Vige.
Category Archives: Rafael – ou quase
It runs in the family
A todos aqueles que, ao longo dos quase quatro anos em que este blog esteve no ar, chamaram este pobre escriba de ateu, zoófobo, troglodita, direitista, ignorante, guru, macho alfa, quase-lindo, comedor de mulheres casadas, tio sukita, paraíba, viado, medíocre, putanheiro, mineiro, comunista, palhaço, escorregadio, maria-vai-com-as-outras, burro, americanófilo, guei, gênio, gordo, baiano, voyeur, polígamo, glossolálico, menino, impostor, pornógrafo, demônio, chapa-branca, broxa, petista, doce, chato, corno, teimoso, bocó, cruel, amassadinho, sergipano, fedelho, velho, cachorro, punheteiro, ditador, feio, donzelão, “pretencioso”, xenófobo, misógino, culto, carioca, grosso, esquerdista, indecente, imbecível, cumpre comunicar que a verdade acaba de ser estabelecida.
Amanhã minha família passa a ter outro santo.
Comentário do Cláudio a este post:
Desculpe-me, mas ô santinho mais chinfrim…! Não foi capaz nem de obter um feriado no dia da canonização…e no próximo ano o dia cai no fim de semana. Só fazendo como um antigo personagem do Chico Anísio, o Bento Carneiro: puá! santinho brasileiro…! cuspe…
Que injustiça, meu Pai. Cláudio, você vai arder no inferno por isso. São Galvão II já fez o seu primeiro milagre em terras brasileiras.
Impediu que um bando de canalhas (os mesmos que aproveitam que o povo é idiota, e fica babando só porque o velho sibarita está aqui, para aumentar seus salários — o que apenas reforça a minha teoria de que o papa é um ser nocivo, até involuntariamente) cometessem um atentado contra a produtividade nacional declarando o 11 de maio feriado nacional.
A gente somos bom, rapaz.
Catecismo
A Raquel não quer ir para o céu porque o céu é chato e cheio de anjinhos assexuados e eles tocam harpa e tudo é branco imaculado.
Ela quer ir para o inferno. Destino que a Renata também espera merecer, alegando não conhecer ninguém que vá para o céu. A Renata não quer passar a eternidade sozinha, diz. Erro da Renata. Ela conhece alguém que vai para o céu.
Eu.
Eu não quero e não vou para o inferno. Eu quero ir para o céu.
Uma namorada dizia que eu era o demônio. Ela estava enganada: eu tenho cara de anjo e tenho nome de anjo. Melhor: nome de arcanjo, que se é pra ser anjo que seja um de categoria, respeitável, daqueles que dão carteirada em São Pedro. Ela sabe disso, sabe do anjo que sou — infelizmente sem asas e, confesso, sem muita vergonha. É por essa razão que, mais que qualquer outra pessoa, eu mereço o céu. Mereço por um direito concedido pelo nome que me foi dado, e pela simples justiça das coisas.
A Raquel me explicou que quer ir para o inferno porque lá as coisas não são chatas. Que só queima naqueles círculos quem fez por merecer, e pecou, e não passou em brancas nuvens por este vale de lágrimas.
A Raquel não entende.
Eu quero ir para o céu porque não tem graça ir para o inferno. Não há nenhum desafio. Ir para o inferno é encontrar a comida pronta e a mesa posta. Não há beleza nisso.
Eu quero ir para o céu e perverter as santas de vida casta.
Republicado em 16 de agosto de 2010
As voltas que o mundo dá
Este blog era tão bom, e anda tão vazio…
O aiaiai da vergonha
Desde que me mudei, há uns seis meses, uma coisa me incomodava no meu edifício.
Acontece entre meia noite e uma da manhã, pouco antes de eu ir dormir. Umas duas vezes por semana. Não consigo esquecer da primeira vez que escutei o sujeito, que quase certamente mora num apartamento em cima do meu. Primeiro o silêncio da madrugada em que as pessoas decentes dormem. Aí os sons.
É assim: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…” Coisa de três, quatro segundos. O homem grita muito alto. E então volta o silêncio calmo da madrugada.
Da primeira vez fiquei feliz pelo sujeito. Ali estava alguém que, ao contrário deste pobre e inconformado leigo no assunto, estava fazendo aquilo para o que a humanidade realmente nasce, aquilo que dá sentido à vida. Houve até um sábado em que, às oito da manhã, eu ainda na cama olhando para o teto, o aiaiai se revelou em toda a sua força — e eu estava no quarto fechado, ainda com o ar-condicionado ligado. O aiaiai já tinha tomado conta do condomínio na noite anterior, e lá estava o rapaz novamente. “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”. Ele era bom, pelo menos disposto. Ou tinha lá suas razões: “Namorada nova”, o despeitado aqui pensou.
O fato é que tudo o que sei do sujeito é que faz saliência com a janela aberta e faz barulho, muito barulho. Sei também que não devo ser o único a ouvi-lo, porque o rapaz é, digamos, muito vocal.
Mas então isso começou a se repetir (nas madrugadas, nunca mais durante a manhã). De engraçado, o aiaiai passou a ser tedioso. Porque só então percebi uma coisa importante, tão importante que não entendo como não tinha notado antes.
Eu não ouvia a moça.
Havia algo errado. Embates amorosos devem ser acompanhados de gemidos mútuos — mas os dele são dispensáveis, enquanto os dela são a razão mesmo de viver. É simples assim. Alguns conseguem isso com esforço; outros, mais abençoados por Deus e pela atenção, obtêm melhores resultados.
No entanto, ali só quem se divertia era ele. Talvez não houvesse mulher. Talvez o sujeito gritasse assim porque estava sendo servido por um rapaz guapo e musculoso. Talvez fosse o amante do sexo solitário mais ruidoso de que se teve notícia. De qualquer forma, eu já tinha desistido de entender. Já começava a achar que o meu vizinho escandaloso tinha um caso com uma boneca inflável.
Até que, numa dessas madrugadas, eu a ouvi.
Estava na janela da sala fumando o último cigarro do dia, olhando para a lua — profética, a lua estava em seu quarto minguante. Uns sons vieram do andar de cima. Não era o escandaloso, não ainda. Pelo contrário, eram os sons mais bonitos que um homem pode ouvir, os ais e uhns de uma mulher. Ela se empolgava um pouco. Dizia palavrinhas de mulher que trepa mal: “Ai, amor, ui, meu bem, assim”. Palavras maravilhosas, certamente, boas de se ouvir em tantas horas, mas que não se sustentam diante da análise fria daqueles que não estão entre suas pernas. Eram quase burocráticas: indicavam menos a amante feliz do que a mulher que se esforça em agradar o homem que ama. Ela gemia baixinho, e eu só ouvia porque sua janela estava aberta e eu estava debruçado na minha, pensando na morte da bezerra.
Exatamente nessa hora, o momento maravilhoso em que os gemidos dela aumentavam de intensidade, e se sentia mais verdade neles, a paz da noite foi cortada pelo som tenebroso de sempre: “ai. Ai. AI. AAI. AAAII!!! Aaaaaaaaaai…”
E fui tomado por uma vergonha imensurável, que me fez baixar os olhos e me esconder em meu quarto. Eu tinha percebido o que acontecia, e a visão que se descortinava em minha mente era tenebrosa.
A mulher até que se divertia. Mas quando o sujeito percebia que ela estava gostando, se soltava. Julgava encerrado o seu dever e corria enlouquecido em busca do seu aiaiai, e a mulher embaixo dele — embaixo, com certeza — que se virasse como podia.
O resultado, em poucos segundos, era um sujeito feliz, satisfeito, provavelmente deitado na cama olhando para o outro lado, e uma mulher decepcionada, talvez ainda se contorcendo por ter sido interrompida em sua caminhada, talvez com a sensação de que lhe prometeram o paraíso e tudo o que recebeu foi São João do Meriti.
Não é possível explicar o arrependimento que tomou conta de mim por ter me mudado para aquele condomínio. De repente, eu tinha passado a morar no cafofo da humilhação. Esse era o meu vizinho, e o seu opróbrio me amaldiçoava também. “Você mora no condomínio tal?”, alguém me perguntaria, e eu desviaria os olhos e responderia “Não, eu moro com dois travestis, um traficante, uma prostituta de 20 reais, um alcagüete da polícia viciado em crack e um torcedor do Botafogo num barraco de 10 metros quadrados no Morro do Péla Porco”. “Não, ali quem mora é o meu irmão. É a ovelha negra da família, ele bebe, coitado, olha onde ele foi parar.” Eu não hesitaria em mentir para salvar o que restava de minha honra: honra para a qual nunca dei nada, que nunca valeu um tostão furado e que eu trocaria por qualquer bunda grande com dois peitos em cima, mas para a qual há limites abaixo dos quais não se pode descer.
Pensei até em andar com um coração amarelo no peito, sinal de minha vergonha, e uma confissão de que eu deveria ser desprezado por todos porque morava no mesmo condomínio que o sujeito do aiaiai.
A vergonha, no entanto, não eliminava a revolta. Aquele sujeito era uma vergonha para a classe e para os homens que se julgam dignos desse nome. Houvesse uma assembléia dos homens machos do sexo masculino e ele seria execrado publicamente, e seu corpo coberto com piche e penas, e nós o faríamos desfilar pela rua em sinal de execração. E espalharíamos as fofocas mais vis, e diríamos que o aiaiai desvairado do sujeito se devia ao fato de ele estar mordendo fronha, mas diríamos isso apenas por picuinha: porque sabemos que bastaria dizer a alguém o que esse abominável faz — em voz muito baixa, como se dizia há 50 anos que fulana deu um mau passo — para que as pessoas fizessem expressões horrorizadas e fingissem não acreditar nisso. “Não! Jura?”
Eu já estava olhando os classificados em busca de um novo lugar para morar, um lugar que não me envergonhasse e cuja mácula não fosse transferida a mim por associação. “Coitado… Mora tão mal… No prédio do Doente do Aiaiai…” Eu sabia exatamente como se sentia, como o favelado que não quer ser confundido com um traficante.
Mas bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.
Um outro sábado. Três da manhã. Eu chegava em casa e estava tirando os sapatos no escritório. Como está virado para outro lado, de lá não se costuma ouvir o Doente do Aiaiai.
E então eu a ouvi.
Era outra mulher, em outro apartamento. Mora em um apartamento abaixo de mim. E a sua existência redime a nossa.
O que eu posso dizer — porque dessas coisas não guardo os detalhes, nunca guardo, sei apenas da sensação que nunca se repete, que nunca é a mesma — é que a moça estava sendo bem cuidada. Muito bem cuidada. E deixava claro, a todos os que quisessem ouvir, que a sua noite estava terminando da melhor forma que se podia imaginar, um final estendido em meio a pequenos gritos e muitos gemidos. Ali estava uma mulher feliz, e isso, por um vício terrível de personalidade (ou mero condicionamento pavloviano), me deixava também feliz.
Até aí nada demais. Moças se divertindo são relativamente comuns. Lembro de outro prédio em que morei, no Ceará, onde de vez em quando se ouvia uma mulher fazendo “Ungh! Ungh! Ungh!”, e se sabia exatamente qual o ritmo seguido pelo seu amado. Nada demais, eu já disse. Mas havia um detalhe que não podia passar despercebido, e Deus está nos detalhes como dizia o Van der Rohe.
Só se ouvia a moça.
A redenção, afinal. Depois de meses ouvindo eventualmente um sujeito escandaloso e ruim de cama dar o seu showzinho mambembe e vergonhoso, a honra do meu prédio era resgatada por um rapaz cujo nome e semblante desconheço, mas que reconheço como irmão espiritual.
Porque em vez de gritar aiaiai, como se estivessem enfiando uma trolha sarracena no seu rabo, o sujeito preferia fazer o seu trabalho comme il faut. Um trabalhador honesto, dedicado. Um homem.
E nesse sábado eu fui dormir feliz, porque a vergonha que maculava o meu edifício tinha sido lavada em suor e em saliva.
Republicado em 12 de agosto de 2010
Coisas que me deixam muito, muito feliz
Quando me mandam e-mails me chamando de “pretencioso”.
Pela ordem
Não consigo entender por que tanta gente está se metendo com o tal do Second Life.
Eu mal estou conseguindo dar conta da primeira.
Rafael, Orlando, Mary e Rolando
Luiz Pereira Carlos, em comentário a um post qualquer:
Quem é Rafael Galvão(?). Quantos anos tem Rafael Galvão (?).
Desculpe a curiosidade, mas não é em vão, há fortes motivos para saber com quem estou falando, se com Orlando ou com Mery.
Fico imaginando como seriam as coisas se eu fosse Orlando. Não sei quem é o dito, mas digamos que seja um sujeito legal. Seria bom ser outra pessoa, uma boa pessoa. O curioso é que, por alguma razão, mais que algum Orlando que eu eventualmente conheça o nome me lembra outro, quase um anagrama: Rolando, aquele que demorou para tocar sua corneta e se ferrou num desfiladeiro qualquer. Rolando tinha heroísmo escrito em sua testa. Eu, que no máximo exibiria um “otário” carimbado na minha, só me beneficiaria com essa troca.
Infelizmente eu não seria um bom Rolando, porque assim que os bascos chegassem eu tocaria a trombeta, gritaria, assoviaria, me ajoelharia pedindo para não me matarem que eu tinha mulher e sete filhos e uma avó tetraplégica para criar, sairia correndo, faria o diabo com um medo danado de morrer. Ao contrário do conde de Carlos Magno, eu dificilmente entraria nos livros de história, a não ser como “Rolando, o Frouxo de Roncevaux”.
Se eu fosse Mery, ah, antes eu teria que dizer que sempre achei que se fosse mulher eu seria extremamente cachorra. Daquelas bem vadias — ou bem livres, de acordo com a sua visão das coisas. Se eu fosse Mery eu seria dadeira, como dizia Caymmi. Claro que o Luiz, cioso da honra e da reputação da amiga cujo paradeiro procura, vai dizer que não, que Mery não é nada disso, é moça fina e direita. E nesse caso eu não quero ser a moça. Não tem graça ser mulher se não for para dar com a mão na cabeça para não perder o juízo — e melhor, sentir o juízo escorrendo entre os dedos. Mas se Mery for tudo isso que eu seria se Mery eu fosse, se for capaz de alegrar com candura as noites de tantos, por favor, Luiz, me dê o telefone dela.
Mas aí lembrei que o nome Orlando evoca outra pessoa: o Orlando de Virginia Woolf. Nesse caso, Luiz, acho que você está me sacaneando. Eis as duas opções que tenho: uma mulher e um homem que se transforma em mulher. Você não me deu muitas alternativas, Luiz. E eu sou só um paraíba estranho a essas sofisticações todas.
De qualquer forma não sou Orlando e não sou Mery, sou só Rafael. Não é grande coisa, eu sei, mas foi tudo o que consegui ser — confesso que com pouco esforço porque sou baiano e esse negócio de tentar melhorar pode cansar. Coloque a culpa na genética, no ambiente pernicioso em que fui criado, no excessivo apego a coisas simples como mulheres com a bunda grande. Coloque a culpa no que quiser, não importa. Eu vou continuar sendo só Rafael.
Por isso, tudo o que posso dizer é que a pergunta realmente pertinente aí é: quem é Rafael Galvão.
E isso, meu amigo, mesmo depois de tantos e tantos anos de vida, eu ainda não sei.
Republicado em 10 de agosto de 2010
Rafael Galvão, o imbecível
Deve haver algo de profundamente interessante em mim.
Comentário bloqueado a este post, de autoria de uma moça que se intitula, simplesmente, defensora. Não fosse o palavreado e eu imaginaria uma das boas senhoras de Copacabana, acompanhada de seu indefectível Yorkshire e sua lingüinha mágica, revoltada contra mim:
Cara,vc realmente é um imbecível,vou te chutar e ver nao sente dor…caras como vc nao merecem viver…merecem o fim da vida,pois kem ker dar fim a vida de um animal q nao lhe fez nd é pq nao tem amor a vida…deve ser um carente de pai e mae..por isso essa revolta contra um ser indefeso!!
E eu não vou falar nada, porque não tem como escrever algo melhor que isso, não tem. Se eu tentasse, eu seria redículo.
When I'm 64
Segundo o Deathclock, do jeito que levo a vida eu morro no dia 2 de dezembro de 2035.
Na provecta idade de 64 anos.
Algo me diz que o site foi feito para assustar os incautos. Para mostrar que otários que fazem o que eu faço morrem cedo. Aos 64 anos.
Eu tenho uma péssima notícia para o pessoal, certamente bem-intencionado e repleto de bons sentimentos de temperança e moderação, que criou o Deathclock: infelizmente, ele não me assustou. Em vez disso, o efeito foi o contrário do desejado. Eu estou feliz e mais tranqüilo.
Porque nunca imaginei chegar aos 64 anos. Cá entre nós, 64 anos é mais ou menos a média de expectativa de vida de um brasileiro normal. E eu nunca fui um brasileiro normal.
Sempre imaginei que já tinha passado da garantia e que andava devendo uns três ou quatro anos, por baixo. Assim, se conseguir chegar aos 64 anos eu já me dou por feliz, por muito feliz.
E essa felicidade aumenta quando vejo os segundos que tenho à minha disposição.
No momento exato em que escrevo isso, ainda tenho pela frente 906.879.082 segundos de vida.
São segundos demais. Eu bem sei o que se pode fazer em um segundo. É um infinito de coisas. Coisas demais para serem sequer imaginadas. Em um segundo, a gente pode viver o que não viveu em uma vida inteira. Em um segundo duas bocas se tocam, em um segundo uma palavra é dita, em um segundo se nasce e se morre.
E eu tenho quase um bilhão desses pela frente.
Graças ao Deathclock, agora sei que posso continuar bebendo, fumando, perdendo noite, deixando meu suor cair sobre o seu rosto, fazendo raiva aos outros e comendo bobagem, porque ainda assim vou viver até me tornar um velhinho de 64 anos.
Ao Deathclock, portanto, o meu muito obrigado. Vou sair agora para o Ferreiro para beber, e fumar o meu cigarro, e comer minhas porcarias, e tudo isso será feito em sua homenagem.