Ralouin

Era domingo e minha filha, depois de me deixar a par das posições dos candidatos a prefeito na última pesquisa, me lembrou: “Hoje é Halloween”.

Eu não posso ser acusado de xenófobo. Meu escritor preferido é um francês, seguido de perto por um russo. Minha banda preferida é inglesa e a música de que gosto foi criada por uns descendentes de africanos nos Estados Unidos. Troco praticamente qualquer filme brasileiro por um bom exemplar da Hollywood dos anos 30 e 40. Chego mesmo a achar que essa mania de valorizar em excesso o que é brasileiro e virar o rosto para o que vem de fora é um sinônimo incorrigível de burrice, sem volta.

Mas quando o assunto é Halloween eu viro o mais reacionário dos xenófobos, o mais nativista dos idiotas.

O Halloween começou a virar moda por aqui aí pelo final da década de 80, quando os cursos de inglês proliferaram e resolveram encontrar um diferencial de marketing. A isso juntou-se a tradicional mania brasileira de aproveitar qualquer motivo para fazer festa.

Se o Halloween é produto do conflito dialético entre a antiga cultura celta e os novos costumes cristãos na Irlanda, tudo bem, não se pode negar que é uma história bonita. Mas a mim não diz absolutamente nada. A minha tradição é outra. É a do Caipora fumando na floresta, do Curupira e seus pés invertidos confundindo os caçadores; é a história da mula sem cabeça que passa as noites a pagar o preço de seus amores com o padre. É a história do Boitatá.

E ainda que as tradições indígenas pareçam pouco, o que não são, há a belíssima cosmogonia iorubá. A história de como Iemanjá deu à luz os orixás é de uma beleza impressionante — e há várias mais, tão arquetípicas quanto a mitologia grega. Infelizmente não temos um Jung para codificar esses arquétipos em um livro que faça sucesso nas universidades, onde se aprende a dizer da boca para fora que os valores brasileiros são lindos (porque um alemão disse isso ou algo parecido); mas se tivéssemos ele provavelmente descartado como um idiota forçador de barra.

Eu não entendo por que um bando de bobos se veste de bruxa para dizer “travessura ou gostosura” na porta dos outros, quando essa pequena chantagem sempre foi um costume de Exu — que ao contrário do que o povo parece pensar, é menos identificado com o diabo do que com esse mesmo trickster que inspirou o trick or treat.

É apenas a ignorância que nos faz valorizar o Halloween e menosprezar aspectos de uma cultura que viemos desenvolvendo e depurando por centenas de anos.

O resultado é que as crianças de hoje em dia conhecem melhor a versão pasteurizada de uma tradição cultural que não é delas do que algumas das mais belas lendas brasileiras. Como a do Negrinho do Pastoreio, lenda de uma beleza lírica tão grande que nenhum Halloween com seu Jack o’ Lantern poderá jamais alcançar.

Que me desculpem aqueles que se empolgam e se vestem de bruxa e de duendes no dia 31 de outubro. Mas o Halloween é uma comemoração de bocós que não pensam.

Assim que minha filha chegar a gente vai ter uma conversa séria.

14 thoughts on “Ralouin

  1. Sua análise da cosmogonia iorubá é muito boa… Sendo Umbandista, estudo muito essa mitologia das divindades afro-brasileiras, e todos esses aspectos deveriam ser mais valorizados mesmo. Concordo tb no que diz respeito aos Exus.

  2. Ô Rafael, agora vai todo mundo bunitim, juntar as mãozinhas e lamentar a perda de nossas tradições. Elas não se perderam, nós que as abandonamos pelo caminho. Nossa geração (acho que você é próximo da minha idade) só conheceu essas histórias por livros, sem nunca ter participado de nenhuma atividade que incluísse seus costumes. Conheço o saci do sítio do picapau amarelo. Nunca pedi bala em Cosme e Damião. E se olharmos bem, o que interessa aos adolescentes é mais o clima trash, dos filmes de terror que bruxinhas e aranhas. Não somos invadidos, somos suicidas culturais.

  3. Uma coisa interessante é a força dos espíritos (ou almas como preferimos) em nossa histórias populares de terror. É algo que se reflete na força do espiritismo no Brasil? O grande sucesso de filmes como O Sexto Sentido aqui com certeza é um reflexo desta nossa credulidade.

  4. Pelamordedeus, deixe sua filhota em paz. Nada é mais contraproducente do que pai dando sermão.
    Com o tempo, as bobajadas vão e o que foi gostoso mesmo fica. Mesmo que seja uma fantasia boboca de bruxa. Fica o riso, fica a infância e pode até mesmo ficar o pai “caretão”, por que não?

  5. Oi, descobri seu blog pela propaganda no site do Alexandre Cruz Almeida. Sou blogueira e adoro zapear por blogs afora… que mania essa, né? Bem, parei por aqui, li alguns textos e gostei do seu estilo. Aliás, o post sobre a cabocla, achei bem divertido. E sua filha não tem culpa das influências estrangeiras, né?! Inté.

  6. A criatividade brasileira é preguiçosa. O Halloween só existe nos EUA porque os ãã ‘promotores de cultura’ (editores, autores, atores, músicos, &c) não têm preguiça de ficar reformulando velhos costumes infinitamente.

  7. tudo bem sou a favor de raizes brasileiras, amo as lendas, sempre li as hisotrias da amazonia, e mesmo a da gralha azul e de como tupã criou as cataratas do iaguaçu. mas até q enfim eu tenho um dia pra mim e vc quer acabar com ele??? no dia do médico nao recebi nada, mas no dia das bruxas, um monte de parabens!!! deixa eu aproveitar q eu to carente!!!!
    hehehehehe
    beijocas, brilhante como sempre!

  8. Saci Pererê.
    “Neguinho do pastoreio/Acendo essa vela pra ti/E peço que me devolvas/ A querência que perdi/…”
    Como pode uma cultura folclórica tão rica como a nossa perder espaço (e gerar tão poucas manifestações populares) para hábitos importados e sem compreensão para a maioria do povo?
    Pé de pato, mangalô, três vezes!
    Ciao

  9. Minha filha mais nova era da creche de um famoso colégio de Santa Tereza, no Rio de janeiro.
    Ao matriculá-la, informaram, como se fosse algo revolucionário, que não comemoravam dias das mães, dos pais, etc.
    Também não comemoravam Cosme e Damião, mas… quando comemoraram Halloween, mudei minha filha de colégio.
    Sou ateu, mas sempre que estava no Recife em dezembro, eu assistia à peça Baile do Menino Deus, maravilhoso resgate de inúmeras tradições pernambucanas associadas ao ciclo natalino.

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