Desde que me mudei, há uns seis meses, uma coisa me incomodava no meu edifício.
Acontece entre meia noite e uma da manhã, pouco antes de eu ir dormir. Umas duas vezes por semana. Não consigo esquecer da primeira vez que escutei o sujeito, que quase certamente mora num apartamento em cima do meu. Primeiro o silêncio da madrugada em que as pessoas decentes dormem. Aí os sons.
É assim: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…” Coisa de três, quatro segundos. O homem grita muito alto. E então volta o silêncio calmo da madrugada.
Da primeira vez fiquei feliz pelo sujeito. Ali estava alguém que, ao contrário deste pobre e inconformado leigo no assunto, estava fazendo aquilo para o que a humanidade realmente nasce, aquilo que dá sentido à vida. Houve até um sábado em que, às oito da manhã, eu ainda na cama olhando para o teto, o aiaiai se revelou em toda a sua força — e eu estava no quarto fechado, ainda com o ar-condicionado ligado. O aiaiai já tinha tomado conta do condomínio na noite anterior, e lá estava o rapaz novamente. “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”. Ele era bom, pelo menos disposto. Ou tinha lá suas razões: “Namorada nova”, o despeitado aqui pensou.
O fato é que tudo o que sei do sujeito é que faz saliência com a janela aberta e faz barulho, muito barulho. Sei também que não devo ser o único a ouvi-lo, porque o rapaz é, digamos, muito vocal.
Mas então isso começou a se repetir (nas madrugadas, nunca mais durante a manhã). De engraçado, o aiaiai passou a ser tedioso. Porque só então percebi uma coisa importante, tão importante que não entendo como não tinha notado antes.
Eu não ouvia a moça.
Havia algo errado. Embates amorosos devem ser acompanhados de gemidos mútuos — mas os dele são dispensáveis, enquanto os dela são a razão mesmo de viver. É simples assim. Alguns conseguem isso com esforço; outros, mais abençoados por Deus e pela atenção, obtêm melhores resultados.
No entanto, ali só quem se divertia era ele. Talvez não houvesse mulher. Talvez o sujeito gritasse assim porque estava sendo servido por um rapaz guapo e musculoso. Talvez fosse o amante do sexo solitário mais ruidoso de que se teve notícia. De qualquer forma, eu já tinha desistido de entender. Já começava a achar que o meu vizinho escandaloso tinha um caso com uma boneca inflável.
Até que, numa dessas madrugadas, eu a ouvi.
Estava na janela da sala fumando o último cigarro do dia, olhando para a lua — profética, a lua estava em seu quarto minguante. Uns sons vieram do andar de cima. Não era o escandaloso, não ainda. Pelo contrário, eram os sons mais bonitos que um homem pode ouvir, os ais e uhns de uma mulher. Ela se empolgava um pouco. Dizia palavrinhas de mulher que trepa mal: “Ai, amor, ui, meu bem, assim”. Palavras maravilhosas, certamente, boas de se ouvir em tantas horas, mas que não se sustentam diante da análise fria daqueles que não estão entre suas pernas. Eram quase burocráticas: indicavam menos a amante feliz do que a mulher que se esforça em agradar o homem que ama. Ela gemia baixinho, e eu só ouvia porque sua janela estava aberta e eu estava debruçado na minha, pensando na morte da bezerra.
Exatamente nessa hora, o momento maravilhoso em que os gemidos dela aumentavam de intensidade, e se sentia mais verdade neles, a paz da noite foi cortada pelo som tenebroso de sempre: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”
E fui tomado por uma vergonha imensurável, que me fez baixar os olhos e me esconder em meu quarto. Eu tinha percebido o que acontecia, e a visão que se descortinava em minha mente era tenebrosa.
A mulher até que se divertia. Mas quando o sujeito percebia que ela estava gostando, se soltava. Julgava encerrado o seu dever e corria enlouquecido em busca do seu aiaiai, e a mulher embaixo dele — embaixo, com certeza — que se virasse como podia.
O resultado, em poucos segundos, era um sujeito feliz, satisfeito, provavelmente deitado na cama olhando para o outro lado, e uma mulher decepcionada, talvez ainda se contorcendo por ter sido interrompida em sua caminhada, talvez com a sensação de que lhe prometeram o paraíso e tudo o que recebeu foi São João do Meriti.
Não é possível explicar o arrependimento que tomou conta de mim por ter me mudado para aquele condomínio. De repente, eu tinha passado a morar no cafofo da humilhação. Esse era o meu vizinho, e o seu opróbrio me amaldiçoava também. “Você mora no condomínio tal?”, alguém me perguntaria, e eu desviaria os olhos e responderia “Não, eu moro com dois travestis, um traficante, uma prostituta de 20 reais, um alcagüete da polícia viciado em crack e um torcedor do Botafogo num barraco de 10 metros quadrados no Morro do Péla Porco”. “Não, ali quem mora é o meu irmão. É a ovelha negra da família, ele bebe, coitado, olha onde ele foi parar.” Eu não hesitaria em mentir para salvar o que restava de minha honra: honra para a qual nunca dei nada, que nunca valeu um tostão furado e que eu trocaria por qualquer bunda grande com dois peitos em cima, mas para a qual há limites abaixo dos quais não se pode descer.
Pensei até em andar com um coração amarelo no peito, sinal de minha vergonha, e uma confissão de que eu deveria ser desprezado por todos porque morava no mesmo condomínio que o sujeito do aiaiai.
A vergonha, no entanto, não eliminava a revolta. Aquele sujeito era uma vergonha para a classe e para os homens que se julgam dignos desse nome. Houvesse uma assembléia dos homens machos do sexo masculino e ele seria execrado publicamente, e seu corpo coberto com piche e penas, e nós o faríamos desfilar pela rua em sinal de execração. E espalharíamos as fofocas mais vis, e diríamos que o aiaiai desvairado do sujeito se devia ao fato de ele estar mordendo fronha, mas diríamos isso apenas por picuinha: porque sabemos que bastaria dizer a alguém o que esse abominável faz — em voz muito baixa, como se dizia há 50 anos que fulana deu um mau passo — para que as pessoas fizessem expressões horrorizadas e fingissem não acreditar nisso. “Não! Jura?”
Eu já estava olhando os classificados em busca de um novo lugar para morar, um lugar que não me envergonhasse e cuja mácula não fosse transferida a mim por associação. “Coitado… Mora tão mal… No prédio do Doente do Aiaiai…” Eu sabia exatamente como se sentia, como o favelado que não quer ser confundido com um traficante.
Mas bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
Um outro sábado. Três da manhã. Eu chegava em casa e estava tirando os sapatos no escritório. Como está virado para outro lado, de lá não se costuma ouvir o Doente do Aiaiai.
E então eu a ouvi.
Era outra mulher, em outro apartamento. Mora em um apartamento abaixo de mim. E a sua existência redime a nossa.
O que eu posso dizer — porque dessas coisas não guardo os detalhes, nunca guardo, sei apenas da sensação que nunca se repete, que nunca é a mesma — é que a moça estava sendo bem cuidada. Muito bem cuidada. E deixava claro, a todos os que quisessem ouvir, que a sua noite estava terminando da melhor forma que se podia imaginar, um final estendido em meio a pequenos gritos e muitos gemidos. Ali estava uma mulher feliz, e isso, por um vício terrível de personalidade (ou mero condicionamento pavloviano), me deixava também feliz.
Até aí nada demais. Moças se divertindo são relativamente comuns. Lembro de outro prédio em que morei, no Ceará, onde de vez em quando se ouvia uma mulher fazendo “Ungh! Ungh! Ungh!”, e se sabia exatamente qual o ritmo seguido pelo seu amado. Nada demais, eu já disse. Mas havia um detalhe que não podia passar despercebido, e Deus está nos detalhes como dizia o Van der Rohe.
Só se ouvia a moça.
A redenção, afinal. Depois de meses ouvindo eventualmente um sujeito escandaloso e ruim de cama dar o seu showzinho mambembe e vergonhoso, a honra do meu prédio era resgatada por um rapaz cujo nome e semblante desconheço, mas que reconheço como irmão espiritual.
Porque em vez de gritar aiaiai, como se estivessem enfiando uma trolha sarracena no seu rabo, o sujeito preferia fazer o seu trabalho comme il faut. Um trabalhador honesto, dedicado. Um homem.
E nesse sábado eu fui dormir feliz, porque a vergonha que maculava o meu edifício tinha sido lavada em suor e em saliva.
Republicado em 12 de agosto de 2010