Armandinho, ou onde o humor vai para morrer

Tá, eu confesso: acho a tira do Armandinho, que tem feito certo sucesso recentemente, tão chata que de vez em quando me pego pensando que ela sintetiza tudo o que há de errado em uma certa maneira de ver o mundo atualmente, mesmo sabendo que essa ideia é talvez ambiciosa demais para quadrinho tão medíocre.

Armandinho tenta fazer passar por humor o que o mundo tem de pretensos bons sentimentos.

É uma espécie de sub-Mafalda, e essa parece ser sua inspiração óbvia, quase plagiária. Mas entre eles há um abismo de diferença não apenas de profundidade — é genuinamente assombrosa a capacidade do Armandinho de destilar platitude atrás de platitude —, mas de tempo e coragem: é fácil fazer Armandinho hoje, difícil era empurrar uma Mafalda nos tempos que precederam a ditadura militar argentina.

Mas não se trata apenas dos tempos. É a própria natureza da besta: comparado com a criação de Quino, Armandinho é raso e sacarino como um pires de água com açúcar. Enquanto Mafalda fazia perguntas, Armandinho apenas nos oferece respostas que parecem tiradas do “Minuto de Sabedoria”. Pior, diz isso sem sutileza alguma.

Não há inteligência em Armandinho. Há apenas o óbvio. Talvez seja isso o que irrita nele, a maneira quase redundante como diz as coisas, medíocre porque é a mediocridade que atinge o maior público. Como disse alguém, o Armandinho parece uma aula de Educação Moral e Cívica, aberração educacional que a redemocratização felizmente enterrou.

Basta perceber isso para lembrar também que não há uma gota sequer de coragem em Armandinho. É muito fácil fazer humor a favor, afetando uma superioridade moral imaginária sobre os demasiado humanos. Ninguém em sã consciência consegue ir de encontro ao que Armandinho diz: ninguém é, ao menos filosoficamente e em discurso, contra o amor, contra a tolerância, contra o respeito, contra a bondade.

Quando Edvaldo Nogueira, então presidente do PCdoB em Sergipe, me chamou oficialmente para entrar no partido num dia qualquer dos meus verdes e longínquos anos, o partido estava saindo da ilegalidade. Era muito diferente do que é hoje. Ainda eram muito presentes a cultura da clandestinidade, o respeito (ao menos teórico, no meu caso) aos mandamentos draconianos de Diógenes Arruda em “A Educação Revolucionária do Comunista”. Enquanto isso, ao meu redor, poucos, pouquíssimos eram socialistas, muito menos comunistas. Eu era o radical, na contramão.

Mesma época, eu era um beatlemaníaco fanático em uma cidade pequena com pouco acesso a informação e num tempo em que os Beatles estavam fora de moda. Se hoje você ouve uma banda pela primeira vez e duas horas depois já tem toda a discografia dela, eu demorei mais de dois anos para conseguir ouvir tudo o que os Beatles tinham lançado oficialmente, ainda que praticamente só pensasse nisso. Ao meu redor, ninguém ouvia os Fab Four. Eu era o velho, na contramão.

Se as duas coisas não parecem ter a ver uma com a outra, e menos ainda com Armandinho, elas têm. Me acostumei a achar que não existem “ideias certas” como as que o Armandinho defende. Que é necessário sempre o contraditório, que verdades não são absolutas (diacho, nem a Albânia era absoluta). E criei a convicção de que é muito fácil seguir adiante com as ideias da maioria. Não deveria ser essa a função do humor, se é que humor tem alguma função. Humor tem que provocar, mostrar o outro lado, expor o ridículo da vida e das coisas, principalmente do que é aceito como verdade sedimentada. Humor de qualidade instiga a pensar, lança uma luz nova sobre o mundo, não se esgota em um sorriso de auto-satisfação bovina. No mínimo, humor faz rir.

Armandinho não faz nada disso. Anestesia, no máximo. Está para o humor como a literatura de autoajuda está para Dostoiévski. Apenas nos reconforta com a sensação de que, nos nossos melhores momentos, somos boas pessoas porque tentamos nos reconhecer nele. Nos faz esquecer que no resto do tempo somos mesquinhos, vis, egoístas. E por isso ele não provoca, não faz pensar, não arranca sequer um sorriso de canto de boca. Uma tira engraçadinha que nos faz sentir melhor por sermos quem somos: o humor não podia pedir atestado de óbito mais claro. E triste.

6 thoughts on “Armandinho, ou onde o humor vai para morrer

  1. Eu custei a perceber que não se tratava do Armandinho, o músico. Parecia tudo muito estranho. É a idade.

  2. Agora quem se confundiu fui eu. Se você fala do Armandinho Macedo, de Dodô e Osmar e d’A Cor do Som, acho que é um dos grandes músicos brasileiros. Se fala de um outro Armandinho que apareceu há uns anos e aparentemente sumiu sem avisar, esse também é um chato, na minha opinião. 🙂

  3. Rafael:

    Um dia um cabeçudo disse que o Elvis não tinha tanta relevância para a história do Rock e você, um beatlemanáco, lhe respondeu com uma sentença definitiva. “O Elvis inventou tudo isso que está aí”; com isso você ganhou meu respeito e admiração eterna. Por isso não queria te contrariar, mas, depois do post acima, fui atrás das tiras do tal Armandinho e eu não achei ruim. É uma humor bacaninha. Ex. “- agora os adultos estão com essa nova onde de que é preciso dizer não” “- pai, posso desligar a TV e dormir cedo?” “- não!” O humor dele é assim. O que você achou de errado?

  4. Não conhecia a figura. Procurei as tirinhas e logo vi que o desenho imita o de Mafalda. Acho que Quino não merece essa ‘homenagem”. Concordo contigo, o guri é chato, mas o porque o desenhista é deve ser mais chato ainda. E se faz sucesso é porque o Brasil está chato, sem humor, desde que os humoristas passaram a fazer “humor a favor” ou, então, partem para detratar os “inimigos”. Também o brasileiro ficou mal humorada, vide o sumiço das bancas de revistas de humor, seja em textos ou em quadrinhos.

  5. Obrigada. Eu estava achando impossível eu ser a única que via a banalidade e a falta de graça nesse Armandinho. Humor inofensivo é totalmente inútil.

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