Crônica de um cotidiano que quase passou

Continuando a cruzada religiosa deste blog, um livro lido no ano passado continua na minha memória Chama-se “Vida no Brasil” e foi escrito por um sujeito chamado Thomas Ewbank.

Ewbank era um americano que passou alguns meses no Brasil, em 1866. Suas anotações sobre o cotidiano da Corte se transformaram em livro, cujo subtítulo é “Diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras”.

Por alguma razão, “Vida no Brasil” não é um livro lembrado com entusiasmo por gente como Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Hollanda, os inventores do Brasil. Há pouquíssimas referências à obra de Ewbank em seus principais livros. Eles preferem outros viajantes, como Saint-Hillaire e Debret (embora Freyre faça ressalvas em princípio a outros franceses, que costumam exagerar e mentir em seus relatos). Essa lacuna chama mais a atenção em “Sobrados e Mucambos”, livro de Freyre que trata especificamente do período em que Ewbank esteve no Brasil. Eles mencionam “Vida no Brasil” em suas obras, claro. Mas é sempre com parcimônia, ilustrando temas secundários e de maneira acessória.

É uma pena. O livro de Ewbank é um relato fantástico do cotidiano da capital do país em meados do século XIX. É o tipo de livro que pode ser escrito apenas por um estrangeiro, para quem tudo que nos parece normal e óbvio é estranho e diferente. É justamente por não estar inserido no cotidiano, por não estar acostumado a ver tudo aquilo todo dia, desde sempre, que as pequenas coisas lhe chamam a atenção.

Aquele era um momento importante na história do Brasil. O século XIX foi o da reeuropeização do país. Depois de dois séculos de isolamento, em que forjamos a base da nossa identidade nacional mesclando elementos europeus, negros, indígenas e, acessoriamente, asiáticos — herança da tradição navegadora portuguesa –, o Brasil insular voltava a ter contato com a civilização européia. E mudava rapidamente seus costumes, adotando conceitos e costumes inteiramente novos — como a cerveja que substituía o aluá, as casacas pretas quase onipresentes e o pão de trigo que botava a mandioca para escanteio. Ewbank não pode ter consciência desse processo em andamento; mas ao contar o que via, fornece dados importantes para a sua compreensão.

O melhor em “Vida no Brasil” é resultado do espanto de Ewbank diante das tradições religiosas do Brasil. A escravidão, por exemplo, não lhe parece hedionda: afinal, ele vinha de um país que tinha libertado seus negros havia pouco tempo. É por isso que, com exceção de menções feitas quase de passagem, não é o regime escravocrata no Brasil que chama a sua atenção, o fato de um Estado aceitar a servidão de um homem. Se algo lhe revolta não é propriamente o sistema jurídico: são os abusos dentro desse sistema. Apenas no final do livro se encontra uma condenação um pouco mais contudente à escravidão — mas dirigida principalmente aos donos de escravos que os exploram em excesso, especificamente os do Norte (que, curiosamente, mostram ainda lembranças claras da Revolta dos Malês, em seu quase respeito aos escravos muçulmanos), e não quanto ao regime jurídico que permitia que uma pessoa possuísse outra.

Se, por exemplo, menciona o fato de os mesmos monges beneditinos que rezam as mais belas missas do Brasil terem centenas de escravos em suas fazendas, não é exatamente por indignação contra a escravidão, mas por notar a ironia religiosa e a contradição no discurso. Seu alvo não é a escravidão: é o catolicismo. Isso não impede, no entanto, que ele note as deformidades físicas que o trabalho forçado inflige aos negros, nem tampouco a beleza das escravas, ou ainda que não se espante com os castigos infligidos.

Se o fato de ser criado dentro de uma tradição que tolera a escravidão lhe torna complacente em relação a exploração dos escravos brasileiros, com a religião a conversa é outra. Ewbank foi criado em um país definido pela tradição puritana.

É isso que torna o seu livro realmente interessante: seu espanto diante da tradição católica brasileira — ritualística, hipócrita, sensual e exuberante — e o modo como ela se insere de maneira quase onipresente no cotidiano do brasileiro. O catolicismo pátrio, principalmente pelo que tem de teatral e obscurantista, fascina Ewbank: tudo aquilo é absolutamente exótico para ele. E o americano é perspicaz o suficiente para perceber a extensão da influência da Igreja na definição do caráter nacional. Ewbank acaba fazendo um relato preciso da relação do brasileiro com a religião e com a sociedade.

Aqueles eram outros tempos. Procissões se sucediam, assim como paradas, e as pessoas beijavam estandartes e bandeiras com devoção ou, mais provavelmente, respeito a uma conjuntura social. Caixas de esmolas se espalhavam pelas ruas. Em todas as igrejas, as pessoas podiam pegar suas medidas dos santos e fingir uma devoção que, já ali, misturava doses semelhantes de fé, hipocrisia e oportunismo. Os padres que não fugiam com suas fiéis tinham uma importância enorme em suas comunidades. Superstições que ainda hoje sobrevivem tinha uma força quase inimaginável.

Ewbank estava no Brasil quando se iniciou aqui o culto a Santa Prisciliana. Ele descreve com riqueza de detalhes o processo que criou, a seu ver artificialmente, um novo objeto de culto. Não esconde a indignação com o que julga, acertadamente, ser um grande embuste; mas faz questão de, antes, descrever o que se passa.

É óbvio, desde as primeiras páginas do livro, que o olhar de Ewbank não é imparcial. Ele é, definitivamente, um protestante americano. No Rio de Janeiro de 1866, Ewbank poderia passar perfeitamente por um bom inglês, com suas roupas escuras e sua incapacidade de se misturar ao povo local, demonstrando mesmo um certo horror pela barbárie que presenciava ao mesmo tempo em que é sensibilizado pela hospitalidade brasileira. Definitivamente, o catolicismo brasileiro não era “limpo” como o puritanismo americano. Como bom anglo-saxão, Ewbank mostrava total falta daquela qualidade plástica portuguesa que possibilitou esta que é a mais bem sucedida civilização européia nos trópicos.

Mas mesmo parcial, ou talvez por isso, Ewbank era dono de um olhar acurado. Homem de boa cultura clássica, é capaz de perceber as origens orientais em tradições brasileiras como o entrudo, que daria origem ao carnaval. A arquitetura colonial privada — que naquele momento de crescente urbanização começava a desaparecer, com rótulas e gelosias nas janelas dando lugar a vidraças e venezianas — lhe chama a atenção, e ganha em sua comparação com o amor setentrional à madeira e ao estuque. Mas mesmo admitindo a superioridade da arquitetura brasileira, ele não deixa de se horrorizar com um dos principais traços da nossa cultura: o total descaso com a rua, com a comunidade. Um traço que define a personalidade do brasileiro e compreendido com facilidade por Ewbank, ao notar que enquanto os americanos tinham calhas que traziam as águas das chuvas dos telhados para as calçadas, as casas brasileiras simplesmente jogavam a água no meio da rua, e os transeuntes que se virassem como podiam.

Quando voltou para os Estados Unidos, Ewbank levou consigo uma preguiça. O animal morreu durante a viagem. É bem possível que tenha morrido de sede: preguiças não bebem água. E esse fato simples talvez mostre a natureza de uma relação norte/sul que se perpetua até os dias de hoje. Ewbank era capaz de ver o que estava à sua frente, mas era incapaz de compreender, de verdade. Mesmo assim, o livro que escreveu a partir de sua experiência na terra das palmeiras é um relato importante da rotina na capital do império brasileiro. E, o que talvez seja mais importante, permite uma comparação razoavelmente precisa e fornece elementos importantes para que se compreenda um passado que, ainda hoje, continua no Brasil moderno.

Republicado em 20 de agosto de 2010

11 thoughts on “Crônica de um cotidiano que quase passou

  1. eita ..
    brincadeira isso
    depois vc diz q o blog é só pra implicar ..
    sei
    e eu so tinha lido gelosia antes em o morro dos ventos uivantes
    e não é que ainda somos “descuidados” com as ruas?
    😉
    abrasssss

  2. Nessa onda religiosa, lembrei da historinha das beatas safadas que jogavam no bicho às escondidas. Mas só vale se cantada no final.

    O padre definiu que uma delas levaria o estandarte durante a procissão, marcada justamente no horário do resultado do jogo do bicho, no interior do estado. Iria distante, sozinha, lá na frente guiando a procissão pelas ruas. A outra beata — puxadora do côro — estaria atrás do padre, muito longe da amiga alcoviteira. A ordem de uma procissão é cheia de níveis: após o estandarte, vêm os anjinhos, o andor, o santíssimo, os padres, os coroinhas e seminaristas… e atrás dessa ruma de gente, o côro e a multidão. A beata que puxava o côro, ao ver que a procissão por fim entrava na avenida de uma banca “Para todos Bahia”, entoou de modo que a amiga ouvisse e na mesma melodia da ave-maria que cantava:

    – Ocê lá da frente é mais arta qui eu, oiá na tabela o bicho que deu…

    – Foi ave… ave… ave… ESTRUZZZZZZZZZ

  3. Legal, Rafael. É sempre bom, vez em quando, escapulir um pouco dos “inventores do Brasil” e buscar outros olhares.

  4. O que me chamou atenção em seu post é o descaso do urbanismo lusitano com a rua. Sou gaúcho e morei a vida toda em Porto Alegre, que é uma cidade que nasceu portuguesa e foi se transformando depois de levas de imigrantes alemães e italianos se estabelecerem no estado. O espaço de convivência que define a cidade, a rua, onde as pessoas têm a vida pública, merece toda a atenção dos moradores. As calçadas são largas, arborizadas, os prédios e casas têm recuo e jardim. No Rio, com a exceção da Zona Sul, traz o urbanismo português: o terreno é tomado por uma grande construção, macica, de concreto, azulejada, e sem um centímetro para respirar. A construção se debruça sobre uma calçada estreita e sem árvores. De dar dó.

  5. Achei muito pertinente a atitude de chamar a atenção para uma outra vertente da construção social brasileira, ainda que seja por um olhar externo como o de Thomas Ewbank, cujos seus relatos são ignorados por muitos pesquisadores beneditinos, D. Estevão Tavares Bettencourt por exemplo.

    Muito bom mesmo!!!!!!!!

  6. Meu caro,
    peço cuidado com as afirmações que tece so Life in Brazil. Muitas, dentre elas a data em que o viajante esteve no Brasil, bem como a forma como Freyre tratou o relato, estão incorretas…
    Em 1846, qdo aqui esteve, a escravidaço nos EUA existia de forma intensa, nao apenas no Sul do país, mas tb no Norte. E sim, para ele, a escravidão não era vista com bons olhos, principalmente pq impedia o desenvolvimento do homem branco, que via o trabalho como desenroso.
    Ewbank era um homem das ci~encias práticas, e não um erudito. Sugiro, respeitosamente, uma leitura mais aprofundada sobre o tema.
    Cordialmente,
    Carla Viviane Paulino

  7. Carla,

    Você tem razão e o erro quanto à data da viagem de Ewbank é imperdoável, o tipo de erro que dedos rápidos demais e mente devagar demais pode cometer.

    Mas eu discordo de você quanto ao resto do post.

    É bom lembrar que, diferente do que aconteceu no Brasil, a escravidão nos EUA era um fenômeno tipicamente rural, com pouquíssimos grandes proprietários, e essencialmente um fenômeno sulista. A população escrava de todo o Norte em 1840 era de 1200 escravos, 0,7% da população de negros livres, que por sua vez eram minoria em relação aos brancos. Além disso, se não me engano ele vinha de Nova York, onde a escravidão tinha sido abolida quase 20 anos antes. Por isso, se havia ou não escravidão no Norte me parece um dado insignificante nesse contexto.

    A escravidão não era vista com bons olhos por Ewbank, você tem razão e o post não disse o contrário; mas não era bem vista por ninguém além de donos de escravos, nem mesmo no Brasil, onde a atitude “fidalga” que Sérgio Buarque identifica na estrutura sócio-econômica portugesa e brasileira fez da escravidão um problema muito mais grave e complexo do que nos EUA (por sua vez, sua afirmação de que o homem branco via o trabalho como desonroso se aplica apenas ao brasileiro, não ao americano de modo geral, e ainda assim especificamente ao trabalho manual). De qualquer forma, nada em seu livro me permite inferir que ele era um radical Republicano abolicionista. Pelo contrário: mesmo com o volume extremamente alto de escravos nas ruas, isso não lhe parece despertar indignação excessiva ou uma condenação taxativa; certamente não nos mesmos termos em que ele condena a religiosidade brasileira, o que está claro no capítulo que ele dedica à chegada das relíquias de Santa Prisciliana. Mesmo com a forte impressão que os escravos deformados pela opressão e pelo excesso de trabalho lhe causavam, não é algo tão estranho a ele quanto uma procissão. Na verdade, o fato de estar acostumado à “peculiar institution”, como um conceito e uma realidade, na minha opinião ajuda a fazer com ela não lhe choque em demasia.

    O post falava especificamente da importância muito menor dada ao problema da escravidão em comparação à condenação e ao espanto explícito diante da religiosidade luso-brasileira. E na minha opinião isso se dá por causa do seu estranhamento, algo tipicamente anglo-saxão.

    Quanto à questão da erudição, talvez você tenha querido dizer educação formal. Porque ele era suficientemente erudito para perceber as origens asiáticas do entrudo, por exemplo, o que quer dizer que precisava conhecer suficientemente bem a história das conquistas portuguesas; e isso, em um país cuja maioria dos habitantes não sabe sequer a que pão de açúcar a montanha ao lado do Morro da Urca se refere, é bem interessante. Decididamente não era um analfabeto e, se lembro bem, tinha um nível bem razoável de leitura. Não é porque ele se dedicava às “ciências práticas” que ele não podia ser erudito.

    Quanto a Freyre, basta olhar o índice onomástico para ver que as citações são relativamente poucas, e comparar o contexto das citações com outras como, por exemplo, Maria Graham. Foi isso o que eu disse, não que Freyre não lhe deu atenção nenhuma. Pode-se discutir por quê, mas não é tema do post.

  8. Rafael,
    Minha dissertação de mestrado, recém terminada, foi sobre Life in Brazil. Estudo as relaaçãoes entre stados Unidos e América Latina na Ubiversidade de São Paulo.Se tiver interesse, mando a vc. Continuo discordando da maioria de suas argumentações, mas o pouco tempo que possuo no momento não me permite responder com a devida atenção a todos os seus argumentos. Quem sabe nas férias eu o faça. Em breve sairá um artigo meu sobre o tema. Mas como disse, posso lhe enviar minha dissertação. Observe o que Freyre fala sobre Ewbank em Ordem e Progresso… é de cair o queixo…

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