Michel, Rafael, comentários sobre racismo e um pouquinho de cinema

Michel e Rafael — não, apesar do que parece não se trata de uma dupla sertaneja — deixaram comentários ao post sobre Lobato e Dahl. O mais elogioso diz que o texto é péssimo. O mais arrogante e redundante me manda fazer terapia.

Eu estava com saudades. Bons tempos, aqueles.

O que mais chama a atenção é que os dois comentários apelam no final para os ataques que na faculdade a gente aprendia serem ad hominem.

O xará diz que o post diz mais sobre mim do que sobre o tema — o que é uma bobagem, já que todo texto diz mais ou menos sobre seu autor, já a partir da escolha do tema; o que o Rafael do B é incapaz de perceber é que seu comentário diz ainda mais dele. Já o Michel exagera no desprezo e diz que preciso de terapia. Devo precisar, é verdade; mas não por isso.

Esses comentários, suando a superioridade moral normalmente dada por alguns anos na universidade e a perspectiva de uma vida em seus corredores, mostra que são garotos — o nome Rafael, por exemplo, só se tornou comum no início dos anos 80 —, deslumbrados com o ambiente acadêmico. Só isso para explicar o apelo a argumentos inconsistentes ou repetitivos que tentam transformar tudo em um diálogo de surdos, e principalmente a revolta pessoal. O Michel, por exemplo, basicamente repete os argumentos que o texto citava, e até contradiz o Rafael ao insistir nas justificativas para o que ele diz não ser censura, logo depois de preparar o terreno dizendo que não dá para monitorar crianças todo o tempo.

Responder a eles é chover no molhado e inútil.

Quem poderia apresentar o vislumbre de uma perspectiva diferente é o Rafael, ao afirmar que o debate é mais de mercado do que acadêmico. O problema é que ele diz que “a premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público” — poxa, ele nem sequer sabe como essa discussão começou? Nunca houve demanda do público por um Monteiro Lobato menos racista; o que houve foi a pressão acadêmica, e a consequente espiral de teses e artigos e outras bobagens mais, a partir do momento em que o MEC anunciou a compra de “Caçadas de Pedrinho”, uns 15 anos atrás.

O xará nega que isso exista, essa discussão e respaldo acadêmicos sobre a validade da purgação dos textos de Lobato. E aí é que complica.

Faz o seguinte: joga “monteiro lobato racismo teses” no Google pra ver o tanto de discussões nas universidades sobre o assunto. Adianto que são aproximadamente 138 mil resultados.

Essa discussão, nesses termos que os meninos colocaram, não leva a nada, claro. Mas me lembram a última vez que estudantes desceram o chicote no meu lombo. Esqueci de escrever aqui.

Tempos atrás, escrevi um post detalhando o curso de cinema que eu faria, no lugar desses cursos atuais que, essencialmente, formam mais professores que retroalimentam as universidades e mais motoristas de aplicativo. O texto partia da grade curricular do curso de cinema da UFF — que por sinal foi declarado patrimônio imaterial de Niterói, cidade muito do meu agrado e que agora tem dois patrimônios: esse e a vista do Rio.

O Vespa, do excelente Inconsistências Inconstantes, na época ensinava num curso técnico de audiovisual. Ele levou o post a seus alunos e depois me mostrou os comentários.

A revolta foi semelhante — não, semelhante não, foi bem mais agressiva. O argumento mais leve foi o de que ninguém teria autoridade para criticar um curso a partir da observação de sua grade curricular — mais um exemplo do nível de encastelamento da universidade brasileira, a persistência do bacharelismo que a afasta cada vez mais da sociedade e que resultou em cursos como “Ciências da Religião”, um bocadão de “sub-engenharias” e até mesmo um curso livre sobre Beatles na PUC (que apenas atualiza, para mim, o ditado que diz que todo dia um malandro e um otário saem de casa — agora eles se encontram no curso sobre Beatles na PUC). De resto, os xingamentos foram grandes. Acima de tudo, os alunos deixaram claro que, para eles, ainda mais interessante do que a perspectiva de fazer cinema é a perspectiva de um emprego, perpetuando o ciclo da piada do sujeito que estudou egiptologia.

É a mesma lógica defensiva e ultrajada que motivou os comentários do Michel e do Rafael. E o mais engraçado é que há algo de reconfortante nisso. Entra ano, sai ano, as coisas continuam iguais. E isso não é tão ruim assim.

Da arte de idiotizar livros

A discussão sobre a reescrita de livros para crianças continua, e é espantoso que continue.

Ainda lembro da discussão sobre Monteiro Lobato. Essa, especificamente, me cansou desde que percebi que é essencialmente uma discussão acadêmica, isolada do mundo, que só interessa de verdade ao pessoal das universidades.

Porque crianças não leem mais Monteiro Lobato. Leem “Harry Potter”, “Crepúsculo”, “Diário de um Banana”, “Gossip Girl”. O mundo de fantasia ainda oitocentista e semirrural de Lobato já não fala ao universo infantil, muito menos ao adolescente. O pássaro roca ninguém mais sabe o que é, mocha é um tipo de café e não uma vaca sem chifres e o Curupira existe ainda menos que o Papai Noel. Coleções de Monteiro Lobato se acumulam nos sebos como testemunhos silenciosos e empoeirados da frustração de pais que acharam que seus filhos eram iguais a eles.

No fundo, o bafafá sobre Lobato serve apenas para justificar salários e teses de professores que vivem disso: de palavras, de símbolos, de significados e “ressignificados”, por estéreis que sejam. E, para validar esses “ressignificados”, que o Racista de Taubaté se torne uma versão contemporânea do Açougueiro de Lyon, porque ultimamente, no ranking dos preconceitos e ódios, o antissemitismo anda perdendo lugar para o racismo contra negros; a II Guerra Mundial foi há muito tempo, e a Palestina é logo ali.

Um tanto dessa inutilidade acomete a última discussão que acompanhei superficialmente, agora sobre Roald Dahl. Dahl, no Brasil, até onde sei é leitura recente, e se exerceu alguma influência eventual sobre bacuris patrícios foi pelo filme “A Fantástica Fábrica de Chocolates”, e não por seus livros. Quando eu era criança, nos anos 70, lia-se Verne, “Tesouros da Juventude”, “Mundo da Criança”, coleção Vagalume, o Racista de Taubaté. Eu, pelo menos, só fui ler Dahl na casa dos 30, e mesmo assim porque a editora Barracuda, brilhante e breve aventura editorial do Alfred Bilyk, me presenteou com um livro.

Mas há que se combater o mal causado pelas palavras cruéis de Dahl. Um dos personagens da Fantástica Fábrica de Chocolates, Augustus Bloop, deixou de ser “gordo” para ser “enorme”. A palavra “gordo”, aliás, foi retirada de todos os livros do finadoautor. Indiferente a tudo isso o pobre Augustus, recoberto por sua banha balouçante, continua pesando o mesmo, tanto faz se você o chama de gordo ou enorme.

Esse tipo de revisionismo é tão tacanho, e já fui terminantemente contra essas releituras. Mudei um pouco de ideia quando lembrei dos “Clássicos da Literatura Juvenil”, sobre a qual, eu eterno bêbado que não sabe que está se repetindo, escrevi várias e várias vezes aqui. A coleção, que provavelmente formou os meus gostos e pinimbas literários, era constituída majoritariamente, se não totalmente, de adaptações e simplificações. Logo, como eu sou a verdadeira medida do mundo, adaptações não são necessariamente ruins.

Mas há uma diferença entre o tipo de adaptação feita naqueles livros e essas mutilações pudibundas de agora, e ela é fundamental.

Aquelas eram tentativas de fazer livros às vezes seculares chegarem a pessoas mais jovens e menos afeitas aos meandros da escrita, através de um esforço consciente de empobrecimento e simplificação. Por exemplo, sua versão de “Os Três Mosqueteiros” simplificava a história, talvez tirasse uns detalhes importantes, mas mantinha a sua estrutura, com seus heróis imperfeitos, sem omitir o que era de fato importante. Aqui e ali os adaptadores faziam intervenções mais judiciosas, e demorou anos até eu saber que Steerforth tinha feito mal à menina Pegotty e levado a tadinha à prostituição; um dos mais bizarros, no entanto, foi a decisão incompreensível de Herberto Salles de omitir a morte de Beth em “Mulherzinhas”, embora na continuação, “A Rapaziada de Jô”, adaptada por M. Z. Camargo e publicada na mesma coleção algumas semanas depois, ela já estivesse mortinha da silva. Provavelmente Salles achou que a criançada não podia ser exposta à morte dessa forma, como hoje não podem ser expostas ao racismo; tudo o que conseguiu foi confundir os leitores.

De qualquer forma isso era raro, e só lembro desse exemplo. O que se vê agora parece com essa omissão cometida por Herberto Salles: são esforços puritanos em estabelecer uma proteção definitiva de pobres crianças idiotizadas e superprotegidas da maldade do mundo.

Um exemplo paralelo está na reedição do “Manual do Escoteiro Mirim” (outra daquelas obras fundamentais da minha infância, o que mostra quão pobre foi a minha formação. Mó inveja desse pessoal que lia “Ulysses” aos dez anos). Ele trazia umas receitas que incluíam, imagino, licores entre seus ingredientes. Agora os licores foram retirados delas, com uma notinha jogando a culpa no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Eu realmente não sei como sobrevivemos àqueles tempos duros. Devia ser graças à cachaça que bebíamos aos três anos de idade e às orgias intermináveis que fazíamos a partir dos cinco, porque não havia uma nota explicativa proibindo nada isso.

Os defensores das reescritas dizem que elas não importam tanto assim, porque as obras originais continuam aí. É a justificativa mais canalha e cínica que conheço, até porque ela é apenas parcialmente verdadeira. Esses originais vão continuar existindo para adultos que os escolherem como motivos de teses acadêmicas que serão lidas apenas por seus orientadores, mas o que estará nas livrarias ou, mais importante, nas compras governamentais serão as versões sanitizadas. Como dizia Lampião, “eu só faço o furo, quem mata é Deus”.

A questão é outra. Censurar um livro é simplesmente errado, seja qual for a forma de censura. Essa postura lembra cada vez a prática comum nos EUA de banir livros de bibliotecas e escolas — porque uma vez aberto o precedente, nada impede que todo mundo que se sinta incomodado ou ofendido por um livro tente proibir a sua leitura pelos outros, movidos pelo proselitismo de bons cristãos. E é aí que a certeza e presunção morais e éticas dos ativistas se tornam perigosas e um enorme tiro pela culatra. Em 2022, o livro mais banido nas escolas americanas foi Gender Queer, de Maia Kobabe, porque traz temática gay e é, alegadamente, sexualmente explícito. O segundo livro mais banido dos EUA na década passada foi essa série subversiva chamada “Capitão Cueca”.

Uma vez aberto, o portão da estupidez não pode mais ser fechado.

O mais grave é que toda a essa atividade protetora, policialesca, é essencialmente um exercício obtuso de subestimação da inteligência das pessoas. Defensores dessas proibições gostam de usar o argumento de que cada “interpretação tem seu tempo” para justificar seus cortes, mas o esquecem na hora de admitir a inteligência das pessoas.

Não custa tomar o racismo de Lobato, que na confusão que umas gentes fazem entre autor e obra dizem estar materializado em expressões racistas ditas pela Emília, como exemplo: se livros são o retrato do seu tempo, crianças também são. E certamente são mais inteligentes que a maior parte dos seus autonomeados protetores. Tenho sérias, seriíssimas dúvidas de que precisem ser protegidas do beiço da Tia Nastácia: o que era normal em 1930 hoje soa automaticamente incômodo para elas, criadas em um ambiente onde essas manifestações são cotidianamente malvistas, policiadas e condenadas. Até mesmo adultos e velhos como eu passam por fenômeno semelhante: o que era cotidiano e normal trinta, quarenta anos atrás, hoje soa incômodo e simplesmente errado.

Mas para os zelotes do vernáculo, se as crianças brancas lerem um livro em que a Emília, dada a falar os mais variados tipos de disparates, ofenda a Tia Nastácia, se transformarão automaticamente em racistas; se negras, ficarão deprimidas e terão sua autoestima destroçada ao verem as ofensas da boneca de macela, incapazes de identificar isso como racismo — assim como, para os fiscais do rabo alheio, ler Gender Queer vai transformar seus filhos em travestis enlouquecidas de fio dental na caçamba de uma caminhonete purpurinada cantando enlouquecidas Loco Mia.

Pensando bem, talvez o mundo fosse melhor se isso fosse verdade.

1001 seriados para ver antes de morrer

Por dez reais eu compro até livro de autoajuda, tipo “Foco Quântico e Seja Grande” do coach Benjamin Arrola, autor célebre que na virada do ano fez muito sucesso nas frentes de quartéis e entre lutadores de MMA que levaram pancada demais na cabeça.

Em vez disso, comprei há algum tempo, num desses saldões da Amazon, “1001 Séries para Assistir Antes de Morrer”, editado pela Sextante e com o qual, imagino e espero, a editora teve prejuízo significativo. Anos atrás ganhei “501 Filmes Para Ver Antes de Morrer”, que não é ruim, e achei que esse podia valer alguma coisa. Triste engano.

É um calhamaço de 960 páginas em couché fosco, com muitas fotos, muito pesado e difícil de manusear. O título é enganoso. Não são apenas o que entendemos por séries, ou seriados. Há programas de auditório, game shows, telenovelas, programas de esquetes humorísticos, reality shows. Título melhor seria “1001 TV Shows”, tradução adequada seria “programas de TV”. Foi um livro caro de fazer, mas pelo visto isso não sensibilizou ninguém e ele terminou na pilha de encalhes, de onde o resgatei como meninas bobinhas resgatam gatos.

O prejuízo é merecido porque, para começar, não existem 1001 séries de TV que merecem mesmo ser vistos. Seriados são longos demais. Assistir a “Bonanza” inteiro, por exemplo, demandaria mais de 400 horas da vida de uma criatura, que poderia fazer coisas melhores com esse tempo — uma trepanação, por exemplo, ou uma cirurgia de vesícula. É o tipo de livro que só pode existir nestes tempos de fartura excessiva: informação apenas curiosa, análise pífia e uma vocação contemporânea para criar um tipo estranho de ansiedade inútil: você precisa ver isso, você precisa fazer aquilo.

Sendo generoso de verdade, há uns 20 ou 30 seriados que fizeram a TV avançar, como I Love Lucy ou The Sopranos, e unss outras 50 que são tão bons que merecem ser realmente vistos mesmo agora. O resto é lixo para gastar tinta em gráfica.

Além disso, esse livro chinfrim não inclui “Daniel Boone”. Eu até entenderia se ele tratasse dos dez melhores seriados, até 100. Mas quebrar a cabeça para arranjar mil programas de TV que possam ser recomendados por alguma coisa e não incluir um seriado inesquecível, que durou seis temporadas, só pode ser pirraça. (Sim, é implicância pessoal. Ninguém mexe com meus amores. Danem-se, editores canalhas.)

Mas mesmo descontando tudo isso, até a minha ranhetice, este é um livro realmente ruim. É essencialmente um apanhado cronológico de programas de TV americanos e ingleses, com alguns franceses e um ou outro de outras nacionalidades para ajudar o livro a ser vendido nesses países. Parece não haver um critério mais rígido nem uma correta hierarquia de importância de séries, mas é só impressão: essa diferença existe, só que se dá no uso de fotos maiores. Os textos têm basicamente o mesmo tamanho. Um seriado de segunda ou um sucesso absoluto às vezes têm quase o mesmo peso.

O Brasil está presente com “Sua Vida Me Pertence”, a primeira telenovela brasileira. Esse é talvez o indício mais gritante da estupidez que envolve todo esse livro. Quem a incluiu não sabe do que está falando: procurou o nome numa enciclopédia qualquer e a colocou no livro porque, bem ou mal, é um marco histórico. Mas o fato é que ninguém viu essa novela de 1951 — no máximo uns poucos milhares de paulistas, que se ainda vivos já passaram dos 80 anos. Pior, ninguém pode assistir a ela porque a novela não existe. É do tempo da TV ao vivo.

Sinto ser eu a lhe dizer isso, mas você vai morrer sem ver “Sua Vida Me Pertence”, e sua vida terá sido incompleta e insatisfatória, e não valeu nada, que vida inútil você levou. Triste e ingrato fim, o seu e o meu e o de todo mundo.

Mas posso lhe oferecer um pequeno consolo.

Se escrevi acima que espero que a editora tenha tido um bom prejuízo com esse livro, é porque a preguiça merece ser recompensada com o opróbrio e o encalhe. Fossem menos preguiçosos e tirariam aquele amontoado de seriados ingleses de que jamais ouvimos falar e colocavam algumas das grandes produções brasileiras.

A TV nacional sempre foi melhor que o nosso cinema, e se me perdoam a pachequice, melhor que a maioria das TVs do mundo. Programas como “Chico City”, novelas como “Roque Santeiro”, seriados como “Carga Pesada” ou “Malu Mulher” ou “Sítio do Picapau Amarelo”, minisséries como “Anos Dourados”, “Hoje é Dia de Maria” poderiam substituir grande parte dos seriados obscuros, nunca exibidos no Brasil, que incluíram aqui. Fariam isso com honra e glória e, principalmente, maior apelo comercial.

Fizessem isso e eu não estaria aqui, esculhambando algo que nem vale a pena ser esculhambado.

Melhor do que colocar uma novela que ninguém pode ver, como “Sua Vida Me Pertence”, seria detalhar melhor os mais importantes seriados antigos e atuais: datas, episódios, equipe, trívia, essas coisas. É verdade que esses dados provavelmente já estão na Wikipedia ou em outros wikis internet afora, mas a organização dessas informações em um livro ainda é algo insuperável. Melhor, poderiam selecionar os melhores e investir em informações e avaliações críticas realmente interessantes. Desperdiçaram essa chance.

Mas o pior, mesmo, é a ideia de “ver antes de morrer”. Há algo de doente numa sociedade que vive em angústia permanente, sob pressão para fazer coisas que nem quer tanto fazer, tornando as pessoas devedoras eternas de algo que não receberam. Fazer isso antes de morrer, comer aquilo antes de bater as botas, contar as misérias de sua vida sexual porque todo mundo está fazendo isso antes que o tempo acabe. Precisamos vender, precisamos vender, e para isso precisamos criar ansiedades inúteis em uma humanidade que está perdendo a capacidade de exercer algum critério de sensatez.

Ainda tenho dúvidas de que vou morrer um dia. A única certeza, mesmo, é a de que vou morrer pouco me lixando para os tantos e tantos e tantos seriados que não vi. Nem para isso esse livro serviu.

Da arte de reescrever a história e enganar otários

Revisionismo é um troço que me incomoda desde os tempos do camarada Kruschev. Tanto pior para mim, porque estes tempos de esgotamento criativo se transformaram na era das releituras e “ressignificações” e outras bobagens do tipo.

Por esses dias andaram comemorando o sexagésimo aniversário de lançamento do Please Please Me, o LP de estreia dos Beatles. Semana passada o youtuber Régis Tadeu fez um vídeo louvando as maravilhas desse disco “revolucionário”. Pouco antes, apareceu para mim no Facebook o anúncio de um curso — isso mesmo, um curso — da CCE/PUC/Rio, seja lá o que isso for, para estudar “toda a repercussão de seu lançamento no cenário musical brasileiro e mundial”.

Quanta besteira e quanta picaretagem, meu santo Asmodeu.

Sabe qual foi a importância mundial do Please Please Me? Nenhuma.

Sabe qual foi a importância no Brasil? Menor ainda.

Vamos começar pelo Brasil, porque a explicação é mais simples. Esse disco só foi lançado aqui em 1976, seis anos depois do fim da banda. Até 1965, a discografia brasileira era totalmente diferente da inglesa. Parte das faixas do Please Please Me tinham sido espalhadas pelos dois primeiros álbuns brasileiros, uma no “Beatlemania” e outras seis no “Beatles Again”. Foi apenas em 1976 que a EMI tirou de catálogo os discos lançados até aquele ano, substituindo-os pelos originais ingleses. Fez isso no mundo inteiro.

Se no Brasil a sua inexistência — a não ser em uns poucos exemplares importados por uns poucos abençoados pela Fortuna e pela fortuna, o que é insignificante — levou à absoluta desimportância em seu tempo, na Inglaterra a história é diferente; e é por não conhecer a história dos Beatles e da indústria fonográfica que as pessoas repetem bobagens como essa.

Mas não é tão difícil de entender. Basta olhar para o próprio Please Please Me. O disco tem 14 faixas. Quatro delas são os compactos lançados anteriormente. Outras seis são covers. Restam quatro faixas originais da dupla de compositores que fez história ao bater pé e exigir que seus primeiros compactos tivessem apenas canções próprias.

(Descontando os lados A dos compactos incluídos, apenas duas das canções do álbum tiveram vida longa: Twist and Shout, depois de redescoberta no filme “Curtindo a Vida Adoidado”, de 1987, e I Saw Her Standing There, que ganhou vida nova quando Paul McCartney voltou aos palcos no final dos anos 80 e a incorporou ao seu setlist.)

A questão é que LPs não significavam nada naquele comecinho dos anos 60. Eram basicamente coletâneas de compactos e umas faixas de segunda para completar o espaço que faltava. Não é à toa que o título completo do disco é Please Please Me — with Love Me Do and 12 Other Songs. Comprava um LP quem gostava muito de um artista, mas não era para eles que as gravadoras trabalhavam.

O que importava naquele momento eram os compactos. Eram eles que norteavam o mercado e o público, mediados pelas rádios. Para os Beatles, importante mesmo foram o compacto Please Please Me, um disco — este, sim — revolucionário que mudou o cenário da música inglesa, e um pouco mais tarde She Loves You, que catalisou a beatlemania que vinha sendo gestada nos meses anteriores. Até o fim da banda, a grande luta de Lennon e McCartney era emplacar o lado A do próximo compacto, e era para eles que reservavam suas melhores canções — I Want to Hold Your Hand, I Feel Fine, Day Tripper, Strawberry Fields Forever, Penny Lane, Hey Jude nunca foram incluídas em um LP original. O resto, como McCartney sempre lembra, eram “fillers”, canções compostas para completar o álbum. Às vezes não conseguiam e eram obrigados a procurar material antigo e previamente descartado, como Wait no Rubber Soul.

Mas a história dos Beatles é uma história em construção permanente. Eles foram um dos responsáveis pela consolidação do LP como objeto cultural importante, mas isso só se daria alguns anos depois. Antes que eles atentassem para isso, outros faziam seu papel na valorização dessa mídia: Bob Dylan, por exemplo. Mas o tempo passou, os Beatles ocuparam de maneira incontestável o topo do Olimpo da música mundial. O Please Please Me passou a ter uma importância que nunca teve, o fato de ter boa parte de suas canções gravadas em 11 horas passou a ser motivo de admiração e as gentes esqueceram que isso era muito comum em seu tempo. E nestes tempos duros, afinal, as pessoas e as instituições precisam ter assunto para descolar um troco. Faz parte.

Mas eu ainda estou intrigado com esse curso. Fico realmente maravilhado e estupefato diante da possibilidade de que alguém realmente pague por isso. Penso nisso, na abundância de bestas neste mundo despirocado, e dou um esporro em mim mesmo: “É por isso que você é pobre, otário”. Felizmente caio em mim rapidinho: pobre, mas honesto. Só que nunca sei se isso é consolo suficiente.

Oscars 2023

Avatar não prestava em 2009, presta ainda menos em 2023.

Top Gun: Maverick nesta lista é quase uma ofensa. Não por ser um mau filme, que isso ele não é. Mas tampouco vai além do artesanato tecnológico e excelência estética em cenas de ação que ostenta como grande trunfo. É uma vergonha que a sequência de um filme que há menos de 40 anos era apenas divertimento escapista para adolescentes hoje concorra ao Oscar. Um filme menor, sob todos os aspectos. Não vale o que Tom Cruise gasta em cirurgias plásticas.

Elvis é um Baz Luhrman repetitivo e esgotado, que junta duas tradições narrativas diferentes para um resultado pífio, sem a euforia e a surpresa visuais que caracterizam filmes realmente bons como Moulin Rouge. Não o ajudam as inverdades históricas, as mentiras para forjar, nos bom e mau sentidos, um Elvis recauchutado para o mundo que ajudou a criar mas não soube acompanhar: aqui tentam transformá-lo no que nunca foi nem quis ser, roqueiro na alma, irmão do gueto, um cabra “woke” de verdade. No fim das contas, o filme não compreende nem respeita o velho ídolo que morreu cagando, embora trate melhor o seu protagonista e narrador, o coronel Tom Parker. E o ator que interpreta Elvis, Austin Butler, parece mais com Jim Morrison do que com The Pelvis.

É espantoso que Triângulo da Tristeza tenha ganhado a Palma de Ouro em Cannes; aparentemente, hoje Cannes está mais próxima do Piscinão de Ramos do que da Mônaco onde Grace Kelly seduzia Cary Grant com suas joias. Deve ter sido porque pobres gostamos de ver os ricos sendo ridicularizados, ou o hype do mundo sendo mostrado como o esforço cínico de marketing que é. A primeira parte, na verdade, é muito boa, com bons insights e flechadas certeiras. Mas então vira uma bobajada demagógica num roteiro cheio de furos e implausibilidades. “O Mordomo e a Dama”, filme que costumava ser exibido na Sessão da Tarde nos anos 80, é melhor.

Os Fabelmans é um bom Spielberg, uma ode ao cinema como forma de recriação da vida e diálogo entre as pessoas. Tem alguns excelentes momentos e impressiona ao mostrar os pais do diretor como pessoas falhas como qualquer um. Mas coitado do velho Steve: há algo de tão acadêmico, de tão morno em seus filmes, de tão velho. É a sua honestidade que mais seduz neste filme, a chance de conhecer um pouco mais da vida do sujeito; porque fora isso, não há muito mais. Spielberg já fez filmes melhores, o cinema já recebeu homenagens melhores.

Nada de Novo no Front é um belo filme, forte, capaz de mostrar o horror e a falta de sentido da guerra com capacidade. A direção é firme, correta, a fotografia é excelente, as atuações são adequadas. Mas além de ser uma refilmagem — que deveria ser falta eliminatória em uma premiação —, não tem realmente nada de novo, e os mais de 90 anos de miséria e horror humanos e a infinidade de guerras que separam as duas versões retiram muito da sua importância real.

Entre Mulheres é um filme curioso e instigante, que em uns poucos momentos chega a lembrar vagamente aqueles filmes godardianos em que se fala, fala, fala. Estabelece um debate sobre a condição feminina que escapa da demagogia, e só isso já motivo de celebração. Seria ainda melhor se fosse tratado como uma parábola dessa discussão, atemporal e num lugar imaginário, em vez de inspirado num caso real acontecido na Bolívia. De qualquer forma, é um grande resumo da discussão feminista americana atual, apesar de acabar refletindo a origem puritana religiosa de parte dessa discussão.

Tár é um filme admiravelmente bem construído, excelente em sua ambiguidade e na destreza com que narra a trajetória à la Nightmare Alley de Lydia Tár. Mas acima de tudo, é uma atuação estelar de Cate Blanchett. Eu não queria que escolher entre dar o Oscar a ela ou a Michelle Yeoh: duas atuações tão diferentes, e tão brilhantes. Uma, a de uma grande estrela que dá uma dimensão maior que a vida à sua personagem; na outra, a compreensão das minúcias e sutilezas de seus personagens.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ter impresso “Vencedor do Oscar 2023 de Melhor Filme” em seu cartaz de lançamento, para economizar tempo. O filme traz uma mistura inteligente e surpreendente de atualidade — absorve como poucos esses vinte e poucos anos de universo de super-heróis e lhe dá uma perspectiva diferente —, inventividade formal, roteiro que em alguns momentos lembra os de Charlie Kaufman, referências diversas ao cinema, e tudo isso sobre uma base sólida e eficiente, que é a boa e velha busca pela felicidade familiar. É a receita perfeita para o prêmio, e uma provável vitória será mais que merecida.

Mas o melhor filme entre os concorrentes deste ano é Os Banshees de Inisherin — junto com o formidável EO, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro —, um filme sensível e surpreendente, admiravelmente bem executado, com grandes diálogos, interpretações brilhantes — especialmente a de Colin Farrell — e uma visão inquietante e complexa das relações humanas. “Banshees” não dá respostas, e nos lembra que cinema, antes de mais nada, continua sendo contar bem e de um jeito novo e singular uma boa história. Fazer isso com tamanha maestria, num ano excepcional em que a maioria dos concorrentes ao Oscar é muito boa — algo cada dia mais raro, como mostram os últimos anos — é um feito e tanto.

Mais um original de Dylan e McCartney

Eu tenho um sonho.

Perguntaram a Paul McCartney quem era o único artista que o faria ficar inseguro, gaguejante, num encontro. A resposta foi simples.

“Dylan”.

Bob Dylan foi mais prolixo:

Eu sou deslumbrado por McCartney. Acho que ele é o único que me deixa pasmo. Ele é completo. E nunca deixa a bola cair. Ele tem o dom da melodia, tem o dom do ritmo, ele pode tocar qualquer instrumento. Ele pode gritar e berrar tão bem quanto qualquer um, e canta uma balada tão bem quanto qualquer outro. E suas melodias são tão naturais, é isso que impressiona… Ele é tão natural. Eu queria que ele parasse. Tudo o que sai de sua boca parece envolto em melodia.

Os dois maiores artistas da música pop ainda vivos são apenas elogios um para o outro — mais que isso, reconhecem nele alguém maior que eles mesmos. É isso. O meu sonho de consumo é um disco de Bob Dylan e Paul McCartney.

Ora, direis, grandes merdas. Todo mundo gostaria de um disco com as músicas de McCartney e as letras de Dylan.

Mas não, não. Não é isso. Bob Dylan e Paul McCartney têm mais em comum além do fato de terem perdido a voz anos atrás. No meu sonho, não é o Dylan letrista e o McCartney compositor que eu queria juntos. É o contrário.

As pessoas têm dificuldade em reconhecer em McCartney um grande letrista. Não no sentido mais óbvio, do sujeito que passa uma mensagem importante e significativa e quem sabe revolucionária em suas músicas, como Lennon sempre tentou e Dylan fez tanto e tanto. Mas uma canção não é um poema. A letra de uma canção precisa soar bem, precisa combinar e acompanhar a música, engrandecer a harmonia, e McCartney sempre teve uma capacidade sobrenatural de encaixar a letra na melodia, de dar uma musicalidade rara às palavras. Infelizmente, ele condescende excessivamente em fazer isso em detrimento do conteúdo, o que é uma pena. Mas se a música de McCartney sempre teve uma qualidade superior, quase sobrenatural em sua naturalidade que Dylan tanto admira, é também porque os sons vocais estão no lugar certo.

Depois de um período tenebroso nos anos 70 e 80 — o mundo deveria ter sido poupado de barbaridades como Saved, Shot of Love e Knocked Out Loaded, e mesmo Blood on the Tracks, me perdoem, não é tudo isso que dizem dele — Bob Dylan conseguiu se reequilibrar nos anos 90, para então se acomodar contente em álbuns musicalmente corretos mas nada ambiciosos. Ele não quer fazer um Sgt. Pepper’s, ou um OK Computer. Aparentemente, quer fazer a música de que gosta, sem grandes arroubos de invenção, e com uma elegância madura que não havia nos seus primeiros discos. Dylan se permitiu envelhecer sem traumas, fazendo o que gosta. Seus últimos álbuns têm sempre uma característica simples: a classe conservadora de quem sabe que é impossível errar com os blues ou standards que o fizeram querer sem músico em vez de um novo Holden Caulfield.

Por sua vez, depois de passar pelo mesmo período tenebroso que Dylan — devia ser algo na água dos anos 80 — McCartney continua até hoje buscando relevância e atualidade no mundo; o que mais faria alguém gravar um tecno-sei-lá-o-quê como Back in Brazil no Egypt Station de 2018? Neste momento, ele está escrevendo um musical, e sabe-se lá quando ou se lançará um novo álbum pop. Essa angústia criativa é admirável, mas muitas vezes o coloca em becos sem saída, e o que deveria soar moderno soa modernoso — vide o New, de 2013 —, exagerado, excessivo

É a combinação disso, a busca por relevância e invenção, mas também um senso de raiz, que seria possível em um encontro entre os dois. É perfeitamente possível imaginar McCartney e Dylan combinando duas personalidades musicais tão diferentes: o conservadorismo musical de Dylan e a eterna busca pela contemporaneidade de McCartney, um aparando os excessos do outro, enriquecendo o que o outro oferece: a tradição musical sólida que Dylan tanto valoriza equilibrando a necessidade do novo que McCartney busca, e vice-versa. Assim como seria fantástico ver letras que combinassem a musicalidade de McCartney e a profundidade lírica de que Dylan é capaz.

O rock — aquela música que meninos educados brancos tomaram dos negros e fizeram sua, e que ajudou a definir os caminhos do mundo por uns trinta anos, ou pouco mais — morreu há um bom tempo. É uma linguagem esgotada, e o seu sucessor mais próximo é o que hoje chamam calhordamente de R&B, música feita por computadores numa eterna e cada vez mais esmaecida reciclagem do que já foi feito mil vezes antes

Mas antes de falecer numa prateleira de saldos de CDs ele mudou o mundo como nenhuma música antes dele, e merecia um epitáfio à altura, e ninguém melhor para escrevê-lo dos que seus dois principais artífices, seus últimos gênios vivos.

Infelizmente, este é um sonho que nunca será realizado — esse e o de passar a Ava Gardner nos peitos. Porque são dois egos gigantescos, dois artistas perfeitamente cônscios de seu papel na história e, principalmente, do legado monumental que deixaram na cultura popular. Tenho a impressão de que ambos têm medo um do outro, por reconhecerem nele um artista superior, e têm a consciência do quão difícil seria o processo criativo entre eles. Do seu ponto de vista, provavelmente têm mais a perder do que ganhar com isso.

Mas não custa sonhar. Porque, sem sonhos, como envelhecer como Dylan e McCartney?

Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

Jô Soares

A reação nacional à morte de Jô Soares não podia ser diferente. Capa dos maiores jornais, elogios fartos à sua genialidade e à sua erudição. É assim mesmo, e é justo que seja; eu, que provavelmente serei lembrado com um suspiro de alívio, gostaria muito de ser lembrado assim.

Sempre tive dificuldade para julgar Jô Soares como humorista, porque ele foi contemporâneo de Chico Anysio, um gênio absoluto não apenas do humor, mas da própria televisão. É verdade que seus personagens e tipos eram extremamente populares, em muitos aspectos até mais que os de Chico Anysio. Captavam e traduziam bem o humor e o preconceito brasileiros, o gosto popular, e alguns de seus tipos, como o Capitão Gay, Rochinha, Padilha, o Exilado, o Reizinho, Bô Francineide e o “Muy Amigo”, são antológicos. Seus bordões ganhavam as ruas com facilidade invejável.

Mas em comparação, seu tipo de humor sempre me pareceu mais rasteiro, mais óbvio, mais pobre, mais efêmero. E o que talvez seja o problema mais grave, a persona de Jô Soares, quase sempre, se sobrepunha às de seus personagens, ao contrário dos de Chico Anysio, que desaparecia debaixo dos seus.

Jô Soares também teve a sensibilidade de ver o esgotamento daquele formato de humor oriundo do rádio e do teatro de revista, antes que qualquer outro — e por isso foi para o SBT, porque sabia que um tipo diferente era possível e valia a pena tentar. Novamente é tentadora a comparação com Chico Anysio, que continuou fazendo, com cada vez menos brilhantismo, o que sabia fazer como ninguém e terminou sua carreira fazendo ponta em um programa ruim como o Zorra Total.

Ao estrear, o programa de entrevistas do Jô Soares podia ser descrito como revolucionário para os padrões brasileiros, que não conhecia o Johnny Carson. No final dos anos 80, o Jô Soares Onze e Meia (ao menos em algum lugar do mundo, porque nunca era exibido no horário) foi uma febre e um sopro de inteligênciana TV brasileira. Seria imitado ad nauseam depois, mas ainda hoje é imbatível.

Não é à toa que um homem de tantos talentos — dramaturgo, escritor, compositor, diretor, roteirista, ator, sei lá mais o quê — parece ser lembrado principalmente por esse programa.

Jô Soares nunca foi “o melhor entrevistador brasileiro”, como andam dizendo porque na morte todos crescem uns dez centímetros. Longe disso. Muitas vezes falava tanto ou mais quanto seus convidados, e seu narcisismo e vaidade às vezes atrapalhavam. Alguns entrevistados eram chamados para serem humilhados, pelo pitoresco ou alguma excentricidade; outros, dependendo do seu grau de intimidade ou poder, eram injustamente louvados. Imagino que fosse essa a proposta do show: entreter, menos que informar. Antes de tudo, ele era um showman, e esse era o verdadeiro espírito do seu programa.

Mas mesmo antes de completar dez anos o Jô Soares Onze e Meia já estava se esgotando. Os melhores entrevistados já tinham passado por ali. O impacto que as suas entrevistas tinham na sociedade diminuiu. A coisa degringolou de vez, mesmo, quando Jô se transferiu para a Globo. Esgotado, em um horário ingrato, o programa praticamente se reduziu a um portfólio de releases dos artistas da Globo, entrevistados repetidas vezes mesmo quando não tinham nada a dizer. Nos seus últimos 15 anos, o Programa do Jô parecia um posfácio redundante a uma obra que, em seu contexto, tinha sido brilhante.

E com tudo isso, eu fiquei triste com a sua morte. Passei horas assistindo ao seu programa e dei gargalhadas sinceras, às vezes incontroláveis, até aprendi algumas coisas. Ele já tinha morrido antes, quando seu programa acabou, depois de claudicar por anos e anos; morreu antes mesmo que a TV aberta, que também vive uma longa agonia. Mas agora é definitivo. É uma era da TV brasileira que acaba definitivamente, um modo de fazer humor que se foi porque seu tempo passou. Não haverá mais artistas como ele, com a sua dimensão, com o seu impacto na sociedade. O século XX morre aos poucos, mas algumas dessas mortes são mais tristes, como a do Jô.

Oscars 2022

King Richard eu ainda não vi.

West Side Story é, em absolutamente todos os aspectos, inferior ao original de Wise e Robbins. Talvez possa apreciar o filme quem não conhece ou não lembra do original de 1961, mas acho muito improvável. O que aquele tinha de moderno, inventivo, de grandioso e de arrebatador, este tem de medíocre e covarde, pasteurizado até mesmo em seu discurso. Os números de dança são poucos e pobres, preguiçosos, a música se atola em um limbo temporal que a impede de ser relevante. Aposto que até Baz Luhrman faria melhor. Só não é o pior entre os concorrentes do ano porque nem mesmo Spielberg conseguiria estragar totalmente material tão bom. (Mentira: é o pior, sim, e por isso abre a lista.)

Deve haver alguma razão para Licorice Pizza estar concorrendo ao Oscar, mas eu ainda não consegui descobrir qual é. Talvez apele para o corporativismo da Academia por ser inspirado nas memórias de um produtor, talvez o pedigree do diretor lhe possibilite dar uma carteirada digna de promotor de justiça. Não dá realmente para saber. Fora isso, é só um filminho que em seus melhores momentos apenas consegue parecer remotamente com os mais chinfrins de Cameron Crowe. Curiosamente, me lembrou um israelense antigo, cujo nome esqueço e não faço questão de lembrar, mas que tem Lollipop ou Popsicle no título, e o indefectível “O Último Americano Virgem”. Só não sei por quê.

Se não sei como Licorice Pizza está nessa disputa, sei como CODA entrou: pelas cotas, como Sound of Metal ano passado. É o maior amontoado de clichês que alguém vai ver nesta fornada, e mesmo que se tente, é impossível não saber o que vai acontecer na cena seguinte. Para agravar ainda mais as coisas, essa é uma refilmagem. Mas a verdade é que o filme tem qualidades: as atuações são muito boas, a direção é eficiente embora sem imaginação, arranca gargalhadas sinceras em um ou dois momentos e consegue engajar o espectador, que pode se identificar facilmente com a protagonista. Sian Heder tem o mérito de fazer um filme simples e extremamente agradável. E fez a opção sagaz de não legendar ou traduzir os diálogos em linguagem americana de sinais. Ou seja, tudo o que um bom filme de Sessão da Tarde faz.

Dune, de certa forma, é quase Star Wars feito da maneira certa, com roteiro escrito por um cidadão minimamente letrado e um leve molho de Game of Thrones. É um bom filme para o gênero, claramente pensado para ser trilogia (ou enealogia, se Deus der bom tempo), formalmente correto como os filmes de Villeneuve normalmente são. Filme bem razoável, não faz vergonha, mas nada de outro mundo.

Nightmare Alley é o filme em que eu votaria se fosse da Academia, mesmo sendo uma refilmagem, que num mundo ideal jamais deveria sequer concorrer. Não porque é o melhor, porque não é. Mas noirs e westerns ainda são meus gêneros preferidos, e este não nega a raça: um belo filme noir que consegue evocar toda a atmosfera de uma era sem parecer um pastiche, e ainda é melhor que o original por evitar o final conciliador.

Uma boa linhagem inglesa precede Belfast, que às vezes passa a impressão de ser o mesmo filme inglês de memórias que a gente vê de vez em quando sob nomes diferentes: Hope and Glory ou Still Lives, Distant Voices. Parecem todos saídos do mesmo útero. Mas que isso não pareça um demérito: é um filme excelente, forte, coeso, humano, e acerta ao narrar o mundo pelos olhos do menino Buddy, dando a tudo um tom onírico, irreal, a memória recriada. A fotografia é excelente, um filme com Judi Dench e Ciarán Hinds em bons papéis não pode ser ruim, e o uso da cor para indicar a importância do cinema e do teatro em um mundo que insistia em tentar ser preto e branco pode não ser o beta de Rumble Fish, mas funciona.

The Power of the Dog é um belíssimo filme. Denso, conduzido de maneira soberba, com atuações memoráveis, especialmente de Benedict Cumberbatch. E no entanto tem um final que diminui o filme, quase óbvio, absolutamente anticlimático. Toda a narrativa que se construía até ali prometia, quase implorava por uma complexidade que o final simplório não consegue entregar. E o filme desperdiça as chances de explorar a relação entre os dos protagonistas. Triste, isso.

Don’t Look Up é uma sátira deliciosa ao mundo americano em que vivemos, perceptiva, inteligente, sem deixar de ter no seu miolo o que move um filme desde quase sempre: a decadência e redenção do personagem de Leonardo DiCaprio (em atuação excelente, no ponto certo). É quase o Dr. Strangelove dos anos 2020. O mais curioso é que a trajetória do filme seguiu o mesmo roteiro que ironiza: gerou um burburinho imenso nos dias posteriores ao seu lançamento e agora ninguém mais fala nele, porque temos que seguir em frente, sempre, tem sempre um filme novo a ver, alguma besteira nova a falar. A única coisa realmente fraca no filme é a coda, mesmo engraçadinha — codas são, em 99,99% das vezes, desnecessárias.

Doraibu Mai Kā é surpreendente e de uma beleza estonteante, e supera todos os outros por mundos de distância. Uma teia intrincada de sentimentos admiravelmente bem tecida em sua relação com o tempo, dirigido de maneira singular e idiossincrática, é o melhor filme entre os concorrentes. E embora eu entenda que essa leva de filmes orientais se devem à busca de Hollywood por mercado, desta vez o filme selecionado realmente merece o Oscar que “Parasita” ganhou indevidamente. Devem fazer com ele o que fizeram com “Roma”, mas além de ganhar o Oscar de melhor estrangeiro ele ainda pode entrar para o Guiness como prólogo mais longo da história. E eu realmente não entendo por que traduziram por estas plagas botocudas o título japonês pelo inglês.

Quatro refilmagens concorrendo ao Oscar. Quatro. Isso deve significar alguma coisa, mas tenho medo de saber o que é.