O ano em que morreu todo mundo

Todo mundo parece estar com a impressão de que 2022 foi um ano esquisito, em que morreu mais gente do que o costumeiro, descontando-se o ano da desgraça de 2020, aquele a que conseguimos sobreviver a penas duríssimas.

Pois eu tenho uma boa e uma má notícia.

A boa é que não é impressão, não, você não está deprimido, mais mórbido, mais pessimista depois de passar por quatro anos de Bolsonaro com uma pandemia aterrorizante e interminável no meio: morreu mesmo mais gente em 2022.

Deixa eu explicar. Em 1987, li um artigo interessante no Meio & Mensagem — assinado pelo Walter Longo, acho. Era o tempo em que traduzir o que a mídia gringa escrevia era missão chique, porque não havia internet, nada dessas coisas, a informação demorava mais circular.

O artigo era sobre os baby boomers. Eles estavam chegando ao poder: chegavam aos 40, ocupavam posições de decisão nas empresas. Nos anos 60 eles tinham sido os protagonistas de um novo tempo, com protagonismo da juventude e uma mudança profunda nos costumes. Não lembro bem do artigo, mas não é insensato imaginar que se indagasse sobre as mudanças que essa geração iria trazer para o mundo dos negócios.

(Não trouxe nenhuma, claro. O capitalismo continuou avançando, os pobres continuaram pobres e os ricos continuaram enchendo o rabo de dinheiro.)

Não esqueço desse artigo porque eu sequer sabia o que eram baby boomers até aquele momento. Isso foi antes dessa fixação em definir gerações de consumo, X, Y, Z, Flicts: os baby boomers eram um fenômeno de base real, a explosão de nascimentos com que a natureza costuma repor os cadáveres acumulados durante as guerras e um momento singular na história humana.

Mas esse pessoal mandou em um mundo bem diferente daquele que o precedeu. As telecomunicações, e principalmente a internet, aproximaram as pessoas e fizeram com que mais gente se tornasse conhecido de todos, ao menos durante aqueles quinze minutos warholianos. A informação nunca tinha fluído de maneira tão intensa, e fomos mais próximos, de certa forma, de todas essas pessoas. Vivemos a maior parte de nossas vidas sabendo que elas existiam.

Por isso, quando uma Gal Costa morre, morre alguém que fez parte de nossas vidas durante tempo demais, mais tempo do que você tem pela frente. Eu não lembro de um mundo em que Jô Soares, rainha Elizabeth, Pelé, Erasmo Carlos, Godard, não existiam; era gente que já estava no horizonte antes mesmo de eu ser um brilho no olhar de alguém. Outros, como Gorbachev, exerceram um impacto no mundo grande demais para passar em branco.

São eles que estão morrendo agora, e é por isso que você notou. É a troca de guarda do mundo. É uma geração inteira chegando aos 80 anos, idade mais que justa para se bater as botas.

Essa é a boa notícia. Agora a má: é disso para pior.

A partir de agora, toda semana vai ser um tal de gente conhecida morrer. É ordem natural das coisas, simples assim. Os dias que acumulamos, ano após ano, vão cobrar sua conta. Além disso, há a dose normal de extemporâneos: aqueles que morrem cedo demais, como Michael Jackson, ou que extrapolam seu prazo de validade, como Olivia de Havilland.

Envelhecer é, também, ver a morte dos outros. Mas olhe o lado bom: houve um tempo em que você achou que o ano 2000 era algo muito distante e que estaríamos vestindo roupas prateadas e veraneando em Marte. E já passamos por um quinto dele.

Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

O próximo presidente não pode ser do PT

Quatro anos de escuridão, de um mal-estar sem precedentes na história política brasileira; um presidente que envergonhou o país como nenhum antes dele, seguido por hordas de bandidos e de imbecilizados agressivos e cheios de ódio: dia 30 de outubro o Brasil pulou uma fogueira.

A eleição de Lula devolveu ao país a perspectiva de normalidade e de sensatez. Lula se prepara para realizar um governo de transição e reconstrução, e seus movimentos até agora têm sido, de modo geral, de acerto. Longe das frentes de quartéis, onde pequenos grupos de zumbis apatetados repetem há semanas a liturgia de uma seita dedicada ao Grande Pneu Patriota do Caminhão Sagrado e esperam o arrebatamento pelo Imbroxável da Facada Mágica, o país respira aliviado.

Mas o resultado das eleições é menos róseo do que parece.

Cientistas políticos em pânico fizeram uma avaliação estranha e apocalíptica do cenário, logo que saiu o resultado do primeiro turno. Denunciaram o fascismo como se fosse novidade, como se o autoritarismo não tivesse sido sempre uma franja às vezes mais, às vezes menos visível da sociedade brasileira, como se não tivéssemos passado pelo integralismo, pela TFP, por uma sequência de golpes de estado bem ou malsucedidos. Diante do aumento da bancada do PL no Congresso, falaram em crescimento do bolsonarismo e do fascismo. Bobagem até compreensível em quem passou quatro anos alternando-se entre a estupefação e o pânico. O que se viu não foi um crescimento ideológico: foi simplesmente a ação do dinheiro. O PL cresceu no parlamento não porque a sociedade brasileira se identificou ainda mais com um autoritarismo amalucado de verniz evangélico, mas porque comprou mais votos.

O bolsonarismo vai desaparecer tão rápido quanto surgiu, e isso podia ser dito antes mesmo das eleições. As últimas semanas apenas comprovam o que já se sabia: Bolsonaro não tem capacidade intelectual ou política para liderar os símios que marcham-soldado na frente de quartéis e pedem socorro a ETs. Seu lugar vai ser ocupado por gente mais pragmática, como o Tarcísio de Freitas ou o Romeu Zema, dentro da normalidade democrática e sujeita às circunstâncias do jogo político.

O que não vai desaparecer é a extrema-direita que vem se consolidando a partir da reação aos governos do PT, um nível variável de polarização nacional e, principalmente, aquilo que levou a esse crescimento do centrão: a total degradação do sistema eleitoral brasileiro.

Esse é o verdadeiro problema que emerge destas eleições. O nosso é um sistema completamente falido, e não vai melhorar. O debate político brasileiro se restringe cada vez mais a umas poucas camadas da população e se dá quase exclusivamente nas redes sociais, mas principalmente sobre os cargos majoritários. Eleições proporcionais estão sempre em segundo plano. Pergunte às pessoas em quem votaram para vereador ou deputados em eleições passadas e a maior parte não se lembrará. E não é só o comum das gentes, os mais despolitizados: a maior parte votou em um amigo, no candidato de um amigo, em um número entregue na boca de urna. É um fenômeno que se espalha em todas as classes e em todos os espectros políticos.

Enquanto isso, os movimentos sociais perdem força, e a descrença na possibilidade de transformação da sociedade pela política se espalha como metástase. O resultado é a ascensão do que antigamente chamavam baixo clero e que, como uma gosma alienígena de filme B dos anos 50, engole a política brasileira, reforçando o conservadorismo popular e surfando na onda evangélica — evangélicos que a tolerância, o respeito à diversidade, o medo e a pura e simples conveniência não deixam denunciar como o que são: a maior ameaça ao progresso do país.

Lula vai aprender a negociar com essa escumalha em termos, se não mais éticos, ao menos mais legais do que fez com o Mensalão, para evitar os erros dos governos anteriores. Mas a própria história do PT ajuda a levantar hipóteses sobre o que vai acontecer nos próximos anos.

Quando surgiu, em 1980, o PT representou um passo à frente na luta popular. Num cenário que tinha sido dominado nos 60 anos anteriores pelos partidos comunistas, ele colocava na mesa um projeto mais pragmático, menos radical, mais plural. Sua bandeira ainda era vermelha, mas em vez da foice e do martelo, trazia uma estrela. Não era comunista, não queria ver a jurupoca piar: era dos trabalhadores — e todo mundo é trabalhador, independente do sistema econômico. Para alguns ainda podia parecer radical, mas era um partido mais palatável do que os velhos dinossauros comunistas, porque nunca colocou em questão a troca do sistema político: era um partido reformista, no máximo, em que pesassem as correntes trotskistas que também se abrigaram sob o guarda-chuva estrelado.

Nos dez anos seguintes ele estabeleceu uma estratégia radical de crescimento, se recusando a fazer as alianças que os partidos marxistas-leninistas faziam a torto e a direito, construindo uma base ampla nos movimentos populares, como a CUT e mais tarde o MST. Construía sua identidade a cada greve, a cada eleição. Não demorou muito para conseguir eleger seus primeiros prefeitos — algumas terríveis, como Luiza Fontenele em Fortaleza, e outras muito boas, como Luiza Erundina em São Paulo.

Em novembro de 1989 Lula destronou Leonel Brizola como principal liderança nacional de esquerda, mas perdeu a eleição para Collor e o Muro de Berlim caiu, levando em efeito dominó as repúblicas populares do Leste Europeu e finalmente a própria União Soviética.

Diante de um quadro totalmente novo — no qual um aspecto, maior e mais abrangente, era o fim da perspectiva do socialismo como sistema viável e desejável; o outro, a clara opção do eleitor brasileiro por uma proposta menos radical (e mais bonita e mais chique, também) — o PT fez o necessário para chegar à presidência. Expurgou seus trotskistas, abriu mão de grande parte do radicalismo em seu discurso, votou contra o parlamentarismo no referendo de 1993. Só não esperava a avalanche do Plano Real e teve que esperar até 2002.

Durante todo esse tempo, apostou no “nós contra eles”, na radicalização do embate e na delimitação de campos bem definidos.

Mas esse discurso de radicalização só é real, ou só faz sentido, quando há uma radicalização ideológica, o que nunca foi o caso do PT. E aí está um dos elementos mais importantes para que se entenda o país de hoje. O “nós contra eles” nunca foi estrutural, socialistas versus capitalistas: em vez disso, o PT sequestrou essa polarização para o campo moral. Ao longo de sua história, o PT se apresentou como o guardião ético de uma ideia de capitalismo um pouco mais humano, levando inclusive à progressiva udenização de seus rivais, como o PSDB.

Essa imagem cobrou sua conta a partir do Mensalão, quando boa parte da classe média decretou independência do voto no PT, decepcionada ao ver que, naquilo em que o próprio partido tinha apregoado sua superioridade durante anos, ele parecia ser igual aos outros. O PT foi forçado a jogar no campo que escolheu e levou uma goleada injusta. Mais tarde, a aberração jurídica e política chamada de Lava Jato capitaneou uma das piores perseguições a um partido já vistas na história do país, mas encontrou nas práticas do PT terreno fértil e devidamente amplificado.

O resultado de tudo isso foi Bolsonaro. Que caia o pano da decência sobre esses últimos quatro anos sofridos pelo país. Chega. Já passou.

O que interessa é que o PT é hoje um partido de centro-esquerda, que perdeu ao menos parte do diferencial ético no qual apostou por décadas, com dificuldade para afirmar pautas reformistas e tendo que enfrentar a fragmentação de uma esquerda que não tem mais o referencial claro que o socialismo oferecia, e se dissolve cada vez mais em discussões identitárias, como baratas voando numa sala pequena demais. Há tempos, por diversas razões (como a evolução do capitalismo globalizado e a cooptação dos movimentos sociais, natural quando um partido de esquerda chega ao poder), vem perdendo a ligação orgânica com os movimentos sociais que tinha 30 anos atrás — há quanto tempo ninguém ouve falar na CUT, por exemplo? Onde anda o Sindipetro?—, e corre o risco de perder todo o capital de organização popular que acumulou em seus primeiros 20 anos. Sua militância ascendeu econômica e socialmente, a partir da ocupação necessária e legítima de espaços no Estado. Por mais que petistas ainda se vejam como superiores, o PT hoje é um partido como qualquer outro.

Com a colaboração inquestionável dos anos de obscurantismo e destruição do Leprechaun do Cercadinho, Lula foi eleito em 2022 sem um projeto de país, sem um plano de governo, sem ideias além da repetição daquilo que deu certo duas décadas atrás e a reconstrução de um país dividido e destroçado pela incompetência de Jair Bolsonaro. Nesse contexto, suas contradições passaram batido, ou quase, e o PT se elegeu sem apresentar propostas concretas. Mas não dá para disfarçar o fato de que, hoje, ele não oferece nada realmente novo — necessário, sim, mas nada que represente um passo à frente. Lula, um gênio político e um dos maiores presidentes que este país já teve, pouco abaixo de Vargas e Juscelino, não precisou apresentar ideias: bastou prometer consertos.

Vai ser muito difícil para o PT governar nos próximos quatro anos. Não pelos terroristas que ateiam fogo a carros em Brasília. Mas pelas imposições do próprio sistema político brasileiro corrompido e degenerado de maneira inédita, e pela necessidade imperativa de fazer um governo de transição, de reacomodação e recuperação do que o país perdeu nos últimos anos.

Por um lado, é uma tarefa relativamente fácil, porque uma árvore plantada em terra arrasada é um aumento de 100%; por outro, na prática pode impedir um avanço real em relação ao país que Lula deixou em 2010.

Problema maior, no entanto, é o Brasil que vai chegar a 2026.

Se tiver um pingo de responsabilidade, Lula não se candidatará à reeleição. E aí a cobra vai precisar fumar. O PT, sendo PT, provavelmente vai tentar arranjar em suas hostes o novo candidato. Porque não interessa o Mensalão, não interessa a Lava Jato, não interessam os governos de centro-esquerda que fizeram: petistas continuam se achando os únicos depositários da verdade de esquerda. Essa postura hegemônica vem isolando progressivamente o PT ao longo dos anos, com defecções como as de Eduardo Campos e o próprio Ciro Gomes. Até agora, a liderança absoluta de Lula conseguiu minimizar isso; não deve ser o caso em 2026.

Mas há algo ainda mais grave. É a ideia do PT em si, o partido comunista bolivariano que vai enfiar uma mamadeira de piroca satânica e abortista goela abaixo dos filhos dos evangélicos deste país, que ajuda a unificar e engajar a multidão de imbecis do WhatsApp, a galvanizar uma oposição que pode não saber a que está se opondo, mas se opõe. A paranoia se espoja na ignorância: esse pessoal não consegue raciocinar, mas assim como acreditam no Deus que paga juros a quem dá o dízimo, têm a convicção de que o PT vai fazer o que nunca fez.

Em 2026, o PT precisará ter a grandeza histórica de entender exatamente onde está e dar o passo necessário para a consolidação da democracia brasileira. Se ao longo dos próximos quatro anos não conseguir criar uma liderança nacional realmente forte e absolutamente inquestionável, precisa deixar de ser a pedra de toque dos alucinados de extrema-direita, precisa entender que a democracia precisa de mais lideranças. E isso significa abrir espaço para outras forças. Em poucas palavras, ser democrático de verdade.

Como diziam os colunistas sociais nos tempos em que colunas sociais faziam sentido, a conferir.

Jô Soares

A reação nacional à morte de Jô Soares não podia ser diferente. Capa dos maiores jornais, elogios fartos à sua genialidade e à sua erudição. É assim mesmo, e é justo que seja; eu, que provavelmente serei lembrado com um suspiro de alívio, gostaria muito de ser lembrado assim.

Sempre tive dificuldade para julgar Jô Soares como humorista, porque ele foi contemporâneo de Chico Anysio, um gênio absoluto não apenas do humor, mas da própria televisão. É verdade que seus personagens e tipos eram extremamente populares, em muitos aspectos até mais que os de Chico Anysio. Captavam e traduziam bem o humor e o preconceito brasileiros, o gosto popular, e alguns de seus tipos, como o Capitão Gay, Rochinha, Padilha, o Exilado, o Reizinho, Bô Francineide e o “Muy Amigo”, são antológicos. Seus bordões ganhavam as ruas com facilidade invejável.

Mas em comparação, seu tipo de humor sempre me pareceu mais rasteiro, mais óbvio, mais pobre, mais efêmero. E o que talvez seja o problema mais grave, a persona de Jô Soares, quase sempre, se sobrepunha às de seus personagens, ao contrário dos de Chico Anysio, que desaparecia debaixo dos seus.

Jô Soares também teve a sensibilidade de ver o esgotamento daquele formato de humor oriundo do rádio e do teatro de revista, antes que qualquer outro — e por isso foi para o SBT, porque sabia que um tipo diferente era possível e valia a pena tentar. Novamente é tentadora a comparação com Chico Anysio, que continuou fazendo, com cada vez menos brilhantismo, o que sabia fazer como ninguém e terminou sua carreira fazendo ponta em um programa ruim como o Zorra Total.

Ao estrear, o programa de entrevistas do Jô Soares podia ser descrito como revolucionário para os padrões brasileiros, que não conhecia o Johnny Carson. No final dos anos 80, o Jô Soares Onze e Meia (ao menos em algum lugar do mundo, porque nunca era exibido no horário) foi uma febre e um sopro de inteligênciana TV brasileira. Seria imitado ad nauseam depois, mas ainda hoje é imbatível.

Não é à toa que um homem de tantos talentos — dramaturgo, escritor, compositor, diretor, roteirista, ator, sei lá mais o quê — parece ser lembrado principalmente por esse programa.

Jô Soares nunca foi “o melhor entrevistador brasileiro”, como andam dizendo porque na morte todos crescem uns dez centímetros. Longe disso. Muitas vezes falava tanto ou mais quanto seus convidados, e seu narcisismo e vaidade às vezes atrapalhavam. Alguns entrevistados eram chamados para serem humilhados, pelo pitoresco ou alguma excentricidade; outros, dependendo do seu grau de intimidade ou poder, eram injustamente louvados. Imagino que fosse essa a proposta do show: entreter, menos que informar. Antes de tudo, ele era um showman, e esse era o verdadeiro espírito do seu programa.

Mas mesmo antes de completar dez anos o Jô Soares Onze e Meia já estava se esgotando. Os melhores entrevistados já tinham passado por ali. O impacto que as suas entrevistas tinham na sociedade diminuiu. A coisa degringolou de vez, mesmo, quando Jô se transferiu para a Globo. Esgotado, em um horário ingrato, o programa praticamente se reduziu a um portfólio de releases dos artistas da Globo, entrevistados repetidas vezes mesmo quando não tinham nada a dizer. Nos seus últimos 15 anos, o Programa do Jô parecia um posfácio redundante a uma obra que, em seu contexto, tinha sido brilhante.

E com tudo isso, eu fiquei triste com a sua morte. Passei horas assistindo ao seu programa e dei gargalhadas sinceras, às vezes incontroláveis, até aprendi algumas coisas. Ele já tinha morrido antes, quando seu programa acabou, depois de claudicar por anos e anos; morreu antes mesmo que a TV aberta, que também vive uma longa agonia. Mas agora é definitivo. É uma era da TV brasileira que acaba definitivamente, um modo de fazer humor que se foi porque seu tempo passou. Não haverá mais artistas como ele, com a sua dimensão, com o seu impacto na sociedade. O século XX morre aos poucos, mas algumas dessas mortes são mais tristes, como a do Jô.

O que aconteceria se…

Oscars 2023.

Na plateia, Jair, Eduardo e Carlos Bolsonaro.

Do palco, Danilo Gentili se dirige a eles.

“Dudu Bananinha, te vejo ano que vem em ‘Querida, Encolhi as Crianças’. E Carluxo, é verdade que tem o dedo e outras coisas do Léo Índio no fato de sua noiva lhe largar quase no altar?”

Revoltado com a piada com seus filhos, o ex-presidente Jair Bolsonaro se levanta, vai até Danilo e lhe dá um tapa na cara.

A internet quebra mais uma vez, em razão unânime a Bolsonaro.

Oscars 2022

King Richard eu ainda não vi.

West Side Story é, em absolutamente todos os aspectos, inferior ao original de Wise e Robbins. Talvez possa apreciar o filme quem não conhece ou não lembra do original de 1961, mas acho muito improvável. O que aquele tinha de moderno, inventivo, de grandioso e de arrebatador, este tem de medíocre e covarde, pasteurizado até mesmo em seu discurso. Os números de dança são poucos e pobres, preguiçosos, a música se atola em um limbo temporal que a impede de ser relevante. Aposto que até Baz Luhrman faria melhor. Só não é o pior entre os concorrentes do ano porque nem mesmo Spielberg conseguiria estragar totalmente material tão bom. (Mentira: é o pior, sim, e por isso abre a lista.)

Deve haver alguma razão para Licorice Pizza estar concorrendo ao Oscar, mas eu ainda não consegui descobrir qual é. Talvez apele para o corporativismo da Academia por ser inspirado nas memórias de um produtor, talvez o pedigree do diretor lhe possibilite dar uma carteirada digna de promotor de justiça. Não dá realmente para saber. Fora isso, é só um filminho que em seus melhores momentos apenas consegue parecer remotamente com os mais chinfrins de Cameron Crowe. Curiosamente, me lembrou um israelense antigo, cujo nome esqueço e não faço questão de lembrar, mas que tem Lollipop ou Popsicle no título, e o indefectível “O Último Americano Virgem”. Só não sei por quê.

Se não sei como Licorice Pizza está nessa disputa, sei como CODA entrou: pelas cotas, como Sound of Metal ano passado. É o maior amontoado de clichês que alguém vai ver nesta fornada, e mesmo que se tente, é impossível não saber o que vai acontecer na cena seguinte. Para agravar ainda mais as coisas, essa é uma refilmagem. Mas a verdade é que o filme tem qualidades: as atuações são muito boas, a direção é eficiente embora sem imaginação, arranca gargalhadas sinceras em um ou dois momentos e consegue engajar o espectador, que pode se identificar facilmente com a protagonista. Sian Heder tem o mérito de fazer um filme simples e extremamente agradável. E fez a opção sagaz de não legendar ou traduzir os diálogos em linguagem americana de sinais. Ou seja, tudo o que um bom filme de Sessão da Tarde faz.

Dune, de certa forma, é quase Star Wars feito da maneira certa, com roteiro escrito por um cidadão minimamente letrado e um leve molho de Game of Thrones. É um bom filme para o gênero, claramente pensado para ser trilogia (ou enealogia, se Deus der bom tempo), formalmente correto como os filmes de Villeneuve normalmente são. Filme bem razoável, não faz vergonha, mas nada de outro mundo.

Nightmare Alley é o filme em que eu votaria se fosse da Academia, mesmo sendo uma refilmagem, que num mundo ideal jamais deveria sequer concorrer. Não porque é o melhor, porque não é. Mas noirs e westerns ainda são meus gêneros preferidos, e este não nega a raça: um belo filme noir que consegue evocar toda a atmosfera de uma era sem parecer um pastiche, e ainda é melhor que o original por evitar o final conciliador.

Uma boa linhagem inglesa precede Belfast, que às vezes passa a impressão de ser o mesmo filme inglês de memórias que a gente vê de vez em quando sob nomes diferentes: Hope and Glory ou Still Lives, Distant Voices. Parecem todos saídos do mesmo útero. Mas que isso não pareça um demérito: é um filme excelente, forte, coeso, humano, e acerta ao narrar o mundo pelos olhos do menino Buddy, dando a tudo um tom onírico, irreal, a memória recriada. A fotografia é excelente, um filme com Judi Dench e Ciarán Hinds em bons papéis não pode ser ruim, e o uso da cor para indicar a importância do cinema e do teatro em um mundo que insistia em tentar ser preto e branco pode não ser o beta de Rumble Fish, mas funciona.

The Power of the Dog é um belíssimo filme. Denso, conduzido de maneira soberba, com atuações memoráveis, especialmente de Benedict Cumberbatch. E no entanto tem um final que diminui o filme, quase óbvio, absolutamente anticlimático. Toda a narrativa que se construía até ali prometia, quase implorava por uma complexidade que o final simplório não consegue entregar. E o filme desperdiça as chances de explorar a relação entre os dos protagonistas. Triste, isso.

Don’t Look Up é uma sátira deliciosa ao mundo americano em que vivemos, perceptiva, inteligente, sem deixar de ter no seu miolo o que move um filme desde quase sempre: a decadência e redenção do personagem de Leonardo DiCaprio (em atuação excelente, no ponto certo). É quase o Dr. Strangelove dos anos 2020. O mais curioso é que a trajetória do filme seguiu o mesmo roteiro que ironiza: gerou um burburinho imenso nos dias posteriores ao seu lançamento e agora ninguém mais fala nele, porque temos que seguir em frente, sempre, tem sempre um filme novo a ver, alguma besteira nova a falar. A única coisa realmente fraca no filme é a coda, mesmo engraçadinha — codas são, em 99,99% das vezes, desnecessárias.

Doraibu Mai Kā é surpreendente e de uma beleza estonteante, e supera todos os outros por mundos de distância. Uma teia intrincada de sentimentos admiravelmente bem tecida em sua relação com o tempo, dirigido de maneira singular e idiossincrática, é o melhor filme entre os concorrentes. E embora eu entenda que essa leva de filmes orientais se devem à busca de Hollywood por mercado, desta vez o filme selecionado realmente merece o Oscar que “Parasita” ganhou indevidamente. Devem fazer com ele o que fizeram com “Roma”, mas além de ganhar o Oscar de melhor estrangeiro ele ainda pode entrar para o Guiness como prólogo mais longo da história. E eu realmente não entendo por que traduziram por estas plagas botocudas o título japonês pelo inglês.

Quatro refilmagens concorrendo ao Oscar. Quatro. Isso deve significar alguma coisa, mas tenho medo de saber o que é.

Buddy Guy

Buddy Guy é o último bluesman. O último grande contemporâneo vivo de Muddy Waters, Howlin’ Wolf, John Lee Hooker, Willie Dixon, entre tantos outros artistas que fizeram parte do plantel da Chess Records, a gravadora que está para o blues de Chicago como a Verve e a Blue Note estão para o jazz e a Motown e a Stax para o soul.

Buddy Guy é também o meu primeiro bluesman; não o primeiro a ser ouvido, mas o primeiro de que lembro ter notícia ao ler sobre um show que ele veio fazer com Junior Wells no Brasil, no Maksoud Plaza, acho que em 1985.

Foi sobre ele um perfil que li há alguns dias, publicado pela New Yorker há alguns anos. A matéria se pergunta por que ele não teve o mesmo nível de reconhecimento que seus colegas tiveram, por que sempre foi visto como menor que os outros. E faz a conclusão óbvia, quase ditada pelo zeitgeist: o racismo atrapalhou a carreira de Buddy Guy.

Pronto. Temos aí a panaceia universal para todos os problemas enfrentados por qualquer artista que não tenha tido o que alguém acha que ele deveria ter.

Acontece que Buddy Guy é o último bluesman, mas há um detalhe importante que precisa ser levado em conta: ele era grande em um tempo em que gigantes caminhavam na Terra.

A mim Guy sempre soou, isoladamente, como um artista forte, porque era um músico excepcional em um gênero pelo qual sou apaixonado. Dentro do contexto em que estava inserido, no entanto, ele se torna menor. É um grande cantor e excelente guitarrista. O blues dele é correto. Está completamente dentro dos padrões da média, instalado com conforto em sua parte superior.

Mas se me perdoam a heresia, Buddy Guy quase soa branco para mim. Talvez seja o seu timbre de voz mais agudo, talvez sejam os arranjos; talvez seja a adequação a um modelo já estabelecido de sonoridade (rapaz, como ele gostava de metais…). O fato é que o blues que ele fazia nos anos 70 poderia muito bem ser feito pelo Led Zeppelin ou pelos Stones. E há uma convenção básica, criada e reforçada pela legião de artistas e fãs de blues, que há de ser respeitada ainda que aquele imbecil da Fundação Palmares murche as orelhas e zurre que é “racismo reverso”: branco não consegue cantar isso comme il faut.

Em nenhum momento Buddy Guy consegue transmitir a sensação de invenção que nos alumbra em Muddy Waters, ou o perigo inerente à voz de Howlin’ Wolf, ou a sensualidade das composições de Dixon, ou a verdade primitiva e quase animal de Hooker. É isso que falta a ele: aquela grandeza singular sentida imediatamente quando ouvimos algo realmente novo e genuinamente grande.

No entanto, para algumas pessoas é mais fácil apelar para o racismo, por mais absurdo e sem sentido que isso possa parecer.

Falta explicar por que só Buddy Guy foi vítima desse aspecto do racismo, escolhido a dedo entre tantos outros, e dentro de um ambiente exclusivamente negro. Por que não Dixon, cujo baixo parecia o vaivém de quadris e de cujas composições escorria uma safadeza lúbrica como o suor oleoso nas ruas da Bahia, atemorizando os moços brancos diante dos negros e suas “picas enormes e sacos que são granadas”, como cantaria depois o bardo brasileiro? Por que não Howlin’ Wolf, com aquela voz, aquele jeito de andar, aquele tamanho, negão imponente e ameaçador que qualquer um teria medo de encontrar em uma viela escura numa noite de lua minguante?

Guy deu a sorte de sobreviver a todos eles. Sempre esteve em seu lugar justo. Era grande e ocupou um lugar ao sol enquanto milhares de músicos aspirantes tiveram que se contentar em tocar em bares, às vezes um ou outro compacto gravado para fazer valer o seu sonho. Todos os dias, milhares de garotos pegam suas guitarras e tentam aprender algum riff seu, eventualmente tentam até cantar como ele. Buddy Guy conquistou isso porque alcançou o que a maior parte dos seus companheiros maiores não tiveram: longevidade. Foi vivendo mais que ele pôde se tornar um gigante de verdade, o último deles — porque agora a média de estatura é maixa, muito mais baixa, e Guy conquistou o direito de parecer maior do que realmente é.

E os últimos gigantes são sempre criaturas solitárias, e se tornam maiores que a vida, e por estarem sozinhos o seu fim se torna ainda mais épico. E o tempo o tornou maior ainda, porque quem fica é quem conta a história, e essa história a gente muda de acordo com os ventos de cada tempo.

A fome

Gilson arregala os olhos:

— Mas até cachorro?

— Ué, eu não teria problema nenhum. Eu não como porco?

— Mas, poxa, você não tem a ligação emocional que se tem com um cachorro. Você comeria o Fidel?

E eu lanço um olhar extremamente triste para o meu cachorro, ao meu lado.

— Depende da fome, Preto… Depende da fome…

Errata: Get Back

De vez em quando a gente escreve umas besteiras sem tamanho. No meu caso, só fui prestar atenção ao responder um comentário do Edkallen ao último post.

No post eu tinha escrito o seguinte:

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína.

É uma das maiores injustiças que escrevi a respeito do finado John Lennon, que Deus o tenha em bom lugar.

Naquelas sessões, mesmo “atoleimado pela heroína”, Lennon emplacou duas das maiores canções dos Beatles. Across the Universe é talvez a letra mais bela de toda a banda. Don’t Let Me Down, em toda a sua simplicidade, é desde sempre uma de minhas canções preferidas. Além das músicas fracas ou velhas que foram para o álbum, Dig a Pony e One After 909, ele apresentou um bocadinho de outas coisas. Ao longo daqueles dias gélidos de janeiro  Lennon trouxe grande parte do que gravaria no Abbey Road ou até no Imagine, mesmo coisas que nunca completou como Mean Mr. Mustard ou Polythene Pam. E um bocado de canções que jamais seriam gravadas também viu a luz naqueles dias. Por eemplo, gosto muito de uma canção que todos parecem detestar, Watching Rainbows.

Nada vai justificar a bobagem que escrevi no último post. O finado George Harrison, que Deus também o tenha em bom lugar, continua o terceirão.

The Beatles: Get Back

Get Back é a melhor coisa que os Beatles lançaram nos últimos 25 anos, a única realmente fundamental e necessária.

Depois do projeto Anthology a Apple Corps vem lançando uma série de caça-níqueis indignos da estatura da banda: raspas de tacho gourmetizados pela remasterização ou filmes canalhas como Eight Days a Week, em que obliteram de sua história Pete Best, o 4º beatle, e se dão ares de grandes responsáveis pelo fim da segregação racial nos EUA.

Uma esfinge significativa, no entanto, ainda restava: as filmagens de janeiro de 1969 que resultaram no filme Let it Be.

Sempre houve algo de realmente especial, ainda que por incômodo, no Let it Be. Mesmo restaurado há décadas, seu relançamento era constantemente adiado. Para os beatles restantes o principal motivo era óbvio: o desconforto diante do registro do que agora sabiam ser o fim do ápice de suas vidas. Mas sempre se soube também que mais cedo ou mais tarde ao menos um Let it Be restaurado, e talvez ampliado, viria à tona, ainda que só depois que os remanescentes envergassem seus terninhos eduardianos de madeira.

O que Peter Jackson entrega agora é muito superior a todas essas expectativas.

O áudio desse material bruto está disponível na internet há muito tempo. O blog A Moral To This Song vem transcrevendo há anos vários trechos dessas fitas, e especialmente o primeiro episódio de Get Back chega a parecer estruturado a partir das seleções feitas pelo blog. Para o fã mais acirrado, não há propriamente muita novidade na informação bruta; e ao mesmo é tudo novo, agora, porque as imagens dão materialidade ao que se ouvia, possibilitam interpretações mais acuradas, e a excelente editoria desse material fornece um guia competente para o espectador. Jackson fez um trabalho excelente de curadoria, agindo com um método simples: contar a história da maneira mais completa possível, sem tentar adicionar o seu “toque pessoal”.

Eu esperava que ele ampliasse o Let it Be original, acrescentando material inédito e corrigindo a narrativa estranha legada pelo diretor Michael Lindsay-Hogg, o 29º beatle. Mas Jackson, que já pode ser considerado o 14º beatle, foi mais sábio do que isso. Partiu do zero, adotando uma narrativa linear e deixando que o desenrolar dos fatos criasse a tensão narrativa necessária, o que faltava no Let it Be que, afinal de contas, deixava a impressão de não ser mais que um amontado desconjuntado de momentos ruins. Claro, Get Back é informado pelo filme original, embora Jackson tente ao máximo evitar cenas já usadas, a não ser quando é realmente impossível.

Mas sua grande conquista, mesmo, foi escapar de duas armadilhas — reprisar o baixo astral enganador do filme original ou transformá-lo em outro conto de fadas chapa-branca, adequado ao esforço de edulcoração de sua biografia empreeendido pelos ex-beatles. Hoje é possível afirmar que Scorsese, há décadas o meu indicado para o serviço, não faria trabalho melhor.

Para quem tem interesse apenas superficial nos Fab Four, o documentário provavelmente é cansativo. São quase oito horas de imagens e músicas incompletas de uma banda que tem um prazo final a cumprir mas não consegue descobrir, em nenhum momento, o que fazer. Cinquenta anos atrás, um filme como esse seria impossível. Mas o tempo não parou, como aliás costuma fazer, e nesse intervalo um novo gênero se afirmou no imaginário das pessoas: o reality show. Décadas de exposição da patuleia a espiadas na intimidade alheia pelo buraco da fechadura possibilitaram que aquilo que era apenas um documentário reencarnasse em algo totalmente imprevisto, uma espécie de Big Beatles Brother. E o triste estado da música mundial permite que esse material tão velho adquira um frescor impensável até mesmo em seu tempo.

Para fãs de longa data, no entanto, o filme não é apenas uma delícia visual, musical e histórica: ele traz algumas surpresas.

O primeiro vai além de comprovar o que sempre foi óbvio: que Michael Lindsay-Hogg não tinha a experiência e o talento necessários para fazer aquele filme. Mas o que Get Back mostra é que sua participação foi ainda pior: foi nociva e deletéria.

Em defesa de Lindsay-Hogg pode-se dizer que o projeto original era irrealizável. Os Beatles estavam esgotados depois da maratona de gravações do “Álbum Branco”. Sair do zero e em dezoito dias aparecer com catorze novas canções, e azeitada o suficiente para dois concertos, era virtualmente impossível até mesmo para uma banda como aquela, e disso ele não tem culpa. Assim como eu, o 37º beatle, Lindsay-Hogg (que alega ser filho bastardo de ninguém menos que Orson Welles) sempre viu o Let it Be como uma história de superação, com um final feliz. Mas isso se dá não por seus esforços e habilidades como diretor, e sim porque nem ele conseguiu subverter totalmente a cronologia dos fatos. Nada disso, no entanto, o redime da culpa por editar um filme cuja mediocridade Peter Jackson agora esfrega em sua cara: quer dizer que ele tinha todo esse material à disposição e só conseguiu fazer aquele filme horroroso? Vergonha, vergonha, vergonha eterna.

Mas foi ao aceitar algo que estava obviamente além de sua capacidade, ao botar constantemente lenha na fervura da panela de pressão em que aquilo se tornou, ao esquecer o seu papel de diretor e tentar se imiscuir na relação já complicada de Lennon e McCartney, ao aparecer com ideias mirabolantes e impraticáveis para complicar ainda mais a situação, Michael Lindsay-Hogg em sua tentativa de ser o 9º beatle foi parte ativa no processo de desintegração da banda. Ele vai entrar na história como o sujeito que disse a Linda McCartney, a 29ª beatle: “Eu sou mais fã que você”. Tenho certeza de que Lennon, se estivesse ali, teria perguntado na hora: “Mas Paul também come você, fio?” (E fã mesmo era Maureen Starkey, roqueira raiz e proto-headbanger, como se vê mais adiante.)

Jackson também corrige uma grande injustiça histórica ao dar o destaque merecido a Mal Evans, o 7º beatle. A história de Mal é talvez a mais triste de todas as que cercaram essa aventura. Absolutamente dedicado à banda, depois do seu fim Mal zanzou pela vida até ser morto pela polícia num quarto de hotel em Los Angeles, seis anos depois. O “brother Malcolm” aparece proeminentemente aqui, inclusive dando uma de suas legendárias contribuições às letras de McCartney. Seu papel na história finalmente é devidamente registrado, e esse é um reconhecimento devido há muito tempo.

Uma das melhores coisas do filme é que agora é possível avaliar com clareza o papel real de George na dinâmica da banda. Para desgosto dos millenials que acham que George Harrison era quase um Paul McCartney, Get Back deixa claro que embora importante para a banda, George sempre foi uma figura secundária no que diz respeito à sua direção musical. Ele sempre foi o terceiro, muito longe da simbiose conhecida como Lennon/McCartney. O que o filme mostra é que agora ele está cansado disso, adotando uma postura passiva-agressiva de rebeldia. Ele simplesmente não quer mais ser tratado como PCD.

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína. Harrison apresentou apenas quatro músicas completas: I Me Mine (que John, ao ser apresentado a ela, disse ser apenas um bom jingle, o que infelizmente não aparece no filme), For You Blue, Old Brown Shoe e All Things Must Pass. E aí a gente se pergunta: ele reclamava de quê, afinal? I Me Mine e For You Blue, duas canções medíocres, foram para o álbum. Old Brown Shoe virou lado B de compacto. E foi ele quem retirou All Things Must Pass da fila, talvez já pensando em seu disco solo.

Sua saída da banda é mais bem explicada, finalmente. Durante meio século se achou que isso tinha acontecido no dia da discussão entre Paul e George sobre a guitarra de I’ve Got a Feeling; só se discutia se tinha sido por causa daquilo ou por uma discussão feia com Lennon na hora do almoço. As datas agora estão corrigidas.

(O filme corrige também um erro deste blog: eu tinha postado um vídeo de uma jam tenebrosa com Yoko — mostrada em Get Back de maneira ainda mais resumida — como se fosse da tarde daquele dia; na verdade ele é posterior, já no estúdio da Apple. Mas infelizmente deixou de fora algumas coisas importantes. Por exemplo, Lennon se perguntando diante de McCartney se, afinal, queria mesmo que George voltasse. Ou o processo de criação de Dig It.)

Por outro lado, é assustador ver a genialidade de McCartney em ação. Dia após dia, diante da pressão e do prazo exíguo, McCartney trazia um novo clássico. Essa capacidade de criação, com tamanha qualidade, é absolutamente sobrenatural. É inexplicável. McCartney acaba emergindo de Get Back como o grande gênio da banda e talvez o maior gênio musical da segunda metade do século XX. Se essa impressão é tendenciosa, já que naquele momento Lennon estava ainda mais ausente de alma que de corpo e isso naturalmente muda a natureza de sua relação, não deixa de ser verdadeira. Paul McCartney é um gênio, e não se fala mais nisso.

Mas um gênio que enfrenta problemas bem comezinhos. Em 1981, depois de ler uma declaração de Yoko dizendo que ninguém magoou tanto Lennon quanto ele, McCartney ligou para Hunter Davies, o 25º beatle, para desabafar: e as vezes em que Lennon o tinha magoado? Lennon, segundo Macca, podia ser “um escroto manipulador”. O filme traz exemplos magníficos de ambas as acusações. Lennon espera McCartney sair para contar aos outros colegas que tinha ido encontrar com o empresário Allen Klein, angariando poder político suficiente para enfrentar McCartney posteriormente. Ali se vê o nascer da última crise que levaria a banda ao fim.

E é em uma gravação de Oh! Darling que o drama daqueles dias está mais claro. Paul no baixo, John no piano. Um olha para o outro, felizes com o que adivinham estarem fazendo. Mas então Yoko Ono, a 23ª beatle, se senta ao lado de John, e então a expressão de McCartney muda completamente. Diferente de George, que nunca escondeu sua irritação d, McCartney era o maior defensor de Yoko na banda, menos por convicção do que por uma tentativa de acomodar o que percebia ser inevitável; mas se sabia o maior perdedor.

Em outro momento, no dia seguinte à saída de George da banda e temendo que Lennon tivesse seguido seu exemplo, não dá para ver McCartney tentando conter o pranto diante da possibilidade que a banda tenha acabado — nem tanto por George, mas por Lennon — sem entender claramente o que ele sentiu. Esse é, talvez, o momento mais pungente de todo o filme: “And then there were two”.

Esse é o outro lado do que mais impressiona no filme: a história de amor entre John Lennon e Paul McCartney. Ali é possível ver, como nunca antes o nível de sincronia em que os dois estavam. A maneira como um entende o outro, como operam quase sempre na mesma frequência, como embarcam facilmente nos esboços de ideias do outro e os levam adiante, é impressionante. É justo imaginar que seria ainda mais, estivesse Lennon em melhores condições.

Get Back é isso: um ajuste de contas dos Beatles com o seu capítulo final, feito de maneira digna e à altura da maior pequena banda da história do mundo. Um fim digno para a maior epopeia musical do século XX. Não se pode querer mais que isso.