Buddy Guy

Buddy Guy é o último bluesman. O último grande contemporâneo vivo de Muddy Waters, Howlin’ Wolf, John Lee Hooker, Willie Dixon, entre tantos outros artistas que fizeram parte do plantel da Chess Records, a gravadora que está para o blues de Chicago como a Verve e a Blue Note estão para o jazz e a Motown e a Stax para o soul.

Buddy Guy é também o meu primeiro bluesman; não o primeiro a ser ouvido, mas o primeiro de que lembro ter notícia ao ler sobre um show que ele veio fazer com Junior Wells no Brasil, no Maksoud Plaza, acho que em 1985.

Foi sobre ele um perfil que li há alguns dias, publicado pela New Yorker há alguns anos. A matéria se pergunta por que ele não teve o mesmo nível de reconhecimento que seus colegas tiveram, por que sempre foi visto como menor que os outros. E faz a conclusão óbvia, quase ditada pelo zeitgeist: o racismo atrapalhou a carreira de Buddy Guy.

Pronto. Temos aí a panaceia universal para todos os problemas enfrentados por qualquer artista que não tenha tido o que alguém acha que ele deveria ter.

Acontece que Buddy Guy é o último bluesman, mas há um detalhe importante que precisa ser levado em conta: ele era grande em um tempo em que gigantes caminhavam na Terra.

A mim Guy sempre soou, isoladamente, como um artista forte, porque era um músico excepcional em um gênero pelo qual sou apaixonado. Dentro do contexto em que estava inserido, no entanto, ele se torna menor. É um grande cantor e excelente guitarrista. O blues dele é correto. Está completamente dentro dos padrões da média, instalado com conforto em sua parte superior.

Mas se me perdoam a heresia, Buddy Guy quase soa branco para mim. Talvez seja o seu timbre de voz mais agudo, talvez sejam os arranjos; talvez seja a adequação a um modelo já estabelecido de sonoridade (rapaz, como ele gostava de metais…). O fato é que o blues que ele fazia nos anos 70 poderia muito bem ser feito pelo Led Zeppelin ou pelos Stones. E há uma convenção básica, criada e reforçada pela legião de artistas e fãs de blues, que há de ser respeitada ainda que aquele imbecil da Fundação Palmares murche as orelhas e zurre que é “racismo reverso”: branco não consegue cantar isso comme il faut.

Em nenhum momento Buddy Guy consegue transmitir a sensação de invenção que nos alumbra em Muddy Waters, ou o perigo inerente à voz de Howlin’ Wolf, ou a sensualidade das composições de Dixon, ou a verdade primitiva e quase animal de Hooker. É isso que falta a ele: aquela grandeza singular sentida imediatamente quando ouvimos algo realmente novo e genuinamente grande.

No entanto, para algumas pessoas é mais fácil apelar para o racismo, por mais absurdo e sem sentido que isso possa parecer.

Falta explicar por que só Buddy Guy foi vítima desse aspecto do racismo, escolhido a dedo entre tantos outros, e dentro de um ambiente exclusivamente negro. Por que não Dixon, cujo baixo parecia o vaivém de quadris e de cujas composições escorria uma safadeza lúbrica como o suor oleoso nas ruas da Bahia, atemorizando os moços brancos diante dos negros e suas “picas enormes e sacos que são granadas”, como cantaria depois o bardo brasileiro? Por que não Howlin’ Wolf, com aquela voz, aquele jeito de andar, aquele tamanho, negão imponente e ameaçador que qualquer um teria medo de encontrar em uma viela escura numa noite de lua minguante?

Guy deu a sorte de sobreviver a todos eles. Sempre esteve em seu lugar justo. Era grande e ocupou um lugar ao sol enquanto milhares de músicos aspirantes tiveram que se contentar em tocar em bares, às vezes um ou outro compacto gravado para fazer valer o seu sonho. Todos os dias, milhares de garotos pegam suas guitarras e tentam aprender algum riff seu, eventualmente tentam até cantar como ele. Buddy Guy conquistou isso porque alcançou o que a maior parte dos seus companheiros maiores não tiveram: longevidade. Foi vivendo mais que ele pôde se tornar um gigante de verdade, o último deles — porque agora a média de estatura é maixa, muito mais baixa, e Guy conquistou o direito de parecer maior do que realmente é.

E os últimos gigantes são sempre criaturas solitárias, e se tornam maiores que a vida, e por estarem sozinhos o seu fim se torna ainda mais épico. E o tempo o tornou maior ainda, porque quem fica é quem conta a história, e essa história a gente muda de acordo com os ventos de cada tempo.

Errata: Get Back

De vez em quando a gente escreve umas besteiras sem tamanho. No meu caso, só fui prestar atenção ao responder um comentário do Edkallen ao último post.

No post eu tinha escrito o seguinte:

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína.

É uma das maiores injustiças que escrevi a respeito do finado John Lennon, que Deus o tenha em bom lugar.

Naquelas sessões, mesmo “atoleimado pela heroína”, Lennon emplacou duas das maiores canções dos Beatles. Across the Universe é talvez a letra mais bela de toda a banda. Don’t Let Me Down, em toda a sua simplicidade, é desde sempre uma de minhas canções preferidas. Além das músicas fracas ou velhas que foram para o álbum, Dig a Pony e One After 909, ele apresentou um bocadinho de outas coisas. Ao longo daqueles dias gélidos de janeiro  Lennon trouxe grande parte do que gravaria no Abbey Road ou até no Imagine, mesmo coisas que nunca completou como Mean Mr. Mustard ou Polythene Pam. E um bocado de canções que jamais seriam gravadas também viu a luz naqueles dias. Por eemplo, gosto muito de uma canção que todos parecem detestar, Watching Rainbows.

Nada vai justificar a bobagem que escrevi no último post. O finado George Harrison, que Deus também o tenha em bom lugar, continua o terceirão.

The Beatles: Get Back

Get Back é a melhor coisa que os Beatles lançaram nos últimos 25 anos, a única realmente fundamental e necessária.

Depois do projeto Anthology a Apple Corps vem lançando uma série de caça-níqueis indignos da estatura da banda: raspas de tacho gourmetizados pela remasterização ou filmes canalhas como Eight Days a Week, em que obliteram de sua história Pete Best, o 4º beatle, e se dão ares de grandes responsáveis pelo fim da segregação racial nos EUA.

Uma esfinge significativa, no entanto, ainda restava: as filmagens de janeiro de 1969 que resultaram no filme Let it Be.

Sempre houve algo de realmente especial, ainda que por incômodo, no Let it Be. Mesmo restaurado há décadas, seu relançamento era constantemente adiado. Para os beatles restantes o principal motivo era óbvio: o desconforto diante do registro do que agora sabiam ser o fim do ápice de suas vidas. Mas sempre se soube também que mais cedo ou mais tarde ao menos um Let it Be restaurado, e talvez ampliado, viria à tona, ainda que só depois que os remanescentes envergassem seus terninhos eduardianos de madeira.

O que Peter Jackson entrega agora é muito superior a todas essas expectativas.

O áudio desse material bruto está disponível na internet há muito tempo. O blog A Moral To This Song vem transcrevendo há anos vários trechos dessas fitas, e especialmente o primeiro episódio de Get Back chega a parecer estruturado a partir das seleções feitas pelo blog. Para o fã mais acirrado, não há propriamente muita novidade na informação bruta; e ao mesmo é tudo novo, agora, porque as imagens dão materialidade ao que se ouvia, possibilitam interpretações mais acuradas, e a excelente editoria desse material fornece um guia competente para o espectador. Jackson fez um trabalho excelente de curadoria, agindo com um método simples: contar a história da maneira mais completa possível, sem tentar adicionar o seu “toque pessoal”.

Eu esperava que ele ampliasse o Let it Be original, acrescentando material inédito e corrigindo a narrativa estranha legada pelo diretor Michael Lindsay-Hogg, o 29º beatle. Mas Jackson, que já pode ser considerado o 14º beatle, foi mais sábio do que isso. Partiu do zero, adotando uma narrativa linear e deixando que o desenrolar dos fatos criasse a tensão narrativa necessária, o que faltava no Let it Be que, afinal de contas, deixava a impressão de não ser mais que um amontado desconjuntado de momentos ruins. Claro, Get Back é informado pelo filme original, embora Jackson tente ao máximo evitar cenas já usadas, a não ser quando é realmente impossível.

Mas sua grande conquista, mesmo, foi escapar de duas armadilhas — reprisar o baixo astral enganador do filme original ou transformá-lo em outro conto de fadas chapa-branca, adequado ao esforço de edulcoração de sua biografia empreeendido pelos ex-beatles. Hoje é possível afirmar que Scorsese, há décadas o meu indicado para o serviço, não faria trabalho melhor.

Para quem tem interesse apenas superficial nos Fab Four, o documentário provavelmente é cansativo. São quase oito horas de imagens e músicas incompletas de uma banda que tem um prazo final a cumprir mas não consegue descobrir, em nenhum momento, o que fazer. Cinquenta anos atrás, um filme como esse seria impossível. Mas o tempo não parou, como aliás costuma fazer, e nesse intervalo um novo gênero se afirmou no imaginário das pessoas: o reality show. Décadas de exposição da patuleia a espiadas na intimidade alheia pelo buraco da fechadura possibilitaram que aquilo que era apenas um documentário reencarnasse em algo totalmente imprevisto, uma espécie de Big Beatles Brother. E o triste estado da música mundial permite que esse material tão velho adquira um frescor impensável até mesmo em seu tempo.

Para fãs de longa data, no entanto, o filme não é apenas uma delícia visual, musical e histórica: ele traz algumas surpresas.

O primeiro vai além de comprovar o que sempre foi óbvio: que Michael Lindsay-Hogg não tinha a experiência e o talento necessários para fazer aquele filme. Mas o que Get Back mostra é que sua participação foi ainda pior: foi nociva e deletéria.

Em defesa de Lindsay-Hogg pode-se dizer que o projeto original era irrealizável. Os Beatles estavam esgotados depois da maratona de gravações do “Álbum Branco”. Sair do zero e em dezoito dias aparecer com catorze novas canções, e azeitada o suficiente para dois concertos, era virtualmente impossível até mesmo para uma banda como aquela, e disso ele não tem culpa. Assim como eu, o 37º beatle, Lindsay-Hogg (que alega ser filho bastardo de ninguém menos que Orson Welles) sempre viu o Let it Be como uma história de superação, com um final feliz. Mas isso se dá não por seus esforços e habilidades como diretor, e sim porque nem ele conseguiu subverter totalmente a cronologia dos fatos. Nada disso, no entanto, o redime da culpa por editar um filme cuja mediocridade Peter Jackson agora esfrega em sua cara: quer dizer que ele tinha todo esse material à disposição e só conseguiu fazer aquele filme horroroso? Vergonha, vergonha, vergonha eterna.

Mas foi ao aceitar algo que estava obviamente além de sua capacidade, ao botar constantemente lenha na fervura da panela de pressão em que aquilo se tornou, ao esquecer o seu papel de diretor e tentar se imiscuir na relação já complicada de Lennon e McCartney, ao aparecer com ideias mirabolantes e impraticáveis para complicar ainda mais a situação, Michael Lindsay-Hogg em sua tentativa de ser o 9º beatle foi parte ativa no processo de desintegração da banda. Ele vai entrar na história como o sujeito que disse a Linda McCartney, a 29ª beatle: “Eu sou mais fã que você”. Tenho certeza de que Lennon, se estivesse ali, teria perguntado na hora: “Mas Paul também come você, fio?” (E fã mesmo era Maureen Starkey, roqueira raiz e proto-headbanger, como se vê mais adiante.)

Jackson também corrige uma grande injustiça histórica ao dar o destaque merecido a Mal Evans, o 7º beatle. A história de Mal é talvez a mais triste de todas as que cercaram essa aventura. Absolutamente dedicado à banda, depois do seu fim Mal zanzou pela vida até ser morto pela polícia num quarto de hotel em Los Angeles, seis anos depois. O “brother Malcolm” aparece proeminentemente aqui, inclusive dando uma de suas legendárias contribuições às letras de McCartney. Seu papel na história finalmente é devidamente registrado, e esse é um reconhecimento devido há muito tempo.

Uma das melhores coisas do filme é que agora é possível avaliar com clareza o papel real de George na dinâmica da banda. Para desgosto dos millenials que acham que George Harrison era quase um Paul McCartney, Get Back deixa claro que embora importante para a banda, George sempre foi uma figura secundária no que diz respeito à sua direção musical. Ele sempre foi o terceiro, muito longe da simbiose conhecida como Lennon/McCartney. O que o filme mostra é que agora ele está cansado disso, adotando uma postura passiva-agressiva de rebeldia. Ele simplesmente não quer mais ser tratado como PCD.

George reclamava muito da vida, mas observando bem, sua contribuição autoral naquelas sessões foi pequena, maior apenas que a de John — sendo que este tinha a desculpa de estar atoleimado pela heroína. Harrison apresentou apenas quatro músicas completas: I Me Mine (que John, ao ser apresentado a ela, disse ser apenas um bom jingle, o que infelizmente não aparece no filme), For You Blue, Old Brown Shoe e All Things Must Pass. E aí a gente se pergunta: ele reclamava de quê, afinal? I Me Mine e For You Blue, duas canções medíocres, foram para o álbum. Old Brown Shoe virou lado B de compacto. E foi ele quem retirou All Things Must Pass da fila, talvez já pensando em seu disco solo.

Sua saída da banda é mais bem explicada, finalmente. Durante meio século se achou que isso tinha acontecido no dia da discussão entre Paul e George sobre a guitarra de I’ve Got a Feeling; só se discutia se tinha sido por causa daquilo ou por uma discussão feia com Lennon na hora do almoço. As datas agora estão corrigidas.

(O filme corrige também um erro deste blog: eu tinha postado um vídeo de uma jam tenebrosa com Yoko — mostrada em Get Back de maneira ainda mais resumida — como se fosse da tarde daquele dia; na verdade ele é posterior, já no estúdio da Apple. Mas infelizmente deixou de fora algumas coisas importantes. Por exemplo, Lennon se perguntando diante de McCartney se, afinal, queria mesmo que George voltasse. Ou o processo de criação de Dig It.)

Por outro lado, é assustador ver a genialidade de McCartney em ação. Dia após dia, diante da pressão e do prazo exíguo, McCartney trazia um novo clássico. Essa capacidade de criação, com tamanha qualidade, é absolutamente sobrenatural. É inexplicável. McCartney acaba emergindo de Get Back como o grande gênio da banda e talvez o maior gênio musical da segunda metade do século XX. Se essa impressão é tendenciosa, já que naquele momento Lennon estava ainda mais ausente de alma que de corpo e isso naturalmente muda a natureza de sua relação, não deixa de ser verdadeira. Paul McCartney é um gênio, e não se fala mais nisso.

Mas um gênio que enfrenta problemas bem comezinhos. Em 1981, depois de ler uma declaração de Yoko dizendo que ninguém magoou tanto Lennon quanto ele, McCartney ligou para Hunter Davies, o 25º beatle, para desabafar: e as vezes em que Lennon o tinha magoado? Lennon, segundo Macca, podia ser “um escroto manipulador”. O filme traz exemplos magníficos de ambas as acusações. Lennon espera McCartney sair para contar aos outros colegas que tinha ido encontrar com o empresário Allen Klein, angariando poder político suficiente para enfrentar McCartney posteriormente. Ali se vê o nascer da última crise que levaria a banda ao fim.

E é em uma gravação de Oh! Darling que o drama daqueles dias está mais claro. Paul no baixo, John no piano. Um olha para o outro, felizes com o que adivinham estarem fazendo. Mas então Yoko Ono, a 23ª beatle, se senta ao lado de John, e então a expressão de McCartney muda completamente. Diferente de George, que nunca escondeu sua irritação d, McCartney era o maior defensor de Yoko na banda, menos por convicção do que por uma tentativa de acomodar o que percebia ser inevitável; mas se sabia o maior perdedor.

Em outro momento, no dia seguinte à saída de George da banda e temendo que Lennon tivesse seguido seu exemplo, não dá para ver McCartney tentando conter o pranto diante da possibilidade que a banda tenha acabado — nem tanto por George, mas por Lennon — sem entender claramente o que ele sentiu. Esse é, talvez, o momento mais pungente de todo o filme: “And then there were two”.

Esse é o outro lado do que mais impressiona no filme: a história de amor entre John Lennon e Paul McCartney. Ali é possível ver, como nunca antes o nível de sincronia em que os dois estavam. A maneira como um entende o outro, como operam quase sempre na mesma frequência, como embarcam facilmente nos esboços de ideias do outro e os levam adiante, é impressionante. É justo imaginar que seria ainda mais, estivesse Lennon em melhores condições.

Get Back é isso: um ajuste de contas dos Beatles com o seu capítulo final, feito de maneira digna e à altura da maior pequena banda da história do mundo. Um fim digno para a maior epopeia musical do século XX. Não se pode querer mais que isso.

Pequena, bem pequena discografia de Ringo Starr

Sentimental Journey (1970)
Primeiro disco solo de Ringo, e elemento involuntário no rompimento dos Beatles, Sentimental Journey foi feito para uma audiência especial: a mãe de Ringo. São as músicas de que ela gostava e com as quais ele cresceu. Foi gravado no período em que a banda achava que estava acabando mas ainda não tinha certeza; Ringo, então, mandou a família escolher seu repertório. Ringo sabe quem é, sabe de suas limitações. O disco inteiro tem um ar de paródia, não se leva a sério demais, e é isso que faz dele uma boa curiosidade. Alguns dos arranjos são bem interessantes, mas pertencem ao seu tempo e não saem de lá nem debaixo de porrada.

Beaucoups of Blues (1971)
Uma joia obscura, Beaucoups of Blues é um disco de country music. É nesse gênero que Ringo claramente se sente mais à vontade como cantor, e para acompanhá-lo chamou um elenco estupendo: D. J. Fontana, The Jordanaires, Jerry Reed — e Scotty Moore foi o engenheiro de som. O resultado é um disco redondo, sincero, de uma qualidade absolutamente surpreendente. Ringo poderia ter se reinventado aqui como cantor country num ambiente de rock and roll, mas aparentemente jamais se levou tão a sério assim. Talvez seja o disco mais subestimado entre as tantas dezenas de discos de ex-beatles.

Ringo (1973)
Até aqui, pode-se dizer que Ringo continuava um beatle ensaiando escapadas solo, mais ou menos como Lennon gravando com Yoko em 1968. É como se seus discos solo corressem em uma raia que não a da sua ex-banda, discos que os Beatles jamais gravariam. Um de standards, outro de country. Em Ringo, no entanto, ele parece admitir que o sonho acabou, e adentra de vez o mainstream. Conta com um auxílio realmente luxuoso: todos os ex-colegas de banda contribuíram com canções e participações no disco. Ringo é considerado universalmente o melhor disco de Starr, mas desconfio que isso só acontece porque este é um disco de rock tradicional — e provavelmente porque tem John, Paul e George dando uma ajudinha. Por isso costumam desprezar o excelente Beaucoups of Blues.

Ringo Rama (2003)
Quando ninguém mais esperava nada de Ringo eis que ele se sai com um disco surpreendente. Ringo Rama é decente, dentro das limitações de Ringo, com algumas boas canções, uma atmosfera geral moderna e forte. Não é uma obra prima, obviamente, mas se sobressai de forma muito evidente na discografia de Ringo. Aqui se encontra, também alguns exemplos tardios do grande baterista que é Ringo, em faixas como Instant Amnesia. É um excelente disco tardio, de um artista que não costuma fazer excelentes discos.

O resto
Ringo tem mais um bocado de álbuns. São uns 20 ao todo, sem contar coletâneas e álbuns ao vivo. Nos últimos tempos ele se acomodou em um estilo bem característico: rock simplório, sempre derivado, que estaria à vontade em uma FM tipo easy listening dos anos 80, com letras que muitas vezes mencionam o seu passado beatle. Obviamente uns são melhores que outros, como o bom Goodnight Vienna, de 1974, que poderia muito bem estar nesta lista; e alguns são vergonhosos, como Ringo the Fourth, de 1977, ou Bad Boy, de 1978. Eventualmente uma ou outra coisa pode ser pinçada, como You Can’t Fight Lightning, faixa-bônus no relançamento do Stop and Smell the Roses (1982), que poderia ter sido gravada por Lou Reed. A maioria dos álbuns tem composições de seus ex-colegas de banda, e eles muitas vezes participam generosamente de várias faixas, mas nem isso os salva. Ouça por sua conta e risco.

And, in the end

Eu preciso confessar que os lançamentos recentes da empresa que se chama Beatles me enchem de tédio. Longe da empolgação inicial trazida pelo Live at the BBC e os discos do Anthology, o que se vê nos últimos 20 anos é indigno do legado da banda. Do engodo que foi o Let it Be… Naked, passando pelos cafés requentados da remasterização de 2009, o segundo Live at the BBC e o razoável Hollywood Bowl à raspagem de tacho que são as edições comemorativas, cada lançamento merece basicamente um bocejo e um tsc, tsc.

Quando o Álbum Branco foi remixado, em 2018, fiz um comentário aqui. Mas a verdade é que esses discos me interessam muito pouco. A essa altura da vida, a perspectiva de ouvir versões sempre inferiores de canções que já conheço de cor há décadas — isso quando não conheço as próprias versões, circulando há décadas no mercado pirata — não abre meu apetite.

Por isso, ouvi os discos de maneira muito superficial — confesso inclusive que na época não cheguei a ouvir muitas das faixas inteiras. Para que eu iria ouvir de novo as demos de Esher? Nessa brincadeira, acabei deixando passar alguns detalhes importantes.

Duas das faixas são realmente boas. Los Paranoias, que já tinha sido incluída em parte no Anthology III, aqui está em sua forma completa. É uma bela jam, talvez o mais próximo que McCartney chegou do jazz enquanto era um beatle. Mas é importante não tanto pelo seu valor intrínseco, mas porque acaba mostrando que talvez George Martin não fosse a pessoa indicada para fazer a curadoria do projeto Anthology, nos anos 90. Martin raciocinava como “o produtor dos Beatles”. Estava mais que disposto a jogar fora o que não se encaixava em um padrão de qualidade bastante alto e muito claro para ele. E nesse tipo de caça-níquel, às vezes o que se quer ouvir é justamente o contrário.

A outra é a faixa que abre o quarto disco, o take 18 de Revolution 1. É uma gravação maravilhosa. Ela consegue encapsular tudo o que Lennon queria dizer em Revolution e em Revolution #9, com a genialidade, coragem, experimentação, capacidade de síntese de uma época e senso comercial que tornaram os Beatles a maior banda da história. Se em vez de incluir essas duas faixas no disco ele tivesse finalizado e colocado só esse take 18, tinha passado o recado e feito um álbum muito melhor. Revolution #9 é uma maluquice de Yoko Ono contrabandeada num disco dos Beatles. Essa nova versão é Beatles puro, ao menos em um determinado contexto histórico.

Mas o principal aspecto que deixei passar é que Giles Martin, ao remixar o álbum, cometeu um crime de lesa-majestade.

A produção do Álbum Branco foi caótica. Geoff Emerick cansou e deu no pé, e isso alterou significativamente o padrão de gravação das músicas. Depois George Martin, de saco cheio, tirou férias e parte do disco foi efetivamente produzida por Chris Thomas.

O resultado é que o Álbum Branco sempre soou diferente. Mais agudo, mais metálico, mais agressivo. É uma prova da diferença que faz um engenheiro de som.

Giles Martin, no entanto, suavizou esse som. Tornou-o mais grave, mais de acordo com o padrão George Martin que voltaríamos a ver, em toda a sua glória, no Abbey Road. O resultado é uma fraude histórica. É desonesto.

Mas independente desses detalhes, minha opinião sobre esses lançamentos continua a mesma. São redundantes. Não comprei nenhum, nem pretendo comprar. Eles já são ricos demais para se importar se apenas baixo as .flacs.

Isso muda com a nova edição do Let it Be. Essa eu quero.

A caixa que anunciam agora é, em parte, o que se esperava, para o bem e para o mal. Traz o disco original remixado (o que deve ser algo bom, porque ele sempre soou mal, abafado, embora eu não saiba se é possível melhorar muito); um EP redundante; o Get Back com a capa original; e uns disquinhos com jams, outtakes e ensaios.

Os discos de adicionais são o mais decepcionante, porque o material disponível é tão absurdamente grande e variado que qualquer um poderia fazer algo melhor do que a sequência medíocre de outtakes que decidiram incluir. Com uma capa ainda mais apalermada que a do Let it Be original, traz uma seleção inexplicável em sua falta de imaginação ou mesmo alegria.

Pelo que vejo, o melhor da caixa é o Get Back. Não pelo disco em si, que não era melhor que o Let it Be final. Mas por finalmente trazer à luz o LP que chegou a ser distribuído para algumas rádios, com a capa em que eles recriavam o Please Please Me sete anos depois. Eu sempre achei que essa deveria ter sido a capa do Let it Be. Pelo significado, pela sensação de que ali se encerrava aquela história, e porque é uma ideia fantástica, mais típica dos anos 60 que minissaia e LSD.

É ele, só ele, a razão eu querer esse lançamento, depois de anos pouco me lixando. Eu faria diferente, claro. Minha caixa traria o Let it Be com a capa dupla da edição americana original e o livro que acompanhava a primeira tiragem, retirado logo em seguida porque aumentava muito o preço. Traria dois Get Back, com os dois mixes de Johns e as capas diferentes, para evitar a confusão que fizeram. E um álbum triplo com o que houvesse de melhor nos outtakes e jams da gravação do filme.

E é aqui que está a grande diferença. O álbum que está chegando às lojas traz basicamente outtakes do que já conhecemos. Sem ouvi-las não dá para saber quais são, mas aparentemente traz, de realmente interessante, apenas um ensaio de Gimme Some Truth, provavelmente uma das versões do dia 3 de janeiro, que mostra McCartney ajudando Lennon a compor a letra da canção. (E espero que a versão de Oh! Darling, que estaria mais à vontade no Abbey Road, seja uma do dia 31, que eu chamo de “bossa nova”).

E no entanto, os 30 dias de sessões têm tantas pequenas maravilhas que é quase impossível entender por que são ignoradas. Eu já falei aqui quais incluiria. Mas há muito mais que isso. Quem quiser conhecer, e tiver paciência, é só procurar nas redes P2P da vida por uma série de discos chamada A/B Road.

Ela só não tem o Get Back com aquela capa.

Mas há um outro motivo para eu achar que essa caixa tem algo diferente dos outros lançamentos.

Ringo Starr e Paul McCartney têm, respectivamente, 81 e 79 anos. Não seria agourar dizer que têm muito mais tempo para trás do que para a frente. A aventura dos Beatles representou um pedaço pequeno de suas vidas, mas foi decididamente o mais importante e o que deixou, durante 25 anos, uma série de problemas com que tiveram que lidar. Ao longo das últimas décadas, eles conseguiram resolver tudo isso: supervisionaram a transição para o digital, fizeram dinheiro como nunca tinham feito antes, e se empenharam em contar a sua versão da história. Faltava apenas o fechamento.

O Let it Be, junto com o filme Get Back, é o ponto final de todo esse esforço. É o último capítulo, a resolução afinal do seu momento mais conturbado, o mais contencioso, e certamente o mais doloroso. É como se Paul e Ringo pudessem dizer, finalmente, que o ciclo se fechou. A partir de agora, tudo o que a Apple Corps soltar é apenas para ganhar dinheiro, como foram as remasterizações dos últimos anos; decisões empresariais, basicamente, que não têm ligação orgânica ou emocional com a maior banda da história. O Let it Be/Get Back é certamente o último trabalho real dos Beatles. Agora eles podem descansar em paz.

Chico ou Caetano

Dia desses o Hermenauta me fez a pergunta que separa os homens dos meninos, os bons dos maus, os “raiz” dos nutella.

Chico ou Caetano?

No melhor estilo Caetano, respondi “Chico, ou não”. Porque essa é uma pergunta que pode ser respondida, sim, mas também precisa ser explicada; ela só aparenta ser fácil, e coisa séria assim não pode ser abordada de maneira leviana, um mero sim ou não.

Se em vez de perguntar quem eu prefiro você me perguntar qual é o mais importante, eu vou responder que Caetano é o músico vivo mais importante deste país; mais que isso, o músico mais importante do último meio século, o mais importante a surgir depois de João Gilberto.

Não ligo para as lives que ele andou perpetrando nesta pandemia, açoitado pela mulher-dragão, porque ele não tem mais nada de novo a me dizer; nestes tempos loucos tudo, ou quase tudo, pode ser perdoado. Mas eu sou baiano. Todo baiano nasce fã de Caetano, tem nele o porta-voz de pelo menos uma parte de si, e essa declaração deve estar em alguma parte da minha certidão de nascimento. Caetano é um dos artífices do que resolveram chamar de baianidade, assim como Jorge Amado ou Dorival Caymmi ou Ary Barroso. Deve ser por causa de Caetano que dizem que baiano não nasce, estreia.

Sendo um pouco mais racional, o fato é que desconheço músico, neste último meio século, que tenha tido tamanha importância na evolução da música brasileira, que tenha dado uma contribuição tão grande. Todo mundo que faz música no Brasil deve algo a ele.

Eu admiro Caetano pela sua capacidade de invenção e reinvenção, o seu esforço em levar a música brasileira sempre um passo adiante. Pela sua inquietação permanente, pela busca de novos horizontes, sempre. Pelo seu lirismo, também, principalmente nos aspectos formais, mas principalmente por ele ter sido, individualmente, um dos principais motores da música brasileira nos últimos 60 anos. Caetano é mais que um dos tantos gigantes que pisaram a Terra: é um deus, e é um privilégio ter vivido no mesmo tempo que ele.

Mas paixão, mesmo, eu tenho é pelo velho Chico.

Uns anos atrás ouvi cada um de seus álbuns com uma atenção que já não é mais comum em mim, cansado de um fin de siècle que parece nunca terminar. Na verdade, Chico Buarque foi um entre vários músicos que reavaliei. Na época, fiz uma revisão geral do conheço da música brasileira, e não é muito pouco. A partir daí refinei alguns conceitos, mudei outros, reforcei uns tantos. Entendi que o samba-canção é um dos momentos mais altos da música brasileira, lírica e musicalmente, insuperado ainda hoje, e foi injustamente relegado a um segundo plano pelo quase antagonismo da bossa nova. Descobri Carmen Miranda, uma das grandes sambistas da história e uma das melhores cantoras brasileiras de todos os tempos. Compreendi Gilberto Gil, cujo talento absurdo passei a finalmente reconhecer e admirar. Reencontrei o “Cinema Transcendental”, disco daqueles que tocavam direto no rádio em uma parte da minha infância, e entendi que ele sempre tinha sido o meu disco preferido de Caetano, eu é que não percebia e fingia preferir “Transa”.

Mas não há nada como ouvir Chico Buarque novamente, ou pela primeira vez.

Já escrevi aqui sobre a minha devoção por “João e Maria”. Mas não escrevi sobre o êxtase ao ouvir “joga bosta” — bosta! — “na Geni” quando era criança e entender que as coisas e as palavras podiam e deviam ser dessacralizadas — joga bosta em tudo, joga, joga bosta, joga bosta! Ou ver as manifestações pelas Diretas Já ao som de “Pelas Tabelas”.

Não escrevi sobre o arrepio que sinto cada vez que ouço “Cálice”. Em primeiro lugar pela familiaridade absoluta e, ao longo das últimas décadas, quase esquecida. Umas vidas atrás, quando ela finalmente foi liberada pela Censura, as rádios de Salvador pareciam não tocar outra coisa, e “Cálice” era a música que estava no ar, quase como orvalho ou o cheiro do óleo diesel nas avenidas ou do dendê na Praça da Sé esperando o ônibus ou o cheiro de mofo e de mijo que emanava dos casarões e dos becos do Pelourinho. E por isso ouvir aquele arranjo, depois de décadas sem a escutar ou ao menos ouvir com atenção, adquire uma importância que pouca coisa hoje é capaz de ter, à medida que as músicas se repetem e repetem e repetem sob um disfarce cada vez mais esgarçado de novidade.

Porque uma coisa não se esgarça, nunca: o lirismo de Chico Buarque traz sempre uma verdade absoluta e simples de que poucos letristas brasileiros conseguiram se aproximar. É o sujeito que revelou que saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu, mas se essa é talvez uma das imagens mais pungentes da música brasileira — enquanto tu pisavas nos astros distraída, hein, minha filha? — não é suficiente para explicá-lo, porque boa parte da sua graça está nas frases simples, na descrição de sentimentos menores, a poesia gigantesca que se tira do comum que é dito. Chico conseguiu isso como nenhum outro letrista jamais fez, e é isso que me liga a ele de maneira que eu sequer percebia.

Eu sempre soube que, se fosse músico e poeta e tivesse um talento pantagruélico assim, eu não seria Caetano. Minha admiração por Caetano é, antes de tudo, racional, é quase uma constatação. Penso em Caetano com a mão nos quartos diante do microfone e balanço a cabeça, é verdade, mas a verdadeira razão é outra: não consigo me imaginar escrevendo as letras que ele escreveu, não me vejo dominando aquele idioma, eu não consigo me ver sempre nessa busca por algo novo. E mais que isso, essa ligação emocional, que pode ter nascido da mãe que viu Chico surgir em shows no Rio, ou das músicas, ou do entendimento de que alguns dos versos mais belos da música brasileira dispensam de maneira tão natural quaisquer níveis de engenharia (como, se na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato inda pisa no teu?), eu não tenho com Caetano.

Chico, não. Sempre olhei para ele e achei que num boteco a gente ia se dar bem. Desconfio, por exemplo, que no fundo Chico Buarque é um conservador. Praticamente toda a música brasileira deve algo à bossa nova; ele não, é como se a música que ele sempre fez, aquilo que ele queria dizer só pudesse ser dito num idioma inventado pelas baianas expatriadas no Rio no início do século passado, e se sabe tão verdadeiro que não precisa de artifícios nem grandes invenções. E é por isso que eu sei que, fosse eu um gênio, seria um gênio assim.

Caetano pode ser a Ana Hickman, a mulher mais bela, perfeita quase. Mas a minha mulher é mais bonita que a Ana Hickman, sempre foi. É mais bonita porque é dela que eu gosto. E eu gosto é de Chico Buarque.

Paul McCartney: discografia

Uns tantos anos atrás, escrevi aqui uma pequena introdução à discografia de Paul McCartney, dando minha opinião sobre cada um dos discos lançados até então. (Vi agora que faz mais de dez anos. O tempo passa, e daqui da janela eu dou uma de Carolina.)

Não é uma boa lista. Não é apenas exageradamente superficial, que isso não era problema: é que toda ela foi feita de memória. Não ouvi os discos novamente para confirmar a opinião que tinha formado às vezes há um quarto de século. E havia alguns que eu não escutava havia, literalmente, décadas.

Há algum tempo, no entanto, andei ouvindo esses discos de novo com uma atenção que já não dispensava havia muito tempo, em ordem cronológica, inclusive os de que eu não gostava. E percebi que estava errado em relação a vários deles. Nada como o tempo para lhe fazer criar juízo e perceber sua estupidez; e assim lá vamos nós de novo, dessa vez com um pouquinho mais de seriedade.

A lista original se restringia aos LPs originais. Nos anos 90, ao relançá-los em CD, McCartney adicionou a eles os compactos lançados na mesma época. Na época, ignorei essas novas versões porque elas acabavam deturpando os discos originais, tornando-os invariavelmente mais fortes.

Mas nos anos 2010 McCartney descobriu uma mina de ouro: valorizar novos relançamentos com o acréscimo de um bocado de material inédito.

A Archive Collection traz uma variedade de versões do mesmo álbum para todos os bolsos, com faixas inéditas, sobras de estúdio e demos, em edições de luxo com fotos, textos, qualquer coisa que possa agregar valor e fazer os fãs comprarem novamente o que já têm, e que chegam a custar centenas de dólares. Isso muda as coisas porque a quantidade de material musical incluído costuma ser impossível de ignorar — ao mesmo tempo que é preciso evitar que isso tire a perspectiva do disco original. Assim, embora eu continue essencialmente comentando os álbuns originais, porque me recuso a tirá-los do seu contexto, é preciso fazer uma menção em separado a esse novo material, quando existente.

Por outro lado, a lista continua ignorando os álbuns ao vivo, que ultimamente se multiplicaram também em vídeo, já que a debâcle da indústria fonográfica forçou artistas como McCartney a botarem o pé na estrada com mais frequência para garantir o caviar das crianças.

Ignora também as obras eruditas. Não porque são boas ou ruins, mas porque não tenho capacidade de julgá-las adequadamente; sempre desejei que o Milton Ribeiro fizesse um favor às gentes resenhando os danados. Os três discos de The Fireman tampouco foram incluídos, mais ou menos pelas mesmas razões. O primeiro é bem razoável, o segundo é meio chato, o terceiro tem alguns pontos altos; mas não é uma linguagem que eu entenda. Twin Freaks eu mal ouvi. E o Liverpool Sound Collage é apenas Revolution 9 refeito trinta anos depois.

McCartney
O primeiro disco de Paul McCartney é antes de tudo uma reação à música dos Beatles e uma afirmação pessoal diante dos ex-parceiros. Com Paul tocando e produzindo tudo, o álbum vira as costas aos valores de excelência na produção típicos dos Beatles e investe em uma abordagem artesanal, caseira, refletindo em parte a mesma filosofia do projeto Get Back/Let it Be, mas também o cansaço de McCartney com o mundo que o cercava e uma busca por conforto e alegria no seu ofício. Conscientemente, ele tenta se afastar do som da banda, se livrar da influência e participação dos outros no que sentia ser a sua obra, ao mesmo tempo em que tenta resgatar uma simplicidade e uma individualidade que temia perdidas.

O resultado é irregular. De certa forma, sintetiza tudo o que se poderia esperar da carreira de McCartney a partir dali. Um compositor capaz de encher meio álbum com composições de categoria absoluta (Maybe I’m Amazed, Every Night e Junk são dignas de qualquer álbum dos Beatles, e That Would Be Something parece saída do “Álbum Branco”) mas que muitas vezes apostaria em uma visão bem particular que falha em alçar voo, como em Teddy Boy; um músico autossuficiente que muitas vezes deixa claro que se beneficiaria muitíssimo da colaboração de seus colegas de banda (nas mãos dos Beatles That Would Be Something ou Oo You poderiam ser algo muito melhor); e finalmente, um artista que, ao longo de toda a sua carreira, cederia repetidamente à tentação de lançar material mal acabado, canções que com um pouco mais de esforço e critério poderiam resultar em clássicos.

Também joga luz sobre uma atitude generalizada da crítica em relação a McCartney. Uma canção que chama a atenção é Man, We Was Lonely. É praticamente uma antecipação do que Lennon faria no fim daquele ano com Isolation. Ambas falam das pressões, da orfandade sentida a partir do fim da banda, do consolo e segurança encontrados em suas parceiras. E no entanto, no disco de Lennon isso era uma prova do seu talento confessional; no de McCartney, até pelo tom otimista, é considerado apenas uma bobagem. Era um presságio: a crítica seria injusta com Paul McCartney durante muito tempo.

O passar do tempo e a chegada da internet elevaram a reputação deste disco, mas McCartney continua sendo o que era em seu lançamento: um disco irregular, mas principalmente contraditório. Por um lado preguiçoso, relaxado, autoindulgente, o trabalho de um autor consagrado que pode se dar ao luxo de emplacar a sua visão artística, mesmo quando turva. Por outro, além de trazer algumas grandes canções — o objetivo de qualquer álbum —, mostra que McCartney ainda era o artista com lampejos de genialidade musical que encantou o mundo.

A versão da Archive Collection é das que menos traz material inédito, e provavelmente as mais fracas. De interessante, um outtake razoável de Maybe I’m Amazed e a legendária Suicide, composta para Frank Sinatra.

Ram
Desprezado em seu lançamento e depois alçado à reputação de um dos melhores discos de um ex-beatle, Ram é um grande avanço em relação ao seu predecessor. Agora McCartney se queria levar a sério e foi atrás de outros músicos, como Denny Seiwell e Dave Spinoza. De uma riqueza musical que surpreende até quem já conhecia a capacidade de McCartney de criar grandes melodias, Ram finalmente mostra o seu talento real e virtualmente todos os seus pontos fortes.

Não é nos rocks que o disco se destaca — embora excelentes, há sempre algo de leve demais em Eat at Home ou Smile Away. É na sensibilidade entrevista nos números mais lentos, na extrema inventividade que às vezes mal pode ser contida em uma só canção, que Ram se revela um clássico.

Os Lennon acharam que o disco era todo uma estocada neles. Segundo McCartney era só a primeira faixa, Too Many People Too many people preaching practices / Don’t let them tell you what you wanna be. Mas é impossível ouvir 3 Legs (My dog he got three legs / but he can’t run) e não pensar nos seus ex-amigos. Em resposta, John e Yoko escreveram How Do You Sleep?, um ataque fortíssimo abaixo da linha da cintura (The only thing you’ve done was “Yesterday” / But since you’ve gone you’re just “Another Day”); e Lennon chegou a considerar aparecer na capa do álbum Imagine segurando um porco, como resposta à capa deste disco.

Ram é creditado a Paul e Linda McCartney. Na época, a renda dos discos solo ia para um fundo comum e era dividido igualmente entre os quatro. Embora naquele momento, por incrível que pareça, McCartney não fosse o campeão de vendas do grupo (mérito que, por causa do All Things Must Pass, pertencia a George Harrison), ele achou esse arranjo injusto e deu crédito à mulher para ficar, desde o início, com 50% da renda. Os outros beatles não gostaram de mais essa sacanagem.

A versão da Archive Collection traz três discos adicionais. Um é a versão mono do álbum, redundante. São os outros dois que trazem algo realmente interessante. Thrillington, a versão orquestral e apócrifa do álbum que McCartney lançou alguns anos depois e que agora inclui aqui, é surpreendente. Alguns arranjos são excelentes, eventualmente lançando uma nova luz sobre algumas das faixas do LP original, e me arrependo de não ter querido ouvi-lo antes. O outro traz os compactos, outtakes, gravações caseiras e canções inéditas de sempre. Algumas são excelentes, como A Love For You, canção que inexplicavelmente permaneceu inédita durante tempo demais: eu consigo ouvi-la fazendo sucesso nas rádios no fim dos anos 70.

Wild Life
A falta que McCartney sentia dos Beatles era tanta que ele não resistiu e formou um novo grupo. Mas agora nas suas condições: ele era o dono da bola e isso estava claro desde o início. Os resultados não demoraram a surgir, obviamente, e o primeiro álbum do Wings, lançado pouco mais de seis meses depois de Ram, é uma unanimidade: o elogio mais comum que se faz a ele é “medíocre”

Isso é injusto. Pelo menos metade dele é bem boa, das respostas a Lennon — delicada em Some People Never Know, angustiada em Dear Friend — à belíssima balada Tomorrow, passando por um cover brilhante de Love is Strange, que não lembra em quase nada a versão original de Mickey & Sylvia, e o blues que dá título ao álbum, no mínimo curioso. Mesmo o resto deixa antever coisas melhores. I Am You Singer, por exemplo, cresceria muito com um arranjo mais consistente, e Mumbo, com sua letra que não é letra e que acaba lembrando Charlie Chaplin em “Tempos Modernos”, é um rock que ilustra bem a capacidade de McCartney de não se levar a sério demais. Wild Life merece ser mais bem avaliado. Infelizmente foi lançado pouco depois do Imagine de Lennon, uma obra-prima, o que piorou ainda mais a sua imagem. De modo geral, é um álbum que se fosse mais bem produzido, com mais cuidado, poderia ser muito melhor. No fim das contas, é um disco digno ainda que um pouco estranho.

A versão da Archive Collection traz pouca coisa interessante. O melhor é African Yeah Yeah, algo que parece ser uma jam, “incluída por brincadeira. Paul pede desculpas”. No entanto, é curiosa pelo seu frescor e descompromisso, e por mostrar a influência de Linda — fã absoluta de reggae — na banda.

Red Rose Speedway
Este álbum é a razão para eu reescrever esta discografia. Quando o ouvi pela primeira vez, detestei. Meloso, piegas, chato e depressivo: eu o vi como um lamento dirigido a Lennon — basta prestar atenção à letra de Little Lamb Dragonfly para ter essa impressão. Umas poucas audições posteriores não mudaram essa avaliação, e nos últimos trinta anos não me dei sequer ao desfrute de ouvi-lo inteiro.

Eu estava enganado. Red Rose Speedway é um bom disco. Não é brilhante, mas não é ruim — ou pelo menos não tão ruim quanto acreditei por décadas.

Red Rose Speedway, ao menos, traz um um número suficiente de boas canções. Apesar da crítica torcer o nariz, My Love é, sim, uma das grandes canções de amor da história, com uma melodia lindíssima, uma letra que passa o seu recado com perfeição e um solo de guitarra irrepreensível. E canções como One More Kiss e o medley final são puro McCartney. É um disco que pertence ao seu tempo e que traz muito claro o DNA de seu autor, o que possibilitou que envelhecesse com alguma graça. Longe da perfeição, está mais longe ainda de ser a tragédia que sempre julguei ser.

A versão da Archive Collection traz algumas excelentes canções inéditas, como Tragedy, que enriquecem muito o álbum.

Band on the Run
Um disco exuberante, vigoroso, cheio de alegria musical — Band on the Run é o melhor de McCartney até aquele momento, a obra que lhe devolveu o respeito da crítica, e para muita gente o melhor álbum de toda a sua carreira solo, que já ultrapassa meio século. Das notas iniciais da canção-título à sua retomada no final do disco, o que temos é uma obra completa, coesa, bem pensada e executada com brilhantismo. Band on the Run é um dos grandes discos de rock dos anos 70.

A última versão lançada, da Archive Collection, traz acréscimos medíocres. Mais interessante, pero no mucho, é a comemorativa do aniversário de 25 anos. A verdade, no entanto, é que o disco original continua sendo suficiente.

Venus and Mars
Embora não esteja no mesmo nível do Band on the Run, Venus and Mars é um sucessor digno. É possível defini-lo como um álbum que exemplifica com quase perfeição o mainstream do rock na metade dos anos 70 — e não à toa, junto com o Led Zeppelin os Wings foram a banda de maior sucesso comercial daquela década.

Venus and Mars é um disco coeso, suficientemente denso, com um grande apelo pop sem que isso signifique a perda de qualidade roqueira.

No entanto, tem um aspecto curioso: ao contrário de discos inferiores, elevados por dois ou três clássicos em cada, Venus and Mars é um álbum em que o que mais impressiona é o conjunto, a abundância de boas canções e a qualidade média. Talvez seja o melhor “álbum dos Wings”, ou seja, um disco com participação mais efetiva da banda, que tinha encontrado finalmente sua melhor formação. Não houve muitos discos melhores que esse em 1975.

A Archive Collection não acrescenta muito ao que já tínhamos, além dos compactos contemporâneos. Apenas Soily, um belo rock.

Wings at the Speed of Sound
O papel histórico do Speed of Sound é, essencialmente, interromper a fieira de bons discos dos Wings. Só isso.

Depois de uma sequência brilhante, McCartney resolveu aprofundar a fórmula consagrada em Venus and Mars, mas agora sendo mais democrático e cedendo mais espaço para seus companheiros de banda. O resultado é de uma mediocridade espantosa, apesar de duas ou três grandes canções. A maior parte delas é pobre, e a elas falta aquela qualidade inexplicável que torna as grandes canções de McCartney obras atemporais. Pior: em um ano em que a cena musical inglesa via o surgimento de bandas como o Sex Pistols e o Clash, McCartney se sai com esse disco. Não tinha como dar certo.

A Archive Collection, entre outras bobaginhas como Bonzo Bonham na bateria de Beware My Love, traz Must Do Something cantada por Paul, provavelmente porque não havia nada de melhor para desenterrar. A versão original, com Joe English nos vocais, é melhor.

London Town
Que belo disco, esse London Town. Parcialmente gravado em um barco, o Wanderlust, viu o fim da melhor formação dos Wings, com a saída de Joe English e Jimmy McCullough. Mas aqui não fizeram muita falta. London Town reflete a atmosfera relaxada das circunstâncias de sua gravação, bem como o fato de que a banda tinha se solidificado como uma das mais bem sucedidas dos seu tempo. E tudo isso enquanto o punk comia solto lá fora. Assim como no álbum anterior, McCartney ignora o que se faz de novo. Mas ao contrário daquele, é capaz de expor sua visão da música de maneira sólida, coerente e elegante.

Este álbum traz canções magníficas, pop de primeira qualidade. É um um disco que orgulha o seu autor.

Back to the Egg
Este é, sem nenhuma dúvida, o álbum mais subestimado de McCartney. Lançado em 1979, nos estertores do movimento punk na Inglaterra, é vigoroso e variado, suas guitarras sujas dando um ar moderno e roqueiro a uma abundância de boas melodias. Back to the Egg estreava uma nova formação dos Wings, que infelizmente não sobreviveria à prisão de McCartney no Japão alguns meses depois. A média de qualidade das canções individuais é relativamente baixa, embora três ou quatro  sobressaiam, como Getting Closer, Arrow Through Me ou Baby’s Request: a graça do disco está nos arranjos, essencialmente, e na unidade que ele consegue ter. Back to the Egg é álbum para ouvir inteiro, a cada vez.

McCartney II
O Wings estava para acabar e McCartney se trancou em casa com sintetizadores e sequenciadores. O resultado foi o que é, ao menos oficialmente, seu segundo disco solo, nomeado adequadamente.

Nos últimos anos, McCartney II tem sido reavaliado e alçado à condição de grande disco experimental, ousado, etc. Deve ser o resultado da música ruim que se ouve hoje: as pessoas perderam o critério.

Há duas maneiras de abordar esse disco. Uma é colocando-o na tradição do seu primeiro álbum solo: o artista divertindo-se sozinho, fazendo o que lhe dá na telha simplesmente porque conquistou o direito de fazer isso. O outro é fazer de McCartney II um álbum conscientemente experimental, uma obra avant garde.

Infelizmente, este álbum ficou no meio do caminho e não é nem uma coisa, nem outra. É um disco estranho, irregular e insuficiente sob qualquer ângulo que se olhe. Ele inteiro soa amador, mal produzido; sempre de olho na viabilidade comercial do álbum, McCartney tentou compensou a experimentação em faixas como Frozen Jap ou Temporary Secretary com canções claramente destinadas a tocar no rádio, como Waterfalls. E canções como One of These Days mostram que essa experimentação era muito mais intuitiva, quase aleatória, do que proposital. McCartney II era o que tinha para hoje.

Além disso, a maior parte das canções era ruim, ou ao menos displicente. Pouco antes de morrer B. B. King regravou On the Way (para mim, um quase plágio de uma antiga canção de Elvis) e mostrou aonde se poderia ir com parte do material original. Mas a quantidade de músicas ruins — apesar de Coming Up, Waterfalls e One of These Days — não é apenas considerável: são canções muito, muito ruins. Bogey Music , por exemplo, é assustadora.

A versão da Archive Collection ressalta os problemas do álbum original. Embora enriqueça muito o disco, evidencia que boa parte do material deixado de fora poderia ter ajudado a compor um disco instigante, dentro desse propósito experimental. Com um pouco mais de esforço, foco e coragem, McCartney poderia ter feito um disco ao mesmo tempo à frente do seu tempo e contemporâneo. Mas essa, pelo visto, nunca foi a ideia. O resultado é que McCartney II parece o meme do John Travolta confuso.

Tug of War
Depois de um ano em que, pela primeira vez desde 1961, não lançou nada novo, McCartney aparece com um disco em que parecia reagir a um mundo sem John Lennon.

Tug of War é um álbum variado, rico, um dos excelentes de McCartney. Traz uma de suas mais belas canções, Wanderlust (só McCartney para transformar uma canção que se podia chamar de “Baculejo em Alto-Mar” nessa pequena obra-prima), mas todo o disco é de qualidade superior, com força e qualidade. Liricamente, McCartney parece ter tentado ousar um pouco mais, olhar o mundo ao redor, com comentários sociais como Tug of War e mesmo The Pound is Sinking, além da sensibilidade entrevista em Somebody Who Cares, em que ele retoma um velho tema caro ao seu coração, a solidão. E Ebony and Ivory, um dos dois duetos com Stevie Wonder, é uma bela canção, mas tocou tanto que quem estava vivo naquela época tem arrepios aos primeiros acordes.

A versão da Archive Collection é medíocre, trazendo basicamente as demos das canções.

Pipes of Peace
Eu não tenho condições de julgar adequadamente este disco por uma razão muito simples: foi o primeiro que comprei na vida. Ouvi Pipes of Peace até quase furar; conheço cada canção de uma maneira como jamais conhecerei as mais recentes de McCartney. Junte a isso o detalhe de ter passado décadas sem ouvi-lo; reencontrá-lo, portanto, traz lembranças que vão muito além do seu valor estritamente musical e turvam qualquer capacidade de julgamento.

Isto posto, Pipes of Peace é  feito quase exclusivamente com sobras do Tug of War, e algumas faixas denotam o esforço de dar às duas obras alguma unidade conceitual. Algumas boas melodias, algumas boas baladas, mas não passa disso: um disco de sobras. A produção de George Martin é elegante, com algumas boas ideias aqui e acolá, e ajuda a deixá-lo um pouco menos datado do que poderia ser; mas nem mesmo ele consegue fazer com que esse disco supere totalmente as limitações estéticas do ano em que foi lançado, nem o fato de que foi feito a partir de material que, naquele momento ao menos, não tinha conseguido emplacar no Tug of War e, portanto, era de segunda categoria.

Mas ele não é tão ruim quanto dizem por aí. Colocado em perspectiva, é um álbum que em boa parte das faixas traz a força melódica de um compositor que, mesmo em seus piores momentos, é um gênio. Pipes of Peace, no fim das contas, sofre pela presença de duas ou três faixas realmente muito ruins, o que acaba obscurecendo algumas grandes canções, como a faixa-título, Say, Say, Say ou So Bad.

A edição do Archive Collection não pode fazer muito por este álbum, porque onde achar sobras de um disco de sobras?

Give My Regards to Broad Street
Este disco é um equívoco, e isso é o melhor que se pode dizer dele. Trilha sonora do filme patético que McCartney escreveu e estrelou, podia no máximo almejar a ser uma espécie de Yellow Submarine de McCartney — ao menos nos seus sonhos mais delirantes. Give My Regards é um disco malfadado. Algumas canções inéditas, várias regravações, inclusive de alguns de seus maiores clássicos com os Beatles. Infelizmente, nenhuma das regravações é boa: as de Yesterday, Here, There and Everywhere e For No One são pedestres e mancham a história de McCartney, e as versões de canções dos Wings e do próprio Paul são dispensáveis.

Mas nada chama tanto a atenção quanto The Long and Winding Road. McCartney tinha passado quase 15 anos resmungando que Phil Spector destruíra a simplicidade de sua canção. E aí, quando a regrava, é num arranjo ainda mais pesado, com direito aos saxofones horripilantes dos anos 80 e o escambau, uma versão vergonhosa que só a diminui. Ringo Starr, que participa do álbum e do filme, se recusou a tocar novamente nas canções dos Beatles, mostrando um juízo que faltou a McCartney.

Mas o disco não é uma tragédia absoluta. As três canções novas são excelentes. No Values e Not Such a Bad Boy são rocks dignos desse nome, com letras irônicas que não fazem feio; e No More Lonely Nights, o último mega-hit da carreira de McCartney, é uma belíssima balada, enriquecida ainda pela guitarra de David Gilmour.

Para piorar a situação histórica deste disco, ele inaugurou uma prática que McCartney levaria à perfeição canalha nos anos seguintes. Cada mídia trazia uma versão diferente: LP, cassete (que incluía uma gravação de So Bad) e CD (com duas músicas a mais e versões levemente diferentes de outras). Além da sacanagem óbvia com o fã, nenhuma versão faz do disco algo melhor.

Press to Play
Talvez este seja um disco injustiçado. Talvez não.

Ao ser lançado, Press to Play foi recebido com palmas pela maioria da crítica — a brasileira foi, na época, praticamente unânime em elogios. Elogiavam a nova parceria com Eric Stewart, o esforço claro em modernizar o som do velho e bom Macca com o uso abundante de eletrônica.

Mas o tempo passou, e fazendo valer a máxima de que os discos de Paul McCartney são biodegradáveis para a crítica, Press to Play passou a ser considerado um dos piores da sua carreira.

Nem tanto ao céu, nem tanto à Terra. No esforço consciente e evidente de atualização do som de McCartney, Press to Play, abusando de sintetizadores e outras eletrônicas várias, passa do ponto para tentar alcançar esse objetivo. Aqui se vê muitas influências de artistas contemporâneos, e embora tenha algumas boas canções, como However Absurd, Stranglehold e Only Love Remains (e ninguém mais poderia compor Press, por exemplo, uma canção menor que ainda hoje é uma delícia de ouvir), se ressente da falta de unidade e de força criativa, de modo geral. Há muitas canções ruins, fracas. Mas Press to Play talvez pudesse ganhar uma nota maior do que lhe é concedida atualmente.

Snova V CCCP
Em meados dos anos 80, provavelmente sentindo falta da segurança e conforto que só uma banda de rock pode dar, McCartney realizou algumas jam sessions com artistas convidados, sem um propósito inicial muito claro. Entre eles estava Johnny Marr, dos Smiths. O repertório era a música que todos eles tinham em comum: clássicos do rock ‘n’ roll. A partir dessas jams McCartney resolveu compilar um disco que seria lançado apenas na União Soviética em 1988, como uma espécie de “pirata especial”, e finalmente no resto do mundo em 1991. O resultado é irregular. Algumas das versões são muito boas, como Crackin’ Up; outras, como Kansas City, são inferiores ao que ele mesmo já tinha gravado. O disco é um esforço digno, mas a produção simplória tira muito da força que ele poderia ter. É um rock educado, limpo.

O disco ainda não tem uma versão da Archive Collection, o que é uma pena, porque dessas sessões sobraram uma meia dúzia de covers que prometem muito.

Flowers in the Dirt
Em 1989, este disco foi saudado como o retorno de McCartney à boa forma. E com razão. Flowers in the Dirt traz uma exuberância e uma força que faltavam em seus últimos lançamentos. Ao formar uma nova parceria com Elvis Costello, McCartney recobrou uma dimensão lírica que tinha perdido, mas também uma abordagem musical mais instigante.

Este álbum marca o começo de uma nova era para McCartney, 20 anos depois de John Lennon abandonar os Beatles. Ele tiraria o mofo do seu baixo Hofner e se consolidaria como algo mais que um simples músico, mais até que um gênio. McCartney aceitava que, já há alguns anos sem um número 1 nas paradas, seu período à frente de uma revolução havia passado. A música tinha seguido em frente e não precisava mais dele. A partir dali, McCartney se consolidou como algo mais que um ser humano: uma lenda viva, correndo o mundo em turnês infindáveis diante de plateias de adoradores absolutos— entre os quais me incluí, extático, algumas vezes —, em que ele finalmente fazia as pazes com seu passado e passava a viver dele, sem abdicar, no entanto, de uma busca criativa eterna e indefinível que o faz lançar bons discos aos 78 anos.

A versão da Archive Collection traz, basicamente, as demos da parceria entre McCartney e Costello. É muito pouco.

Off the Ground
Depois de um disco muito elogiado, uma turnê que entrou para o Guinness e enquanto se preparava para uma nova excursão, McCartney entrou no estúdio novamente com sua banda.

Podia ter passado sem essa parada. Off the Ground, na falta de adjetivo mais adequado, é um disco frouxo.

Alguns versos de algumas canções são constrangedores; quando McCartney fala na “way we treat our fellow creatures”, um calafrio sobe pela espinha. Algumas canções estão abaixo do medíocre, como Biker Like an Icon.

Mas este álbum não é uma tragédia total. Traz algumas boas canções, como Hope of Deliverance e as duas canções restantes da parceria com Elvis Costello. Mistress and Maid é uma obra-prima, delicada e angustiada ao mesmo tempo.

O problema é que o disco inteiro parece incompleto, mal cozido. Embora não seja ruim, uma canção como Peace in the Neighbourhood nos faz pensar na tragédia que assola os roqueiros felizes. C’Mon People é grandiloquente e chata demais. E é impossível ouvir Cosmically Conscious sem pensar que McCartney teve 25 anos para transformar essa canção em algo decente, e não fez isso.

Na Alemanha e na Holanda, no entanto, McCartney lançou um disco diferente: Off the Ground: The Complete Works, com um CD a mais que incluía faixas inéditas e gravações do MTV Unplugged.

Algumas dessas faixas fazem pensar que, se McCartney fizesse uma escolha mais criteriosa para o seu álbum original, acrescentando canções como Long Leather Coat e retirando desgraças como Get Out of My Way, teria nas mãos um disco muito melhor. Mas vá entender como funciona a cabeça do sujeito.

Flaming Pie
Uma confissão: ao ouvir este disco pela primeira vez, depois de oito anos sem um bom disco de McCartney e quatro sem nenhum, eu fiquei emocionado.

O disco foi gravado depois que McCartney imergiu nas gravações dos Beatles para o projeto Anthology, e em meio a um período difícil na vida de McCartney: a morte de Maureen Starkey e a luta de Linda McCartney e George Harrison contra o câncer. Talvez esse turbilhão emocional e essa reconexão com o passado tenham ajudado a fazer de Flaming Pie o que ele é: uma obra prima, digna do maior gênio da música popular do século XX. Das lembranças das noites com Lennon em The Song We Were Singing ao consolo aos filhos de Ringo em Little Willow, do recado ao filho problemático em Young Boy à beleza delicada de Calico Skies, este disco traz McCartney em grande forma, como não se via há havia muito tempo.

A edição da Archive Collection é uma das melhores da série. Traz uma infinidade de demos, programas de rádio e canções inéditas que o tornam quase um Anthology.

Run Devil Run
Com a morte de Linda, McCartney parece ter ido buscar consolo no que sempre norteou sua vida: a música que ouvia quando adolescente.

Ele já tinha gravado um disco de covers, com resultados medíocres. Mas desta vez o resultado compensou, com sobra. Como era o costume dos Beatles, em vez de clássicos regravados milhões de vezes McCartney deu preferência a canções menos conhecidas. Juntou uma banda de respeito, com David Gilmour na guitarra e Ian Paice na bateria. O resultado é o melhor disco de covers de rock and roll gravado por um ex-beatle, com o peso e a urgência que faltaram a Snova V CCCP e a seriedade que Lennon não quis em Rock and Roll, acrescido de três canções inéditas — que não estão certamente entre seus grandes clássicos, mas não fazem feio num álbum de rock. Run Devil Run é um dos bons discos de Paul McCartney, e nos lembra que, quando quer, ele é um grande artista de covers.

Driving Rain
Esse é outro disco muito subestimado. Muita gente o acha inferior a Flaming Pie. Não é. Talvez essa impressão derive da faixa-título, que abre o disco e que não é o momento mais inspirado da carreira de McCartney.

O fato é que Driving Rain é um excelente disco, forte, coeso com algumas grandes canções e uma abordagem geral sólida e competente.

De certa forma, é um disco que marca um processo de evolução lírica de MCCartney, cuja carreira solo sempre mostrou um esforço deliberado para fugir do autobiográfico. Agora, de repente, algumas canções são um claramente pessoais, como From a Lover to a Friend, um recado à finada Linda, e Lonely Road, uma das melhores interpretações de sua carreira. E Rinse the Raindrops nos faz lembrar que McCartney ainda é um dos melhores baixistas da história.

Driving Rain marca também, de maneira um pouco mais clara, o processo de deterioração da voz de McCartney. É um processo que vinha de décadas — McCartney já reclamava disso em 1969. Mas pouco antes da gravação deste disco, numa discussão com Heather Mills, Paul perdeu a voz por alguns dias. Quando voltou, já não era a mesma. A rotina posterior de shows acelerou ainda mais o desgaste.

Chaos and Creation in the Backyard
Escrevi sobre este disco aqui. Quinze anos depois, não tenho nada a acrescentar ou a retirar.

 

 

 

 


Memory Almost Full
Também escrevi aqui. Nada a acrescentar, também. A não ser o fato de que essa continua sendo a pior capa de um disco de McCartney em seus mais de 50 anos de carreira.

 

 

 

Kisses on the Bottom
Quando este disco foi lançado eu não tinha muitas coisas boas para dizer sobre ele. Acho que nunca falei tão mal de um disco de McCartney. Nove anos depois, minha opinião é um pouco mais complexa — mas só um pouco. Como imaginei, é o tipo de disco que, depois de vencido o estranhamento, e a partir do momento em que você aceita as limitações da voz destroçada de McCartney e o mais-do-mesmo elegante dos arranjos, o que fica é, como já dava para antever, um disco agradável, quase digno, feito para tocar em BG. O tempo lhe fez bem, ao contrário do acontece com a maioria dos discos de McCartney.

New
Demorou cinco anos para que eu conseguisse ter uma opinião sobre esse disco. Minha primeira impressão foi: é uma droga. Só há pouco tempo fui entender o que aquilo significava. O problema de New está na produção. O esforço de McCartney em estabelecer um diálogo com as novas gerações resultou em uma grande bagunça. Produtores demais, eletrônica demais, tudo isso em detrimento da canção. Ao contrário de Nigel Godrich, que enriqueceu a música de McCartney em Chaos and Creation, aqui os produtores transformaram as canções em coadjuvantes. Para piorar, boa parte delas não tem a qualidade necessária para lhes  erguer acima da produção. Aquela característica de McCartney que fazia suas canções parecerem fáceis, lógicas, quase “como não pensei nisso antes?” deu lugar a algo parece um esforço de artesanato evidente, mas não muito convicto de si próprio. Ainda é muito superior à média atual, nesse aspecto; mas já não é o mesmo McCartney de antigamente.

Egypt Station
Comentário aqui.

 

 

 

 

 


McCartney III
Comentário aqui.

Marighella

Fernando Meirelles me chamou de ladrão.

Não foi nada pessoal, até porque ele nem sabe que existo. Foi uma ofensa genérica: ele anda meio chateado porque o filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura, estrelado por seu Jorge e do qual ele é produtor associado, vazou nas redes. “Por alguma razão as pessoas acham que roubar fruta na árvore ou assistir filme pirata não é roubo. A mente humana é pródiga em autoengano”, ele disse à Folha de S. Paulo ontem, sentado nos muitos dinheiros arrecadados através de leis de renúncia fiscal e financiamento direto das tetas da viúva. O discurso é assustadoramente próximo dos bolsonaros da vida, que também chamam o financiamento público de filmes de roubo, mas adoram se apropriar dos fundos públicos em rachadinhas e quetais. Muda só o ponto de vista.

A novela de “Marighella” acabou se tornando razoavelmente longa. Primeiro por causa do boicote anunciado pelos bolsominions, assustados com qualquer coisa que não seja fake news; depois por causa da pandemia. Lá fora o filme estreou em 2019, fazendo o circuito dos festivais que é a praxe em filmes fora do esquema hollywoodiano. No Brasil, estrearia em novembro daquele ano, mas o governo Bolsonaro fez o que pôde para evitar sua exibição. Eles têm muito medo de filmes, de comunistas mortos e de vacinas. Recentemente, “Marighella” estreou comercialmente nos EUA, de onde vazaram as cópias legendadas que circulam agora. Vai estrear no Brasil em novembro deste ano.

O povo brasileiro ajudou a financiar um filme que, durante dois anos, não pôde ver, enquanto seus produtores o rodavam mundo afora para viabilizar seu lucro ou sei-lá-o-quê. Quando finalmente tem a chance de assistir a ele, graças à desonestidade inata dos americanos, é chamado de ladrão.

Assim, enquanto murmurava “não esculacha, chefia!” e colocava as mãos atrás da cabeça, sabendo-me pego, lembrei do Cacá Diegues chiando quando cobraram a ele algo que, se não me engano, chamaram de “contrapartidas sociais”, uns 20 anos atrás — e que, acho, consistia em levar ao povo o filme feito com seu dinheiro. Diegues é o mesmo sujeito que criou a expressão “patrulha ideológica”, em meio à ditadura militar. Como Meirelles, é gente que gosta muito de dinheiro público, mas não tanto de devolvê-lo.

Para piorar ainda mais as coisas, essa postura hipócrita do Meirelles talvez não fosse tão irônica se o filme não contasse de um comunista que dedicou sua vida, quem diria, à abolição da propriedade privada. Se ladrão há nessa história, esse ladrão é o Marighella, e nesse caso tenho muito orgulho de ser chamado assim, ainda que por tabela.

Só então eu, ladrão contumaz e irrecuperável, percebi que nunca tinha roubado um filme do Fernando Meirelles, muito menos esse “Marighella” (que, não custa lembrar, não é dele).

Eu não lembrava do filme, nem mesmo da polêmica causada pela escolha de Seu Jorge para o papel do protagonista, o primeiro caso de “blackwashing” de que tenho notícia. Na época achei interessante, porque não apenas é mais válido que embranquecer um personagem, mas também porque levou a uma reavaliação iconográfica de Marighella que corrigiu um grande erro histórico e jogou nas fuças das pessoas a glória da sua mulatice. Só depois percebi que há um problema inerente a essa decisão. A escolha de Seu Jorge parece mais que aceitável diante do histórico de racismo e obliteração da imagem do negro nas artes, mas no fundo acaba sendo mais um evento de negação da miscigenação brasileira, a entronização de um binarismo racial americano que representa um retrocesso e que, infelizmente, é cada vez mais aceito. Um cabo de guerra em que o mulato, moreno, pardo, chamem do que quiserem, é negado em função de um discurso insuficiente.

Mas quem disse que o crime não compensa não viu ainda este filme. “Marighella” é excelente, uma grande obra. É ainda melhor no atual contexto político do país, em que qualquer pessoa que não seja totalmente imbecil ou canalha é chamada de comunista. Wagner Moura estreia como um diretor seguro, que tem perfeita noção da história que está contando. Para inseri-la melhor no contexto atual, reforça inclusive a questão racial, que não era exatamente prioridade naqueles tempos. Moura mostra-se também um excelente diretor de atores, como se pode ver nas atuações excelentes de Bruno Gagliasso, Adriana Esteves e Luiz Carlos Vasconcelos. Nenhum desses, entretanto, iguala o desempenho excepcional de Seu Jorge. Seu Jorge consegue passar, simultaneamente e com brilhantismo, a dureza e a humanidade de Marighella.

A direção de arte também é excelente, em que pesem anacronismos como a presença conspícua de pistolas PT 92 muitos anos antes de serem criadas, antes mesmo até das Beretta 92 que as originaram, ou a luz avermelhada das lâmpadas de vapor de sódio nas ruas.

Terminado o filme, satisfeito com meu butim, desliguei a televisão esquecido de Fernando Meirelles, até que fui ao IMDb e vi que a nota dada a “Marighella” é 3,2.

Cheguei à conclusão de que só gente como Meirelles avaliou este filme, pelo visto. E visualizei imediatamente aquela legião de toscos tangidos pelo Carluxo apertando freneticamente a menor estrelinha, ignorando quaisquer qualidades cinematográficas do filme — o que, aliás, ele tem em demasia. Por isso ele deve ser roubado e compartilhado por quem puder. Todos os brasileiros deveriam ver este filme; velhos comunistas como Marighella e o Comandante Toledo (e João Amazonas, e Elza Monnerat, ou os tantos outros que não conheci) podem estar fora de moda, mas é preciso que voltem a mostrar a um povo cada vez mais afundado numa lama antes inimaginável que um outro mundo é possível, e que para isso ele nem precisa existir de verdade.

“Marighella” deve ser roubado e roubado e roubado de novo porque ele quase nos devolve o orgulho de sermos brasileiros. Ainda que seja de uma forma perfeitamente exemplificada na cena final, que deveria ter sido incluída no meio do filme: angustiada, desesperançada, mas ainda assim com orgulho e, acima de tudo, fé.

Oscars 2021

The Sound of Metal parece um daqueles filmes para a TV que passavam na Sessão da Tarde antigamente, como “A Família Que Ninguém Queria”, ou “Meu Filho, Meu Mundo”, o tipo de filme que busca sensibilizar o expectador através da identificação com o drama pessoal do protagonista — aqui, a surdez de um baterista de música estranha. Direção, edição, roteiro, tudo aqui está completamente dentro dos padrões conhecidos do cinema dito independente, mas ouça bem: ele não tem nada de especialmente notável ou brilhante além da interpretação de Riz Ahmed, e se está na lista do Oscar deve ter sido por lobby da APADA. Muito melhor é assistir a Plemya, de 2014.

Minari não leva a lugar nenhum. Alguém deve ter dito ao diretor que o mais importante é o que se deixa de dizer, e ele levou isso ao pé da letra. Superficial, é apenas mais um filme de memórias de um menino criado no campo (durante os anos Reagan — não que isso faça alguma diferença neste filme), e inferior a obras que abordaram o tema com mais vigor, como “Um Lugar no Coração” ou “O Rio do Desespero” ou “Amor à Terra”, para não falar de “Vinhas da Ira”. É quase como se o diretor soubesse que histórias semelhantes já foram contadas tantas vezes que basta dar pinceladas bem leves sobre o assunto que o espectador vai entender. É simpático e suave, o que alivia um pouco sua barra; mas o fato é que a única coisa digna de nota no filme, mesmo, são as excelentes atuações de Will Paxton e Youn Yuh-jung. A impressão que fica é que depois de Parasite ano passado, coreano passou a ser obrigatório no Oscar. Não tem problema, isso acaba ano que vem.

Promising Young Woman poderia ser mais do que é. Baseado em uma visão infantil e esquisita do que andam chamando sororidade (a vingança da protagonista pelo estupro, humilhação pública e posterior suicídio de sua melhor amiga, e que redefine a sua vida, é abrir mão de sua vida e todo final de semana se fingir de bêbada em bares, atrair predadores sexuais e, na hora H, fazê-los colocar a mão na consciência. Surreal). O filme tem um ponto de vista a defender, e isso até o valoriza um pouco, mas não o suficiente. Além disso, seria melhor sem o twist final, que diminui o impacto da tese que defende ao fazer o bem vencer o mal e, no fim das contas, apenas reforça a sensação que permeia todo o filme: o machismo mata, mas tem umas psicopatas autodestrutivas, como a personagem de Carey Mulligan, que complicam tudo.

The Trial of the Chicago 7 é um excelente filme de tribunal, gênero que já deu boas obras ao mundo, e um dos dois concorrentes deste ano que tratam de um mesmo momento da história política americana, embora com um viés menos identitário e muito mais frouxo. Tem contra si o fato de que, embora seja correto, ter tantos clichês quanto uma tipografia antiga. Bom filme, mas não mais que isso. Ele também parece ter uma pinimba contra Tom Hayden enquanto celebra Abbie Hoffman e Jerry Rubin. E a bem da verdade histórica, não custa lembrar que, alguns anos depois do julgamento, Jerry Rubin era o sujeito cuja namorada deu para John Lennon debaixo do seu nariz, e Tom Hayden era o sujeito que comia a Jane Fonda, quando Jane Fonda era Jane Fonda.

Mank é um belo filme, mas é bom mesmo para cinéfilos, que conhecem a história de Mankiewicz (e do seu irmão mais talentoso, Joseph). David Finch fez um filme tradicional, com recursos fáceis a velhos gimmicks (como as marcas artificiais que tentam reproduzir o desgaste de celuloide antigo, algo que deveria ser objeto de um novo Código Hays e banido do cinema) para glamourizar a velha e boa Hollywood. Nesse aspecto, é um filme que poderia ser feito nos anos 50, inclusive em suas falsificações da verdade. É cinema de primeira qualidade, mas é praticamente a antítese de “Cidadão Kane”: dialoga com o velho enquanto “Kane” trazia o novo.

(Nota: se seguir os passos do Golden Globe, o Oscar de melhor ator vai para Chadwick Boseman, o que na minha opinião só não é injusto porque o cabra está morto e de defunto a gente não fala mal; mas é bom registrar que seu desempenho em Ma Rainey’s Black Bottom [que traz Viola Davis — talvez a mais importante atriz americana da atualidade — num papel que mostra que ela chegou à maturidade e conquistou o direito de representar Viola Davis] não foi o suficiente para me fazer esquecer a atuação estelar de Gary Oldman aqui.)

Por pouco Judas and the Black Messiah não é o melhor filme do ano. Bem feito, com uma trilha sonora brilhante e algumas atuações impressionantes, é uma história contada com competência e foco pelo diretor Shaka King. Já vi gente falando deste filme como uma biografia de Fred Harman, o que significa que elas não viram o filme: é uma crônica da ascensão e queda dos Panteras Negras em Chicago, de um modo de fazer política e de como se destrói um movimento social. Como bônus, o filme é também uma aula de política, e deveria ser visto por toda essa renca de chatxs identitárixs de Facebook.

The Father é surpreendente. Em outras mãos o filme desapareceria sob a interpretação estupenda, incomparável, absolutamente fantástica de Anthony Hopkins, e seria a típica fita pequena que antigamente fazia a festa de quem apostava em zebras diante de superproduções. Mas o filme que Florian Zeller entrega é surpreendente, ao dar uma dimensão reveladora, instigante e cheia de suspense do que é a demência, ele consegue mostrar o que ela é ao mesmo tempo em que faz cinema com C maiúsculo.

Nomadland consegue extrair poesia de onde menos se espera. Chloé Zhao, com um olhar curiosamente distante mas não frio, mostra a vida de uma legião de deserdados do sonho americano com empatia, mas sem compaixão ou pieguice. É esse paradoxo que faz a beleza do filme. Estrelado por Frances McDormand (cada vez mais parecida com Steve McQueen) em uma atuação irrepreensível, o filme é, de longe, o melhor dentre os concorrentes deste ano, e o favorito desde que ganhou o PGA, talvez porque é o único que consegue apresentar uma visão bem própria do mundo que nos cerca hoje.

Os 100 maiores artistas e discos brasileiros

Empurra daqui, empurra dali, fui parar em duas listas que a Rolling Stone Brasil fez, e que eu não conhecia: os 100 maiores discos e os 100 maiores artistas brasileiros.

A Rolling Stone brasileira sempre foi uma revista ruim, desde o início, mas lista é lista e eu tenho um fraco por elas. Não há lista perfeita, muito menos alguma que agrade a todo mundo. Mas há umas que desafiam os critérios mínimos. Essas são as piores, e as mais interessantes porque lhe permitem descer o malho..

A lista dos maiores discos tem um problema grave que não é culpa da Rolling Stone. Ela se restringe à era dos LPs, e com isso faz com a música brasileira comece nos anos 50. Não vejo como podia ser diferente, porque seria impossível hierarquizar a importância de tantos e tantos 78 rotações lançados entre os anos 1920 e 1940. Por exemplo, poderiam colocar “Pelo Telefone” na lista, mas não tenho certeza de que dá para avaliar sua importância com tamanho grau de precisão. Olhando em retrospecto, os 78 servem principalmente para definir a importância de artistas, pelo seu conjunto, mas são insuficientes para fazer parte de uma lista como essa. É uma pena, mas não tem jeito.

Grande parte do meu horror se deve aos critérios utilizados, ou à falta deles. Por mim, a lista seria definida por ordem de impacto, pela capacidade de cada disco de fazer a música brasileira avançar, e se possível em ordem cronológica, porque influenciaram em grau suficiente os que vieram depois. Mas não é isso que temos.

Eis os dez primeiros da lista de melhores discos:

  • “Acabou Chorare”, Novos Baianos
  • “Tropicalia ou Panis et Circencis”, Uma Ruma de Tropicalistas
  • “Construção”, Chico Buarque
  • “Chega de Saudade”, João Gilberto
  • “Secos & Molhados”, Secos & Molhados
  • “A Tábua de Esmeralda”, Jorge Ben
  • “Clube da Esquina”, Milton Nascimento & Lô Borges
  • “Cartola”, Cartola
  • “Os Mutantes”, Os Mutantes
  • “Transa”, Caetano Veloso

“A Tábua de Esmeralda” em lugar de um dos primeiros discos de Jorge Ben Jor? “Secos e Molhados”? “Krig-ha, Bandolo!”, em 12º, não é sequer o melhor disco de Raul. O pessoal do rock é fã do disco de estreia dos Mutantes — mas eu seria capaz de apostar que o “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” influenciou mais gente.

“Acabou Chorare” é um grande disco, sem dúvida. Mas está longe de ser o mais importante da música brasileira. Claro que tem espaço nessa lista, mas não nessa posição.

Acontece que listas respondem, antes de mais nada, ao seu tempo. Há um nicho da música brasileira contemporânea — a mais chata, a mais redundante, a mais repetitiva e mais pretensiosa — que bebe dessa linha musical e se dedica a requentar essa música. Neo-setentistas, poderíamos chamá-los assim. Aquele pessoal que curte roupa vintage e disco de vinil, gente para qual a forma e a imagem são mais importantes que o conteúdo.

Mas eles são só um nicho, e nem de longe o mais significante atualmente. Donde a importância desse disco é, aqui, superestimada.

Não para por aí, no entanto.

Não faço ideia do critério para colocar “Construção” de Chico Buarque acima do seu álbum homônimo de 1978, que aliás é o meu preferido. O número de canções fundamentais é semelhante. Se utilizam o critério cronológico, então tá. Mas não é isso que se vê lista afora.

“Transa” foi durante muito tempo o meu disco preferido de Caetano; acho que o seu diálogo com o rock favorece sua apreciação por uma audiência formada nessa linguagem — mas deixa eu ser herege e dizer que uma obra-prima como “Cinema Transcendental” talvez tenha deixado uma influência maior e mais duradoura.

Mais abaixo, não custa lembrar que “Getz/Gilberto” não é um disco de música brasileira, é um álbum de jazz americano — um grande disco, por sinal.

O Nordeste sofre com esse viés sudestino da música, claro. Cadê “Das Barrancas do Rio Gavião”, de Elomar, um disco singular e irrepetível? E Deus me perdoe pelo que vou dizer, aceito qualquer penitência a mim imposta por sequer ousar escrever um impropério desses — mas discos do Chiclete com Banana, que definiu caminhos pelos quais seguiram as músicas que milhões de brasileiros ouviriam nos anos que se seguiram, não estão aí. Pior, não está sequer o disco de Luiz Caldas que traz “Fricote”, que criou essa desgraça.

Obviamente, é impossível fazer uma lista que agrade todo mundo. E nenhum dos discos incluídos aí é ruim. Eu reclamo de “Construção”, mas lembro que poderiam ter incluído “Cambaio” e então agradeço aos céus. Essa é uma lista em que a estatística demográfica parece representar o verdadeiro critério. E quem diz que a voz do povo é a voz de Deus merece pagar o dízimo todo mês ao pastor.

Independente de gosto, há três discos fundamentais que deveriam encabeçar qualquer lista: “Canções Praieiras”, de Caymmi, “Chega de Saudade”, de João Gilberto, e “Tropicalia”, da baianada. São os três LPs mais importantes da música brasileira, ponto. E mesmo assim, eles só se garantem com folga nos primeiros lugares porque é inevitável ignorar as centenas, milhares de singles que vieram antes. Aliás, a lista da Rolling Stone é tão esquisita que “Caymmi e seu Violão” está em melhor posição que “Canções Praieiras”, um disco absolutamente revolucionário (se quer entender minha revolta, veja a lista de faixas dos dois).

A lista de maiores artistas é ainda mais complicada:

  • Tom Jobim
  • João Gilberto
  • Chico Buarque
  • Caetano Veloso
  • Jorge Ben Jor
  • Roberto Carlos
  • Noel Rosa
  • Cartola
  • Tim Maia
  • Gilberto Gil

É uma lista mais difícil de questionar, a não ser por dois nomes: só alguém que tem a cabeça abaixo do cóccix consegue colocar Tim Maia e Jorge Ben Jor entre os dez primeiros. Não que sejam ruins (embora eu ache Jorge interessante nos anos 60 e um chato há muito tempo). Mas ocupam um lugar que deveria ser ocupado por gente mais taludinha. Faltam aqui alguns nomes fundamentais para a música brasileira. Os óbvios Pixinguinha e Caymmi, claro, fazem de sua ausência uma afronta à música e à inteligência. Mas a lista segue com colocações questionáveis e ausências inadmissíveis.

É uma injustiça tremenda Carmen Miranda estar lá embaixo. Infelizmente, as pessoas desconhecem a grande cantora e, principalmente, a sambista brilhante que ela era. Devem conhecer os balangandãs e os cachos de banana e as caretas nos filmes de Hollywood, mas não conhecem sua música. Pois Carmen é uma gigante, muito maior que sua fama e a imagem que Hollywood nos deixou dela.

É possível questionar as posições de Baden Powell e de Vínicius, por exemplo — sendo que Vinícius responde a uma acepção muito mais vasta de artista, sendo fundamental na música, na literatura e no teatro. Como Jorge Mautner, ausente.

Luiz Gonzaga parece estar num bom lugar — talvez Chico Science também. Science teve uma importância estrondosa na moderna música nordestina. Posso citar uma infinidade de bandas surgidas nos últimos 20 anos que não existiriam sem o mangue bit, porque ele definiu o que seria a moderna música nordestina. Mas tenho a impressão de que sua influência é principalmente regional.

Dolores Duran lá embaixo — cacete, não tem como ter a paz de criança dormindo desse jeito. Só imbecis acham Cássia Eller melhor que ela. Só idiotas colocam Marisa Monte lá em cima.

É inexplicável a presença de artistas que simplesmente não fazem sentido e a ausência gritante de outros. Lanny Gordin está lá. Era um guitarrista razoável para o seu tempo, mas não lembro do seu nome fora dos discos de Raul Seixas — que, musicalmente, era derivado e excessivamente afeito ao plágio descarado. Gostaria de saber quem é Fred Zero Quatro, confesso minha ignorância a respeito de Otília Jardim (mas sei quem é Bidu Sayão, que não está na lista), rio ao ver Rodrigo Amarante marcando presença e realmente não entendo o que Liminha está fazendo aí.

Enquanto isso, cadê Chiquinha Gonzaga? Mesmo descontando as brigas identitárias por uma revalorização da moça dentro de escopos limitados e exteriores à música, por ser mulher, por ser negra, por ser o diabo, ela é decisiva para a definição da música brasileira. Cadê Elomar? Não existe. Enquanto isso, uma infelicidade como o DJ Marlboro está lá, representando a idiotice generalizada deste mundo.

Mas o problema mais grave dessa lista é que o maior artista brasileiro aparece apenas em 29º lugar.

Ary Barroso dominou a música popular brasileira durante quase quatro décadas. Ninguém teve maior importância que ele na definição dos rumos que a música brasileira tomou durante os seus anos de formação. Inventou a Bahia antes de Caymmi. Tudo o que se fez, durante ou depois de seu reinado, teve a sua música como referência. Basta isso.