Ramon

Sábado, dois de dezembro de 2006. Um sujeito se aproxima de mim, no Porto da Barra, e me pede um cigarro. Aquele que estou fumando é o último do último maço, e ele então pede um a minha mãe, ao meu lado.

Ele tem o cabelo pintado de louro, mas a água oxigenada foi passada já há algum tempo, e o louro está ficando escuro, quase ruivo. É um sujeito esquisito, os dentes em péssimo estado, e parece ter bebido e fumado tudo o que podia durante a longa noite de sexta-feira, e talvez um pouco mais. Não parece ter 20 anos, mas aparências enganam, quase sempre.

Ela olha para mim, já esquecida do que é ser baiana, e eu digo para dar o cigarro. Não se nega um cigarro, nem mesmo a um sujeito esquisito como aquele, nem mesmo a gente que parece estar sempre pedindo. Devemos todos seguir um código de ética rígido e cavalheiresco, e colaborar com os enfisemas uns dos outros.

— Valeu, coroa.

Ele acabou de fazer uma inimiga, pela insolência. Mas não liga, talvez nem perceba isso, e desaparece em meio à multidão que começa a se formar na praia.

Depois de um hippie que passou alguns bons minutos sentado diante de nós tentando nos vender uma mandala de arame, contando estar em Salvador apenas o tempo suficiente para conseguir dinheiro para voltar a Morro de São Paulo — mandala que, pela graça e suavidade com que o hippie conta suas histórias, até merecia ser comprada –, o sujeito do cabelo oxigenado e dos dentes estragados volta.

— Bróder, me arranje outro cigarro, a segunda.

— Porra, meu irmão, de novo?

— Que é isso, rei, você é bróder… É o último.

Eu acabo dando; tanta cara de pau merece ser premiada.

— Você mora aqui no Porto?

E assim, na sua mente ainda turva, toda e qualquer dúvida sobre eu ser um turista como a lourinha muito branca que desde ontem está numa cadeira ao lado com o filho que ainda mama, mas que hoje traz umas tranças mal-feitas provavelmente feitas no Pelourinho (se ela me perguntasse eu poderia recomendar uma moça, a Isabel, que faz tranças e tererês muito melhores, mas é lá no Alto do Coqueirinho) se esvanece. Por causa de um cigarro, porque.

Curioso é que na Bahia as pessoas não costumam ser tão tolas; já me perguntaram no Rio se eu falava português, e eu não tenho absolutamente nenhuma, nenhuma cara de gringo. Na cidade da Bahia elas simplesmente sabem, assim como os taxistas baianos no aeroporto nunca me perguntam se quero um táxi quando saio para fumar, ao contrário do que acontece no Galeão. Mas o sujeito parece que bebeu e fumou e cheirou o que podia, é o que eu acho, e então ele tem perdão.

É esse um segredo do baiano, tentar aplicar descaradamente em alguém para ver se cola; o outro segredo é o de simplesmente reclamar, tá achando que eu sou trouxa?; é como um código. Um turista se assustaria, ou simplesmente diria que não tem; o baiano tem menos paciência e reclama do descaramento, um descaramento que também costuma ser seu. Deixa ele achar que eu também sou baiano.

— Não, mais pra lá — e aponto para o norte.

— No Farol?

— Não, mais pra lá.

— Rio Vermelho?

— Não, mais pra lá — penso em parar a brincadeira em Lauro de Freitas, é longe o suficiente, mas ele não pergunta mais:

— Mas já morou aqui?

— Fui criado neste canto da praia.

— Massa, bróder.

Sorriso protocolar como resposta.

— Meu nome é Ramon. E o seu?

— Rafael.

— Valeu mesmo, rei. Qualquer coisa eu tô sempre por aqui. Precisando…

— Valeu.

E então ele vai aproveitar a sua praia enquanto o sol brilha, que hoje é sábado e só Deus sabe o que a noite fará dele. Mas não sei quem precisa mais de quem; pelo menos de cigarros eu sei que é ele.

Dali a pouco Ramon está brincando de bola com uns meninos por ali, provavelmente conhecidos naquele mesmo instante. Se faz amigos com muita facilidade no Porto da Barra. E o mais engraçado é que ele brinca como criança, talvez ainda mais desajeitado que elas, e suas pernas estão sempre apontando caminhos diferentes. Eu tiro algumas fotos. Fico com o sujeito na cabeça. Ramon é o baiano típico, mas é também atípico, e é isso o que me intriga nele. Ao mesmo tempo, sei que é por causa de pessoas como ele que aquele pessoal que ainda mora na Barra, inconformado com a decadência estrondosa e inevitável do bairro que há trinta anos parecia o Leblon mas hoje mal chega a Copacabana, evita ir para a melhor praia do mundo bem à sua frente para se enfiar nos confins de Guarajuba ou ainda além. A Barra é uma praia para ser freqüentada apenas durante os dias de semana, se você tem boa vontade.

Mas isso não é da minha conta. O Ramon pode não saber, mas eu sou turista. E tenho mais em que pensar. Nesse exato momento, minha filha está mergulhando do quebra-mar do Porto da Barra, como eu mergulhava quando tinha exatamente a sua idade, e eu tenho que tirar fotos. Penso apenas que o pobre do Simba não tinha máquina fotográfica na Pedra do Rei, e eu tenho mais sorte; e talvez também porque em vez de Scar eu tenho o Ramon por perto.

Republicado em 19 de julho de 2010

19 thoughts on “Ramon

  1. ???

    tá, eu ia zoar esse surto humanista, mas o texto está tão bacana que me transportou pra Barra momentaneamente. e a parte das fotos me fez lembrar meu filhote.

    Não sei o que deu em você, mas muito obrigado duas vezes: uma pelo texto e outra por se expor genuinamente. gostei do que li

  2. Queria que no final do texto houvesse uma “moral da história”. Mas a vida não é assim.

    Obrigado.

  3. Rafael,
    a verdade que salva e liberta é uma só: o Porto da Barra é a melhor praia do mundo, apesar e também por causa dos Ramons de todas as espéceis.

    E os otários que ali moram e preferem Guarajuba são apenas isso: otários.

  4. A fotinha é da selva de pedra?

    Entendi porque tomou o soro, foi praia demais!!

    Não quero enxergar que o mundo está mudando pra pior e ter esperanças que o melhor esteja no núcleo de todos!

    FELIZ NATAL!! Beijus

  5. Ned Nelson ta diferente 🙂

    E os taxistas do Galeão são tão desesperados que provavelmente oferecem o serviço uns aos outros.

  6. hahaha!
    tb só li o texto agora, na republicação.
    e me identifiquei: com certeza eu tenho muito mais cara de gringo do q vc, ou pelo menos, de paulista (rs)… então, tão certo qto o Bahia não vai subir pra Série A esse ano, toda vez q eu vou na Bahia, alguém me aborda *tentando* falar comigo em portunhol ou inglês macarrônico…
    e eu sempre respondo, na lata: – tá ‘veno’ você errado? sou turista não, mô pai…
    e o sujeito fica me olhando, admirado… como é q pode, esse branquelo é baiano? tem alguma coisa errada aí…
    confesso q já me irritei com isso, mas hj em dia, relevo. turismo predatório agora é a alma da cidade, faz parte.
    grande abraço,

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