Bangue-bangue

Revi dia desses uma foto minha aos oito anos. Nela estou vestindo calça, kichute e camisa de manga comprida. Não era minha roupa habitual — eu normalmente vestia apenas um short qualquer (na época os shorts de nylon começavam a ser a grande moda) e descia para a rua, para brincar e acumular cicatrizes em virtualmente todo o corpo, além de algumas fraturas aqui e ali. No máximo usava uma sandália — nessa época, Katina Surf.

Mas aquela indumentária específica, naquele dia, era o que eu podia chegar de mais próximo à roupa de cowboy: na cintura havia um cinturão de plástico com dois coldres e dois revólveres prateados de espoleta.

Ver esses revólveres novamente é estranho. Lembro exatamente de quando os ganhei — uma manhã de sábado de 1979. Pela primeira vez eu tinha um coldre e uma cartucheira — embora não fossem de couro, fosse de plástico. Na caixa vinha também uma estrela prateada de xerife.

Revólveres de espoleta foram uma das constantes da minha infância, assim como os bonecos Falcon e os filmes da Sessão da Tarde. Com um revólver na mão tinha-se garantida uma tarde inteira de brincadeiras. Podia-se, com um pouco, quase nada de imaginação, imaginar que postes eram saguaros, que portões de garagens eram celeiros, e que tumbleweeds rolavam pelas ruas asfaltadas como em uma cidadezinha qualquer da fronteira, onde iríamos duelar até a morte.

Os revólveres eram sempre versões do Colt Peacemaker, e havia dois tipos de espoleta. Um em que ela vinha em pequenos rolos de papel, as espoletas Ringo, e outro em que elas eram acondicionadas em aros de plástico: eram as espoletas Far-West. Eu preferia, de longe, essas últimas. As espoletas de papel davam muitos problemas. Eram mais baratas, davam mais tiros sem precisar recarregar, mas enganchavam — e se elas enganchavam um dos comanches que eu perseguia poderia me matar.

Nessas horas, todo cuidado é pouco.

Eu tive alguns revólveres daquele modelo Far-West, da Estrela, além de alguns outros. Não sei exatamente quantos revólveres de espoleta tive, nem os seus modelos, embora saiba que a maior parte eram o Far-West ou variações. Mas lembro desse que estou usando na foto, provavelmente uma variação do modelo Laramie, com dois revólveres e cartucheiras, um modelo semelhante ao que está na foto ao lado, com a diferença de que não vinha com corda e provavelmente nem com lenço, mas em compensação vinha com uma estrela de xerife e com dois revólveres. Mas eu não gostava tanto deles, porque usavam espoletas Ringo.

Lembro também dos que eu não tive; o Álamo da foto ao lado foi meu objeto de desejo ainda em 1981. Não adiantou que eu atravessasse a rua constantemente para ir namorá-lo no Burako da Fechadura, uma pequena loja de presentes quase em frente ao edifício onde eu morava. Um dia venderam o último exemplar, e eu fiquei sem ele. E nunca mais tive um revólver de espoleta. Seu tempo tinha passado, para mim, e em breve passaria para toda a sociedade.

Mas não foram apenas revólveres. Ainda lembro do sábado em que fui com meu pai comprar uma espingarda de espoleta nas antigas Lojas Brasileiras da Avenida Sete. Era uma bem parecida, se não igual, com o modelo abaixo. Com ela pude brincar de Daniel Boone — que não usava revólveres, apenas uma espingarda de caça, o rifle de Kentucky. Aquela era a também a minha Winchester, e não era difícil imaginar carroções em círculo nos defendendo de um ataque de siouxies ou cheyennes — de apaches nunca, porque se lembro bem apaches costumavam ser bonzinhos, pelo menos na maior parte dos filmes — com um sofá e algumas poltronas.

Mas brincar de cowboy e de índio é uma brincadeira que não faz mais sentido hoje. Os referenciais das gerações que se seguiram à minha não estão mais em Monument Valley. Eu e tantos outros crescemos assistindo a faroestes na TV, durante as Sessões da Tarde, e ainda assistíamos a inúmeros seriados como Zorro (o Lone Ranger, aquele com Tonto). Não posso listar o número de bons filmes que assisti ali — Jerry Lewis, Danny Kaye, Burt Lancaster, John Wayne. E à noite, horário interditado para mim, ainda havia o “Bangue-Bangue à Italiana”. Mas hoje faroestes não fazem mais sentido. As Sessões da Tarde são ocupadas por filmes com chimpanzés motociclistas e bizarrices como Thunderpants.

Role playing game” também tem um sentido totalmente diferente, hoje. É a vitória dos meninos bem cuidados que ficavam em casa tomando nescau com um termômetro debaixo do braço; o futuro pertencia ao modelo que eles preparavam em seus pequenos ninhos, não ao meu, em que me estabocava no chão de vez em quando e dava e recebia socos, pontapés e ofensas fraternas de amigos que viravam inimigos e depois viravam amigos novamente. Não me cabe dizer se o que foi feito do mundo é melhor ou pior, até porque é um contrasenso dizer que uma brincadeira é melhor ou pior. Mas não é a minha maneira, nem a da minha geração.

Pelo menos sei que não estou sozinho na impressão de que os meus tempos eram mais interessantes: é o caso dos autores do Brinquedos Faroeste, de onde foram tiradas as fotos que ilustram este post.

Mesmo reconhecendo tudo isso, eu ainda sinto falta de revólveres de espoleta. Eles saíram de moda e foram banidos há mais de 20 anos. Ao que parece, isso se deve em parte ao fato de que bandidos passaram a usá-los em assaltos (e embora eu confesse que preferiria ser assaltado com um revólver de espoleta em vez de um de verdade, não vou discutir isso). Mas em parte, também, sua queda se deve também à histeria politicamente correta e eminentemente imbecil que acha esses brinquedos excessivamente violentos. Para essas pessoas, brincar com revólveres de brinquedo criava adultos violentos.

Essa justificativa deve ser válida, porque essas pessoas sempre sabem do que estão falando. Tantos anos depois, essa geração que hoje entra em sua terceira década de vida, como se pode ver, está menos violenta. Há menos homicídios. As cidades estão mais seguras. A violência urbana nunca foi tão baixa, e isso se deve única e exclusivamente ao fim dos revólveres de espoleta.

10 thoughts on “Bangue-bangue

  1. Seus referenciais não estão tão longe assim. Na minha infância (80 e começo de 90) a gente ainda brincava de “policia e ladrão”. Vários primos meus tinham os famigerados revólveres de espoleta, num modelo menos bangue-bangue e mais 38-de-cano-curto. Meu sonho de consumo na época, mas meus pais aparentemente eram a vanguarda da legislação brasileira e cedo baniram revólveres de brinquedo lá de casa.

    Depois ainda surgiram as pistolas de ar comprimido, que atiravam bolinhas de plástico, com pentes e tudo, que logo também seriam proibidas. Mas nessa época eu já cagava e andava para esse tipo de brinquedo, e só cheguei a ter contato com elas por meio de um primo mais endinheirado que tinha todas — espoleta, espingarda de chumbinho, pistola de bolinhas, fuzil de paintball e até um arco composto e uma pequena besta.

    Hoje, já pai de um moleque de um ano, não sei se permitirei um dia que meu filho tenha revólveres. Nenhum recalque, apenas precaução. Por outro lado, não sei o que provoca mais fetichismo com relação a armas, se liberá-las ou proibi-las… Mas com certeza ele nunca ganhará nada que atire mais do que água ou dardos com ventosas.

  2. Apenas algumas adições à lista do meu primo mencionada acima. O cara também tinha uma daquelas facas retráteis (idêntica às de pivetes de filmes dos anos 80), uma peixeira com bainha, canivetes de todos os tipos (era escoteiro), um “metralhágua”…

    Teve tudo no que se refere a armas de brinquedo e até algumas brancas e de arqueria, e no entanto nunca se envolveu eu brigas armadas — no máximo algumas brigas de socos, como qualquer adolescente. Uma, inclusive, foi com um pivete que tentou assaltá-lo com uma arma de ar comprimido — que ele, com seu prévio conhecimento destas réplicas, conseguiu identificar a tempo de enfiar a mão nos cornos do cara.

    Também conheço um cara cujo pai sempre teve armas de fogo em casa e inclusive aprendeu a limpá-las e manejá-las em clubes de tiro. Que eu saiba, esse também nunca utilizou uma arma para fins escusos — o máximo de valentia a que chega é carregar um bastao de beisebol no carro, “just in case”.

    Parece que a coisa, então, está na maneira como a criança é criada. Nada mais óbvio. Mas também não invalida proibições, já que e difícil controlar a educação de uma pessoa além da escola. Como garantir que um moleque não pegará uma arma dessas e tentará cometer um crime? Ou que não pegará a arma do pai e levará para a escola? Eu me considero contra Estados que patrulham o interior da casa do cidadão, mas neste caso fico em dúvida. Votei a favor do desarmamento, mas já cogitei comprar um facão de 30cm para ter em casa atrás da porta… Nunca se sabe

  3. eu ainda tendo a me posicionar contra as armas de brinquedo. brinquei com elas, não me tornei um adulto pior por isso, mas como disse o henrique acima, precaução e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

    agora, me bateu uma dúvida: imagino que a série “kung fu” e os filmes do gênero também exerceram uma influência sobre você em algum momento, não?

  4. Rim-tim-tim.

    E o Butch Cassidy.

    Também sou desses que teve no mito do caubói uma parte importante da formação.

    Não tenho nada contra dar uma arma de espoleta pro meu quando ele estiver maiorzinho. Na verdade, daria até pra minha filha também.

    Só tenho uma restrição. Eu planejo um mundo sem armas, mas não tenho ilusões de que a geração dos meus filhos viverá para ver isso.

    Quanto à violência, parece que há aqui uma percepção de que ela está aumentando na geração de hoje, que não brinca de caubói. O que é uma informação falsa. O Brasil já é muito violento pelo menos desde a chegada de Cabral. Minha cidade (Curitiba) já era muito violenta no tempo que eu era criança (anos 80) – tanto quando hoje, ou até mais do que.

    Agora o que preocupa os educadores são os jogos violentos de video-game ou computador. Que também não fazem mal a niguém…

  5. Eu como vc também brinquei muito com armas de brinquedo de todos os modelos. Tudo que o governo adota não tem qualquer embasamento estatístico; simplesmente procura seguir rigorosamente o “politicamente correto”; isto rende votos. Desarmou-se a cidadão de bem com a tese de que esse seria o grande fornecedor de armas para a bandidagem. E o que aconteceu? Fortaleceu-se a bandidagem, pois agora estão em franca vantagem, armados até os dentes, com armas “importadas” e o cidadão à mercê do 190; e a orientação é para não reagir de forma alguma. Tornaram-nos caça fácil de predadores.

  6. Verdade, a população está tão protegida quanto os cães de rua… Talvez até menos, afinal os cães ainda podem morder para se proteger…
    Não é uma arma de brinquedo que faz uma criança ser violenta.

  7. Concordo plenamente com os amigos acima, brinquei com dúzias de armas de espoleta, é a educação que nos faz distinguir o que é certo ou errado, e não uma brincadeira quando temos 8 ou 10 anos de idade, mais uma vez a política podre massacrando o cidadao de bem que pra se proteger da criminalidade tenque se manter prisioneiro em casa e deixar os bandidos a solta, cada vez mais em decepciono com um país tão rico, governado por pesoas tão pobres, realmente lastimável!!!!

  8. Tem muita gente aqui do meu tempo, o tempo da inocencia, em que o bandido sempre perdia, por isso ninguem queria se-lo. Hoje o medo e a histeria tomou conta de todos. Deixo meus filhos brincarem com uma reliquia minha, um revolver estrela de cano curto tipo dos detetives da epoca, e tb com armas de chumbinho. De vez en quando os levo para uma batalha de paintbal, na verdade para mostra-los que no mundo real evitar um tiro é uma coisa dificil, por isso é melhor evitar conflitos e ele entende. O “games” estão cada vez mais reais em mostrar sangue e atos de vergonhosa covardia como uma coisa boa e eles acabam acreditando que na vida real eles são os todo podereos e imunes a tudo, estilo ” somos os fodões”, no paintbal a coisa é mais proxima a realidade e a fragilidade do ser humano diante da violencia sobressai.

Leave a Reply to Matheus Mendonça Cancel reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *