Às flores banais da primavera

Minha CPU se afogou.

Cansou de esperar em vão que eu lhe dissesse “eu sou a senhora Norman Maine”, frase que me horroriza à mera idéia, por eu não ter nenhuma semelhança com a Judy Garland e por ela, cá entre nós, não ser nenhum ator decadente e alcoólatra.

Ela sequer despiu suas roupas e nadou mar adentro; simplesmente não resistiu a uma piscina da Polly Pocket quebrada sobre o teclado, e gorgolejando, vertendo água pelo plug de rede, despediu-se em silêncio do mundo.

Foi um belo casamento, repleto de ampr de parte a parte. Casamentos entre homens e computadores raramente são bem sucedidos, e terminam amargamente depois de dois ou três anos de incompreensões mútuas, brigas intermináveis e rancores acumulados. Terminam em separações há muito aguardadas, em que o homem não olha para trás e só consegue pensar em sua nova paixão, a esperança vencendo a experiência, apenas para enfrentar um novo período de incompreensões mútuas, brigas intermináveis e rancores acumulados.

Mas não este. Durante cinco anos e três Estados, ali esteve ela, sempre pronta, a postos na mochila pendurada em minhas costas ou no meu colo em tantos aeroportos, eternamente dócil como as piores mulheres. Ela tinha uma beleza singular, negra como uma rainha etíope, esbelta como uma plebéia somali, polegada e meia de altura. O tempo passou, claro, que o tempo não se importa com casos de amor. E fez com que sua beleza esmaecesse, mas só esmaecesse, porque nem mesmo o tempo vence a verdade, e aquela estátua achada em Milo não ficou menos bela sem braços. E como a estátua, em vez de velha vitalina e amarga, ela se tornou um poema de Baudelaire; e era com orgulho que eu poderia dizer, se poeta fosse, Je préfère tes fruits, Automne, aux fleurs banales du Printemps! Non! tu n’es jamais monotone!, mas não disse, nunca disse, e mesmo isso jamais me foi cobrado.

Mesmo assim, mesmo empalidecendo diante de beldades mais novas com o ardor ingênuo da juventude — aquelas que ainda não sabem que em dois anos também serão velhas de seios flácidos, já sem fôlego para aquilo que antes faziam com um osrriso desdenhoso nos lábios — mesmo assim ela continuava ali. Cinco anos.

Agora ela se vai, para sempre. Este texto está sendo escrito à mão, hábito que eu julgava perdido, porque parece indigno falar dela correndo os dedos pelo corpo de outra. Não que ela se importasse, como nunca se importou com eventuais escapadelas por teclados grandes e exóticos, por monitores obesos de segunda; não se importava sequer com as pequenas traições com maçãs brancas e azedas. Ela não se importaria, eu sei, ela que sempre soube a verdade; mas agora, para uma última despedida, não poderia haver nada mais apropriado. Uma caneta e uma folha de papel em branco, como no começo dos tempos.

Talvez tenha sido melhor assim. Um dia tudo aquilo ia acabar, eu sabia, ela sabia, e esse dia estava cada vez mais próximo. Morrendo assim, inesperada e repentinamente, ela evitou a vergonha de ser simplesmente posta de lado, como tantas e tantas antes dela. Sem essa última humilhação, sua lembrança se mantém indelével. Como Greta Garbo dizendo “I want to be left alone“, sem o seu sotaque mas com as mesmas sobrancelhas arqueadas em profundo esnobismo, ela sai de cena com sua dignidade intacta, grande dama que foi e que agora, eaté o fim dos tempos, continuará sendo.

Jaguar

Eu não gosto de dirigir.

Carros não fazem, nunca fizeram parte dos meus sonhos de consumo. Um belo cavalo árabe faria; uma Juliana Paes também. Mas carros, não. O carro ideal, para mim, é aquele que vem com motorista. Do tipo escravo, que não dorme nunca, que espera por você na garagem do motel, do tipo que só olha para a frente e nunca ouve o que você diz.

Não há conversa mais chata, para mim, do que conversa sobre motores. Não há maneira mais fácil de me enrolar do que sendo um mecânico. Ferraris, Mercedes, Porsches? Para mim é tudo a mesma coisa e têm exatamente o mesmo valor. Automóveis servem apenas para me levar de um lugar a outro; e se eu pudesse eu os trocava por um avião.

Mas para tudo há uma exceção.

Há alguns anos. Fortaleza. Eu tinha acabado de comprar um Vectra, aquele tipo de carro que deixa as pessoas achando que você tem complexo de pau pequeno. Como era o carro mais caro que eu podia comprar, eu estava com aquele orgulho besta dos que acabam de comprar algo que acham bom.

E então, do meu lado, em um engarrafamento em frente ao Parque do Cocó, ele parou.

Eu só tive tempo de olhar para o lado. Lá estava ele, um Jaguar novinho, verde-musgo. O meu queixo caiu, e bateu no pescoço, e a baba que escorreu para o meu colo tinha um gosto amargo de inveja.

As pessoas que sonham com uma Ferrari deviam parar e entender a elegância inglesa e fleumática de um Jaguar. Não é o motor, não é a mecânica, e é isso que faz daquele o único carro de que eu tenho inveja: é a elegância, o aplomb, o reconhecimento de que, como Marlene Dietrich em crônica de Vinícius, um valor mais alto se alevanta.

Sempre que lembro disso lembro também que a única coisa que eu queria fazer na hora era sair do carro, bater a porta e deixar o coitado lá, atrapalhando o trânsito esquecido de mim, porque algumas coisas são uma afronta imperdoável.

On the catwalk

Rafael diz:
Mas eu vou começar a fazer um blog pra pegar mulher.

Rafael diz:
Vou começar a escrever uns textos leves, românticos.

Rafael diz:
Aí intercalo com qualquer bosta sobre literatura, pra parecer inteligente.

Inagaki diz:
Taí. Vc tem que fazer isso mesmo, um BLOGPRACUMÊMULÉ.

Rafael diz:
“Blog de um homem sensível, exigente e tranquilo, que só pensa em dar um mundo melhor pra seus filhos”.

Rafael diz:
Que tal isso?

Inagaki diz:
Pô cara, desse jeito EU vou querer dar pra você. 🙂

Rafael diz:
Ah, aí vai ter que entrar na fila.

Inagaki diz:
Gostesudo! 🙂

Rafael diz:
I’m too sexy for my shirt.

Canções de amor e ódio

Rafael diz:
Que nada.

Rafael diz:
Se eu morresse hoje, muita gente ia dizer “O filho da puta morreu!”

Carol diz:
“Até que enfim!”

Rafael diz:
É.

Carol diz:
Mas antes

Carol diz:
Assina um papel deixando os seus livros pra mim.

Carol diz:
Senão eu vou te xingar.

Rafael diz:
Ué, pode xingar.

Rafael diz:
Você acha mesmo que eu vou ouvir debaixo de sete palmos?

Carol diz:
Eu não vou deixar a tua alma em paz

Carol diz:
Você acha que vela e galinha preta servem pra quê?

Rafael diz:
Minha alma vai estar muito ocupada xingando o filho da puta do médico que me deixou morrer.

(…)

Carol diz:
Nós temos mesmo umas conversas super produtivas…

Rafael diz:
É.

Rafael diz:
Se os sem-terra me descobrem, me desapropriam.

***

Já me elogiaram e já me xingaram. Já falaram que sou quase-lindo e que sou muito feio. Já se apaixonaram pela minha boca e já me odiaram pelos meus olhos.

Mas nunca, em todas essas décadas de vidinha mais ou menos, alguém tinha se apaixonado pelas minhas gônadas a ponto de fazer poeminhas para elas.

Histórias

O tempo nunca passa de repente, passa com a regularidade que faz as noites sucederem os dias, a gente é que não percebe. As pessoas crescem aos poucos.

Dizem que quando se é adolescente, quando se tem 15 anos, você se acha imortal. Não é bem assim, nunca foi: você só considera algumas coisas tão distantes que não consegue pensar nelas, estão longe de você, não fazem parte do seu universo. E quando por acaso acontece um acidente, é só isso, um acidente.

Então você cresce, e quem cresceu antes de você envelhece. Também aos poucos, ninguém presta atenção a uma nova ruga em um rosto conhecido, a um novo fio de cabelo branco.

Sem que você perceba, sua imortalidade acaba. Não é na primeira morte de um amigo. Não é na segunda. Mas chega uma hora — é isso que vem de repente — em que você se vira para trás e a vida lhe aparece como uma seqüência de retratos de festa de reunião de turma, em que as pessoas que envelheceram antes de você vão sumindo aos poucos, e de cinqüenta restam trinta, e depois vinte, e então você olha para os quatro ou cinco miseráveis que sobraram e sabe que não foram esquecidos pelo tempo, e se pergunta quem vai ser o próximo.

A cada pessoa que some da foto é como se você fosse desaparecendo também, um pouco de cada vez. Porque você não é muito mais que isso, não é mais que as lembranças que deixa nas pessoas, os casos que contam de você vinte, trinta anos depois. É por isso que cada figura que desaparece representa um pedaço do seu próprio desaparecimento: porque elas levam consigo histórias suas, que agora não serão mais contadas e que sobrevivem apenas em você.

Um velório é isso, uma última celebração. É uma conversa em voz baixa em que as lembranças de alguém são evocadas coletivamente pela última vez, e isso acontece diante de círios, de velas, de flores que cheiram a morbidez, objetos que sequer pertencem ao cadáver deitado diante deles; talvez nem a isso, agora, ele tenha direito.

Isso acontece diante de jovens que ainda tentam entender o que é isso, que às vezes riem sob luzes mortiças porque, por sábios que pensem ser, ainda são inocentes, ainda não conseguem entender de verdade o que vêem, mesmo que uma sensação nova e ruim tenha se entranhado em suas almas. E acontece diante de velhos que já viram a mesma cena tantas vezes, e naquele momento talvez disfarcem o medo sob uma expressão de resignação; então você se pergunta se aqueles olhares vazios e aquelas vozes baixas e respeitosas são medo de um futuro cada vez mais próximo ou simples tristeza pelo que sabem que começou a se perder.

Depois as histórias se calarão, viverão por breves momentos quando um amigo encontrar o outro, ou em lembranças inventadas de netos que ainda não nasceram, e finalmente deixarão de existir, de uma vez por todas, e nada fará com que elas voltem.

Mas isso você pensa em casa, sozinho, mesmo depois de jurar a si mesmo nunca mais fumar na cama. Antes você não pensa isso, não pensa nada. Porque quando as figuras da sua foto de 20 anos atrás começam a sumir, fica apenas uma sensação de vazio.

Holística

Ateu, zoófobo, troglodita, direitista, ignorante, guru, macho alfa, quase-lindo, tio Sukita, paraíba, viado, medíocre, putanheiro, mineiro, maria-vai-com-as-outras, burro, americanófilo, gênio, gordo, pornógrafo, broxa, doce, chato, teimoso, bocó, amassadinho, velho, punheteiro, ditador, feio, donzelão, xenófobo, misógino, culto, carioca, grosso, esquerdista, indecente.

E pensar que houve tempo em que tudo o que diziam é que eu tinha cara de menino mimado criado por vó.

Respondendo ao Marmota depois de tanto tempo

Aposto que o Marmota já tinha esquecido disso.

1. Melhores filmes dos últimos anos:
Pulp Fiction, “Sexto Sentido”, “Amnésia”, Mulholland Drive, Sin City.

2. Filme “da vida”:
“Casablanca”. Embora eu ache que não era esse o sentido da pergunta.

3. Atores com “pujança”:
Se pujança for talento, Brando, sempre. Qualquer pessoa que sequer pense em não lhe dar o topo deveria assistir a “O Último Tango em Paris” e “O Poderoso Chefão”. Ambos foram feitos na mesma época. É preciso ser sobre-humano para fazer aquilo, ser duas pessoas tão diferentes, e todas as duas tão gigantescas. Agora, se pujança for pujança, Arnold Schwarzenegger, Sylvester Stallone e Lou Ferrigno, que eu sou um velhinho saudoso dos anos 70.

4. Atrizes de mão cheia:
Fernanda Montenegro. O tempo passa e eu vou ficando cada vez mais impressionado com o talento monstruoso da mulher. Mas, lá no fundo, para mim atriz de mão cheia é a Cicciolina fazendo um favor para o John Holmes, que Deus o tenha em bom lugar.

5. Meu musical:
Como filme, “Cantando na Chuva”. Como música, um filme ruim chamado The Glenn Miller Story. Mas eu gosto tanto de Grease.

6. Realizadores com R grande:
Billy Wilder. Poucos diretores tiveram uma média tão alta quanto a dele (Bia, seu mané, aposto que você pensou que eu ia responder Frank Capra).