Mas não se mata cavalo?

Quando as chuvas voltaram a inundar o Rio Grande do Sul este ano, agora com menos gravidade, lembrei da tragédia do ano passado, e de um artigo na Folha de S. Paulo que usou o destino do cavalo ilhado em um telhado de Canoas para um pequeno ensaio sobre a questão da miscigenação racial, cujo autor infelizmente esqueci. Ele o considerava um símbolo do hibridismo racial brasileiro, da maneira como nós nos enxergamos. Se não podemos mais admitir a ideia de miscigenação, se ela deu lugar a uma reinterpretação americanizada e binária de uma disputa inconciliável entre brancos e pretos, então transferimos nossa visão atávica sobre raças para os vira-latas.

(O nome que deram ao cavalo, Caramelo, me irrita. Aquele era um cavalo baio, mas as redes, eminentemente urbanas e que nunca sentiram o cheiro de um equino — que o general Figueiredo preferia ao cheiro de povo — precisam dar às coisas os nomes que já conhecem, adequá-las ao mundo novo da comunicação miojo. O mundo não é mais o que é; é como influencers o veem, e então a ignorância — o não saber que aquela cor, em um cavalo, é baia — ascende e ocupa o lugar da informação correta. Talvez nunca tenha sido realmente diferente, mas agora é como se tudo tivesse tomado anabolizantes.)

O artigo é bom, apesar dessa insistência típica destes tempos de reduzir situações complexas a símbolos chamativos. Dois ou três pontos nele me incomodavam, mas já nem lembro quais eram.

O resgate do cavalo Caramelo, claro, acalmou os corações angustiados nas redes sociais e possibilitou deixar de lado a consciência mais ampla das dimensões da catástrofe gaúcha no que diz respeito a animais. Apenas para ficar na discussão que interessa aos que preferem bicho a gente, não sei se dá para fazer ideia da quantidade de vacas que tiveram o leite empedrado em seus ubres, porque a infraestrutura de grandes e pequenos criadores foi destruída e elas não podiam ser ordenhadas. Não se faz ideia de quantos bois, cavalos, carneiros, cachorros, porcos, galinhas morreram. O setor rural nas áreas atingidas foi destruído, mas qualquer discussão mais profunda saía dos holofotes, porque não interessa, não gera engajamento, não dá dinheiro em um mundo que se acostumou a uma corrida de ratos cada vez mais sórdida e desesperada. As pessoas precisam da imagem insólita de um cavalo em cima de um telhado, de um cachorrinho sendo resgatado e nadando no ar. Precisam de imagens que falem ao coração seletivamente terno de gente confortavelmente instalada, não aos seus raciocínios e em um mundo saturado de informação, só o que é diferente é capaz de falar às pessoas. E assim, não há necessidade de se discutir o que causou a tragédia, como se lidou com ela, porque afinal o cavalo Caramelo foi salvo e está muito bem, obrigado. Recebeu doações para garantir sua alimentação pelo resto da vida, algo que não faz sentido sob nenhum aspecto que não seja a existência midiática e a capacidade nativa de se mobilizar por causas desimportantes mas apelativas. A inefável Janja se engajou pessoalmente pelo seu bem-estar.

Eram as mesmas redes que durante a crise louvavam o voluntariado, ajudando em parte a obscurecer quem realmente fez a diferença, no fim das contas: o Estado — apesar do patético, pequeno e vergonhoso Eduardo Leite. A caridade, afinal, nos justifica e nos redime, acalma nossas consciências, e nada mais realmente importa.

E então impressiona a maneira como nos acostumamos a um mundo onde tudo é like, tudo é exposição. Todo mundo correu para tirar sua lasquinha na tragédia: de Janja a Felipe Neto, de Ana Maria Braga a Giovanna Ewbank. Uns com mais senso, outros com mais desespero em não perder a oportunidade; mas mesmo senso e desespero hoje parecem calculados, porque cada um ocupa o seu nicho, com suas necessidades e clamores, e sabem como dar o seu público a desgraça que eles querem.

Eu, pelo menos, não consigo mais ver esse pessoal sem lembrar imediatamente de “Mas Não Se Mata Cavalo?”, de Horace McCoy. Não pelo cavalo, que o livro não tem nenhum; mas pelo desespero que, embora manifestado de maneiras diferentes, parece ser o mesmo em 2025 e durante a Depressão americana. O mesmo desespero que fazia as pessoas dançarem até a morte para garantir que no dia seguinte não passariam fome as faz produzir conteúdo, qualquer que seja, para as redes.

As diferenças que parecem óbvias, pela distância no tempo e no espaço, no fim das contas apenas parecem. Enquanto a classe média da terra do Siegfried Ellwanger defendia armada suas casas — ou defendeu durante algum tempo, nunca pude saber; as notícias rapidamente deixavam de aparecer e não tinham o que no jornalismo se chama suíte, porque mesmo a miséria alheia numa hecatombe cansa — e as grandes vítimas, negras e pobres, eram alijadas do noticiário, a não ser quando suas histórias individuais podiam ser destacadas para gerar lágrimas no Jornal Nacional ou no Fantástico, a impressão que ficava era a de que o mundo está cada vez mais dessensibilizado, que passou a só existir em pequenos vídeos de Instagram ou TikTok.

E essa é talvez uma tragédia ainda maior. Porque se somos todos caramelos, o prognóstico é muito ruim.

Há uma epidemia pior que a de Covid-19 em andamento:uma epidemia de gente pobre e feia se expondo e fazendo graça de suas misérias e esquisitices em suas casas sem reboco e telhados de Eternit, acreditando que as redes são uma nova Serra Pelada; 40 anos são tempo suficiente para que se esqueça que, naquele garimpo, meia dúzia de garimpeiros enriqueceu e outros 100 mil tiveram que se contentar em carregar sacos de areia na cabeça quilômetros de escadas acima e morrer em deslizamentos de terra. Mas qualquer que seja sua classe, o que os caramelos querem, no fundo, é enriquecer fácil. A diferença entre pobres e ricos é apenas estética. E os cavalos agora somos nós.

One thought on “Mas não se mata cavalo?

  1. Na mosca geral, Rafael.
    Mas sou um velho que, neste momento, sente falta daquele emoji de um alvinho com a flecha no meio.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *