Jerry Lewis

Tive a chance de rever um filme de Jerry Lewis e Dean Martin visto há muito tempo e do qual eu praticamente não lembrava: “Malucos no Ar”, uma comédia ambientada nas Forças Armadas. É um filme da metade da carreira cinematográfica da dupla, que se separaria depois de Hollywood or Bust. Àquela altura, a dupla Martin & Lewis era um fenômeno de popularidade nos Estados Unidos.

Curiosamente, é um dos poucos filmes a dar papel pouco relevante a Dean Martin, centrando sua atenção no histrionismo de Lewis. É uma pena. Martin era o par ideal para Jerry Lewis. Provavelmente seria para qualquer outro. Generoso, despreocupado, Martin estava à vontade em seu papel — mais ou menos o de Dedé Santana em relação a Renato Aragão, com mais categoria, mais presença e elegância e um ar de cinismo absolutamente verdadeiro e cafajeste. Dean Martin dava a Jerry Lewis todas as condições necessárias para que ele, um talento cômico como poucos outros, pudesse brilhar. E fazia isso sem nenhum problema. Dean Martin era autêntico, coisa rara em Hollywood, e um sujeito que sentia não dever nada a ninguém, nem estava preocupado com isso. Mais tarde, seria o único membro do Rat Pack a não ter medo de Frank Sinatra. Sua morte em 1995 foi uma das poucas de celebridades a me deixar triste.

Assistindo ao filme pude lembrar o que faz de Jerry Lewis o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Lewis era anárquico, subversivo, incontrolável. Mas não é a anarquia dos Irmãos Marx. Se estes são intencionalmente anárquicos e deletérios, a subversão de Lewis vem da incapacidade de adequação ao mundo. Não há má vontade em Jerry Lewis: ele é um ingênuo que tenta fazer as coisas da maneira certa, mas que simplesmente não consegue porque não pode evitar fazê-las do seu próprio jeito.

A subversão presente em Jerry Lewis não era politicamente óbvia — ele jamais faria um filme como If, por exemplo. Em vez disso, o seu era o tipo mais perigoso: subversão social e de costumes. Tudo em Lewis é insolência, rebeldia e incapacidade de se adaptar ao mundo, ainda que de forma inconsciente e involuntária. Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, ainda que de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis — e no entanto, inadvertidamente, são eles que acabam ameaçando sua estrutura.

Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder, esse aspecto subversivo de Lewis está bem claro em uma única cena, que pode servir de ilustração para toda a sua obra: ele interfere em um treino de educação física e, enquanto tenta dar o melhor de si, leva o grupo de garotas ao caos absoluto, destruindo qualquer possibilidade de ordem. O mundo não pode funcionar direito se Jerry Lewis está nele.

É possível lembrar um pouco dos irmãos Marx a partir capacidade de gerar o caos, embora a comparação com Chaplin fosse mais adequada. Mas Lewis tem atrás de si outras tradições, principalmente a de Bob Hope e Bing Crosby, e uma delicadeza que os Marx, definitivamente, não tinham.

Foi essa capacidade subversiva que os franceses da Cahiers du Cinema perceberam imediatamente. Deram a Lewis um reconhecimento que lhe faltou em seu próprio país. Se nos Estados Unidos ele era visto como pouco mais que um careteiro, na França esses aspectos foram percebidos e valorizados. Os franceses foram os primeiros a apontar a genialidade de Lewis; a isso acrescentaram, claro, a bobajada da teoria do autor, para justificar as eventuais explosões de genialidade que se vê ao longo de vários filmes de Lewis. Com isso acabam relevando defeitos na obra de Lewis que tornam a apreciação de seus filmes uma tarefa mais complexa do que o usual: Lewis tem problemas em costurar uma sucessão de gags muitas vezes geniais em uma narrativa coesa e fluida, ao ponto de parte deles simplesmente abrir mão dessa premissa para ser nada mais que coleções de cenas, como The Delicate Delinquent e The Bellboy. Por outro lado, seu uso da metalinguagem sugere um autor consciente e com domínio da idéia de narrativa cinematográfica.

Mais tarde, a persona cinematográfica de Lewis se desgastaria e acomodaria. Ele desenvolveria seus próprios tiques cinematográficos, combinaria isso a um ego desproporcional e que lhe levou a equívocos como “A Família Fuleira”, e na segunda metade dos anos 60 seus filmes perderiam o vigor e o frescor que apresentaram até então.

Mas nada disso apaga um fato simples: Jerry Lewis foi o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Jerry Lewis era um gênio.

***

Escrever sobre Jerry Lewis é sempre um prazer para mim. É algo que eu devo a mim mesmo.

Em uma noite do primeiro semestre de 1979, a TV exibiu uma chamada para o filme da Sessão da Tarde do dia seguinte: “O Rei do Laço”. Minha mãe comentou que assistia aos filmes dele no cinema, nos anos 60, e que gostava muito dele. Isso bastou para que eu quisesse assistir ao filme.

O resultado foi paixão à primeira vista. De repente, Jerry Lewis era o meu novo ídolo. Não só meu, na verdade: meus amigos paravam o que estavam fazendo para assistir aos seus filmes na TV. Não foram poucas as vezes em que estávamos na rua e de repente todos debandávamos porque ia começar um filme de “Djeury Líus”, como eu pronunciava na época e como, por respeito à criança que fui, continuando pronunciando.

Naquele ano e nos dois seguintes, eu vi todos os filmes de Jerry Lewis exibidos na TV, com exceção de “De Caniço e Samburá”. Mais tarde, assistiria a praticamente todos. Mais tarde ainda, revendo boa parte daqueles filmes, eu identificaria os muitos defeitos, aqueles que fazem com que os americanos torçam o nariz para ele.

Mas depois eu faria as pazes com Jerry Lewis. Porque no seu caso não se trata de entender seus filmes. Se trata apenas de reconhecer a sua genialidade, maior que o que se pode ver se analisamos apenas seus filmes em vez do conjunto de sua cinematografia. Principalmente, se trata de reconhecer e gostar do fato de que, durante a minha infância, Jerry Lewis foi um dos meus grandes ídolos.

14 thoughts on “Jerry Lewis

  1. Perfeito este post. Me parece que na década de 90 muitas pessoas, até então refratárias ao humorista, começaram a ter uma visão próxima à colocada por você neste belo post. Eu, de minha parte sempre gostei muito do Jerry. Professor Aloprado foi marcante quando assistí ainda criança.

  2. Dean Martin “o único membro do Rat Pack a não ter medo do Frank Sinatra”; eu li isso na biografia, não autoriazada, obiviamente, do Frank Sinatra: Rafael, você realmente, sabe das coisas. Muito bom!

  3. Ego à parte, não há dúvida quanto ao talento do Jerry. Curto muito os filmes dele: sempre gostei e continuo gostando.
    Mal comparando, o Jerry Lewis é um ótimo ator que é subvalorizado por conta do gênero de atuação – como o Chico Anysio aqui.

  4. Rafael, perfeito o post (para variar!!). O Lewis também foi o ídolo da minha infância e foi muito interessante vê-lo interpretando uma paródia de si mesmo em “O Rei da Comédia”, um dos mais sub-valorizados filmes do Scorsese.
    Abraços.

  5. Vi muitos filmes de Jerry Lewis na televisão. São realmente geniais — embora eu não consiga fazer uma avaliação tão profunda quanto a sua.

    Tem um filme onde ele é enfermeiro de uma causa de repouso de velhinhas, e quando elas ficam conversando sobre as suas doenças, ele começa a ter sintomas delas enquanto ouve. É uma das cenas mais engraçadas de todos os tempos.

  6. @Marcus

    diria que um nível de análise assim tão profundo, como o que você se referiu, marcus, só é possível por causa do envolvimento de rafael com lewis. ele é fã, e isso torna a imersão muito mais fácil. é mais ou menos quando eu falo sobre armamentos e batalhas da segunda guerra mundial, ou quando o hermenauta fala sobre reinaldo azevedo… 😛

  7. Muito bom o post.
    mas eu acho que há um a forcação de barra;
    “Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, ainda que de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis”

    Eu acho que o sucesso do personagem de Chaplim consiste exatamente na vontade de que o personagens se encaixem numa sociedade com padrões claros e perfeitamentes compreensiveis. Embora ambos eles se insiram nas diferênças , mostrem os contrates.
    Tanto um como outro na verdade não se encaixariam em qualquer padrão de sociedade. Mas ambos são exemplos de como as diferenças também fazem parte dos padrões. Dai o sucesso.
    Eu acho que a ‘mensagem dos dois são muito próximas, se não é a mesma.

    Quando Claplim encorpora Hitler não há nada sutil. Acima de tudo o que aquele personagem quer dizer é que ele se encaixa num mundo que é contra o nazismo. Não considero Carlitos um personagem que confronta a sociedade, mas um personagem que quer participar com suas diferênças, assim com os personagens de jerry lewis
    O grande ditador é um exemplo extremo, mas qualquer filme de Chaplim mostra isso.

  8. fm,

    A questão aqui é mostrar que há, em Chaplin, uma atitude clara de confronto com a sociedade.

    No geral, o caso de Chaplin é mais grave porque ele é, desde o início, um excluído óbvio. É um vagabundo, como na maior parte dos seus filmes, ou um operário subjugado pelo sistema, no caso específico de “Tempos Modernos”. Ele reconhece que a sociedade é sua inimiga, e está disposto a enfrentá-la para conseguir sua adequação. O confronto pode ser óbvio, como em “O Garoto”, mas é no geral mais sutil. A polícia — em “Luzes da Cidade”, em “Tempos Modernos”, em “O Garoto”, em toda a série do Vagabundo — é sempre um inimigo. Ele quer se adequar? Sim. Mas ao contrário de Lewis, Chaplin reconhece que o mundo está contra ele, e usa os subterfúgios necessários para enfrentá-lo ou, no mínimo, contorná-lo. Lewis, por sua vez, mal consegue perceber isso — de certa forma, ele é um ingênuo absoluto, ao contrário dos personagens de Chaplin.

    Você está certo quando diz que Chaplin quer ser aceito com suas diferenças — embora eu ache que seria mais adequado dzier que ele quer ser aceito apesar de suas diferenças (a seqüência do sonho em “O Garoto”, por exemplo, ou as tentativas de construir um simulacro de vida de classe média em “Tempos Modernos”), e está disposto a brigar por isso. Daí a idéia de confronto social consciente em Chaplin, que eu acho ausente de Lewis.

  9. Salve Rafael:
    Como sempre um excelente post. Uma dúvida: “Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder”. Qual filme de BW? Esse acho que não assisti.
    Um forte abraço
    Jorge Miguel

  10. O filme é The Major and the Minor, com a Ginger Rogers no papel que seria de Jerry Lewis e Ray Milland. Acho que em português se chamou “A Incrível Susana”, ou algo assim. A Globo exibia no Cineclube até uns anos atrás. 🙂

  11. Excelente texto. É legal ler que mais garotos daquela época adoravam a sessão da tarde com JL.
    Mas não entendi muito bem a parte sobre ele ser um subversivo, insolente e rebelde. Certamente, e o post mostra muito bem, ele era um inadequado, um não ajustado. Mas tenho minhas dúvidas que ele fosse além disso. Não vi tudo do ator, mas não são poucos os filmes em que tudo acaba bem, ele com uma garota, enfim, aquele sonho americano certinho típico dos anos 50.

  12. Já passei varios Emails para rede Globo mais não adiantou nada.
    Não sei porque, a Rede Globo ou outras emissoras de TV aberta não passa Fimes de Jerry Lewis, como o Festival de Ferias na Rede Globo e Sessão da Tarde como Festival Jerry lewis.
    Talvez você Rafael tenha influencia para essa resposta porque hoje em dia não passa filmes de Jerry Lewis.
    Agradece: Cássio Rogério

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