidade nacional naquele momento.

Simplismos desse tipo ajudam a obscurecer a compreensão do mais aterrador fenômeno de massas já visto. Dão a ele uma dimensão extraodinária que o desliga do seu processo de construção. Levam o nazismo ao território dos contos de fadas, removendo-o da realidade, dos pequenos oportunismos dos Speer e Göering da vida, e o tornam tão fantástico que é apenas como se fosse um sonho maluco já esquecido.

Talvez isso possa servir de acalanto ao sentimento de honra alemã. Talvez. Se acreditam que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, talvez isso possa servir como um consolo mínimo. Mas ao fazerem isso se afastam da verdade, e o consolo não se torna sequer um analgésico. Não dá para encontrar a paz com mentiras. A dor e a vergonha vão continuar.

Da série "farinha tem proteína"

Via Amorous Propensities:

Billed as the definitive cunnilingus manifesto, the exhaustively detailed 228-page guide has step-by-step instructions on going down – with moves including the Elvis Presley snarl and Jackson Pollock lick – and a section on anatomy. But the focus is simple: oral sex makes women come, intercourse (for the most part) does not.

É interessante quando a incompetência assume ares de sabedoria definitiva.

Eudora e Thunderbird

Usei o Eudora desde que comecei a acessar a internet. Nesses quase 10 anos, foi o único cliente de e-mail que usei para minhas contas pessoais (já usei o Outlook para algumas contas, paralelamente, mas apenas para separar trabalho).

Para mim, lidar com e-mails é complicado. Tenho um sistema meio maluco de organização, o que inclui 4 contas checadas várias vezes por dia e pelo menos mais 5 que checo umas 3 vezes por semana (tem ainda duas que checo quando Deus dá bom tempo, apenas para garantir que elas continuem recebendo o spam nosso de cada dia).

É um sistema que funciona perfeitamente, mas que já está exagerada e que se beneficiará de uma enxugada. Isso, no entanto, fica para depois.

Para piorar, guardo virtualmente todos os e-mails que recebo e mando, com exceção das newsletters que assino, piadas ruins e aqueles que são apenas veículo para arquivos anexados. Por exemplo, tenho as provas de que o Elcio, que hoje é um usuário fiel do IE, já foi um defensor do Linux e odiava o programa que usa hoje.

Por isso, meu nível de exigência de um cliente de e-mail é muito alto. O Outlook Express não presta para absolutamente nada, porque sequer consegue arquivar uma mensagem sem seu anexo. O Oulook é melhorzinho, mas quem consegue usar aquilo?

O Eudora sempre supriu todas as minhas necessidades. E apesar de um layout antiquado e de problemas com HTML, é o melhor cliente de e-mail que eu poderia desejar.

Mas ele é pago.

Nos últimos dois meses testei o Thunderbird. É gratuito, eficiente e, embora um pouco mais complicado que o Eudora, faz tudo o que ele faz — chega a fazer algumas coisas melhor. O único problema está no manuseio de anexos, o que se resolve facilmente com uma extensão. É incrível que, em tanto tempo, somente o Eudora tenha desenvolvido uma solução decente para o problema de arquivamento de e-mails. Ele permite que eu manipule msgs e anexos separadamente. Ou seja, posso guardar a mensagem e apagar o anexo.

Semana passada mudei, definitivamente, do Eudora para o Thunderbird. Ele sobreviveu à prova final, a formatação do HD.

De qualquer forma, eu vou sentir saudades do Eudora.

A Fantástica Reprocessadora de Chocolates

A onda de remakes que sempre assolou Hollywood de vez em quando assume proporções catastróficas.

Aconteceu com “Psicose”, por exemplo; é preciso ser o raro possuidor de uma combinação nefasta de extrema coragem e absoluta burrice para aceitar produzir, dirigir e estrelar uma refilmagem do maior clássico de suspense de todos os tempos, mas Hollywood tem sua própria lógica.

Já as pequenas tragédias acontecem sempre. Foi assim com Sweet November, um preferido meu de 1967 que virou lixo em 2001; e com tantos e tantos outros espalhados por aí.

Mas agora, qual Bush no Iraque, eles pretendem avançar no território dos sonhos infantis. Estão fazendo um filme chamado Charlie and The Chocolate Factory, refilmagem de Willy Wonka and the Chocolate Factory. “A Fantástica Fábrica de Chocolates”

Todo mundo conhece o filme original. É uma daquelas quase obras-primas que, por alguma razão, todo mundo conhece, todo mundo gosta, e das quais todo mundo se esquece de lembrar. É um grande filme infantil, um dos melhores. É uma bela história de fantasia.

A direção do filme é de Tim Burton. Willy Wonka será interpretado por Johnny Depp.

Posso estar errado, claro, mas a impressão que tenho é que Burton vai dar ao filme aquele ar pseudo-gótico de butique, sem muita substância, que fez sua fama. Vai pegar uma história infantil que não tem nenhum pudor em se assumir fantástica e delirante e dar a ela uma pretensão que nunca teve. As nuances de terror que existem no filme original certamente serão realçadas. Aqueles pequenos laivos de loucura que se viam no olhar magistral de Gene Wilder, que fez o Wonka original, serão realçados por Depp, mas ele provavelmente não será capaz (em que pese ser um grande ator) de dar aquele ar ensolarado e alegremente lunático, tampouco o sadismo que os atos de Wonka deixavam antever. O Willy Wonka de Depp, ao contrário do de Wilder, provavelmente se levará muito a sério, talvez passe do ponto da loucura. Não sei quem é Freddie Highmore, que fará o papel de Charlie, mas se ele conseguir fazer aquela mesma cara de inocência triste do original, já estará bom demais.

Acontece que no filme original, esses elementos — loucura, sadismo — eram apenas insinuados, quase submersos diante de algo tão surreal. É bem provável que Burton centre seu filme nesses aspectos. Isso vai matar o filme.

E a música, pelo amor de Deus, é de Danny Elfman. Elfman combina com Batman, com o Homem-Aranha; não consigo imaginá-lo escrevendo Oompah Loompah.

Claro que, apesar da minha má vontade, o filme pode ser muito melhor que o original. Mas eu, sinceramente, não confio em chocolate reprocessado.

A estranha saga de uma carteira

Mal acordo, ainda zonzo da viagem, e a moça do banco me liga, dizendo que acharam minha carteira. Deve ter sido uma triangulação e tanto: ligaram para o Rio, onde deram o telefone daqui, e então me acharam.

À tarde fui no banco. Peguei a carteira e tenho uma surpresa: o dinheiro estava lá, pelo menos quase todo, não sei. Perguntei à moça o que era aquilo. Então ela me disse que uma senhora Maria de Lourdes tinha achado a carteira na rodoviária, mas tinha adoecido e só tinha podido entregar hoje.

Tudo bem. Eu fiquei sem saber se xingava a mulher ou agradecia: afinal, já tinha tirado outra carteira de identidade e cancelado cartões e bloqueado cheques. A essa altura, a volta da carteira não faria mais diferença nenhuma, além de uma certa tranqüilidade.

À noite a tal senhora me ligou. Sotaque sulista. Disse que não tinha podido entregar antes porque tinha adoecido, e viajado, e voltado a Aracaju só para me entregar a carteira. E aí a pulga pulou na minha orelha. Agradeci, e quando ela percebeu que não haveria recompensa ainda teve tempo de dizer um “certo”meio incrédulo com a minha ingratidão antes que eu desligasse.

O vacilo com a carteira não demorou 30 segundos. Ela sumiu assim, rapidinho, do balcão da lanchonete. Ninguém viu. Procurei em volta e fui no balcão de informações, que abriu o sistema de som e perguntou quem tinha achado uma carteira. Nada. Passei meia hora procurando a carteira, para ver se tinham tirado o dinheiro e jogado ali por perto. Nada. E agora aparece essa mulher com uma conversa estranha dessas.

Não sei qual o esquema, nem sequer se há algum, mesmo. Mas me pareceu estranho. Muito.

De qualquer forma, ainda que ela tenha sido bem intencionada, eu não daria recompensa nenhuma. Primeiro porque o proejuízo que tive com isso foi muito grande. Se ela achou a carteira, deveria ter levado ao balcão de informações, ou ao setor de achados e perdidos. Para não ter nos visto, nem ouvido que estávamos procurando uma carteira, ela teria que ter pego a danada e corrido. Não é o comportamento mais honesto do mundo. Além disso, ali dentro tinha duas passagens para dali a 15 minutos; ela deveria ter percebido que o dono estava ali ainda.

E finalmente é mais fácil eu acreditar em disco voador que em alguém que viaja para me devolver 20 reais e cartões e talões de cheques que certamente sabia cancelados.

Acho que estou ficando cético demais.

Diário de bordo III

Quando cheguei a Fortaleza a notícia do dia era a morte de cinco integrantes de uma tal banda Líbanos. Deus sabe que eu desejaria outro tipo de aposentadoria para os músicos, mas não pude deixar de pensar que o mesmo Ceará que deu tantas contribuições à cultura deste país, gente como Capistrano de Abreu e José de Alencar, para citar apenas dois, cometeu crime de lesa-pátria ao perpetrar bandas como Mastruz com Leite, Mel com Terra e Cu com Merda.

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Em frente à Fortaleza de N. Sra. de Assunção, onde nasceu a cidade, uma estátua de D. Pedro II esculpida e forjada em Paris data de 1912, “oferecida pela pátria agradecida”. Deve ser uma das primeiras homenagens republicanas ao imperador.

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Tarde de sábado sem nada para fazer e vou passear no centro. Ao contrário do resto do Nordeste, o centro de Fortaleza existe na tarde de sábado. Na 24 de Maio, duas lojas de artigos religiosos misturam Pombagiras, Zés Pelintras, Pretos Velhos, São Jorges e Iemanjás. Misturam umbanda e quimbanda, candomblé e catolicismo. São um retrato perfeito do Brasil. E me lembram a São João em Niterói, embora esta tenha um número estupidamente superior de lojas. Niterói, como se sabe, é terra de macumbeiro. Saravá.

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Um gringo passa de mãos dadas com uma nativa. Ante meu sorriso que diz, em qualquer língua, “Aí, hein?”, ele se desconcerta e tenta soltar, instintivamente, a mão de sua nova e efêmera namorada.

Também instintivamente, ela não o deixa soltar. E segura a mão dele com força, enquanto anda altiva, olhando firme para a frente.

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Motel Stylus, portinha pouco discreta em frente a um ponto de ônibus: 7 reais com vídeo, 6 reais sem.

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Passo por um camelô e lembro que, afinal de contas, eu não tenho mais carteira. E não me sinto exatamente inclinado a pagar 50 reais por uma nova, para outro desgraçado-miserável-infeliz-amaldiçoado levar.

Será a primeira carteira que compro na vida. Minha irmã sempre conta a história de como era obrigada a comprar carteira para mim porque eu usava o que me dessem. E durante muito tempo nem mesmo isso usei: meu dinheiro ia amassado no bolso como dinheiro de bêbado.

Pego uma e o camelô dá o preço: 7 reais. Compro. Vejo outra, agora com compartimento para as moedas que vivem caindo do meu bolso, e ele avisa que é mais cara, porque é couro de verdade. Mas vale a pena: é a que ele usa. Emocionado com o referencial estético, é essa que eu levo.

Quem quiser que reclame da minha carteira de camelô. Ela vai viver encostada à minha bunda, mesmo.

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Um casal de gringos — americanos, pelo sotaque — chega ao hotel enquanto faço meu check out. O guia conversa com eles, que querem algo naquela área. Quando são informados do preço, reclamam: “Too much. Too much“.

O hotel é barato, ou eu não estaria lá. Já fiquei em todos os hotéis daquela rua, com exceção do Holiday Inn, e posso afirmar que não vão encontrar nenhum mais barato. Os gringos é que são sovinas. São um desrespeito à classe de turistas dos países desenvolvidos, que vêm a um país com câmbio de 3 por 1 e salário mínimo de 80 dólares e ainda reclamam do preço. Devem estar decepcionados por não verem macacos raivosos na rua.

Penso em sugerir a eles o Motel Stylus, 7 reais com vídeo, 6 reais sem. Mas eles não entenderiam a piada.

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Eu estou um bagaço. E com saudades.

Almanaque Disney

Ainda lembro do dia em que comprei o meu primeiro Almanaque Disney. Foi em agosto de 1977.

O Almanaque Disney era uma das revistas com o melhor custo/benefício da praça. Tinha mais histórias que as revistas normais, mais variadas, e ainda tinha uma seção com curiosidades, geralmente sobre a vida animal. Trazia sempre uma quadrinização de algum filme da Disney, os mesmos que, com sorte, podíamos ver na Disneylândia ou na Sessão da Tarde.

Melhores que o Almanaque Disney só as Disney Especial, coletâneas de histórias com um mesmo tema — Os Rivais, Os Cosmonautas, etc. Eram grossas e demoravam mais para serem lidas.

Naquela época os quadrinhos Disney eram a melhor coisa que se podia ler. Maurício de Sousa já tinha um universo tão completo quanto o de hoje — e suas melhores histórias são justamente dessa época, final dos anos 70 –, mas não ocupava o mesmo lugar no imaginário infantil. Os quadrinhos Disney eram onipresentes e absolutos. Era uma grande fase: além das ocasionais histórias de Carl Barks, o estúdio brasileiro fazia coisas excelentes, com um pouco do espírito brasileiro.

Mas o tempo não pára.

Ultimamente, a impressão que tenho é que os quadrinhos Disney sobrevivem em um pulmão artificial. Provavelmente, a Editora Abril só não os abandona por uma questão sentimental: foi com a revista do Pato Donald que Victor Civita começou o seu império editorial (ou de dívidas, como queira). A maioria das histórias, hoje desenhadas na Itália ou na Dinamarca, são chatas, histéricas; e vem se tornando uma característica da Disney a incapacidade crônica de dar um final aceitável a elas. É como se as histórias fossem simplesmente interrompidas.

Hoje em dia não vejo mais crianças lendo suas histórias; seu lugar foi ocupado por Maurício de Sousa (converse com um desenhista e ele vai descer a lenha no sujeito, mas a verdade é que seus personagens são geniais) e pelos noviços do Cartoon Network. É quase inacreditável que personagens universais como o Tio Patinhas e o Pato Donald tenham, simplesmente, envelhecido.

Quando o Pato Donald completou 50 anos houve uma grande comemoração. Este ano ele completa 70, e ninguém mais fala disso. Disney morreu. E o Almanaque Disney virou uma coisa tristemente chata.