Get Back

Em algum momento deste ano, provavelmente setembro, a Apple Corps. lançará um documentário feito a partir das dezenas de horas de negativos do filme que nasceu para a televisão como Get Back e acabou nos cinemas como Let it Be. Pelo menos por enquanto, se chama The Beatles: Get Back.

Devo ter escrito mais sobre o Let it Be neste blog do que sobre qualquer outro aspecto dos Beatles.

Resumindo o que já escrevi: Let it Be é um dos filmes mais chatos da história. O diretor Michael Lindsay-Hogg não tinha o talento nem a experiência necessários para conseguir tirar algo realmente bom de uma banda em franco processo de desintegração. O filme original já foi restaurado há muito tempo, mas uma série de questões, principalmente pessoais, impediram o seu relançamento. O disco que acompanhou o filme só não é o pior dos Beatles porque tem algumas de suas melhores canções, mas é mal produzido e em nenhum momento consegue realizar nem a visão original, crua, básica, nem atender ao padrão cafona e superproduzido de Phil Spector, que foi chamado para consertar as coisas. O álbum Let it Be… Naked, lançado em 2003 como uma tentativa de McCartney dar a última palavra para restaurar a “visão original” do disco, não fez nada para melhorar a situação, sendo provavelmente o pior dos caça-níqueis lançados a partir de 1994.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção no filme é que a história que ele contava, no fundo, era uma história otimista, de superação pela música. Fosse outro o desenlace da história e ele mostraria como uma banda em crise se reuniria nos estúdios de Twickenham, onde o frio das almas era ainda maior que o do estúdio, ganharia nova vida ao se mudarem para os estúdios da Apple, e terminaria na apoteose do show no telhado, onde o futuro se mostraria quente e ensolarado porque, para aqueles quatro sujeitos, a música nos salvará a todos.

Mas a banda acabou ainda antes do lançamento do filme, e Let it Be se tornou um epitáfio melancólico e mal feito, indigno do que tinha sido a maior e mais influente banda de rock de todos os tempos.

O tempo passou e nos últimos anos os Beatles e suas viúvas, sentindo o bafo da indesejada das gentes cada vez mais quente em suas nucas, vêm se empenhando em consolidar e deixar para a posteridade sua versão de sua própria história. A série Anthology nos anos 90, retomada de um projeto iniciado por McCartney ainda antes do fim da banda, foi o primeiro passo. Eight Days a Week, o documentário medíocre dirigido por Ron Howard e lançado em 2016, foi mais um tijolo nessa construção, e o mais radical: fingiu que Pete Best não existiu, deu aos Beatles uma importância histórica maior do que a que realmente têm, e o resultado foi quase um conto de fadas, que jogou para baixo do tapete tudo o que havia de ruim na carreira dos Beatles até aquele momento.

De certo modo, é um esforço compreensível, embora se possa questionar sua honestidade, justamente uma das maiores qualidades da banda.

Faltava decidir o que fazer com o Let it Be. Meio século de distância, tempo mais que suficiente para apaziguar mágoas, apagar muitas das más lembranças e fortalecer as boas, e a necessidade de fazer a caixa registradora tilintar garantiram a retomada do projeto. Não é nenhuma surpresa, claro: todos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, o Let it Be seria relançado.

Sempre achei que a Apple deveria entregar os rolos para Martin Scorsese e deixá-lo recontar a história. Scorsese, que acima de tudo ama rock and roll, saberia reeditar aquele material e lhe dar uma narrativa coerente e o drama necessário para torná-lo interessante.

Mas as coisas não saíram bem assim. Em vez de simplesmente relançar o Let it Be, resolveram fazer um novo filme. No lugar de Scorses, a Apple preferiu Peter Jackson, provavelmente porque terá mais controle sobre o produto final. A julgar por They Shall Not Grow Old, seu belo documentário sobre a I Guerra Mundial, Jackson pode fazer um bom trabalho, algo que transcenda o interesse apenas aos fãs. Mas a essa altura é bom não fazer apostas. A possibilidade de sair algo chapa branca e quase irreal é muito, muito grande.

É quase certo que o novo filme mostrará, em sua quase totalidade, rostos cordiais sorrindo enquanto fazem música. Os estúdios de Twikenham se transformarão em um ambiente cálido, cheio de ternura entre quatro irmãos que se amam e amam a música que fazem. Eu não duvidaria que, no final, saiam todos voando do telhado da Apple em direção ao céu, como em “Milagre em Milão”.

Por um lado, isso não é tão ruim quanto parece ser. Eles podem estar tentando adocicar a história dos Beatles, mas é inegável que ela foi prejudicada pelo fato de John Lennon ter sido o seu principal narrador. Como lembrou Ian MacDonald, Lennon se comportava quase sempre como o pecador arrependido, olhando para trás com vergonha ou, no mínimo, iconoclastia. Em entrevistas como a da Rolling Stone em 1970, Lennon destilou ódio e ressentimento contra a banda e principalmente McCartney, inclusive às vezes mentindo descaradamente (o que ele admitiria em suas últimas entrevistas). Lennon dizia sandices como a parceria ter acabado em 1964 (refletindo a mágoa com o fim dela, no fundo), ou que o melhor trabalho da banda foi realizado no início, tocando ao vivo, e sequer fora gravado (refletindo, por sua vez, a ascensão de McCartney como motor dos Beatles). Apenas o carisma descomunal de Lennon justifica que tanta gente tenha acreditado no que eram mentiras óbvias.

Depois da morte do ex-parceiro, McCartney passaria a vida tentando contrapor essa narrativa, ao limite da cretinice. Primeiro reafirmando o seu papel na banda, reivindicando parte da glória que ele acha que lhe foi injustamente tirada e tentando se livrar de duas décadas de ataques quase sempre injustos da crítica. Depois, mais velho e mais seguro, consolidando a versão de uma banda que, acima de tudo, se amava profundamente.

Como todo mundo, não faço ideia do que será esse documentário. Será uma remontagem do Let it Be? Um documentário com narração em off? Terá a participação dos remanescentes como a série Anthology? Permitirão que Yoko Ono tenha voz, o que não fizeram até agora? Ninguém sabe.

Sei apenas o que eu faria: um documentário sobre a feitura do filme, em duas partes de duas horas. Com narração em off e sem a participação dos quase octogenários ex-beatles. Tentar acompanhar de maneira linear os acontecimentos daquele mês — os conflitos, as tentativas de fazer música, a saída de George, a volta aos estúdios da Apple, as discussões sobre o passado e o futuro da banda, os preparativos para o show no telhado — certamente daria o que falta em densidade narrativa. E certamente tentaria equilibrar os maus momentos (como este, que dificilmente será mostrado) com os bons.

***

A parte musical promete ser mais interessante.

É certo que vão relançar o Let it Be remasterizado. Eu não gosto das remasterizações recentes da banda, acho que carregam demais nos graves, mas esse disco é talvez o único que merecia um trabalho realmente profundo. O Let it Be sempre soou estranho, abafado, e a remasterização de 2009 não conseguiu resolver esse problema. Só acho que poderiam relançá-lo com a capa da edição americana, dupla, com a maçã vermelha no selo, e com o livro que originalmente o acompanhava.

Mas essa é a chance de lançar também o Get Back original, com a capa que recriava a do Please Please Me e que simbolizava não apenas a evolução da banda, mas também o fim de seu ciclo.

E, principalmente, eu mergulharia nas centenas de gravações feitas naquele janeiro de 1969.

Há uma infinidade de gravações fantásticas, embora talvez pouco comerciais. Por exemplo, Get Haus (Get Back em algo que parece alemão); Get Back numa versão mais lenta e pesada (conhecida com Get Back Under Water); Get Back, I’ve Got a Feeling e I Lost My Little Girl cantadas por John e Maxwell’s Silver Hammer trucidada por ele, que desprezava a canção; uma demo de Gimme Some Truth (que tem participação de McCartney na letra); Eddie You Dog; Almost Grown; You Win Again; Madman a-Coming; e I Want You e I’m so Tired cantadas por Paul. Versões interessantíssimas de Two of Us, I’ve Got a Feeling, Oh! Darling em rimo latino, Suzy Parker, Bad Finger Boogie, Honey Hush, Gone, Gone, Gone, Twenty Flight Rock High Heeled Sneekers, Watching Rainbows, bobagens como On a Sunny Island, ultrajes como Negro in Reserve e When You’re Drunk You Think of Me e What’s the Use in Getting Sober?, obviamente Commonwealth e No Pakistanis, Get Off (que daria em Dig It), Tennessee, Friendship (por irônica que possa parecer), Midnight Special. E, claro, fecharia com a versão de Love Me Do com Billy Preston nos teclados. Full circle, diriam eles.

Mas sou capaz de apostar que muito pouco disso verá a luz do dia, oficialmente. Eles devem fazer o que vêm fazendo: um bocado de outtakes medíocres das canções já lançadas. Por sorte, tudo isso está disponível em discos piratas, facilmente encontráveis na internet, e cada vez mais se espalha pelo YouTube.

De resto, let it be.

Elegia ao rock brasileiro

Nunca fiz segredo de que sempre considerei os anos 80 uma pausa civilizatória e não entendia o saudosismo que cercava aqueles tempos, visto aqui e ali internet afora.

Talvez eu não fosse velho o suficiente para sentir esse tipo de saudosismo, e nesse caso ainda não sou agora.

Havia um porém, no entanto, que sempre omiti: eu também considerava aquela a melhor década do rock brasileiro.

Ele tinha percorrido um longo caminho. É impressionante a mediocridade do rock brasileiro dos anos 60, com as exceções de praxe. Os valores de produção ajudavam muito a estragar as coisas, é verdade; produtores desacostumados aos padrões que vinham sendo burilados havia décadas pelo blues de Chicago e pelo rhythm and blues não sabiam direito como gravar aqueles instrumentos elétricos e barulhentos. Mas não era só isso. Musicalmente estavam sempre uns bons anos atrás do que se fazia no mundo anglo-saxão, e apenas em alguns momentos podia-se adivinhar ali a tradição melódica ibero-brasileira. Liricamente estavam abaixo de Love Me Do, dos Beatles, mesmo se descontarmos a mania de a ordem dos verbos trocar para as letras poderem assim rimar — o que é ainda mais impressionante quando vemos a sua pobreza.

Mas o rock já tinha se tornado o mainstream da música internacional e aqui não seria diferente. Passando por alguns bons momentos nos anos 70, o rock brasileiro chegou aos anos 80 suficientemente maduro para se tornar o gênero dominante na indústria fonográfica.

E então aquela geração conseguiu algo fantástico.

Os anos 80 foram a última década em que a juventude brasileira se expressou em uma única linguagem, e essa linguagem era o rock. Olhando em retrospecto, isso talvez tenha sido possível porque a periferia olhava de longe o show, a pobreza não tinha voz (se isso era bom ou não são outros quinhentos). Os meios de produção eram caros, e os de distribuição eram limitados; isso permitia que gravadoras, rádios e emissoras de TV definissem o que o país iria ouvir. Claro que mesmo então havia outras linguagens tentando se afirmar, e Thaíde e Racionais são exemplos óbvios. Fora do eixo Rio-São Paulo, havia movimentos novos como o axé music na Bahia, talvez mais válido em termos socioculturais do que propriamente musicais. Mas eram apenas nichos. A música daquela geração foi o que hoje chamam de Rock BR.

O rock conseguiu o que a Tropicália não conseguiu, por exemplo. Rico ou pobre, branco ou preto, era na música cantada por bandas como RPM, Paralamas do Sucesso, Titãs que aquela juventude se reconhecia e tentava passar sua mensagem para o mundo. Não que fosse grande coisa, que adolescência é uma das piores invenções do século XX; mas era um fenômeno importante que não se repetiria.

E justiça seja feita: mesmo inferior à tradição brasileira, era uma música com uma preocupação lírica maior do que hoje. Se comparadas a um tempo em que rebolar um rabo cheio de celulite virou arte e feminismo, e em que mediocridades desafinadas como Johnny Hooker se sentem no direito de criticar um Ney Matogrosso apenas porque compensam a ausência de talento com a adequação a um discurso político adequado, as letras do rock brasileiro dos anos 80 eram dignas de Bob Dylan.

Mas o tempo foi muito malvado com os roqueiros brasileiros dos anos 80 — pensando bem, não é com todos nós?

A mera passagem do tempo e a derrocada da indústria fonográfica fizeram com que uma geração inteira tivesse uma velhice menos admirável do que sua juventude e sucesso prenunciavam. Um integrante do Zero andou ganhando a vida por uns tempos em Aracaju — agora ele sabe. O Ultraje a Rigor virou uma oficina de estultícies e termina sua carreira como o Caçulinha de um dos comediantes mais medíocres e patéticos que este país já produziu, Danilo Gentili. Luiz Schiavon, do RPM, pelo menos durante algum tempo se tornou o Caçulinha ipso facto, tocando na banda que animava o programa do Faustão.

A perversidade do tempo, no entanto, não é o bastante para explicar a deterioração ética desse pessoal.

Um dos fenômenos mais curiosos é a facilidade com que a maior parte deles, em idade provecta, passou a se espojar politicamente na direita. O número de relíquias dos anos 80 que hoje adota posições que pareciam inimagináveis 35 anos atrás é impressionante, e não para de crescer.

Certo, há as exceções, e gente como Clemente, João Gordo e Leoni mostra que nem tudo foram espinhos. Mas de modo geral, aquele pessoal do rock envelheceu de maneira vergonhosa e reacionária.

A verdade é que, se alguém não entende como isso aconteceu, é porque não quer.

Nos EUA e na Inglaterra, as bases do rock eram populares. Nos EUA, o rock acabou sendo apropriado pela classe média branca e a indústria cultural da música leve negra, mas nunca deixou de lado a sua origem popular. Na Inglaterra, com um sistema de classes diferente, o rock tinha a mesma base social do hip hop brasileiro hoje: era uma juventude proletária que encontrou no skiffle, e depois no rock, um meio de expressão adequado e que o enriqueceu com a sua própria tradição musical.

Mas se nos EUA ou na Inglaterra o rock and roll era música de garotos pobres, a sólida tradição musical brasileira o relegou inicialmente a uma parcela de uma das elites mais vira-latas do mundo, sempre com os olhos fixos no que vem de fora, o mais longe possível do que lhe pareça popular. Do ponto de vista social, o equivalente musical do rock no Brasil é a música brega: Odair José, Fernando Mendes, Carlos Alexandre. Gente que cumpre a profecia antropofágica oswaldiana e digere e regurgita aquilo que engole. Não foi à toa que o rock no Brasil se afirmou primeiro em São Paulo, terra de parcas referências musicais e um alentado provincianismo cultural que confunde com cosmopolitismo. No Brasil, o rock se transformou em música de menino rico empurrada goelas dos meninos pobres abaixo.

Essa equação, infelizmente, tem mais variáveis. No mundo inteiro, roqueiro tende a ser muito ignorante, e aqui não seria diferente. Parece achar que a única música que presta é o rock e raramente se aventura muito além dele. Nos anos 70, declaravam guerra à discothèque; nos anos 80, as revistas que eu lia estampavam orgulhosamente em suas capas que ali não entrava Menudo. É o mesmo pessoal que chama o dia em que Buddy Holly, Ritchie Valens e Big Bopper morreram num acidente de avião de “o dia que a música morreu”: 2 de fevereiro de 1959. Se morreu, não avisaram e ela seguiu em frente: 1959 é o ano de três dos meus discos preferidos, Kind of Blue, Time Out e Mingus Ah Um, e alguém deveria escrever que esse foi, talvez, o mais fantástico ano da música popular em todos os tempos. Apesar dos garotos com a cara enterrada na neve, a música ia bem, obrigado.

(Essa ignorância e insularidade sempre se refletiram na baixa qualidade da crítica de rock. Mesmo luminares como Lester Bangs, Robert Christgau ou Jon Landau sempre fizeram uma crítica subjetiva, limitada, às vezes mesquinha. No Brasil era ainda pior: de Maurício Kubrusly e Roberto Mugiatti [de quem eu gostava muito por ser fã dos Beatles] na Somtrês à súcia que se amontoava na Bizz, o que faziam era mau jornalismo e má apreciação musical.)

Desde o início, o mundo do rock brasileiro sempre foi o do adolescente rico ou de classe média. Esses sempre foram os seus valores. Era essa a sua revolta. Eu não sei onde a Paula Toller morava, mas certamente não era em Parada de Lucas. Romance e sexo, o gap geracional e as elucubrações existenciais limitadas a que se entregavam enquanto coçavam o saco em seus quartos eram a base de suas letras.

Basta olhar para a produção da maior banda dessa geração, a Legião Urbana. Se cantavam “Que País é Este?”, não iam além do que mesmo hoje qualquer bolsominion entende como verdade absoluta — todos são corruptos, nada presta, ajudai-nos, São Moro. Mas o que cantavam mesmo eram as dores da adolescência, a dor de cotovelo com uma cara nova. Eu, pelo menos, sempre achei estranho um sujeito de trinta e poucos anos cantar que ia fugir de casa e que seus amigos estavam procurando emprego. Já era hora.

É sintomático também que entre os roqueiros dos anos 80 abundassem os instrumentos importados de primeira linha, Fenders e Gibsons e Rickenbackers, numa época em que importações eram proibidas e o comum dos mortais se aventurava em Gianninis e Goldens — enquanto o pessoal que tocava em puteiros se virava com as Tonantes da vida, muitas vezes com proficiência admirável.

Muitos anos atrás, numa mesa de bar com o vocalista de uma dessas grandes bandas paulistas dos anos 80, fiquei impressionado com o fato de que, bem avançado nos seus 40 anos, o rapaz se comportava e tinha valores de adolescente. Tinha orgulho de sair no tapa com as pessoas, tratava mulheres como um garoto imaturo trataria. Parece fazer parte da cultura rock um apego trágico, até um tanto ridículo, a uma adolescência que deveria passar suavemente mas à qual se agarram como a uma tábua em alto mar.

Música feita por meninos “ricos” e bobos. O que podia dar errado?

O resultado foi uma música cujo universo lírico, mesmo em seus momentos, nunca esteve muito além das preocupações de classe média. Era um universo limitado, pequeno, mesquinho. Quem se der ao trabalho de comparar as letras do samba ao longo de sua existência com aquelas ficará abismado com a diferença de qualidade e de percepção do mundo.

Quando um Ultraje a Rigor cantava a rebeldia adolescente, era com o viés deletério de “Inútil”, o mesmo viés que vimos novamente há pouco tempo, nas carreatas de ricos com máscaras pedindo o fim do isolamento social contra o coronavírus porque seriam os pobres a morrer, ou as preocupações menores e individualistas da classe média como “Rebelde Sem Causa” ou “Ciúme”. Se se posicionava em relação aos costumes com “Sexo”, por exemplo, era sempre um posicionamento que refletia, antes de tudo, os valores individualistas da classe média. E na maior parte das canções que chegavam a tocar no aspecto político, raramente saiam das platitudes expressas pela sua classe. Os Engenheiros do Hawaii prestavam “atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada”, bradavam que “toda forma de poder é uma forma de morrer por nada” e ordenavam “ouça o que eu digo, não ouça ninguém”. O niilismo dessas canções refletia um estado de espírito típico da juventude. Mas representavam principalmente um viés de classe que, à época, podia ser facilmente incorporado pelos mais pobres e adquirir uma ilusão de universalidade.

Não é à toa que a segunda onda do rock brasileiro nos anos 80, vinda de Brasília e integrada por filhos da elite dos funças, ostentava letras que deviam muito à concepção de mundo que o serviço público traz, mas também com olhos e ouvidos firmemente voltados para uma viela qualquer em Manchester, sempre mais chique que um beco no Vale das Pedrinhas (garotos que, imagino, conseguiam contrabandear instrumentos com mais facilidade).

O fato é que a rebeldia do rock brasileiro sempre fugiu do cunho social. Era a rebeldia ante o horizonte limitado da classe média, alheia a questões econômicas estruturais que não fizessem parte das preocupações de sua classe.

Olhando bem, a essência sociológica do rock brasileiro é exatamente a mesma da bossa nova: a classe média branca com uma visão muito própria do valor do trabalho e profundamente influenciada pela música internacional de elite. No caso da bossa nova era o jazz, que se misturou com o samba em proporções variáveis, dependendo do artista. O rock já cortou caminhos e incorporou a tradição musical tupiniquim em muito menor medida. Era apenas o filho problemático da bossa nova.

E então chegamos ao momento em que essa geração, prestes a pegar seus cartões de estacionamento para idosos, resolve mostrar ao mundo que razão, mesmo, quem tinha era Belchior.

Nesse meio tempo aconteceu uma hecatombe política: a queda do muro de Berlim, a implosão do bloco socialista e a extinção imediata de alguma alternativa ao capitalismo reforçou a necessidade de voltarem-se para seus próprios umbigos. No Brasil, o crescimento do antipetismo, o incômodo desse pessoal com os pobres que passaram a dividir o mesmo avião que eles, deu validade ao liberalismo que, no fundo, sempre esteve na sua base ideológica, geralmente disfarçado de liberalismo de costumes.

Por isso, quando um Lobão coroa sua trajetória errática, falastrona e oportunista — alguém lembra dos tempos em que ele, já decadente mas achando ter descoberto sua mina de ouro particular, cantava loas às rádios comunitárias, desde sempre covis de corrupção e mercadejamento político? — com uma tentativa de se transformar em um guru de extrema-direita, estava dando o prosseguimento previsível a toda uma postura ideológica que, disfarçada ou não, sempre permeou essa geração. Quando investia em suas diatribes contra Lula, quando ameaçava sair do país se Dilma fosse reeleita, ele apenas refletia a evolução lógica do pensamento da sua tribo. Tudo bem que, vagabundo e frouxo como suas ideias, ele não fosse capaz de cumprir suas promessas. Mas isso importa pouco. Lobão é apenas o representante mais visível de toda uma geração que, na velhice, finalmente fez as pazes consigo própria.

Dizem lá na terra que originou tudo isso que a maçã não cai longe da árvore. Ao rock brasileiro jamais houve outra opção. Para defini-lo, o melhor é recorrer não a ele, mas à disco music: como cantava Gloria Gaynor, I am what I am.

Yoko Ono

Uns anos atrás, um comentário a uma foto de Yoko no Instagram me chamou a atenção.

Alguém teve a pachorra de deixar ali uma série de ofensas à velha dama, acusando-a de ter acabado os Beatles e enveredando pelo racismo puro. Podia ser apenas mais um lembrete do fato triste de que as redes sociais desvelaram a imbecilidade global antes contida em cada pessoa ou pequeno grupo; mas era muito mais que isso. Imediatamente pensei que, se Lennon estivesse vivo, talvez tivesse que cantar novamente para ela dois versos de I’m Losing You, do seu último disco: “But hell, that was way back when / Well, do you still have to carry that cross?

É impressionante que alguém, mesmo meio século depois, ainda tenha que conviver com isso, com esse ódio impessoal que, ainda que fosse justificado, deveria ter arrefecido com o tempo. Não interessa que tenham se passado 50 anos desde que a queridinha das gentes acabou, em meio a uma briga excessivamente pública. As pessoas ainda odeiam Yoko Ono porque a elegeram para a desgraçada que acabou com os Beatles.

E não foi.

Em 1968, a banda estava em crise por várias razões, a menos importante das quais não era a musical. A chegada de Yoko pode ter ajudado a catalisar algumas das tensões já presentes, pode ter sido mais um fator para o seu fim; mas ela não tinha como terminar algo do qual não era parte. Os Beatles estavam acabando porque seus fundadores tinham se tornado adultos; porque cinco anos de pressões inimagináveis cobravam sua conta; porque sua situação financeira era caótica; porque suas concepções musicais se tornavam divergentes ou, no mínimo, mais individuais; porque Lennon, com alguma razão, e Harrison, sem nenhuma, achavam que a banda os limitava; porque a mudança no centro de gravidade da banda de Lennon para McCartney deu início a uma nova dinâmica de poder e influência dentro do grupo.

Nesse aspecto, a injustiça com Yoko é ainda maior. Naqueles momentos em que Paul McCartney consegue disfarçar bem o seu desconforto, lembra uma coisa importante: ele acha que Yoko salvou a vida de Lennon.

Há muito tempo me pergunto se, fosse outro o destino e Lennon tivesse conhecido Yoko em outra fase de sua vida, sua fascinação pela mulher e pela artista teria sido a mesma. Lennon em 1967 era um sujeito absolutamente perdido. Os Beatles tinham deixado de excursionar, o que para outra banda teria significado seu fim imediato, e ele passava seus dias em um torpor que misturava apatia e consumo exagerado de LSD. Isso é perfeitamente visível na sua produção no período. A contribuição solo de Lennon ao Sgt. Pepper’s é pífia, quase coadjuvante — o que é, aliás, a razão do seu eterno despeito em relação ao álbum. Descontando Strawberry Fields Forever, uma canção genial mas que também deve muito ao trabalho feito no estúdio, suas duas melhores canções no álbum, Lucy in the Sky with Diamonds e A Day in the Life, são parcerias ainda que desiguais com McCartney. Tente imaginar A Day in the Life, especificamente, sem a segunda parte cantada por Paul, sem o “I’d love to turn you on”, e sem as ideias orquestrais que poderiam ser creditadas, no mínimo, à participação coletiva da banda e de George Martin: seria só mais uma excelente canção simples como Watching the Wheels, composta em Weybridge por um eremita com surtos esporádicos de inspiração, um sujeito que passava o dia viajando diante de uma televisão com o som desligado, frustrado com aquilo em que sua vida parecia ter se resumido: um casamento fracassado, um filho com o qual jamais teria alguma intimidade e uma banda em que o poder real se consolidava a cada dia nas mãos de seu melhor amigo, maior parceiro e maior rival.

Não dá para saber se outro Lennon, livre das drogas e um pouco mais seguro de si em relação ao seu papel na banda e no mundo, teria reagido da mesma forma ao ir à exposição de Yoko na Indica Gallery em novembro de 1966, se enxergaria nela a “mulher-dragão” que lhe daria a proteção e o estímulo de que ele precisava com desespero.

Yoko supriu em Lennon a necessidade de alguém que fosse ao mesmo tempo mãe, amante e parceira. Ela conseguia ocupar, sozinha, o espaço de Julia, Mimi e McCartney, e um pouquinho mais. Em Yoko, Lennon encontrou alguém que podia respeitar intelectualmente e na qual podia se apoiar sem medo. De certa forma, era uma McCartney que ele podia levar para cama.

Infelizmente, isso ajudou a desarticular toda a estrutura de funcionamento dos Beatles, em um momento particularmente difícil. Enquanto as mulheres dos Beatles se adequavam ao que tinha se estabelecido como uma divisão natural do trabalho e seus espaços nas vidas de cada um, Yoko instigava e forçava a si mesma dentro de um ambiente que lhe era hostil.

Não era algo inocente. Yoko não era burra e era extremamente ambiciosa. Talvez as coisas não sejam tão frias e objetivas como podem parecer, mas Lennon e os Beatles eram claramente a sua grande chance na vida: ela percebia que ali estava, no mínimo, uma oportunidade única de dar visibilidade ao seu trabalho, e eu não duvidaria que, em algum momento de delírio, ela tenha acalentado ao menos secretamente o sonho de se tornar parte da banda. Pelo menos em um momento inicial, Yoko tentou aproveitar a proximidade dos Beatles para fazer deslanchar sua carreira, quase como um parasita daquele tipo que mata o hospedeiro. McCartney reclamaria que, durante as filmagens do que viria a ser o Let it Be, ela sempre dava um jeito de ficar diante das câmeras, muitas vezes fazendo o seu próprio trabalho. Mais tarde, o que ela permitiu (e provavelmente incentivou) que Lennon fizesse com seu filho mais velho, Julian, foi desumano (curiosamente, tanto o filho dela, Sean, quanto Julian são músicos. E a ironia é que Julian é infinitamente mais talentoso que Sean; vale a pena escutar sua discografia). Nisso qualquer fã dos Beatles tem razão: sua presença era desagregadora.

Mas ela só podia fazer o que Lennon permitia. Foi Lennon quem levou sua cama para os estúdios quando ela sofreu um aborto; quem insistiu para que ela aparecesse no Let it Be e nas fotos de publicidade do conjunto; foi ele quem de repente tentou impor uma mulher estranha a uma banda singularmente coesa, o “monstro de quatro cabeças” como definiu Mick Jagger.

Acho que inconscientemente Lennon acreditou que isso poderia redefinir a estrutura de poder dentro da banda. O resultado foi o contrário: a manobra de Lennon acendeu o pavio para a implosão dos Beatles. E sob vários aspectos, essa foi a pior coisa que poderia acontecer a Yoko.

Dentro do seu campo, da sua linguagem, Yoko era uma artista capaz, até onde minha ignorância e desdém por esse tipo de arte me permitem avaliar. Entendo ainda menos de arte de vanguarda do que de mecânica de aviões — mas pelo menos gosto de aviões. Ainda assim, acho Cut Piece um negócio interessante. E por inaudíveis que sejam seus discos de esgoelamento, o fato é que ela tinha uma ideia do que queria dizer, um conceito claro do que era arte, e é até possível ouvir ecos da música que ela fazia nos discos do B-52’s. Finalmente, quem quer que tente escutar sem preconceitos o Some Time in New York City, de 1972 — e conseguir abstrair sua voz irritante—, vai perceber que as canções de Yoko estão, no mínimo, no mesmo nível das de Lennon.

Lennon reconhecia e respeitava, talvez até mais que o justo, o talento e a capacidade de sua nova parceira. Juntos, os dois embarcaram em uma bad trip típica dos anos 60, com bed ins, surtos de messianismo odara, uma exposição de suas vidas sem precedentes na cultura de massas e a tentativa de fazer de suas vidas uma obra de arte, tudo condizente com a concepção artística de Yoko e que John, sempre em busca de algo para preencher o seu vazio, abraçou incondicionalmente.

Fãs podem reclamar, mas o Lennon que entrou para a história foi exatamente esse recriado por Yoko Ono, um Lennon sem humor, que se levava a sério demais e que acabaria se tornando ícone de uma paz que, em sua vida privada, ele jamais seria capaz de alcançar.

O mais irônico é que, enquanto as pessoas culpam Yoko pelo fim dos Beatles, em vez disso deveriam agradecê-la por algo que é realmente responsabilidade sua: impedir a reunião da banda. Em 1974, solto em Los Angeles, longe de Yoko, Lennon considerou a possibilidade de voltar a compor com McCartney. Se isso ocorresse, uma volta dos Beatles seria possível, embora talvez sem George Harrison. Mas antes ele reatou o casamento com Yoko (ironicamente por intermédio de McCartney), e é impossível saber o que resultaria dessa reunião hipotética. Do ponto de vista das composições, é provável que o nível subisse bastante. A competição e colaboração entre os dois certamente traria bons frutos. E é possível que a própria realização das canções melhorasse bastante. Só não dá para deixar de lembrar que o tempo dos Beatles havia passado e que o mais provável é que essa reunião apenas quebrasse a mística da banda.

Foi nesse momento que se consolidou definitivamente a lenda do johnandyoko, do casal 20 do rock, do rock star feliz em casa fazendo pão e cuidando do bebê enquanto a mulher ia para a rua garantir sua fortuna, ou pelo menos assim diz a lenda.

Nunca foi bem assim. Naqueles seus últimos anos, Lennon voltou à apatia em que se encontrava quando conheceu Yoko. Mas ele tinha se tornado dependente dela, em sua eterna busca pela mãe que o tinha rejeitado. Yoko não tinha esses problemas, e quando percebeu que o casamento estava condenado, tratou de arranjar um amante, Sam Havadtoy, rapaz novo que logo depois da morte de Lennon ela passou até mesmo a vestir com as roupas do defunto, num relacionamento muito mais duradouro que o seu com Lennon.

E então veio o dia 8 de dezembro de 1980, a partir do qual Yoko Ono se tornaria a curadora da memória de John Lennon e a mais feroz guardiã do seu legado.

Ela até podia frequentar outras camas, mas nisso ela foi extremamente fiel ao falecido. Uma constante na vida de Lennon foi o seu esforço em passar uma imagem idealizada e edulcorada de si mesmo. O rebelde, o artista corporificado, o revolucionário da classe operária, o homem que vivia uma história de amor perfeita. Yoko cumpriu o seu desejo. A imagem quase santificada de Lennon, do gênio que mudou o mundo com uma mensagem de paz e amor e se tornou o grande mártir do rock and roll, que ela passa ainda hoje às portas da morte, não condiz com que o se sabe sobre ele; mas é uma imagem vitoriosa e, acima de tudo, leal, seja lá por quais razões for.

E ela fez tudo isso às custas, de certa forma, de seu próprio sacrifício. Seu envolvimento com os Beatles tirou, para sempre, a sua individualidade — e paradoxalmente teve o efeito contrário do que ela parecia querer naqueles primeiros anos. Ela jamais será lembrada por outra coisa que não John Lennon. A exposição e a riqueza que Lennon lhe possibilitou garantiram que ela continuasse produzindo, mas a avaliação dessa produção será sempre contaminada por sua história com os quatro rapazes de Liverpool.

A aura inexplicável que beatifica os Beatles, que desculpa e justifica todas as suas ações e os torna imunes a virtualmente toda crítica, é a mesma que demoniza todos aqueles que cruzaram seus caminhos, como Allen Klein. É a mesma que faz pessoas dizerem, ainda hoje, desaforos em seus posts no Instagram. Yoko, inocente ou não, é mais uma vítima dessa aura. No fim das contas, o preço que ela pagou foi bem alto.

A solidariedade do “trade”

Nos últimos dias andou circulando nas redes esse card com um apelo do trade turístico.

Sinto informar, mas eu quero é que se fodam.

Eu tinha uma viagem a Roma marcada para ontem. Há algumas semanas, quando a chapa por aquelas bandas começou a ficar realmente quente, liguei para a TAP tentando remarcar as passagens para novembro. Até podia, mas teria que pagar a diferença tarifária e taxa de remarcação. No fim das contas, as passagens sairiam pelo triplo do preço original. E se cancelasse não receberia nenhum tipo de reembolso porque, compradas em novembro do ano passado, elas tinham preço promocional.

Não adiantou argumentar que o adiamento era por uma questão de saúde pública, etc; eu estava por minha conta e o prejuízo, em qualquer caso, seria só meu.

Naquela hora não vi nenhum oferecimento de ajuda ao turismo, nenhum pedido de união e de solidariedade.

Eu desisti e já estava conformado em acionar a empresa na justiça. Só que a Terra é plana, mas dá voltas. Veio o lockdown italiano e a TAP se viu obrigada a cancelar todos os voos para a bota.

Na última semana, passei literalmente horas pendurado ao telefone esperando para resolver a questão do reembolso. Foram dezenas de ligações, que sempre caíam, às vezes depois de mais de uma hora ouvindo a muzak terrível deles, técnica que imagino feita justamente para fazer você desligar em desespero. Agradeço à boa alma que inventou o viva-voz, sem o qual eu não conseguiria passar por essa via crúcis. Só fui conseguir falar com eles ontem à noite, coincidentemente quase na hora em que deveria estar embarcando.

São essas companhias que vêm agora pedir solidariedade e ajuda. As mesmas que cobram pela sua bagagem enquanto mentem dizendo que vão baixar o preço da sua passagem. Que têm lucros bilionários e quando a coisa aperta correm atrás do dinheiro do Estado.

Que se fodam.

Ah, mas não é bem assim, dizem. Tem os pequenos, dizem. As agências de turismo, o receptivo, etc.

O problema é que aí a coisa é ainda pior.

É inacreditável que não percebam o quão canalha e irresponsável é esse apelo para que as pessoas viajem em um momento tão grave. Remarcar para quando, se ninguém sabe quando essa crise Walking Dead termina? Deixar o dinheiro com eles enquanto o governo autoriza empresas a reduzirem pela metade os salários de doentes?

O que eles estão pedindo é que você salve a pele deles, e que se danem a saúde e mesmo as vidas das outras pessoas. Inclusive a sua. Neste exato momento, centenas de pessoas estão presas em cruzeiros e quetais porque, sem tirar a responsabilidade desses idiotas — e daqueles que cederam às pressões embutidas no “nós não vamos devolver o dinheiro”—, essas empresas exerceram uma versão muito própria desse tipo de solidariedade, como sempre.

Eu importo pouco para eles porque não sou cliente de agências de turismo há muito tempo, desde que, para evitar trabalho e aproveitar a suposta expertise do pessoal, fui em uma e pedi para organizarem uma viagem. Me sugeriram hotel em Whitechapel com preço de Bloomsbury, além de uma série de penduricalhos que só serviam, obviamente, para aumentar a comissão da vendedora. Saí de lá com um “amanhã a gente compra” que, se funcionava para minha mãe, deve funcionar para mim também.

Afinal, que solidariedade é essa? Eu me pergunto quanto dessa solidariedade foi posta em prática antes. Comigo eu sei que não foi.

Me pergunto quanto dessa solidariedade é exercida no dia a dia. Quantos deles deixam de pegar Uber para pegar um táxi e ajudar um defensor que tem uma cota diária de dinheiro para entregar ao dono do táxi? Indo mais longe, quantos deles se juntaram aos funcionários públicos na defesa de suas aposentadorias? Quantos protestaram contra a reforma da Previdência? E é melhor não falar da reforma trabalhista, que sei que eles apoiam em sua quase totalidade.

Não, não. Eu não sou solidário a eles. Fodam-se e boa viagem.

Quatro momentos

Pensando aqui nos momentos mais comoventes da história do cinema, me vieram à lembrança quatro cenas, imediatamente.

1 – O menino Ricci vendo o pai sendo quase preso após tentar roubar uma bicicleta, em “Ladrões de Bicicleta”.

2 – Zampano abandonando Gelsomina em “A Estrada da Vida”.

3 – Von Aschenbach morrendo só e triste na areia da praia.

4 – Totó descobrindo a herança que Alfredo lhe deixou, em “Cinema Paradiso”.

Não pode ser à toa que os quatro filmes são italianos.

(E, curiosamente, a cena em que Rosaria se joga aos pés do filho morto em “Rocco e Seus Irmãos” não consegue me dizer nada.)

O tempo passa até nos quadrinhos

Cena um: há alguns anos, numa banca de revistas, um sujeito grisalho futuca a seção de revistas de super-heróis. Minha primeira reação é de susto calado: o que esse coroa está fazendo lendo revistinhas de super-herói?

Cena dois: um amigo, Edilson, leitor e colecionador de quadrinhos há mais de 40 anos, sai do cinema onde foi assistir a “Homem Aranha: Longe de Casa” e se submete à extrema humilhação de, ao reclamar do novo Peter Parker como discípulo humílimo de Tony Stark, ouvir de um adolescente: você não entende nada de quadrinhos.

As duas cenas parecem não ter nada a ver uma com a outra, mas têm. Eu e Edilson estávamos errados.

O sujeito grisalho na banca de revistas não era mais que alguns anos mais velho que eu, se tanto — vai ver ele era só mais acabado, mesmo. Eu não percebi algo que devia ser óbvio: aquele senhor vetusto, fruto envergonhado dos anos 80 como eu, cresceu lendo os mesmos quadrinhos que eu lia. O meu susto então se devia especificamente a um preconceito: para mim, criado em outros tempos, quadrinhos eram leitura de crianças e adolescentes — ou pessoas descalibradas como o personagem de Richard Gere em Breathless, o que não é muito diferente.

A minha foi a primeira geração que levou esse padrão de leitura para a idade adulta, e não sei se porque os roteiros ficaram mais complexos, ou porque nós ficamos mais infantilizados; ultimamente, tendo a botar mais fé na última hipótese. Estranhar o velhinho na banca de revistas é muito mais que uma recusa estúpida a admitir que envelheci: é não compreender que a minha geração transformou a maneira como se consome quadrinhos. Nós demos legitimidade cultural ao que era visto, até então, como algo meramente comercial e inferior. Duro de aceitar é que isso foi também o resultado de um processo generalizado de emburrecimento. Em qualquer lugar hoje se vê gente falando de quadrinhos como alta literatura, ou seu equivalente, com a mesma seriedade que reservaria a um Faulkner. A aceitação social dos quadrinhos como arte significou, para milhares de pessoas, que elas não precisavam castigar um Proust ou um Joyce para serem consideradas minimamente cultas.

Mas justamente por não serem alta literatura, por estarem em primeiro lugar submetidos às lógicas do mercado e dos tempos, os quadrinhos são eminentemente mutantes, como os X-Men. Eles dialogam quase que exclusivamente com o seu tempo, e têm a liberdade de fazer tábula rasa do passado. Não interessa que você leia “No Caminho de Swann” em 1913, 1955 ou 2016: Gilberte vai ser sempre Gilberte, a menina do seu tempo percebida pela sensibilidade infantil de um mariquinhas que gostava de madeleines e que durante muito tempo costumava deitar-se cedo. Mas o Batman adquire sempre as cores do presente: o justo implacável dos anos 30, o detetive infantilizado dos anos 50, o borderline dos anos 90.

Por isso o Edílson se sentiu profundamente ofendido por aquele trombadinha arrogante. O problema é que o moleque tinha razão.

Imagine um sujeito de seus 40 anos em 1990, que passou a infância e a adolescência lendo Batman ou Homem Aranha. Ele lia histórias com uma dinâmica estrutural que ainda pertencia aos quadrinhos idiotizados dos anos 50, guiados pela hecatombe de “A Sedução dos Inocentes” — talvez nem tivessem chegado a Stan Lee. Agora imagine-o assistindo, horrorizado, à transformação de heróis tão seus conhecidos. Ele olharia para o Batman de Frank Miller e diria não, não é isso, vocês não entenderam o personagem. Vocês não entendem de quadrinhos.

Ao estranhar o novo Peter Parker, ao desprezar seu conformismo submisso e a relação de dependência não só ao grande capital, mas à figura paterna acolhedora que Tony Stark representa para uma geração que não sabe mais o que é passear na rua, que sequer tem coragem de ir sozinha à banca de revistas da esquina, eu e o Edílson simplesmente não conseguimos admitir que os quadrinhos mudaram, falam para um público que não é mais o nosso. Pior, nos recusamos a entender que nada disso faz desse Peter Parker lambe-botas menos verdadeiro do que o que acompanhávamos todos os meses nas revistinhas da hoje desgraçada Editora Abril.

Quadrinhos são assim mesmo. Já faz tempo que deixei de acompanhar esse mundo. Eu não consigo gostar, geralmente nem mesmo entender, de virtualmente nada do que se faz hoje. Quando abandonei esse universo, eu sentia falta de alguma simplicidade. Para mim, é tudo complicado e confuso demais, e o que era um golpe de marketing em 1992 se tornou a regra, como a morte dos super-heróis e sua substituição por qualquer bizarrice que atenda ao zeitgeist. Acredito que os meninos de hoje olhem para as histórias de que gosto — a não ser quando transformadas pelo cinema, como a origem do Homem de Ferro ou as partes de “Capitão América: Soldado Invernal” inspiradas nas histórias que eu acompanhava no início dos anos 80 — e as desprezem por serem simplórias, óbvias, esquemáticas demais. Em resumo, infantis. Mais ou menos como eu olhava as historinhas desenhadas pelo Jerry Robinson, e que hoje leio feliz e nostálgico no tablet.

O Peter Parker de 1963 era o resultado do olhar de um sujeito nascido nos anos 20 sobre o que eram os baby boomers (alguém deve ter falado em algum lugar que o Aranha é o primeiro grande herói baby boomer, não é possível que ninguém tenha escrito sobre isso). Era um olhar de fora, com os limites de compreensão que o gap geracional condicionava. Por genial que fosse, Stan Lee era um sujeito de outro tempo tentando compreender uma geração que começou a exercer seu protagonismo nos anos 60 e 70. O novo Aranha, que antevi em meio a engulhos em Spider Man: Homecoming, reflete necessariamente uma geração diferente, de millenials e Y’ers e X’ers e seja lá qual o nome dessa meninada: garotos mais dependentes do que fomos, com uma ética de vida e de trabalho diferentes da minha, e cujo maior sonho é serem completamente inseridos no establishment e chamar Tony Stark de painho. Eu sou suspeito para falar deles porque os tenho em muito baixa consideração, mas não é possível relevar o fato óbvio de que é a sua sensibilidade que define o que será feito desses personagens, as maneiras como suas histórias serão conduzidas. Eles estão acostumados a padrões narrativos e artísticos que eu não consigo mais, nem quero, entender.

Mas me sobrou um mínimo de racionalidade. Já passei da idade de ter que achar que tudo o que é novo é bom, porque não é, e espero que os longos anos que passei neste vale de lágrimas tenham sido suficientes para me conferir algum juízo e integridade. E por isso, do alto da sabedoria e da maturidade que os cabelos brancos supostamente me conferem, eu sinceramente acho que o Edilson deveria ter dado um cascudo naquele pivete idiota e dito pra ele: o meu Homem Aranha é melhor que o seu.

Sobre o Oscar 2020

Ford vs Ferrari é o melhor que se pode esperar de um filme já visto tantas vezes, com todos os clichês possíveis num desses pilares do cinema americano: o filme sobre underdogs e carros e a amizade masculina que só a graxa e a celebração da velocidade possibilitam — inclusive na adulteração da história e na redução de uma decisão de negócios a um ato de despeito de um empresário. É o mais fraco dos concorrentes deste ano. Tentaram fazer um Thunderbird 1957 mas tudo o que conseguiram foi um Edsel.

Once Upon a Time in Hollywood é apenas uma piada contada pela segunda vez. O que foi genial em “Bastardos Inglórios” — a ousadia de mudar a história porque o cinema pode ser instrumento de transformação da realidade — agora é pouco mais que uma reprise na Sessão da Tarde, ilustrando uma visão edulcorada de Hollywood, uma celebração emaciada e disfarçada de um modelo de fazer cinema, mas agora sem o vigor que Tarantino demonstra em outros filmes.

The Irishman é Scorsese mais uma vez confortavelmente instalado em sua obra. Traz uma interpretação magistral de Joe Pesci e até mesmo um Pacino um pouco mais contido do que o normal; mas é só o mesmo filme que Scorsese vem fazendo há décadas, pouco mais que Mean Streets e Goodfellas requentado, com menos vigor; a julgar pelos atores, é quase como se Scorsese quisesse fazer um corolário de sua obra. Nos últimos anos ele deu excelentes filmes como Hugo Cabret e Silence. Não é o caso deste.

Marriage Story é exatamente o que se esperaria de um filme de Noah Baumbach. Ele é um sub-Woody Allen, mas não um qualquer: é um sub-Woody Allen em seus momentos de sub-Ingmar Bergman. Bom filme, correto, com bons atores. Mas não vai muito além da superficialidade egocêntrica típica da geração millenial novaiorquina, de que Baumbach está se tornando o cronista. Há filmes piores este ano, mas há melhores também.

Little Women é um bom filme, competente, dirigido com firmeza por Greta Gerwig (que a julgar pela crítica novaiorquina é a maior cineasta de todos os tempos) e bem superior ao seu superestimado Lady Bird. Atualiza um livro mais que centenário e filmado dezenas de vezes, reforçando seus aspectos feministas até o limite. Mas a opção por uma narrativa baseada em flashbacks torna tudo meio confuso, e apesar da direção segura o filme acrescenta bem pouco ao que já se viu por aí. Alguns atores estão mal escalados, como Emma Watson que não poderia ser Meg, embora Saoirse Ronan esteja perfeita como Jo. Mas é Louis Garrel como Bhaer que mostra o exagero que essas leituras podem chegar. Bhaer jamais poderia ser tão bonito, e ao fazer essa concessão estética Gerwig mostra que não entendeu um aspecto importante do livro e no protofeminismo de Jo.

Parasite deve ganhar o Oscar de filme estrangeiro. Mas é um filme superestimado: bom o suficiente, mas que resolve mal boa parte das ideias que apresenta e que acaba apresentando uma visão confusa e inconsistente da luta de classes que está na base de sua história, mais ou menos como alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe exatamente onde.

1917 ganhou o Globo de Ouro merecidamente. É um exemplo de excelência técnica e narrativa, tão bem feito que consegue a proeza do one shot sem que isso seja mortalmente chato. Formalmente é o melhor filme do ano, e Sam Mendes merece o Oscar de melhor diretor. Mas falta muito a ele. No fim das contas, fica a sensação de que é tanta proeza técnica em tela que se torna difícil estabelecer uma conexão emocional real com o filme. Em muitos aspectos é semelhante ao último Mad Max: um interminável desfile de perícia técnica mascarando um vazio profundo.

Jojo Rabbit é uma comédia de frescor admirável, que não tem medo da gargalhada mais aberta nem do deboche puro e simples e que entende que a melhor maneira de abordar o absurdo é transformando isso em linguagem. É uma comédia agridoce surpreendente, que reconhece o ridículo do ódio e mesmo da vida, sem deixar de ser otimista. “Jojo Rabbit” é a antítese destes tempos sombrios, e é isso que faz dele um dos dois melhores filmes dessa noite. E é difícil não gostar de um filme cuja música de abertura são os Beatles cantando Komm, Gib Mir Deine Hand.

Joker acaba sendo paradoxalmente prejudicado pelo desempenho excepcional de Joaquin Phoenix, que o ofusca e diminui os méritos que o filme tem. Além disso, traz um número muito grande de falhas de roteiro. Mas é o filme que melhor dialoga com os tempos atuais. Utiliza um gênero que já estava esgotado para jogar luz sobre a loucura do mundo em que vivemos, sobre os impasses de uma modernidade ternamente conectada e que lida com novos símbolos e valores aos quais ainda não conseguiu se acostumar. É o filme em que eu votaria.

E em 2020 o Oscar virou uma menina branca.

Mais 10 melhores faroestes

Nunca foi segredo que o faroeste é o meu gênero cinematográfico favorito. Foi ele que me fez gostar de cavalos, por exemplo. O que nem todo mundo sabia é que eu realmente acreditava que o gênero estava morto e enterrado, que já não havia mais o que dizer, nem como dizer.

Eu estava errado.

Para muita gente, hoje, a história da conquista do oeste americano é essencialmente a história de brancos maus matando e roubando terras a mexicanos e índios bonzinhos. E, se tirarmos os adjetivos, é uma percepção verdadeira.

Mas é muito mais que isso. É também a história de milhares de famílias que juntaram o quase nada que tinham e cruzaram um continente pelas trilhas do Oregon e Santa Fé em busca de uma chance de trabalhar e viver melhor. Famílias de origem europeia para as quais era incompreensível e inadmissível que uns poucos índios tivessem tanta terra enquanto outros não tinham nada, porque não conseguiam nem podiam compreender seu modo de vida e o relativismo cultural ainda não tinha dado as caras por aquelas bandas. Muitas dessas famílias deixaram relatos de suas travessias e das dificuldades que enfrentaram, dos cadáveres que foram deixando pelo caminho, e lendo-os é possível fazer um paralelo entre aquela gente e os imigrantes ilegais de hoje, que pagam coiotes para que os levem a uma terra prometida onde poderão viver melhor, não importa se bem vindos ou não. Obviamente eles não falam dos índios que viram os bisões desaparecerem e com eles não só o seu modo de vida, mas a sua existência; não falam dos índios que perderam suas terras e sua cultura, nem das traições do governo americano ou do sofrimento e humilhações que tiveram que enfrentar, das mães e filhos que foram deixando ao longo da Trilha das Lágrimas, por exemplo. Mas não é possível ser simpático à luta dos imigrantes ilegais de hoje ao mesmo tempo em que se condena completa e peremptoriamente a expansão americana.

No fim das contas, a maneira mais isenta de entender esse processo é simplesmente como a luta eterna da humanidade por espaço e produção de riquezas — nem sempre justa, raramente humana. Foi assim com os romanos, foi assim com os visigodos, foi assim no Texas. Pode-se fazer o julgamento moral que quiser sobre o assunto, e cada tempo faz o seu. O veredito atual basicamente inverte o maniqueísmo anterior, condenando indistintamente governo e povo americanos, canonizando índios e vilificando mesmo o pobre imigrante sueco que não tinha o que comer e se apegava à promessa de 40 acres de terra em Oklahoma como a uma tábua em uma corredeira.

Não sei os outros, mas eu acho essa uma história magnífica e rica.

O filme de faroeste foi a maneira como os Estados Unidos sistematizaram e deram dignidade e significado a essa história; de gênese canalha e genocida, é verdade, mas também heróica e brava, que representou uma aventura homérica para o povo que a empreendeu — e que teve, sim, momentos de beleza e grandeza imensos. Único gênero que nasceu com o cinema, o western mitificou a história americana, tornou-a maniqueísta enquanto pôde, entendendo que aquela era uma batalha de civilizações e, ao definir seu lado, não hesitou em apelar para a mentira e para o jingoísmo.

Mas o western também cristalizou no imaginário humano a ideia de que esse fenômeno pertencia a um tempo e espaço específicos e indistintos entre si. E isso é falso.

Pode-se dizer que quando o cinema nasceu a fronteira clássica já tinha sido fechada e estabilizada, e por isso tanta gente pensa no Velho Oeste como algo pertencente ao passado, aquele processo iniciado nos anos 1830 e intensificado após o fim da Guerra de Secessão. Mas em outras regiões o progresso demorou mais a chegar. The Good Bad-Man, um faroeste de 1916 de Allan Dwan com Douglas Fairbanks, se passa no Wyoming daquele ano. E é fantástico ver a cidade típica do oeste com postes telefônicos alinhavados na rua; fosse feito uns anos depois e teria Fords T compartilhando a rua com cavalos e boiadas.

Isso me fez perceber, antes de mais nada, a subjetividade do tempo. Wyatt Earp, um dos maiores ícones dessa era, morreu em 1929. Isso quer dizer que hipoteticamente ele poderia ter conversado com minha bisavó, que morreu quando eu já ia adiantado na minha terceira década de vida; posso imaginar Earp chegando na casa da rua Cedro, chapéu na mão, para dois dedos de prosa com o velho Valois e dona Sinhá, mentindo mais a cada dia sobre o duelo no OK Corral, contando histórias que 60, 70 anos depois minha avó contaria para mim, em primeira mão. Bastou perceber isso para o western deixar de pertencer a um passado distante e se tornar algo quase palpável.

Mas essa história vai além. Pensando nisso e assistindo a um filme de 2005, finalmente entendi que a essência do faroeste nunca foi o tempo em que ele se passava. Era o lugar e as contradições que ele propicia. O faroeste não diz respeito a um período na história americana; fala da vida na fronteira, do conflito entre povos, da violência inerente a esse processo humano, e isso ainda está longe de acabar.

***

Anos, muitos anos atrás, fiz uma lista dos 10 melhores westerns, na minha imodesta opinião. Mas o fato é que 10 filmes são muito pouco para ilustrar um gênero que, até o início dos anos 60, era talvez o maior da indústria cinematográfica e garantiu boa parte do material produzido nos primeiros anos da TV; quem cresceu nos anos 60 e 70 via faroestes o tempo todo, muitos dos quais permanecem até hoje em canais por assinatura ou streaming.

Ao mesmo tempo, tudo isso ajuda a complicar as coisas. O western tem uma natureza essencialmente esquemática. Nasceu assim, como contos de cavaleiros andantes nas pradarias americanas; basta ver os filmes de Tom Mix. Stagecoach é um clássico porque rompeu esse molde e mostrou que o gênero podia ter uma densidade dramática superior ao limite de cinco neurônios. Além disso, nos anos 50 o faroeste foi espremido até o esgotamento absoluto. Por todas essas razões, e mais algumas, em muitos momentos é um pouco mais difícil perceber a grandeza de um bangue-bangue; daí porque este é um dos gêneros que mais sofre revisões críticas. Por outro lado, muitas vezes é alvo de uma condescendência injustificada, porque esse pessoal da academia está sempre precisando falar alguma coisa diferente, por absurda que seja, para garantir o leitinho das crianças. Assim, um filme malvisto em seu lançamento muitas vezes adquire status superior quando uma nova geração assiste a ele com outros olhos; e quando aparece um filme artisticamente ambicioso como Heaven’s Gate — o filme que quebrou a United Artists —, é tentador dar a ele um status que não merece. Heaven’s Gate é só um grande filme mal feito, que não conseguiu concretizar suas ideias.

Por tudo isso, esta lista é, como sempre, uma escolha muito pessoal. Outros poderão escolher filmes diferentes. Azar o deles. E parando para pensar nas escolhas que fiz, preciso admitir que não vejo lá muita graça na maior parte dos westerns dos anos 70, como McCabe & Mrs. Miller ou Missouri Breaks, impregnados da aura contestatória de sua época. Coisa de velho.

Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, William Wellman, 1943)
Um filme que deveria estar presente em qualquer lista de 10 melhores faroestes de todos os tempos, “Consciências Mortas” é uma obra-prima do cinema como investigação da psique humana e do comportamento da turba. É um filme magnífico, poderoso ainda hoje, que tenta reviver e questionar os padrões éticos sob os quais os americanos gostam de dizer que vivem, ou acham que viviam.

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, John Ford, 1946)
É provável que esse filme tenha feito tanto para a definição do arquétipo do western quanto “No Tempo das Diligências”, e talvez fosse ainda mais importante se feito 7 anos antes. Ford não foi só o maior cineasta do gênero (para alguns, como o Moniz Viana, foi o maior cineasta, ponto); foi também o homem que definiu o que era faroeste, inclusive definindo os Colts Navy e Peacemaker como o padrão de armas usadas no Oeste, o que nunca correspondeu à realidade. É possível que a história dos Earp seja a mais icônica do gênero, a que melhor condensa a experiência do western, e sua narrativa foi definida aqui. É a lenda impressa, e não se pode almejar nada maior que isso.

O Preço de um Homem (The Naked Spur, Anthony Mann, 1953)
Dois grandes personagens, abordados com mais profundidade psicológica que a média dos faroestes, numa narrativa invejável. “O Preço de um Homem” é daqueles filmes que extrapolam o gênero e acrescentam camadas e camadas de leituras diferentes. Não há nada de revolucionário aqui: há, no entanto, a exploração de possibilidades diferentes de que poucos foram capazes.

Da Terra Nascem os Homens (The Big Country, William Wyler, 1958)
Em última análise, este filme é a mitologia da aventura americana exemplificada no seu maior arquétipo. A cena em que Gregory Peck e Charlton Heston lutam até cair, dois homens com H maiúsculo, corajosos, decididos, é uma das grandes metáforas do espírito que o americano gosta de imaginar em si próprio e, mais ainda, na história do seu país. Uns marotos, esses americanos. Mas é também um filme que exemplifica a conquista dos amplos espaços do sudoeste, a luta contra uma natureza quase sempre hostil, e o processo de imposição do capitalismo em uma área virgem. A história americana é mais complexa, mais e menos digna do que estrangeiros costumamos imaginar. É a consciência dessa complexidade e do seu valor que faz deste um filme magnífico.

Pistoleiros do Entardecer (Ride the High Country, Sam Peckimpah, 1962)
O faroeste tem uma característica curiosa: nenhum outro gênero cinematográfico demonstra tamanha consciência de seu próprio ocaso, do seu prazo de validade, e talvez por causa disso a ideia de finitude é tantas vezes central aos seus argumentos. “Pistoleiros do Entardecer” é talvez o filme que melhor retrata essa consciência, ao mostrar dois velhos amigos que, sabendo que seu tempo passou mas divergindo quanto ao que fazer e como enfrentar uma nova era que os superou inclementemente, cavalgam juntos pela última vez, representando o espírito dualista do espírito da fronteira.

Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, David Miller, 1962)
É curioso que este filme tenha sido lançado umas poucas semanas depois de Ride the High Country. Porque os dois estão entre os que os westerns que melhor realizaram essa consciência de seu próprio fim, e ainda assim são tão diferentes: enquanto “Pistoleiros do Entardecer” mostra o processo do fim da fronteira, “Sua Última Façanha” é uma espécie de olhar no retrovisor, a celebração de um anacronismo, onde o cowboy, ainda que represente um elemento fundamental e extremamente valorizado do que é ser americano, já é visto como definitivamente superado e incompatível com a moernidade. Há um quê de loucura heróica em Jack Burns, uma loucura que o filme associa a um espírito americano agora domado. É o fim dessa loucura que “Sua Última Façanha” lamenta.

A Conquista do Oeste (How the West was Won, 1962)
Dirigido por John Ford, Henry Hathaway e George Marshall, “A Conquista do Oeste” pode ser visto como o canto de cisne do faroeste tradicional americano. Não e realmente um filme notável como arte, e um pouquinho mais de rigor o impediria de estar nesta lista. Mas ele reuniu alguns dos maiores diretores e os principais atores do gênero para contar em Cinerama (que utilizava três câmeras simultâneas e cujas divisões podem ser vistas claramente na versão em Blu-Ray) uma espécie de sumário da história que vinham contando há meio século. É a narrativa americana típica dos anos 50, e serve como um epitáfio de um modo de fazer cinema, uma espécie de gran finale do velho e bom western americano. Logo depois chegariam os italianos e o gênero nunca mais seria o mesmo.

Meu Ódio Será Tua Herança (The Wild Bunch, 1969, Sam Peckimpah)
Aquela mesma sensação de mortalidade inescapável e iminente está presente aqui, enriquecida por artifícios diretoriais como o abuso da câmera lenta e a sua transformação em marca semi-autoral. “Meu Ódio Será Tua Herança” é um daqueles grandes filmes que buscam plantar um epitáfio num gênero, depois de um olhar de soslaio e desconfiado para o spaghetti western, que enriqueceu e alargou seus horizontes —  se há uma cena para definir o filme, é aquela em que, logo no início, crianças colocam escorpiões para brigar e então os queimam. E o título brasileiro, inspirado nos delírios melodramáticos italianos que tomaram de assalto os cinemas brasileiros no fim dos anos 60, é infinitamente melhor que o título original.

Pequeno Grande Homem (Little Big Man, Arthur Penn, 1970)
O faroeste americano não é gênero que se preste facilmente à comédia; são muito poucos os exemplos bem sucedidos, como Blazing Saddles. Mas este é um filme que faz comédia com inteligência. Ele não poderia ter sido feito antes de 1968 — antes da Guerra do Vietnã, do movimento pelos direitos civis, antes da era de desconforto e autocrítica que definiram as décadas seguintes e do qual somos consequências. Esses novos tempos fizeram mal ao western; aos americanos já não era possível encarar a sua história sob a ótica maniqueísta e dourada de seus primeiros tempos; ao contrário, naquele momento parecia ser impossível olhar para o passado com algo menos que ironia e vergonha, e eu não tenho muitas dúvidas que essa mudança ajudou a acarretar a decadência do gênero. Mas aqui esse desconforto é narrado com talento e graça, até uma certa estupefação.

Os Imperdoáveis (Unforgiven, Clint Eastwood, 1992)
O que mais me chama a atenção é que, acima de tudo, o último western de Clint Eastwood é um bom e velho faroeste americano. As influências renovadoras do spaghetti western já tinham sido digeridas e regurgitadas em alimento, mais que transformação. Eastwood vem tanto do velho faroeste americano — era ator em Rawhide — quanto do spaghetti de Sergio Leone. E aqui escolheu fazer um faroeste tipicamente americano. É um filme que reflete a filosofia do seu diretor, e que pode ser resumida em uma simples frase, dita antes de um dos tantos assassinatos: “Merecimento não tem nada a ver com isso”. Nesse aspecto, é o último grande faroeste clássico. É também um filme do seu tempo, levantando questões que não seriam necessárias nos anos 50.

Três Enterros (The Three Burials of Melquiades Estrada, Tommy Lee Jones, 2005)
Este é talvez um dos mais importantes westerns feitos em muito, muito tempo. Subestimado e pouco visto, “Três Enterros”consegue retomar a mais verdadeira essência do gênero, porque entendeu que o que realmente o define, o que o faz único, singular, não é o tempo: é o espaço. Tommy Lee Jones entendeu que os conflitos que são a razão do faroeste continuam vivos, e captou de maneira impressionante a violência da vida na fronteira e a influência desse ambiente específico sobre as pessoas. Até então, boa parte das tentativas de atualização sempre foram frustradas pela falta de apreensão desse conceito, que pode ser visto como atemporal. Por isso a importância dessa estreia de Tommy Lee na direção. “Três Enterros” poderia ter sido ambientado em qualquer época, e ainda assim seria um faroeste de primeira. É um western de verdade, o mais importante do século XXI, e a prova de que o gênero continua vivo.

E eu continuo sem saber matemática.

O tempora, o mores

No dia 4 de novembro de 1963, a apresentação dos Beatles diante da família real inglesa no Royal Variety Performance entrou para a história por uma frase dita por Lennon antes de introduzir Twist and Shout: “Para o próximo número, gostaríamos de pedir a sua ajuda. As pessoas nos lugares mais baratos, batam palmas. Ao resto de vocês, basta chacoalhar as joias”.

A frase entrou para a mitologia do rock and roll. Todo mundo conhece.

Mas isso foi há quase sessenta anos. Os tempora passaram e os mores mudaram muito.

Hoje a frase de Lennon seria vista como uma brincadeirinha de roqueiros inconsequentes e superficiais que apenas querem aparecer, que afinal de contas a família real não merece muito respeito desde Charles e Diana, e sua repercussão se daria apenas em pequenas bolhas na internet. Os tempora não perdoam.

Não é nada que mereça muita atenção, no fundo. Falar sobre isso é apenas repetir as platitudes que recheiam virtualmente tudo o que se fala sobre essas coisas na internet. Mas dia desses, revendo a apresentação, um detalhe me chamou a atenção. E esse detalhe diz mais sobre estes tempos estranhos que vivemos que a boutade pseudo-operária de Lennon.

Na introdução a uma canção anterior, a maneira como McCartney apresentou Till There Was You hoje seria amaldiçoada, e geraria protestos ainda mais fortes.

Durante esse mais de meio século ela passou despercebida, porque naquele tempo foi vista apenas como uma piadinha boba e trivial, e a importância política e simbólica da frase de Lennon era muito maior naquele contexto.

Mas, repito, os tempora mudaram. Mas é o tipo de piada que hoje não é mais permitida, porque as sensibilidades mudaram.

E então é possível entender o escândalo que nasceria quando lá foi McCartney para o microfone dizer que a próxima canção “é do musical The Music Man e também foi gravada pelo nosso grupo americano preferido, Sophie Tucker.”

Ah, se isso fosse hoje. O mundo das redes cairia. E aí, aí nem a cara de menino doce criado por vó de Paul o salvaria da ira justa do mundo.

As críticas mais suaves falariam da sua gordofobia ou da sua gerontofobia e da sua indelicadeza.

Milhares de pessoas iriam teorizar sobre isso em posts lacradores. Bolsominions, moristas, olavistas e outras variedades de simplórios acusariam os Beatles de comunistas, abortistas, satanistas, beneficiários canalhas da Lei Rouanet.

Negros reclamariam que não se sentiram representados e que os Beatles representavam a branquitude de uma classe opressora há 300 anos e que não percebe seus privilégios.

LBGTs, ou seja qual for a sigla atualmente utilizada, diriam que a atitude dos Beatles era francamente homófoba.

Feministas fariam passeatas chacoalhando não banha nem peitos gelatinosamente balouçantes — a não ser que fossem as maluquinhas do FEMEN, que disfarçam peitos belos sob ataques de histeria neonazista —, mas cartazes pitados ‘a mão: “Gordo é o seu preconceito, Paul”.

Pessoas com deficiência diriam que aquilo não mascararia a atitude canalha e ofensiva dos Beatles, especialmente Lennon, diante do que chamavam derrogatoriamente de aleijados.

Sophie Tucker, por sua vez, ganharia os jornais se dizendo muito abalada. Contaria a história de dias de sofrimento, a luta contra a depressão que essa frase a fez empreender. A velha gorda podre de rica falaria do seu sofrimento. Talvez processasse os Beatles e destinaria o dinheiro para o Retiro dos Artistas.

E quando tudo estivesse prestes a amainar, quando outro escândalo de igual importância surgisse, apareceria alguém para dizer que, ao chamar Tucker de gorda, McCartney estava ofendendo os vegetarianos; para isso, um raciocínio tortuoso que me vejo absolutamente incapaz de formular seria construído.

Talvez McCartney tentasse se desculpar. Diria que Tucker era um grupo pela dimensão do seu talento, não por ocupar duas poltronas no avião. Diria que não foi sua intenção magoar ninguém — nunca é.

E em duas semanas, claro, tudo isso desapareceria.

Ninguém lembraria mais, com exceção daqueles mais rancorosos que, a cada menção sobre os Beatles, tiraria esse evento de sua gaveta mental e escreveria um texto lacrador no Facebook — ou, pior, aquelas sequências odiosas de tweets, mais ou menos como hoje lembram que dona Elizabeth Bishop um dia elogiou o regime militar de 1964.

Depois disso, os Beatles gravariam Revolver e Sgt. Pepper’s, mas ninguém ouviria. Sua música desapareceria, ficaria restrita a alguns guetos, até ser resgatada como influência por uma banda cool dos anos 2030. Talvez até seguissem a sina abjeta do Ultraje a Rigor, ser o Caçulinha do Danilo Gentili — e certamente John Lennon teria que antecipar a sua frase sobre os Beatles serem mais famosos que Jesus, para ver se conseguiam ainda algum espaço na mídia. Mas ele não teria sucesso, e os Beatles entrariam para história como uma nota de rodapé.

Uma pequena proposta para um curso de cinema

Vi a grade curricular do curso de cinema da UFF.

Entre as disciplinas oferecidas, Teoria da Percepção; Realidade Socioeconômica e Política Brasileira; História das Formas de Expressão; Português XVII; Introdução à Filosofia; Introdução à Sociologia; Ética; Legislação e Pol. do Cinema e do Audiovisual (imagino que o Pol. se refira a “política”, mas vai saber, né?). Entre as optativas uma miríade espantosa de assuntos, que vão de Comunicação Interpessoal a Ética e Ciência.

São oito semestres. E depois desses quatro anos o garoto que entrou na faculdade achando que ia sair de lá transformado magicamente em um novo Scorsese — ou, se tem desvios graves de caráter, um novo Godard — sai praticamente como entrou; talvez apenas um pouco mais arrogante, um pouco mais iludido sobre o seu papel no mundo, com uma variedade maior de conhecimento raso sistematizado e a capacidade de discutir cinema no bar usando termos típicos da academia, como parametrizar, paradigma e intersubjetividade.

Não quero subestimar a ignorância dos jovens que chegam à universidade antes mesmo de terminarem a adolescência, com toda a imaturidade e características específicas que isso implica, nem fazer pouco dos professores dessas matérias que parecem só existir para garantir que a economia do país continue funcionando, gerando emprego numa indústria de educação superior cada vez mais inchada. Talvez seja necessário, mesmo, desasnar os novos alunos em questões que dizem mais respeito ao seu posicionamento na vida do que ao cinema propriamente dito. Mas é estranho que esse tipo de coisa hoje caiba a um curso superior. Eu não sei, porque não entendo muito disso. Não sou professor, não sou pedagogo, não tenho licenciatura em nada — talvez em licenciosidade, vá lá. Gente mais bem qualificada que eu pode falar melhor sobre o assunto.

O que sei é que desses cursos de cinema saem, principalmente, jovens completamente preparados para repetir aulas em universidades, a passar adiante aquilo que aprenderam nos bancos desse tipo de escola — inclusive a não dizerem nada sem a chancela de um bocado de autores que, como eles, passaram suas vidas dentro desse ambiente acadêmico, cada vez mais hermético. A universidade, nos últimos tempos, parece estar se dedicando obsessivamente a perpetuar um círculo vicioso, a se realimentar constantemente enquanto se esgota em si mesma, cada vez mais distante do mundo real.

Os resultados práticos são pífios. A Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, tem um curso de Audiovisual (recentemente promovido a Cinema) há muitos anos. E no entanto o mercado de produção audiovisual sergipano, que já não era exatamente notável e hoje sofre mais que os outros os efeitos da crise econômica e, mais grave, estrutural que está destruindo o setor de publicidade, sofre com a falta crônica de profissionais razoavelmente qualificados.

Por tudo isso, se eu fosse criar um curso de cinema mandava esse modelo às cucuias.

Uma das coisas que mais me impressionam é o número de estudantes que, tendo que estudar para a prova de Sociologia ou de Teoria da Comunicação, não viram os mais básicos filmes da história e não compreendem o seu papel na evolução da linguagem cinematográfica. O ambiente ao menos lhes possibilita falar obviedades sobre o cinema iraniano, ou sobre a militância em prol do cinema brasileiro, que é e pelo visto sempre será um valor que se esgota em si mesmo e não precisa de justificativa existencial. Mas tantos, tantos parecem não conhecer cinema de verdade.

Na Universidade Rafael Galvão (URGH! para os íntimos) o curso oferecido seria bem diferente.

No primeiro ano eu escolheria 200 filmes que, de alguma forma, fizeram o cinema evoluir aos longos desses últimos cento e poucos anos e os exibiria em ordem cronológica. Um filme por dia, com exceções abertas para obras como “Berlin Alexanderplatz”, por motivos óbvios.

Sei exatamente com qual filme começaria: The Wonderful Wizard of Oz, de Otis Turner.

Depois de cada exibição, chamaria profissionais da área e mesmo professores para explicar aos alunos o filme que acabaram de ver. Detalhar e realçar os elementos do filme, inovações narrativas. Explicar as técnicas em cada um, as razões pelas quais foram utilizadas. Contextualizá-lo em seu tempo e em relação ao que veio antes. Contaria a sua história e o seu papel na ordem geral das coisas. Mostraria, por exemplo, o que há de revolucionário nas mãos de Mae Marsh em “Intolerância”, ou na narrativa não-linear de “Cidadão Kane”, ou o que há de inovador em “Acossado”. Exibiria, por exemplo, “Perigo Delicioso”, com Tom Mix, “No Tempo das Diligências” e “Era Uma Vez no Oeste”, para que pudessem entender as diferenças e a evolução de um dos gêneros mais importantes do cinema, e também como e por quê.

No segundo ano eu exibiria tudo de novo, na mesma ordem, mas agora para estabelecer um grande debate com a participação de todos. Seria mais aberto, porque a meninada a essa altura teria, espera este eterno otimista, uma visão mais abrangente do que é o cinema e de sua trajetória, e certamente enxergaria tudo de outra forma e compreenderia melhor cada filme. E só então os alunos estariam liberados para se especializar no que quisessem.

Mas em vez de um curso generalista como os de hoje, os dois anos seguintes seriam segmentados: cursos de montagem, de roteiro, de direção, de sonoplastia, cenografia. Não seriam esse amontado de matérias isoladas sobre temas disparatados que não parecem fazer nenhum sentido, a maior parte dos quais não interessa de verdade aos alunos ou a ninguém com juízo. Seriam dois anos de prática, de resolução de problemas, de mão na massa. A tecnologia para isso já existe há muito tempo e é cada vez mais barata.

Obviamente, não dá para garantir a formação de novos cineastas, porque talento é coisa que não se ensina, no máximo se alimenta e incentiva. O que eu poderia garantir é que esses garotos no mínimo estariam preparados de verdade para pensar e fazer cinema, saber o que estão vendo, ter os critérios necessários para avaliar um filme e o conhecimento para fazer também, se quisessem. E eu acho que querem.

Mas, como já disse, eu não entendo desses negócios de escola.