Mickey

Percebi dia desses que, ao contrário do que acontece com gente mais perspicaz que eu, para mim os personagens Disney clássicos — Mickey Donald, Tio Patinhas, os habitantes de Patópolis — pertencem ao mundo das revistas em quadrinhos, e não ao cinema.

Comprei ano passado e vim ler agora Mickey Mouse – The Ultimate History. É um desses livrinhos curiosos da Taschen, que estava em promoção; e eu nunca resisti a promoções de livros.

Ali está claro o que para mim nunca foi óbvio: para o mundo, o Mickey que conta é aquele do cinema, que inaugurou o desenho animado moderno em Steamboat Willie ao coordenar de maneira inovadora som e imagem e que seguiu estrelando curtas e médias metragens ao longo das décadas seguintes. O livro fala brevemente de sua existência nos quadrinhos, mencionando inclusive a produção brasileira, que foi uma das mais importantes do mundo entre os anos 70 e 80.

Por um desses acasos da vida, o primeiro filme a que assisti no cinema foi justamente um daqueles desenhos: “Mickey e a Foca”, numa matinê no Cine Guarani, no comecinho mesmo dos anos 70. Tenho uma vaguíssima lembrança disso. Eram os últimos suspiros de um tempo em que cinemas tinham várias sessões diárias e buscavam atingir públicos diversos no mesmo dia. Mais tarde, ainda era possível assistir eventualmente a um longa animado em alguma reprise nos cinemas, como “Cinderela” ou “A Bela Adormecida”.

Mas era muito mais fácil achar uma revista em quadrinhos da Disney do que um desenho em cartaz. Aqui, as revistinhas Disney foram publicadas ininterruptamente pela editora Abril por 68 anos. Em qualquer momento que se fosse a uma banca de revistas, podia-se achar uma revista nova da Disney.

E daí que, pensando nisso porque obviamente não tenho mais em que pensar, percebo como o Mickey dos quadrinhos era tão mais rico que o dos desenhos animados. O Mickey dos desenhos não tem uma história real. Não tem vida além daquilo que vemos naquele desenho, daquela situação específica. Pode ser um operário de estaleiro, um sujeito em férias, um sujeito às voltas com uma foca em seu banheiro. Enquanto isso, o Mickey dos quadrinhos era detetive, cuidava dos sobrinhos, flutuava espaço afora em companhia de Esquálidus na Patrulha Estelar, era o escada perfeito para o Pateta. Nos quadrinhos, o Mickey alcançava voos muito mais altos. E não falava fino daquele jeito.

Isso vale para todos os outros personagens. Não custa lembrar que o Tio Patinhas é um personagem dos quadrinhos, não dos desenhos animados. As histórias desenhadas por Carl Barks, que deu a milhões de crianças uma noção mais ampla do mundo, existiam nas revistinhas, não nas telas de cinema. E o Zé Carioca, além de umas duas ou três aparições nas telas para adular o Brasil a ficar do lado dos EUA na II Guerra Mundial, só existe mesmo nas folhas de papel.

Pensar nisso me faz lembrar que sempre fiz distinção entre dois mundos Disney bem diferentes. Um era o dos quadrinhos, aquele que me era mais próximo, o do cotidiano. O outro era o do cinema — “Branca de Neve”, “Os 101 Dálmatas”, “Cinderela”, até mesmo “Bernardo e Bianca”. Podiam até se encontrar nas páginas das revistas, mas eles nunca me enganaram: eu sabia de onde vinham. Faziam parte de uma classe mais alta, mais abastada, mais chique. Eu não ligava de verdade para eles.

Acho que os editores da Disney no Brasil não pensavam assim. Imagino que, para eles, tudo era um produto só, que misturava indistintamente cinema e quadrinhos.

Paulo Maffia, editor da Disney no Brasil, disse há algum tempo que a era das revistas em quadrinhos baratas vendidas em bancas está acabando. Na verdade, as próprias bancas são hoje equipamentos públicos em extinção acelerada. Ele deve ter razão, mas o mundo se torna mais pobre com isso.

Every Now and Then

A primeira coisa que se deve levar em conta ao pensar na música dos Beatles é que eles eram uma fusão, e não uma soma. Soma, por exemplo, é o Led Zeppelin: músicos brilhantes fazendo um som que é a combinação de cada talento individual. Nos Beatles acontecia algo diferente: era a contribuição de cada um que se transformava, ao se fundir às dos outros. Por isso, talvez, nenhum ex-beatle jamais soou como Beatles, ou como soava na banda.

Quando Free as a Bird apareceu, podia ser picaretagem, caça-níqueis, acerto de contas; mas era indubitavelmente uma canção dos Beatles. McCartney e Harrison trabalharam mais que a letra ou a criação de um novo middle eight: cada um deu sua contribuição ao som final da canção, e o resultado foi algo que não soava como suas carreiras solo. Traziam, além disso, algo novo: McCartney tocava um baixo inédito, o Wal de cinco cordas, e a guitarra slide de George era algo que não podia ser ouvido em qualquer canção dos Beatles.

Em resumo, Free as a Bird soava como os Beatles poderiam soar em 1995, em um dos tantos futuros possíveis.

Now and Then não tem nada disso. É apenas uma música fraca de Lennon superproduzida por McCartney. Só isso. Mais nada. Não há Beatles nessa frase, e é esse o seu problema.

Para começar, é o resultado de uma pequena canalhice. Ela jamais seria lançada se Harrison estivesse vivo. Ele a definiu perfeitamente: era lixo, e não queria ser visto ao seu lado como eu não gostava de ser visto ao lado dos urutaus a que a vida me obrigava na adolescência.

Mas Harrison está adubando algum coqueiro no Havaí há mais de duas décadas. E agora a famosa democracia beatle não vale mais nada. McCartney sempre quis lançar essa canção, talvez porque sonhe com uma reedição da parceria com Lennon e essa seja a sua última chance, talvez porque saiba que em tempos de streaming é preciso lançar um factoide realmente impactante de vez em quando. É uma vitória pessoal de McCartney, mas é uma vitória de Pirro.

Now and Then é uma canção chata em tom menor, como convém aos tempos. É pouco inspirada, só mais uma encarnação da eterna lamentação de Lennon por Yoko Ono. A participação de Harrison se resume a um violão, certamente tirado do run through que aparece no vídeo, e está lá apenas para desencargo de consciência; não há a mínima sombra da marca de George nessa canção.

É a sua ausência, acima de tudo, que condena Now and Then a não ser uma música dos Beatles.

Sua ausência, claro, e a abordagem dada à canção. O objetivo de McCartney não parece ter sido fazer uma canção que soe nova, fresca; é como se ele a abordasse não mais como um membro da banda, mas com a perspectiva de alguém que olha de fora e quer que a canção soe como Beatles.

McCartney chegou a usar seu velho e bom Hofner, baixo que, enquanto ainda era um beatle de verdade, abandonou em 1966. O Hofner, com seu som limitado, foi usado porque esse é o “beatle bass”. Da mesma forma, fez um solo medíocre de slide guitar porque é o que se esperaria de um solo de Harrison hoje. Para ter mais raiva, compare com o belíssimo solo de George em Free as a Bird.

No fim das contas, a canção soa como McCartney e como Lennon, apenas. A canção tem a marca de Lennon, e embora chata tem um refrão agradável potencializado por McCartney, mas traz também os mesmos valores de produção típicos dos discos recentes de Macca — especialmente o seu piano.

E isso não é Beatles. Quando Page and Plant lançaram No Quarter ou Walking into Clarksdale, nos anos 90, ninguém tentou dizer que eram novos discos do Led Zeppelin. Não deveriam aceitar que se diga isso agora.

O mais irônico em tudo isso é que McCartney fez o que acusou Phil Spector de fazer em The Long and Winding Road. É uma tentativa de salvatagem de material ruim no estúdio. Como a história é uma malvada singularmente cruel, o resultado a que ele chegou é inferior ao de Spector.

Mas há um outro aspecto interessante em tudo isso. Estão dizendo que esta é a última canção dos Beatles. Não é. É algo completamente diferente: é o início de um novo tempo.

***

A segunda coisa que se deve ter em mente é que The Beatles, hoje, é apenas uma marca administrada por uma empresa de asset management chamada Apple Corps, que só existe para gerenciar os produtos disponíveis e possíveis de uma banda que acabou há quase meio século.

Neste momento, a empresa passa por um processo de sucessão. Yoko Ono, com a indesejada das gentes fungando cada mais perto do seu cangote, já passou o seu lugar na Apple para o filho Sean. Dhani Harrison mais cedo ou mais tarde será o único responsável pelo espólio do pai. Em algum momento nos próximos anos, os filhos de Paul McCartney e Ringo Starr assumirão os lugares dos pais como sócios administradores da Apple.

Nenhum deles tem os compromissos estéticos e emocionais com o legado dos Beatles que McCartney, Starr e Ono ainda têm. Não viveram aquilo, não têm lembranças, não tem razão para mágoas. Sabem do seu valor, claro, mas estão distantes o suficiente para encarar o material que têm nas mãos como produtos iguais a quaisquer outros.

Além disso, não custa lembrar que os filhos dos Beatles são essencialmente filhos de milionários. Com poucas exceções, como Stella McCartney e Zak Starkey, são diletantes que, no caso de Dhani e James McCartney, veem a música como passatempo, ou que, nos casos dos outros, se dão ao luxo de manter padrões de vida altos porque o dinheiro nunca deixou de entrar. (O mais talentoso filho de um beatle é Julian Lennon, mas esse foi há muito alijado desse grupo, e mesmo ele não tem a fome que falta aos seus co-irmãos.)

Para eles, a Apple é apenas a empresa do pai, e empresa tem que dar dinheiro. E desde o Napster, ficou mais difícil tirar dinheiro das pessoas simplesmente reembalando material antigo — e aí estão as caixas comemorativas de discos dos Beatles para provar, em que é preciso sempre adicionar material novo.

O que Now and Then e seu uso de tecnologias sonoras modernas descerra para a Apple é um mundo de possibilidades para transformar em produtos comercialmente adequados o que resta de material inédito da banda. Posso apostar com qualquer um que o próximo passo será remasterizar a voz de Lennon em Free as a Bird e Real Love. (Devem aproveitar também para tirar os excessos da produção de Jeff Lynne.) O segundo será recuperar e melhorar as gravações do Live at the BBC.

Mas há um mundo muito maior de possibilidades pela frente.

Por exemplo, os Beatles só lançaram um disco ao vivo oficial. Mas agora poderão fazer as gravações ao vivo soarem como se tivessem sido gravadas em estúdio, atuando naquela zona cinzenta entre restauração e recriação que a IA possibilita. Por exemplo, poderão dar qualidade decente ao Star Club, um disco de legalidade confusa mas muito interessante — bem mais que o Hollywood Bowl, certamente — que os Beatles conseguiram tirar em circulação em 1998. Ou podem pegar as gravações de shows ao vivo que circulam há mais de 50 anos e lançá-las oficialmente. Os shows no Japão, por exemplo, têm qualidade bem superior ao resto, e shows como o de Vancouver dariam bons discos. (Vale a pena procurar, nas redes, o Complete Purple Chick Live Collection Vol 1-12, com o que há disponível em gravações ao vivo por aí; se não achar me manda uma mensagem.)

Isso explica muitas coisas. Eu achei estranho que tão pouco material inédito tenha sido lançado na caixa do Let it Be remasterizado. Agora sei por quê: porque nos próximos anos, com uma distância razoável entre um e outro, veremos mais lançamentos de sobras. Porque o show tem que continuar.

Then and Now

Temporariamente aleijado, e sem poder escrever direito, a avaliação que posso fazer de Now and Then é de que continua sendo uma canção ruim de John Lennon superproduzida sem brilho por Paul McCartney — inclusive soando como sua produção mais recente. Chega a ser vergonhosa. E pior: não é uma canção dos Beatles, como Free as a Bird era. É McCartney sacaneando Lennon. Mas serve para deixar clara a dinâmica entre os Beatles: aqui George Harrison, que só aparece com uma guitarra contrabandeada de algum lugar, faz muita falta.

Now and Then

Já definiram: Now and Then, a última música de Lennon trabalhada por McCartney, Harrison e Starr, vai ser lançada dia 23. A canção é velha conhecida, embora o autor, sabiamente, não o tenha incluído no Double Fantasy. É uma balada chatinha, embora típica de Lennon, razoavelmente datada em alguns trechos. A capa do compacto é de uma mediocridade impressionante. Seria melhor usar as capas clássicas dos compactos ingleses nos anos 60, apenas um papel preto com um buraco no meio.

Now and Then acompanha o relançamento das duas grandes coletâneas da banda, conhecidas desde 1973 por Álbuns Vermelho e Azul, agora inflacionadas em 50% e e transformadas em álbuns triplos.

Em seu tempo, foram coletâneas importantes, porque ofereciam um resumo razoável da música da banda. Como efeito colateral  cristalizou no imaginário do público a divisão da carreira da banda em duas fases distintas, o que não corresponde exatamente à realidade nem, certamente, era sua intenção original. Hoje, sua única utilidade é garantir mais uns tostões para a gravadora e para a banda. Mas sejamos benevolentes:  são o acompanhamento adequado a uma canção pela qual McCartney briga há quase 30 anos. Eu achava que o Get Back fecharia para eles a porta das lembranças, e com chave de ouro, mas os danados sempre acham um alçapão.

Por coincidência, dia desses entrei num grupo de Facebook dedicado a bootlegs dos Beatles. É impressionante o número de pessoas que ainda colecionam e vendem e trocam discos piratas, mesmo em um tempo de assombros e maravilhas em que grande parte das gravações estão disponíveis gratuitamente e com melhor qualidade de som na internet, ou mesmo em lançamentos oficiais como os Live at the BBC.

Não recrimino ninguém por isso. Um dos primeiros discos dos Bealtes que comprei foi um pirata, o Decca Tapes. Durante anos, busquei sofregamente por qualquer versão alternativa ou inédita em que pudesse pôr as mãos. Até me imaginei um colecionador e um completista por vocação, sem saber que estava muitos, muitos níveis abaixo sequer do aceitável. Eu não tinha muito, mas queria ter, e isso me fazia achar que estava nesse barco.

Mas a chegada da internet e do compartilhamento fácil de arquivos me ajudou a ter uma perspectiva mais estoica diante desse comportamento. Me fez lembrar, em última análise, que o importante é, sempre, a música.

Não eram os discos em si que eu queria. Era a música que eles continham. Todo o resto — capas, encartes, badulaques — era dispensável. Diziam respeito à indústria musical. Libertar a música dos suportes físicos foi revolucionário.

Tudo o que eventualmente é realmente interessante nesse material está disponível na internet há muito tempo; para mim, por exemplo, é o bastante. Mas cada um faz o que quer, ninguém tem nada com isso.

Confesso apenas que costumo rir de colecionadores de vinil que ficam horas discutindo a superioridade do vinil sobre o CD, e isso e aquilo. Primeiro porque essa tara rediviva pelo vinil não passa muito de uma maneira de se diferenciar da choldra que ouve CDs ou mp3 bovinamente. Segundo porque quando a música fez diferença, quando ajudou a tocar o mundo para a frente, ela era ouvida mesmo era em rádios AM.

É mais ou menos como baixistas que juntam em fóruns da internet para discutir qual encordoamento é melhor, a vantagens mínimas de um baixo de 5000 dólares sobre outro de 5,500: nessas horas sempre lembro de Paul McCartney, o homem que revolucionou o papel do baixista. Quando perguntado sobre quais cordas usava, respondeu: “umas compridas e brilhantes”.

A Apple tem feito um dinheiro bom com esse pessoal. Pelas minhas contas, só nos últimos 40 anos esse grupo, que espero ser muito restrito, comprou os mesmos discos pelo menos nove vezes — a remasterização de 1988, os CDs mono, as remasterizações mono e estéreo, de 2009, os CDs mono e estéreo dessas remasterizações, os CDs americanos da Capitol, e agora es caixas de aniversário. Comprar uma coleção remasterizada de uma coletânea, no entanto, quando qualquer um pode montar a sua num pen drive ou no Spotify, me soa excessivo até para esses padrões e para estes tempos tão loucos. Não é a toa que Now and Then será lançada também em fita cassete — a prova derradeira de que essa necrofilia musical passou absolutamente dos limites.

Mas estou curioso. E não apenas para saber qual vai ser o lado B. Nas mãos de McCartney, Now and Then tem potencial para se elevar acima de si mesma. Mas posso esperar para que ela vaze nas redes.

Hackney Diamonds

Como era de se esperar, estou ouvindo o último disco dos Stones sem parar. Já vinha fazendo isso com as primeiras faixas liberadas semanas atrás, Angry e Sweet Sounds of Heaven, mas agora vem o pacote completo, a medida que velhos da era do LP usam para medir o mundo, mesmo os metidos a moderninhos de MP3 como eu.

Se tivesse escrito este texto mais cedo, eu diria que esse é o melhor álbum do ano. Agora que as fichas das canções começam a cair, e uma ou outra me soam um mais fracas — Dreamy Skies parece refugo do Some Girls, Whole Wide World é um pop dos anos 80 de mediocridade espantosa —, me sinto mais modesto: é o melhor álbum dos Stones em pelo menos 40 anos, descontando o Blue & Lonesome de 2016 e no mesmo nível do Voodoo Lounge, de 94.

Mas mesmo isso tem que levar o tempo em consideração.

Porque se você não for um fã dos Stones, se você conseguiu superá-los e seguir adiante, se não considera que a música pop está atolada numa lagoa escura e turva há muito tempo, você vai ter razão ao dizer que o disco traz mais do mesmo, o mesmo velho som, a mesma estrutura, e Sweet Sounds of Heaven — que conta com uma participação brilhante de Lady Gaga nos vocais — tem algo de Salt of the Earth, é a mesma tradição da baladona grandiloquente com que Jagger gosta de fechar seus discos, e por aí vai. Aos primeiros acordes, a gente já sabe que é um disco dos Stones.

Mas também levando o tempo em consideração, é espantosa a energia e a força da maior parte deste disco. E não importa a artrite do velho e bom Keith, não importa se o velho e bom Jagger corre o risco de precisar de uma prótese de quadril depois de uma rebolada mais forte daquela bunda seca: o que você tem aqui é a alegria e a vitalidade do velho e bom rock and roll, e a banda soa fresca como soava 50 anos atrás. E justamente por causa destes tempos sombrios, essa música familiar e bem-feita soa mais fresca que virtualmente tudo o que possa ser lançado este ano, porque esta é uma grande banda de rock, uma das maiores da história, e nunca mais vai haver alguma que alcance o seu tamanho.

Há mudanças sutis, mas perceptíveis, no som dos Stones. A bateria de Steve Jordan é mais seca e mais pesada que a do velho e bom e finado Charlie Watts, recorre menos aos hi-hats, e isso acaba dando à banda uma força e uma atualidade que não se via, por exemplo, em pastiches vergonhosos como A Bigger Bang, seu último álbum de inéditas lançado 18 anos atrás.

É fácil esquecer que a cozinha dos Stones foi totalmente renovada nos últimos anos: Darryl Jones no baixo, e agora Jordan, deram mais swing e mais sustentação às guitarras de Richards e Wood (compare as outras gravações com Live by the Sword, a única e última faixa gravada pela formação clássica da banda, com Wyman e Watts). Os Stones de Hackney Diamonds não soam simplesmente como os Stones: soam como os Stones deveriam soar em 2023.

E, quase numa nota de rodapé, é uma delícia ouvir o baixo com fuzz de McCartney em Bite My Head Off: um lembrete, mais um, de que o velho e bom Macca é um excelente baixista de rock, sabendo sempre o que tocar para enriquecer uma música. Se você não sabe que é ele tocando, pode visualizar facilmente um menino de uma banda punk em sua primeira turnê. Ou pensar que ele tocou desde sempre com os Stones.

Quer saber? É mais do mesmo, é verdade. Ainda bem que é mais do mesmo.

Por que não vou ao show de Paul McCartney

Eu tenho dois heróis. Um é Al Bundy. O outro é Paul McCartney.

E por isso todo mundo que me encontra pergunta se vou para um dos shows de McCartney no Brasil, mandam notícias e imagens e etc. e etc.

E então tenho que responder que não, eu não vou para o show, não quero ir. É uma longa e triste história, mas com final feliz.

Em abril de 1990 Paul McCartney fez o seu primeiro show no Brasil e eu não tinha dinheiro para ir.

Eu não gosto de megashows. Não gosto de multidão, não gosto de gente suada encostando em mim, não gosto de cotovelos alheios em minhas costelas; como defesa, vou a eles usando umas botas Caterpillar com ponta de aço sob o couro. Meus dedos saem intactos. Não garanto os dos outros.

Mas eu nunca quis tanto ir a um show quanto àquele. 20 anos após o fim dos Beatles, o maior deles finalmente vinha ao Brasil. Era o sonho de qualquer beatlemaníaco, e eu nunca fui tão fã quanto naqueles dias.

Havia um pequeno detalhe, no entanto: eu não tinha dinheiro, e não tem beatlemania que resista à falta de recursos. O resto da história é previsível. Como um menino de rua olha as vitrines das lojas de brinquedos, acompanhei as notícias pelos telejornais, li a resenha do show pelo Jornal do Brasil, vi o compacto exibido alguns dias depois na Globo, comprei posters e revistas. Nada disso serviu como consolo. Eu queria estar no Maracanã, e não pude. Mais de 30 anos depois, ainda não esqueci a tristeza daqueles dias.

Em 1993 McCartney voltou e fez dois shows, em Sumpaulo e Curitiba. Dessa vez, eu continuava sem dinheiro, mas talvez tivesse como conseguir. O que eu não tinha como evitar eram provas na universidade, e já tinha perdido provas demais. Anos mais tarde vi a placa que colocaram na pedreira Paulo Leminski marcando o show de Curitiba, e é claro que eu gostaria de ter estado lá. Ainda mais porque não tinha certeza de que McCartney viveria o suficiente para voltar ao Brasil.

Viveria, claro. A partir de 2010 ele faria do Brasil quase uma segunda casa, iniciando um período pós-crise de 2008 em que o país se tornou uma alternativa lucrativa à Europa e aos EUA em crise. Mas agora o jogo tinha virado. Agora eu podia ir, e estava de tocaia.

As vendas de ingressos teriam início a partir da meia noite. Em um primeiro momento, apenas para clientes do Bradesco e donos de cartões American Express; só depois seriam liberadas para a patuleia.

Eu nunca fui cliente do Bradesco nem tive American Express. E assim, quando as porteiras abriram para o comum das gentes, já não havia mais ingressos para o que chamavam pista prime, diante do palco. Só pude comprar o nível imediatamente abaixo, pista alguma coisa. Odeio o Bradesco até hoje por isso e espero ansioso o dia em que a American Express vai quebrar.

E assim, num belo dia de novembro, me enfiei em um avião rumo a Sumpaulo. Marquei para o dia do show um encontro com blogueiros daquele tempo, como o Doni e o Marmota e a Márcia. Mas encontrei outra amiga antes, e acabei passando o dia com ela e perdendo a hora. Nunca pedi desculpas a eles, por sinal. E já saí atrasado para o Morumbi.

A fila era a mais gigantesca que eu já tinha visto. Parecia não haver jeito de conseguir sequer entrar a tempo para ver o final do show, quanto mais conseguir um bom lugar. Não costumo furar filas, mas naquele momento fiz o que qualquer desesperado faria no meu lugar, certo de que os santos me perdoariam: corri a fila em busca de algum amigo mais próximo da entrada. Não era possível que, de todo o mundo que conheço, não houvesse alguém que também fosse àquele show. E se não houvesse, eu adoraria fazer novas amizades.

Os deuses do fura-filas sorriram para mim e encontrei uma amiga de Fortaleza, que coincidentemente ia para a mesma parte da plateia que eu.

Quando entramos, percebi a estupidez que tinha feito ao comprar a segunda posição mais cara. Era tão longe do palco; vimos o show, na prática, pelos telões. Não demorei a perceber que teria feito muito melhor se tivesse comprado um lugar na arquibancada e, com a diferença de preço, comprado um binóculo. Ainda veria o show sentado.

Saí do Morumbi com uma sensação enorme de desapontamento, quase culpa. Durante o show, ao meu lado, um rapaz de seus vinte e poucos anos chorava enquanto era filmado pelo pai. E eu me perguntava: “Tá chorando de raiva, meu rapaz?”

Um show de Paul McCartney é o mesmo há 30 anos. Ao contrário de Dylan, que reinventa suas músicas praticamente a cada show, McCartney concebe o seu como uma chance de fãs ouvirem suas canções semicentenárias interpretadas o mais fielmente possível ao original. Ele sabe que é isso que a esmagadora maioria dos fãs quer. A cada turnê McCartney muda apenas uma parte pequena do setlist, geralmente umas cinco ou seis músicas dos Beatles que saem para dar lugar a outras e dar aos fãs a desculpa necessária para assistirem novamente ao que é essencialmente o mesmo show que já viram.

É mais ou menos como ir ao Louvre tentar ver a Mona Lisa. É a mesma coisa há décadas, uma multidão tirando fotos e lhe impedindo de chegar mais perto: só que há 25 anos eram japoneses fazendo clic-clic-clic; agora são chineses. Tudo igual, mas diferente. Do mesmo jeito, o coração do show de McCartney permanece o mesmo, inclusive com as mesmas gracinhas: umas frases em português do local, My Love sendo apresentada como uma canção que ele fez para “mia gatchinha Linda”.

Eu já tinha visto tantos shows de McCartney em VHS, DVD e o escambau que ali não havia nenhuma novidade. E a sensação foi de insuficiência, de decepção. Estar tão longe do palco ajudou, claro, mas a sensação geral era a de que, se não estava arrependido, também não me animava a ir ao próximo, se próximo houvesse. Eu já tinha visto um show de McCartney, obrigação de qualquer beatlemaníaco como é, para um muçulmano, a de visitar a Meca. Não estava exatamente feliz, mas me conformava com realização de um sonho antigo. Era o bastante para tornar tudo aquilo válido, para compensar a decepção que eu disfarçava sob um incômodo que não queria descrever. Não fui aos shows seguintes, mesmo o que aconteceram mais perto de mim.

Mas em 2013 minha filha pediu para ir comigo ao show de McCartney em Fortaleza. Tudo bem. Por mim, eu não iria. Mas o que uma filha pede sorrindo ao pai que ele não faz chorando e fazendo contas?

Acontece que dessa vez consegui o que agora se chamava frontstage. Acho que, como McCartney virou arroz de festa no Brasil (já são oito turnês e 26 shows), a ansiedade havia diminuído.

Já contei parte das desventuras neste show aqui. O mais importante, no entanto, deixei de lado.

Aquele show foi redentor.

Perto do palco, a experiência é totalmente diferente. Chega a ser extática. Você finalmente está próximo da única pessoa no mundo que que lhe faria pedir um autógrafo. E então já não interessa se o show é essencialmente o mesmo, se as músicas são tocadas exatamente da mesma forma há 30 anos. Há uma ilusão de comunhão e de proximidade que, no fundo, é tudo o que você quer em um concerto. Foi assim que tirei as fotos que ilustram este post.

Saí do show feliz, e devo isso à minha filha. Finalmente tive a recompensa emocional e artística que me faltou naquele show no Morumbi. E por ter saído satisfeito do show em 2013, não sinto a mínima necessidade de ir novamente.

Para começar, mil reais, 200 dólares, não nascem nas árvores retorcidas da caatinga. Eu teria pago mais em 2010 para ver aquele primeiro show, mas agora estou satisfeito com o que vi dez anos atrás. De qualquer forma, não é isso o que realmente importa. Além da sensação de que não vai fazer diferença ir ao show que já conheço de cabo a rabo, a voz de McCartney hoje me incomoda. Ela vem em um processo acelerado de degradação desde o início dos anos 2000, mas nos últimos anos parece ter saído de controle. O volume de turnês, a duração enorme de cada show, tudo isso deve ter contribuído para que ele simplesmente perdesse a voz. É meio triste vê-lo usar um arsenal variado de truques para disfarçar as notas que já não consegue cantar. É nítido o esforço que ele faz para emitir suas notas.

Ir a um show de McCartney a esta altura, para mim,provavelmente seria melancólico. E já não tenho um “dever” a cumprir; melhor ficar em casa.

Mas essas são apenas minhas idiossincrasias, uma de minhas pinimbas com o mundo. Não valem para todos. Quem nunca foi a um show de McCartney deveria ir. É um grande show, honesto. É o músico mais importante do século XX. É uma lenda viva. É algo que você contará aos seus netos nos anos que virão. Recomendo apenas que, se não conseguir o fronstage, vá para a arquibancada e compre um binóculo. Seja onde for, essa pode ser uma experiência única. Mas talvez por ser única, eu já a tive. Estou feliz assim. Deixa estar.

Hunter Davies

Anos lá atrás publiquei o que chamei de edição definitiva de uma pequena bibliografia dos Beatles.

Mas de umas semanas para cá, ela está me incomodando.

Olhando agora, é uma boa lista. Ou melhor, seria, se eu não tivesse cometido um erro crasso: deixei de incluir “The Beatles”, de Hunter Davies. Na verdade, até incluí, mas o coloquei num saldão final com vários outros, dizendo a seguinte barbaridade:

“The Beatles”, de Hunter Davies, foi a primeira biografia de verdade da banda, definiu a sua história oficial e foi a mais completa até o lançamento de Shout!. Mas não apenas é extremamente sanitizada como chega a insistir em mentiras deslavadas, como as verdadeiras razões pelas quais Lennon espancou Bob Wooler na festa de 21 anos de McCartney; seu valor é meramente histórico.

É uma das maiores besteiras que já escrevi sobre os Beatles neste blog, e por ela eu peço perdão e rasgo minhas vestes e me cubro de cinzas e choro com as mãos na cabeça como uma velha palestina. Enquanto isso, tento entender como cheguei a esse ponto de estupidez.

“The Beatles” foi o segundo livro sobre a banda que li, depois do de Geoffrey Stokes, livro bobo pelo qual, ainda hoje, tenho um carinho imenso — porque ainda lembro do garoto de 15 anos carregando extasiado um livro envolto em papel celofane vermelho, como era o costume da Civilização Brasileira, da rua do Tesouro até Nazaré, e de como ele leu e releu e releu e investigou cada foto de maneira quase obsessiva.

Alguns anos depois veio parar nas minhas mãos o livro de Davies, em sua primeira edição brasileira de 1968, num exemplar já sem capa. Li rápido porque era livro emprestado.

Com o passar dos anos vieram novos livros e matérias e entrevistas e filmes e textos na internet, e o volume de informações aumentava e se cristalizava, e minha visão em retrospecto sobre a obra de Davies foi ficando cada vez mais negativa, mais ou menos como aquele novo-rico que se obriga a gostar de coq au vin e passa a desprezar o pirão de galinha bem-feito que o fez crescer forte, sadio e feliz.

Foi essa a impressão que se cristalizou: era dispensável diante de tudo o que veio depois, porque estes continham as informações do livro de Davies e ainda traziam coisa nova. Além disso era uma biografia autorizada, bastante editada e censurada, repleta de mentiras e conveniência. Por alguma razão, suas falhas foram criando vida própria na minha cabeça, e pelo visto se descolaram da realidade.

O livro teve duas novas edições. A de 1985 acrescentava um pós-escrito que incluía um desabafo de McCartney feito num telefonema ao autor em 1981, onde ele reclamava de acusações de Yoko Ono e dizia que Lennon podia ser um “porco manipulador”. Essa reedição ganhou as manchetes naquele ano.

Em 2009 saiu outra edição, com uma nova introdução e um apêndice sobre os personagens do livro que já tinha morrido.

Foi pouco depois disso que finalmente comprei o meu exemplar, mais para completar minha biblioteca do que para reler o livro. Li rapidamente a nova introdução e o pós-escrito, e o deixei na estante onde permaneceu intocado até há pouco tempo.

Aí, dia desses, resolvi passar os olhos pelo livro, e algumas coisas que vi contradiziam a minha impressão sobre o livro, e agora não tinha mais jeito: eu tinha que relê-lo.

Pois é. Bem que dizem que cabeça vazia é escritório do diabo, e isso era algo que eu não devia ter feito, porque agora estou aqui, envergonhado, com raiva de mim mesmo, me sentindo um picareta por ter escrito essa vergonha sobre o livro.

É verdade, é uma biografia autorizada e partes dela foram realmente censuradas por algumas pessoas, principalmente a tia que criou Lennon, Mimi Smith. Além disso, o próprio autor teve o cuidado de não exagerar nas partes picantes, para não ofender as esposas e parentes. Ele nunca diz que Brian Epstein era gay e masoquista, embora deixe pistas suficientes para que se perceba isso; e as partes mais picantes sobre a temporada em Hamburgo são deixadas de fora, já que todos eles eram casados ou noivos na época.

O problema é que nada disso, em nenhum momento, compromete o livro. E relendo o danado agora, mais de 30 anos depois, me pego tentando entender como cheguei ao veredito que dei a ele nos últimos anos.

Porque “The Beatles”, escrito por Hunter Davies, é um livro fundamental para a compreensão do fenômeno. Ao contrário do que passei a achar, é bastante honesto. Só não entra sempre em detalhes — e sim, ele diz claramente por que Lennon espancou Wooler: “Ele me chamou de bicha”, embora não explique que foi por causa da viagem que Lennon e Epstein fizeram à Espanha enquanto uma Cynthia Lennon recém-parida cuidava do filho, o que ele menciona pouco antes Não faltam, por exemplo, as referências necessárias ao consumo de drogas. Há algumas omissões, claro, pequenos erros aqui e ali, e o livro não pretende fazer alguma análise da música, ainda que mínima. Mas o que realmente importa está presente, e o livro mostra seres humanos falhos, inquietos, em um momento em que tinham chegado ao auge de suas carreiras e se sentiam perdidos e sem saber o que fazer da vida.

De qualquer forma, não é isso que faz do livro uma obra basilar.

A questão é que The Beatles tem algo que nenhuma outra biografia tem, nem jamais poderá ter: é a única construída a partir de depoimentos em primeira pessoa de John, Paul, George e Ringo, de seus pais e colegas, por alguém que conviveu com a banda e seu entorno durante mais de um ano. Davies frequentou suas casas, esclareceu fatos diretamente com eles. Isso jamais vai ser repetido novamente, e já devia bastar para que “The Beatles” seja sempre incluído em qualquer lista de melhores livros sobre a banda, o primeiro de todos — e na verdade sempre basta, porque essa minha lista é a única, que eu saiba, idiota o bastante para não incluí-lo.

Sua importância é tão maior do que eu percebia que uma insuficiência sua definiu a estrutura de todos os livros que se seguiram. Escrito no período do Sgt. Pepper’s, ele não alcançou a crise do “Álbum Branco”, a Apple, não viu as consequências da morte de Epstein e a entrada de Yoko se fazendo sentir e ajudando a levar à dissolução da banda. Por isso o livro se estende e muito sobre seus anos iniciais. Essa estrutura e alocação de tempo estabeleceram o padrão obedecido por todas as biografias que se seguiram: biografia de Lennon até formar os Quarrymen, biografia de McCartney, biografias de cada membro narradas a partir do momento em que se encontram, e maior parte do livro contando o início e a ascensão da banda. É como se todos os autores posteriores se baseassem no livro de Davies, e escrevessem profusamente sobre o período entre 1956 e 1966; e ao se deparar com o que ele não cobriu — os anos finais da banda — se tornam mais resumidos, concisos, mais ou menos como os produtores da série Game of Thrones meteram os pés pelas mãos ao terem que se virar sem os livros de Goerge R. R. Martin.

E aí fico com esse pepino na mão. Por que diabos coloquei o “edição definitiva” no título daquele post? Como posso corrigir esse erro vexaminoso sem que pareça a 217ª turnê de despedida de algum artista caquerado que busca descolar uns trocados antes o que o Alzheimer o consuma totalmente, como Elton John ou The Who?

Então resolvi apelar para a safadeza. Meti a mão no post e simplesmente editei, apaguei aquela referência vergonhosa, coloquei o livro no seu devido lugar. Ninguém vai notar mesmo. E eu vou me sentir menos envergonhado. Não, eu jamais negaria a esse livro o seu devido lugar na história, nunca fiz isso, basta você olhar lá na minha “Pequena Bibliografia dos Beatles — Edição Definitiva”.

Os Anos Dourados

Nunca fui noveleiro.

Ao contrário, na infância cheguei a odiar novelas, porque impediam que eu assistisse aos seriados e desenhos que passavam na TV Tupi e que me interessavam muito mais — as novelas da Tupi, por sua vez, nunca foram vistas lá em casa. Mais tarde, aprendi a tolerá-las e até gostar de algumas, mas raramente assistindo regularmente a elas.

Com a idade, no entanto, passei a respeitá-las um pouco mais. E reconheço sua importância na minha própria história: novelas sempre serviram como referenciais cronológicos, porque em tempo de dois canais de TV não havia jeito de não ser exposto de alguma forma a elas, e por isso eu sabia a ordem da maior parte das que foram exibidas entre a virada dos anos 70 e 80, e ao menos alguma parte de uma trama. Querendo ou não, novelas tiveram algum nível de influência na percepção e vida de todos os brasileiros.

Mas houve exceções nesse desdém: não exatamente novelas, mas as minisséries que a Globo exibiu aí pela metade dos anos 80. De certa forma, a emissora do Boni prenunciou um novo tempo na TV que só agora se tornou corriqueiro. Algumas dessas minisséries foram antológicas, como “Grande Sertão: Veredas”, “O Tempo e o Vento”, “Memórias de um Gigolô”. Assisti a elas, gostei de todas.

Nenhuma, entretanto, foi tão boa quanto “Anos Dourados”. Assisti na época porque falava dos anos 50 e o rock daquela década era talvez o que eu mais ouvia então.

Por muito tempo achei que os anos 80 assistiram a um revival dos 50, mas a verdade é que aquela década sempre esteve presente: da retomada do rock básico pós-psicodelismo em 1968 (do qual o “Álbum Branco”, dos Beatles, é filho dileto e não inventor, como querem tantos beatlemaníacos), aos filmes American Graffiti, Lords of Flatbush ou Grease ao longo dos anos 70, ou o seriado Happy Days, os anos 50 permearam a cultura das décadas seguintes porque, no fim das contas, foi quando tudo começou, quando a adolescência passou a definir os padrões culturais de massa. Isso era mais intenso nos Estados Unidos, mas mesmo no Brasil a nostalgia de tempos leves, promissores, em que avançávamos 50 anos em cinco e todo mundo podia sair da fome no sertão para a fome nas cidades, nunca deixou de permear o imaginário: “Estúpido Cupido”, novela de 1976, é prova disso.

Assisti a “Anos Dourados” novamente quando o Viva reprisou a série, em 2011, 25 anos depois. Agora assisto novamente, no Globoplay, e estou impressionado.

“Anos Dourados” é a obra-prima de Gilberto Braga. A maneira como entremeia o nascimento e os percalços de um primeiro amor pueril e puro com outro, ilegítimo, adulto, contextualizando-os brilhantemente em um tempo de preconceitos rampantes, é obra de um excelente escritor, não importa o meio em que escreve.

O texto é primoroso, os diálogos excelentes em seu naturalismo. Roberto Talma não era um Walter Avancini, mas sua direção é de uma sensibilidade enorme, sempre no tom certo da cena. Cenografia e figurino perfeitos, de um bom gosto e simplicidade que chegam a impressionar, e que ilustram bem o que era o tal “padrão Globo de qualidade”. A música de Tom Jobim é de beleza única, e a narração do Paulo César Pereio, abrindo cada capítulo com um resumo do capítulo anterior, é sempre fascinante.

A recriação da Tijuca dos anos 50, seus códigos sociais, seus preconceitos, o contexto político em que seus personagens estavam inseridos, referências que se perderam no tempo — quem ainda lembra de Mira y López? Ou do que significava dar uma foto ao seu namorado, com dedicatória formal que escondia a intensidade do que se sentia? Ou ainda —, tudo isso é feito de maneira doce, verdadeira, que torna “Anos Dourados” uma obra permanente e sempre interessante.

Há tantos e tantos filmes clássicos por aí que falam do nascimento do amor, da emoção de ser adolescente e estar vivo e descobrindo o mundo — ou do amor proibido, sofrido, até sórdido. E enquanto eles eram louvados, a produção teledramatúrgica brasileira era desprezada. Mas a delicadeza com que Braga fala do ciclo da vida em uma Tijuca dos anos 50, inserindo-o de maneira perfeita em seu contexto social e político, não deixa absolutamente nada a dever a muita coisa boa no cinema. “Anos Dourados” serve para lembrar que a teledramaturgia brasileira era infinitamente melhor que o nosso cinema.

E então a gente se pergunta o que aconteceu.

É claro que a decadência da audiência da TV aberta se deve prioritariamente a outros fatores. Mas assistindo a “Anos Dourados”, percebendo os detalhes que passaram batido quase 40 anos atrás, me pergunto se a mediocrização das novelas atuais não é um fator relevante a ser considerado.

Não posso falar muito porque não assisto a a mais que alguns minutos delas, de vez em quando, e há décadas não assisto sequer a TV aberta além do Jornal Hoje durante o almoço. Mas ainda assim me parece desagradável assistir a uma novela hoje. Cenas longas demais, diálogos que às vezes parecem estar enchendo linguiça ao mesmo tempo em que são desnecessariamente complexos, verborrágicos, um tom escuro demais nas imagens que macaqueiam porcamente a estética de seriados americanos, falta de imaginação em movimentos de câmera e enquadramentos. O que as novelas brasileiras tinham de singular e em comunhão com seu público parece ter se esvaído em um caldo de globalização e tecnologia no lugar de criatividade.

E talvez o maior sinal disso seja o alerta que agora é exibido antes de cada capítulo: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”.

Que me perdoem os bem-intencionados cheios de certeza moral que pululam como girinos na internet: essa é a maior confissão de rendição à estupidez humana. Lembra aquelas advertências bizarras em produtos americanos, tipo “tire a criança do carrinho antes de dobrar” ou “não segure a motosserra pelo lado errado”. É como se tivéssemos perdido completamente a capacidade de algum pensamento crítico, de contextualizar a história. E diante disso, é difícil não imaginar que estamos ficando mais imbecis. Ou que os anos dourados, definitivamente, passaram.

Michel, Rafael, comentários sobre racismo e um pouquinho de cinema

Michel e Rafael — não, apesar do que parece não se trata de uma dupla sertaneja — deixaram comentários ao post sobre Lobato e Dahl. O mais elogioso diz que o texto é péssimo. O mais arrogante e redundante me manda fazer terapia.

Eu estava com saudades. Bons tempos, aqueles.

O que mais chama a atenção é que os dois comentários apelam no final para os ataques que na faculdade a gente aprendia serem ad hominem.

O xará diz que o post diz mais sobre mim do que sobre o tema — o que é uma bobagem, já que todo texto diz mais ou menos sobre seu autor, já a partir da escolha do tema; o que o Rafael do B é incapaz de perceber é que seu comentário diz ainda mais dele. Já o Michel exagera no desprezo e diz que preciso de terapia. Devo precisar, é verdade; mas não por isso.

Esses comentários, suando a superioridade moral normalmente dada por alguns anos na universidade e a perspectiva de uma vida em seus corredores, mostra que são garotos — o nome Rafael, por exemplo, só se tornou comum no início dos anos 80 —, deslumbrados com o ambiente acadêmico. Só isso para explicar o apelo a argumentos inconsistentes ou repetitivos que tentam transformar tudo em um diálogo de surdos, e principalmente a revolta pessoal. O Michel, por exemplo, basicamente repete os argumentos que o texto citava, e até contradiz o Rafael ao insistir nas justificativas para o que ele diz não ser censura, logo depois de preparar o terreno dizendo que não dá para monitorar crianças todo o tempo.

Responder a eles é chover no molhado e inútil.

Quem poderia apresentar o vislumbre de uma perspectiva diferente é o Rafael, ao afirmar que o debate é mais de mercado do que acadêmico. O problema é que ele diz que “a premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público” — poxa, ele nem sequer sabe como essa discussão começou? Nunca houve demanda do público por um Monteiro Lobato menos racista; o que houve foi a pressão acadêmica, e a consequente espiral de teses e artigos e outras bobagens mais, a partir do momento em que o MEC anunciou a compra de “Caçadas de Pedrinho”, uns 15 anos atrás.

O xará nega que isso exista, essa discussão e respaldo acadêmicos sobre a validade da purgação dos textos de Lobato. E aí é que complica.

Faz o seguinte: joga “monteiro lobato racismo teses” no Google pra ver o tanto de discussões nas universidades sobre o assunto. Adianto que são aproximadamente 138 mil resultados.

Essa discussão, nesses termos que os meninos colocaram, não leva a nada, claro. Mas me lembram a última vez que estudantes desceram o chicote no meu lombo. Esqueci de escrever aqui.

Tempos atrás, escrevi um post detalhando o curso de cinema que eu faria, no lugar desses cursos atuais que, essencialmente, formam mais professores que retroalimentam as universidades e mais motoristas de aplicativo. O texto partia da grade curricular do curso de cinema da UFF — que por sinal foi declarado patrimônio imaterial de Niterói, cidade muito do meu agrado e que agora tem dois patrimônios: esse e a vista do Rio.

O Vespa, do excelente Inconsistências Inconstantes, na época ensinava num curso técnico de audiovisual. Ele levou o post a seus alunos e depois me mostrou os comentários.

A revolta foi semelhante — não, semelhante não, foi bem mais agressiva. O argumento mais leve foi o de que ninguém teria autoridade para criticar um curso a partir da observação de sua grade curricular — mais um exemplo do nível de encastelamento da universidade brasileira, a persistência do bacharelismo que a afasta cada vez mais da sociedade e que resultou em cursos como “Ciências da Religião”, um bocadão de “sub-engenharias” e até mesmo um curso livre sobre Beatles na PUC (que apenas atualiza, para mim, o ditado que diz que todo dia um malandro e um otário saem de casa — agora eles se encontram no curso sobre Beatles na PUC). De resto, os xingamentos foram grandes. Acima de tudo, os alunos deixaram claro que, para eles, ainda mais interessante do que a perspectiva de fazer cinema é a perspectiva de um emprego, perpetuando o ciclo da piada do sujeito que estudou egiptologia.

É a mesma lógica defensiva e ultrajada que motivou os comentários do Michel e do Rafael. E o mais engraçado é que há algo de reconfortante nisso. Entra ano, sai ano, as coisas continuam iguais. E isso não é tão ruim assim.