O dia em que Ogun depôs suas armas

E então eu serei exilado.

O exílio é uma coisa terrível, mas se fosse em Paris eu aceitaria com felicidade de menino. Deve ser muito bom ser exilado em Paris. Sentar em um café e reclamar da conjuntura política internacional. Olhar uns livros na Shakespeare & Co. e falar em como a liberdade foi suprimida no Brasil, enquanto espero o fantasma bêbado de Fitzgerald. Encostar-me em um murinho do Louvre só para olhar as multidões de turistas esperando como gado sua vez de entrar no museu, felizes diante de filas que se recusariam a enfrentar em seus próprios países, e lembrar que o meu povo só tem medialunas para comer.

Eu seria um bom exilado, se me permitem a falta de modéstia. E se alguém me visse flanando pela Avenue d’Iéna, em um trenchcoat claro de cashmere, o Herald Tribune debaixo do braço, esse alguém poderia me parar e poderia falar do Brasil, falar de como cucarachos insidiosos tomaram conta do melhor país do mundo, e eu balançaria a cabeça dizendo sim, sim, temos que retomar o país, e daria cinco minutos ao meu companheiro de infortúnio, e me lamentaria também, e lhe prometeria um no pasarán qualquer, e diria que estava atrasado e voltaria a descer a Iéna em direção ao Trocadero.

O problema é que não se pode, nunca, confiar em trotsquistas portenhos barbudinhos.

Eles não me mandariam para Paris; não, eles me mandariam para um inferno qualquer, algo da Bolívia para baixo. Trotsquistas portenhos barbudinhos são uns miseráveis. Talvez me mandassem para o Burundi. Eu não sei onde fica o Burundi. Eu não quero sequer saber onde fica o Burundi. Eles me mandariam para lá e fingiriam que eu não existo, e em pouco tempo teriam razão.

Seria de lá, do meu exílio, que eu organizaria a resistência.

Aqui cabe uma confissão: a minha vocação para a guerra é ainda menor que a vocação para a matemática. Eu sou baiano. Eu gosto é de olhar para ela com cara de bobo, sentindo seus seios de encontro ao meu peito, enquanto ela faz cafuné em mim e diz que não compreende o meu olhar. E por isso o meu papel na revolução seria apenas o de guru, de homem a ser ouvido porém não instado à ação. Somente assim eu organizaria a volta de tantos patriotas, e menos eu não aceitaria.

Primeiro eu teria que definir uma estratégia. Eu sei como.

A diferença entre brasileiros e portenhos é a diferença entre o samba e o tango. O tango é preliminares, apenas, é um cafetão e sua respectiva, é aquele vai-e-vem infinito de um casal neurótico e excessivamente dramático tentando resolver seus problemas em passos que querem sincronizados. O tango é belo mas é falso, e não passa de um vagabundo e uma mulher de malandro, daquelas que nasceram para levar porrada, tentando descolar um troco de turistas desavisados.

O samba, não. O samba é o requebrado, é a felicidade em simplesmente ser, é uma mulata da Saúde com o cabelo trançado mexendo a cintura enquanto olha sobre o ombro para você, com um olhar que promete o que não deve ser prometido, nunca, nunca. O samba existe em si mesmo, e não pede mais que isso.

É essa a diferença entre brasileiros e portenhos, e por não entenderem isso eles nos chamam de macaquitos, e olham para suas louras bonitas mas sem remelexo, bulímicas que não sabem morder e não sabem apertar suas costas, e dizem que as jaboticabas estão verdes.

Por isso os portenhos podem sonhar, mas não conseguirão passar das ladeiras da Bahia. Porque jamais entenderiam que o cheiro do dendê está em nossas almas, que não podemos nos contentar com alfajores, e que isso é algo que não pode mais ser retirado de nós.

Argentinos não entenderiam o vatapá. Não compreenderiam por que passamos tantas e tantas horas fazendo um prato que julgariam tão complicado. Não entenderiam que o vatapá não é só alimento, como é o seu churrasco; o vatapá é um ato de amor, uma oferenda de devoção e fé feita a Iemanjá por todos por seus filhos, que também escolhem um dia claro de verão para lhe oferecer ainda mais; não compreenderiam que Iemanjá é uma deusa de amor que não pede mais que perfumes e flores para ficar bonita diante de seu amado.

Orgulhosos de seus sobrenomes ingleses, eles não saberiam o que fazer com os milhões de Santos, Silva e Jesus espalhados na geral do Maracanã, e pensariam que poderiam tomar conta do lugar que viu Zico jogar como se fosse uma Bombonera qualquer, e conspurcar o gramado santo com seus rolos de papel higiênico. Não conseguiriam. Talvez descobrissem, então, que não é o fanatismo que faz um grande time, é a verdade e a ginga nos pés escalavrados do seu povo, é um desdentado com as mãos na cabeça diante de um gol perdido.

Talvez. Porque esses argentinos são tão europeus.

Essa seria a minha estratégia. É a não-estratégia de um baiano, com os séculos de sabedoria que escravos carregando cadeiras de arruar Ladeira da Montanha acima acumularam. Ela existe pela certeza de que portenhos jamais entenderiam a maresia do Porto da Barra, nem aquilo que faz um stalinista baiano em Sergipe não conceber um expurgo, se é tão mais fácil pedir para passar lá em casa e não dar o endereço. Não entenderiam que, em vez de unificar todas as mulheres em azul maoísta, stalinistas baianos em Sergipe estariam preocupados apenas com a sua, com a penugem loura em volta do seu umbigo, com o jeito como ela levanta seus cabelos para que ele lhe morda a nuca.

Não, não. Por isso essa minha não-estratégia formulada há tantas eras no canto dos encanadores do relógio de São Pedro. Nós não precisamos de guerra, e Ogun foi comer uma buchada e agora dorme no regaço de Oxum. Ele sabe que, para nós, morte digna e honrada é a de Emiliano nos braços de Teresa Batista, e não brigando com estrangeiros que jamais saberiam o que fazer conosco. Diante dos argentinos, Ogun depõe sua espada. Ele não precisa dela. Só precisa dar tempo ao tempo, porque mesmo que os portenhos sonhem em ter tudo isto, nós sabemos que eles nunca conseguirão entender o que somos, que voltarão assustados para os frios d’além Prata.

E então bandeiras rubro-negras tremularão sobre o país, como tremularam um dia sobre Cuba quando a esperança e o sonho de uma liberdade há muito devida alegraram o coração dos cubanos.

Os filhos de Caim

Scrap deixado no meu orkut:

Fernanda: Querido amigo Rafael, como membro da Sociedade Brasileira de Urologia recebi as suas dúvidas, enviadas por E-mail, e é um prazer responde-lo:

1)Sim, 7 cm é considerado pequeno. Sugerimos processo cirúrgico.

2)Não, não é comum a camisinha ficar larga. Não existe tamanho PP, o tamanho é único.

3)Ainda que 7cm seja um tamanho muito pequeno, é possível a/o parceira(o) chegar ao orgasmo durante a relação sexual, portanto, se isso não ocorre nas suas relações, trata-se de uma grande falta de competência por sua parte.

4)Não, o senhor não pode fazer o exame do toque, é apenas para pessoas acima de 50 anos. Por favor não insista.

Obrigado pelo contato e sucesso!!!

Resposta necessária para evitar um fratricídio do qual eu seria certamente absolvido:

Rafael: Cara amiga Fernanda:

Só não te chamo de fiadaputa por razões muito óbvias.

Obrigado pela sacanagem, e vá à merda. 🙂

Diário do Rio

Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2005

Querido Diário,

Eu prometi que vinha, então eu vim. Os últimos dois dias foram difíceis, tive que fazer coisas que não fiz em duas semanas, e dormi apenas umas 3 ou 4 horas ao todo. Mas eu tinha que vir. Tinha que ver o Alex, o Bia, a Carol, o Mauro, a Tata, e sabia que ia ver também mais um montão de gente. O sacana do Idelber disse que não vinha, mas quem sabe ele não aparece.

Ninguém que tenha amor à própria vida deveria viajar num vôo que sai às 6 da manhã de qualquer lugar. Ainda mais se esse avião é da Gol e seus assentos não reclinam direito. Tente dormir assim, tente. Você vai chegar como eu cheguei: com óculos escuros não por causa da luz, mas como medida de proteção porque qualquer pessoa que vir seus olhos vermelhos vai achar que você é maconheiro e está viajandão.

A Tata estava lá, me esperando. É por isso que eu amo a Tata. Porque ela é gostosa, também, mas que ninguém conte isso a ela. Na verdade, o escroto do Alex também deveria estar lá. O sacana estava atrasado. Encarei numa boa. “Chegue atrasado a Tulane e perca sua bolsa, seu puto”, foi a praga que roguei em silêncio. Numa boa.

Mas o amor sempre vence, e tudo aquilo tinha sido melhor para mim, de qualquer forma. Fiquei conversando a Tata. Fazia uns dois anos que eu não via a moça. Ela está muito, muito, muito mais bonita do que da última vez. Eu já não queria que o Alex chegasse.

Claro, ele chegou. Tinha que chegar para atrapalhar tudo. Foi direto à Vigilância Sanitária, ou seja lá que nome tem aquilo, para conseguir o “visto” do Oliver, aquele cachorro meio bicha mas com nome de viado inteiro que o Alex tem. Desperdício de dinheiro e de tempo, eu pensei. Tão mais fácil simplesmente estrangular aquele poodle.

Cada um tem o que merece. Enquanto o Alex se virava com o funcionário responsável pelo controle de transporte de drogas pesadas como gatos e cachorros, eu deitava no colo da Tata. O colo da Tata é uma maravilha. Eu cá, no colo da Tata, e o Alex lá, resolvendo problemas caninos.

Mas o colo ainda não é tudo. Eu ganhei cafuné também. Cafuné da Tata. E o Alex lá, conversando com a vigilância sanitária.

Já não havia ódio no meu coração.

Quando o Alex resolveu os problemas do poodle pederasta foi levar a Tata no Globo, e parou comigo num boteco da Voluntários da Pátria para conversa fiada.

É impressionante como continuamos discordando de tudo. Só concordamos com o fato de que Rubem Fonseca é hoje um escritor finado, mas discordamos quanto a “Lucia McCartney”. Ele não acha essas coisas todas, eu acho o melhor livro de contos (não coletânea; livro, mesmo, pensado assim) da literatura brasileira. Duvido que um dos dois tenha razão.

O Alex se encheu de café. Ele bebe mais café do que eu bebo coca-cola. Nunca vi alguém beber tanto café sem ser numa campanha eleitoral. A conversa ia bem, até que de repente alguém ligou e ele me dispensou sumariamente. Pelo pouco que consegui ouvir do que vazava do celular, era uma voz feminina falando em marcas. Nunca entendi o que isso queria dizer, mas o sorriso beatífico do Alex denunciava algumas coisas.

Fui para o apartamento onde ficaria, certo de que finalmente poderia descansar antes de ir ao encontro de despedida do Alex.

Tentei dormir, juro que tentei. Tomei meu banho e deitei na cama, pronto para umas duas horas de sono, quase tanto quanto tinha tido nos últimos dias.

Doce ilusão, porém efêmera. Primeiro me liga um. Depois outro. Acabei cochilando por meia hora, mais que insuficiente.

Às quatro o despertador tocou, levantei, tomei outro banho e me mandei para o metrô. Parei no Largo da Carioca, porque no caminho de volta para a Cinelândia queria passar num sebo do Avenida Central, velho amigo de tempos idos. Tão velho que está fechando.

Quando cheguei ao Amarelinho procurei a mesa com as tais rosas amarelas que o Alex disse que ia estar ali. Eu tinha achado muita frescura, mas a festa era de despedida dele, fazer o quê? O cabra gosta de rosas amarelas.

Tínhamos combinado chegar mais cedo. Mas o Alex tinha ido pegar o Bia na rodoviária, não havia ninguém ali. Fiquei rodando feito barata tonta entre as mesas, igual a velho recém-divorciado que vai para os bares à cata de mulher nova, até que o Mauro apareceu.

Eu não conhecia o Mauro pessoalmente. Mas já tinha trocado tantos e-mails com ele que era como se conhecesse. A gente sentou e começou a conversar. Rapaz, eu gostei imediatamente do sujeito.

Mas só gostei, mesmo, porque ele é um cafajeste. Daqueles rodrigueanos. O Mauro tem sete filhos. Naquele momento, os sete bruguelos estavam no Miguel Couto esperando os gêmeos virem à luz. Enquanto isso o Mauro enchia a lata num boteco da Cinelândia. É por isso, e por outras razões, que eu me tornei fã do sujeito.

Finalmente o Alex chegou. Trazia duas malas: o Bia e a mala do Bia. O padawan não tinha vindo.

O Bia vestia uma camiseta vermelha, prova de que a pombagira tinha baixado nele, e calçava uns tênis azuis da Nike que, da última vez que eu vi nos pés de alguém, foi nos de um travesti muito bonitinho chamado Lulu Bomboniére.

Mas o Bia é assim mesmo, Querido Diário. Zen. Quer dizer, ele diz que é zen. Eu descobriria depois que esse zen do Bia sempre vem com outro adjetivo na garupa, mas naquele momento eu só estava fascinado por conhecer meu amigo. Que também estava tão feliz que não parava de me beijar.

O Alex perguntou:

“E o Marcus, não vem?”

“Bicho, o Marcus anda com uns problemas. Sérios, sérios mesmo. Anda enchendo a cara todo dia, um pé na bunda, sabe como é? Todo dia ele amanhece nas sarjetas do Ver-o-Peso, cachorros lambendo sua cara, os moleques lhe jogando pedras…”

Smart?”

“Coitado desse. Nem fale. Foi para Noronha, pirou o cabeção lá. Sabe como é, esse povo de Brasília enlouquece quando vê praia. Começou a falar umas coisas desconexas, tentou provar que Deus existe e entrou num loop infinito. Aí o cabra voltou para Brasília alucinado. Largou o emprego, fundou uma organização terrorista chamada “Movimento de Libertação dos Barnabés”. Eles vão para as repartições federais, jogam sal no cafezinho, rasgam os jornais, peidam em todas as salas e saem correndo.”

“A Lucia Malla?”

“Engolida por um tubarão.”

“E o Baile?”

“Numa orgia há 3 semanas. Não vai parar. Disse que a gente não vale tanto assim. Ele tem razão.”

“Porra, nem o Guto e a Mônica vêm?”

“Ah, depois que começou a fazer pesquisas sociológicas sobre o comportamento dos criminosos nas penitenciárias algo aconteceu com o Guto. Soube daquele roubo ao Banco Central de Fortaleza? Pois é. Ele foi o cabeça. Está no Taiti agora, ele e a Mônica. O Guto agora só anda com uma camiseta escrita ‘Sociologia um caralho’. A Mônica usa outra dizendo ‘Se fui pobre, nem me lembro’. Estão blasés, cagando até na cabeça da Sandra. Quando era pobre a Mônica adorava a Sandra. Agora faz isso. A vida é assim mesmo. Mas disseram que vão voltar pro Salão do Livro em Belzonte, para ver os nativos.”

O Bia então me chamou para ir ao banheiro. Achei estranho o convite, mas fui. Apesar do tênis que usa o Bia tem a maior fama de comedor; dizem que comeu mais de metade de Americana. Eu não tinha o que temer.

Lá dentro o Bia abriu um papelote. Dali saltaram quatro pílulas azuis, em forma de losango, com a marca da Pfizer.

“Quer um, Rafito? Vamos acabar com essas cariocas!”, ele disse naquele sotaque de caipira paulista que, aos poucos, todos íamos absorvendo.

Agradeci, sem jeito, e recusei. O Bia engoliu as quatro, e na saída não viu a porta e quase quebrou o nariz enorme que tem.

Quando voltamos à mesa a Dani estava lá. Foi uma surpresa. Dois anos se passaram e ela continua com os mesmos peitões, querido Diário. Continua também com a mesma recusa boba em dar para mim, porque segundo ela eu fumo e sou um baiano safado. Fiadaputa. Tomara que aqueles peitos caiam.

Logo depois o Nababu chegou. Eu não o conhecia, mas conhecia seu blog, e o considerava um herói por ter tido a coragem de desmistificar uma série de mitos canalhas sobre a paixão da minha vida, a Santa Coca-Cola.

Nababu sentou, tímido, e sacou sua máquina fotográfica. Começou a tirar fotos de tudo. E a cada cinco minutos pedia um novo chope.

O Joselito, do Estraga Filmes, também apareceu. Mas eu não vou falar do sujeito porque senão ele conta o final desse relato, e eu quero é me dar bem aqui. Tenho pela frente uma semana de Rio de Janeiro. Além disso ele é um homem casado, pai de família, e se eu contar as barbaridades que ele fez, os trenzinhos em frente ao Belas Artes, o jeito como subiu na mesa e rodou a gravata, a mulher dele pede o divórcio.

O Bia então começou a falar dos problemas que o seu nome lhe trazia no Rio.

Imagine um carioca gritando “bicha!”. Fica assim: “Bia-cha”. O Bia já estava ficando envergonhado. O que o consolava, e que ele fez questao de nos mostrar sem respeitar nossos pudores, é que pelo menos ele dobra a língua em três partes. Faz uma florzinha. É nojento, e só quem viu sabe o que é, mas deve ser muito útil para uma mulher com três clitóris.

Enquanto eu olhava para a língua tripartida do Bia, a Isabel apareceu. A Isabel tem cara de sueca mandona. Como para mim sueca e alemã é a mesma coisa, a Isabel tem cara de guarda feminina de campo de concentração nazista. Meu tipo, minha tara inconfessável. Mas ela é artista, e todo artista fala umas coisas esquisitas e sempre mete Derrida no meio, e eu não entendi lhufas do que ela falou. Ela falava e eu fazia “hum-hum” e tentava passar uma imagem de inteligente: a gente faz uma cara de quem não está entendendo porra nenhuma e balança a cabeça, assim como se tivesse Parkinson. Não colou. Tenho que ensaiar mais.

Perdi duas horas dando em cima dela. Passava a mão na sua coxa e ela me dava um toco. Passava a mão no seu braço e ela virava a mão no meu nariz. Passava a mão nos seus cabelos e ela derramava um copo de chope em cima de mim. Ainda não tenho certeza, mas algo me diz que a Isabel não foi com a minha cara.

Um zunido de chicote no ar cortou a noite silenciosa da Cinelândia e meu sangue gelou. Vinha esperando um ataque do XXX BBB (Trigésimo Batalhão de Balzacas Bufantes) desde que pusera os pés no Rio. Paraíba que chega ao Rio tem medo de assalto e traficante; eu tenho medo de trintonas mal amadas e mal comidas. Se forem da Congregação Mariana de Astrólogos, então, eu sei que vão fazer comigo o que os traficantes fizeram com o Tim Lopes.

“As balzacas estão me atacando! As balzacas estão me atacando!”, gritei.

Pensei rápido, reuni toda a minha coragem, me joguei embaixo da mesa. Estava preparado para tudo, ali, encolhidinho. Mas saí de lá um minuto depois, envergonhado: não eram as Balzacas Bufantes, era a Ninfeta do Demônio chegando.

A Carol trazia um chicote. Um desses chicotinhos que as pessoas compram em sex-shops, coisa de gente que prefere levar porrada a trepar. A mulher é má. Tão má que o nome do chicote é Febrônio. A Carol batizou o desgraçado depois de ir à exposição dos 80 anos do Globo no Centro Cultural Banco do Brasil. Ela freqüenta esses lugares. Mas só porque o CCBB fica perto de um clube de mulheres onde a cachaça é gratuita às segundas-feiras.

Agora, ela pode ser má lá pras negas dela; o que ela não podia era ser má comigo. Porque eu sou só um paraíba nascido em frente à Baía de Todos os Santos, e essa coisa de chicote não é para mim. O nosso negócio é o amor, é o cafuné e um olhar bobo e feliz entre um beijo e um abraço, de preferência numa rede à beira-mar. Mostrei a ela a maneira como os baianos recriaram a civilização ocidental: para nós, aquele chicote só podia servir como mamãe-sacode em um carnaval qualquer.

É toda uma diferença de filosofia, diria a Tata.

A Carol tinha chegado empolgadinha e com uma conversa esquisita de KY; logo foi subjugada pelo meu charme tosco de paraíba. Certo, algumas coisas ajudaram, como o fato de a minha boca ser muito parecida com a do seu ídolo, o Wando. E por alguma razão ela estava se divertindo com a minha língua em seu umbigo. Olhava para mim como quem olha para um cachorrinho; quase deu tapinhas na minha cabeça. Se eu tivesse algum orgulho próprio me sentiria humilhado por tamanho desprezo. Mas eu sou só um paraíba e o que conta é o resultado.

Ela disse que eu não tinha cara de tio Sukita. Deve ser porque esqueci o suéter que sempre trago pendurado no ombro. Disse que eu pareço ter 18 anos. E você sabe como isso me emputece, Querido Diário. Sabe que isso é um trauma de adolescência, de tantas idas aos cinemas de putaria para ser barrado diante das risadas do porteiro quando eu dizia ter 18 anos e que tinha esquecido a carteira de identidade em casa. É um trauma que carreguei dos 12 aos 18 — mas aí eu já tinha mandado aquele escroto à puta que o pariu porque já tinham inventado o vídeo-cassete e eu não precisava mais daquela merda.

Foi apenas a visão do Febrônio, a postos na mão da Carol, que me impediu de dar uma porrada nas cornos dela.

Os gritos de que o Bruno tinha chegado me chamaram a atenção. Olhei para cima esperando ver um sujeito alto, magro, cabelo cortado à escovinha numa cara meio de CDF. Sei lá a razão, são essas imagens que a gente cria sem quê nem por quê.

Não era nada daquilo. O Bruno era mais ou menos da minha altura, outro pintor de rodapé com 1,65m, com a diferença de ser mais bonito e ter o cabelo comprido. E forte, claro. Se o Bruno fosse feio e tivesse a cara amassada e as orelhas destroçadas eu ia ter certeza de que era lutador de jiu-jitsu. Pitboy, mesmo.

Como ele não tem, a imagem mais próxima que vem à cabeça é a de um viking. Eu posso muito bem ver o sujeito na proa de um barco daqueles, cabelos ao vento, enchendo os ingleses de porrada. Chamaram o Bruno de “doce viking”. Eu não, porque se chamasse assim todo mundo ia ficar em silêncio, ia parar o que estivesse fazendo, ia olhar para mim e ia dizer: “Hummmmm… Esse baiano…” Fiquei na minha. Mas puta que pariu, como o Bruno é gente boa. Perguntei o que signfica Ik Haat, e ele falou que é “Eu Amo” em norueguês. Massa.

Eu conversava com o Bruno quando de repente, não mais que de repente, a Cinelândia se tornou paulista. O Donizetti tinha chegado. Foi a maior surpresa que poderíamos ter. O Doni é super, super gente boa. De repente estava todo mundo mais feliz ali. O Doni chegou sem aviso, ostentando sua tatuagem do Batman.

Mas algo aconteceu entre ele e o Bruno. Algo não clicou, entende? Deve ter sido a viagem, a Dutra, os pedágios. É, foram os pedágios. Sem razão e sem aviso, o Doni tomou o Febrônio as mãos da Carol e correu atrás do Bruno. Todos os homens ali presentes tentaram separá-los, mas só o Alex conseguiu acalmar o Doni. Chegou perto dele e sussurrou algo ao seu ouvido. Não sei o que ele disse. Só notei a cara de pânico do Doni e os seus pés, que se encolheram imediatamente. Passaram a noite inteira assim, encolhidos.

Enquanto isso o Nababu bebia e tirava fotos, tirava fotos e bebia. Seu olhar, antes doce e tímido, se transformava. Nababu segurava o chicote da Carol e começava a tremer. Uma baba branca começava a escorrer de sua boca, seus olhos ficavam vidrados. Algo estava para acontecer.

Quase sem ninguém notar, o Leo e a Renata chegaram. Não sei como ninguém percebeu. Primeiro porque a Renata é lindíssima. Segundo porque de repente o ar ficou com cheiro de chocolate e os alto-falantes do Amarelinho começaram a cantar: “oompah, loompah, doompa dee doo, I’ve got a perfect puzzle for you”. O Leo e a Renata são leitores do Alex e se dirigiram imediatamente para perto dele. Julguei ver um brilho novo no olhar do Alex, mas achei que isso fosse o resultado do vinho branco que ele estava tomando.

A Tata chegou com o seu próprio Alexandre. Não ia dar para passar a mão na bunda dela, porque aí o Alexandre me enchia de porrada, mas eu encontrei uma boa desculpa: chamei todo mundo para tirar foto e lavei a égua tirando casquinha da Tata. Nunca fui tão feliz.

Eu estava tirando essas fotos quando a Viva chegou.

Desculpe, querido Diário, mas por alguma razão maluca eu achava que a Viva era o Viva. E no entanto me aparece uma bela mulher que fez a puta sacanagem de dizer que eu era diferente da foto do blog e que ali parecia ter a cara amassada. Acho que era um elogio. Ainda não tenho certeza. Eu me recuso a acreditar que as pessoas sejam tão sinceras assim.

A Viva é quieta e fica olhando distante para a gente. Claro que isso não me impediu de dar em cima dela. Fiz a minha melhor cara de galã. Olhei no fundo dos olhos verdes da moça. Passei a mão na sua cintura fininha — e que cintura, Querido Diário — e falei baixinho ao seu ouvido:

“Me chama de Hamas que eu te bombardeio todinha.”

A Viva não se alterou. Com aquele seu jeito de Esther, foi delicada mas incisiva:

“Desculpa, Rafa. Eu não posso comer porco.”

Fiz cara de quem perdeu a chave da bunda, me disseram depois, e fui tentar passar a mão na Tata. Minha memória agora está meio turva, não lembro das coisas direito. Mas acho que ouvi o barulho de um tapa e o de um nariz se quebrando. Deve ser por isso que ele está doendo tanto agora e eu respiro pela boca.

A próxima coisa de que me lembro é de estar sentado ao lado da Carol. Foi quando tirei os olhos dela — e antes não tivesse tirado, antes tivesse continuado com aquela cara de retirante nordestino que vê um bom prato de feijão e farinha — que eu vi.

“Meus olhos!”, gritei. “Meus olhos!”

Caí no chão, como se estivesse em meio a um ataque epiléptico. Eu não conseguia enxergar nada. E só não desfaleci porque esse negócio de desfalecer é viadagem.

Sabe, eu sempre tive uma dúvida cruel. Era sobre Sodoma e Gomorra. Eu sabia o que faziam de tão terrível em Sodoma, sabia que tentavam comer bundinhas de anjos. Dizem que anjos têm rabos divinos.

Mas nunca soube que diabos se fazia em Gomorra. A Bíblia não fala, ninguém sabe. A coisa era tão barra-pesada que, se Deus poupou uma meia-dúzia de Sodoma, de Gomorra não sobrou um pobre-diabo para contar a história. O problema de Deus não era o fato de gostarem de uma boa bunda em Sodoma, que Ele também deve gostar; era o fato de gostarem das bundinhas dos Seus anjos, e sabe como é aquela história de não cobiçar a mulher do próximo (o diabo é que o Sujeito está sempre próximo, graças a esse negócio de onipresença. Não fossem as freirinhas do Convento do Desterro, em Salvador, cujas janelas ainda trazem as marcas das cordas que jogavam para seus namorados, eu diria que Deus jamais seria corno. É preciso ser freira para enfeitar a testa de Deus).

Mas Gomorra, não. Gomorra era uma questão de princípios. “Delenda Gomorra”, disse Deus, e então botou pra foder com aquela raça. Ele só não deu explicações; e Ele certo, porque se eu fosse Deus também não estava dando explicações a zé mané nenhum, eu me respeito.

É por isso que cada um inventa uma teoria, cada um diz uma coisa sobre Gomorra. Tudo bobagem. Porque agora eu sei. E algo no meu coração, no embrulho que vem ao meu estômago enquanto tento afastar a lembrança daquela imagem, me diz que é tudo verdade. Um dia eu vou morrer, é o que dizem. E nesse dia, a cena que vai estar gravada na minha retina vai ser aquela.

Em Gomorra lambiam pés.

Foi isso que horrorizou Deus a ponto de Ele mandar aquela chuva de enxofre. Foi a saudade do pé de sola grossa e chulezenta de Jacó, um pastor núbio parrudo que morava em Gomorra mas que passava por Sodoma duas vezes por semana, que fez a mulher de Lot se voltar para trás enquanto fugia de Sodoma e a transformou em uma estátua de sal.

Agora eu sei, nada pode ser pior do que aquilo. Podólatras não vão para o céu. E acho que o Diabo os aceita com relutância, porque tem cascos e podólatras não lhe são de nenhuma utilidade.

Maldita hora, maldita hora em que tirei os olhos da minha Ninfeta do Demônio.

Meninos, eu vi. Vi o Alex lambendo o pé da Renata sob os olhos fiscalizadores do Leo. O Leo devia estar se certificando de que o Alex não iria lamber mais do que devia. Porque vai que o Alex se empolgava, e lambia as panturrilhas, lambia as coxas, lambia mais, e de repente o Amarelinho exibiria o vermelho da paixão e o silêncio da noite seria substituído por urros de prazer. O Leo estava certo.

Tenho certeza de que hoje vou ter pesadelos, de que vou ser perseguido por um dedão gigante babado em uma floresta escura repleta de biajonis loucos. Tudo culpa do Alex. Ele lambia o pé da Renata com um gosto que me fazia ter engulhos. Enfiava o linguão na sola, enfiava o dedão na boca. O Alex babava, Querido Diário.

Eu nunca vou esquecer aquela cena.

Nada contra a tara dos outros. Mas olha, Querido Diário, a Ninfeta do Demônio: eu passei a noite tentando passar a mão na bunda dela, sem sucesso. Ela tem tanta coisa boa. Ela é grandona, parece um travesti gostosinho. Ela tem bundão. Tem uns pernões. Aquela boca.

E tudo em que o puto do Alex consegue pensar é na sola dos pés da Renata.

Recuei, aterrorizado. Olhei para o lado e vi que as coisas estavam definitivamente saindo de controle. O Nababu se autoflagelava com o Febrônio. O Bia tinha sido contaminado pelo vírus do chulé. Segurava o pé da Carol com cara de tio Sukita tarado, tremia como o Alex tremeu, e se preparava para enfiar o linguão no pé dela.

O Bia é meu amigo. Ele é viado, mas é meu amigo. Eu amo o Bia e não podia deixar que ele fizesse algo de que se arrependesse amargamente depois.

Tomei o Febrônio das mãos do Nababu e parti para cima dela. Dei-lhe umas três lapadas, o encanto sobre o Bia se quebrou. Tudo pelo meu amigo.

(Porra nenhuma. Eu estava doido para dar um cacete na Carol desde aquela conversa de 18 anos.)

Depois disso a Carol passou a olhar meio estranho para mim, fixamente, sem parar, sem piscar. Aonde eu ia o olhar negro da Carol me seguia.

Tudo bem. Àquela altura eu não me preocupava com isso. Porque nada mais poderia controlar Biajoni, o Priápico Azul.

Ele estava zen controle. Já tinha dado em cima da Carol, da Isabel, da Renata, da Tata, da Viva. Já tinha inclusive ensaiado umas cantadas meio xoxas no Rafael Lima, que tinha chegado sem fazer alarde. Agora ele tinha resolvido que ia comer uma cachorra. Normalmente eu o apoiaria, e iria com ele a um baile funk e morreria gloriosamente depois de passar a mão na bunda de uma namorada de traficante.

Mas o nome da cachorra que ele tinha escolhido era Fifi. A Fifi vagava pelas mesas do Amarelinho em busca de restos de comida. O Bia vagava pelas mesas do Amarelinho em busca de mulher. Bia e Fifi tinham sido feitos um para o outro. Mas a Fifi saiu correndo com medo do olhar do Bia e ele resolveu descontar sua frustração no Alex.

Para a sorte do Alex foi nesse momento que a Carol resolveu ir embora. Que coisa, Querido Diário. Foi de repente. Assim, rapidinho como quem rouba. Eu e o Bia fomos atrás dela. Mas um ônibus passou e ela entrou correndo. Ela saiu que nem a Blanche Dubois numa peça do Tennessee Williams.

Eu e o Bia ficamos parados, olhando a Carol se afastar. E então, ao mesmo tempo, nos olhamos assustados. A ficha tinha caído.

Aquilo tinha cara de golpe. Tudo estava claro agora, porque aquele mulherão não poderia ser verdade. A Carol não era a Ninfeta do Demônio, era o Traveco do Tinhoso, e tinha nos aplicado um Boa Noite Cinderela. Merda.

Batemos a mão nos bolsos ao mesmo tempo. Respiramos aliviados. As carteiras ainda estavam lá.

Quando voltamos para a mesa o pessoal tinha decidido fechar a conta e ir para o Cervantes. O Cervantes é uma daquelas lendas cariocas. O Rio tem dessas coisas, pega umas bobagens e eleva à condição de mito. O Cervantes é um desses casos. Um monte de gente mal-educada e barulhenta — gente como a gente — num bar que serve um sanduíche gostoso, é verdade, mas que também não é nada do outro mundo.

Depois de comer aquele sanduíche que qualquer um pode fazer em casa, me sentir lesado mas fazer a mesma cara de maravilha que os outros estavam fazendo para não ser o único a passar recibo de otário, fomos embora. Eu jurei que ainda ia pegar outro bobo. E quando voltar a Aracaju eu vou cantar loas ao Cervantes.

O Bia, ainda sob o efeito daqueles comprimidinhos, pulava na frente do Bruno.

“Vamos arranjar uma briga pro Bruno dar umas porradas em alguém!”

O Bruno lhe porrou a testa e o Bia aquietou. Por via das dúvidas, saí de perto deles. Mas a essa altura o Bruno estava puto nas calças, e resolveu chamar o Doni para fazer um city tour às 4 da manhã, enquanto seu ônibus não chegava. O Doni, paulista no Rio, aceitou deslumbrado. Ele não tinha visto o que eu vi, o sorriso malévolo de vingança no rosto do Bruno.

A Tata se despediu do Alexandre dela e, como o Bia não tinha onde ficar e eu não queria acordar o pessoal em casa, fomos dormir na casa dela.

Quando a gente chegou na casa da Tata aqueles dois dementes foram direto para o computador, ver o que tinham deixado nos seus respectivos blogs. Eu fui direto para o sofá. Sabe Deus o sono que me consumia.

Mas eu estava na casa dos outros e ia ficar feio dormir sem tomar banho. De que ia adiantar dizer a verdade, que aquele seria o quarto banho do dia — justo eu, que só costumo tomar banho aos sábados? Nada.

Então fui tomar banho. Antes não tivesse.

O chuveiro da Tata tem algum complexo, Querido Diário. Deve ter sido um trauma muito grande quando ele ainda era torneira, tão grave que até hoje ele tem dificuldade em se expressar. O Bia chamou o coitado de Chuveiro da Morte; mas só se for a morte dele mesmo, porque o ínfimo está nas últimas. Eu tive pena, com moribundos a gente não brinca, mas o Bia não respeita nada, é um zen consideração, e o sacana tirou uma foto para mostrar à posteridade que aquilo era real. Aquilo tinha menos água que Cabrobó em quarto ano de seca.

Não sei como, mas de alguma forma consegui tomar banho. A água pingava relutante e eu lembrava da minha infância no Raso da Catarina. Tão parecido.

Espero conseguir dormir muito hoje.

Rio de Janeiro, 6 de agosto de 2005

Querido Diário,

O Bia ronca. Lembro que ele chegou aqui dizendo que não roncava — porque aquele puto é zen, e zens como se sabe não roncam —, mas o Bia ronca, sim. Eu ouvi. O Bia é zen, mas de uma cepa especial: o Bia é um mentiroso zen vergonha.

Tantos dias sem dormir direito e eu esperava dormir até tarde; 4 da tarde me parecia um horário muito justo para acordar. Mas o Bia é um mentiroso zen vergonha e é um zen sono, porque o desgraçado acordou cedo e foi para o computador e fez barulho e o resultado é que eu acordei também. Quer dizer, não é bem “acordei”, porque aquilo não podia ser chamado de estar acordado. Eu apenas não estava mais dormindo. Eu era um zumbi com olhos vermelhos de sono escutando o Bia rir diante do computador da Tata enquanto ouvia Jimmy Page e Robert Plant.

Aí veio a hora de tomar banho. O trauma da noite passada continuava: eu nunca tinha visto um chuveiro daqueles, mirrado, faminto, pedindo para ser sacrificado em nome da misericórdia. A lembrança daquele banho sofrido, a idéia de novamente implorar uma gota d’água que ele não podia me oferecer me fez pensar direitinho. Eu tinha que passar em casa, trocar de roupa. Banho um cacete. Eu ia dar uma desculpa, ia dizer que tomaria banho em casa, e daria no pé. Não tomaria banho nenhum, claro, mas ninguém iria saber disso.

O legal é que a desculpa safada colou. A Tata tinha saído e só estava o Bia lá. Ele não ligou muito para o que eu ia fazer da minha vida, preocupado em contar uma versão falsa da noite passada — uma versão obviamente bastante elogiosa de si mesmo.

Andei até a Nossa Senhora de Copacabana, vestido e amarfanhado, para pegar um táxi. Olhava para as pessoas que voltavam da praia. Esses cariocas são uns loucos, como diria o zen praia Biajonix. Acordam cedo num sábado para ir à praia. Aí eu vi uma neguinha com uma bunda imensa e entendi tudo, e me senti carioca também, com a diferença que eu era macho.

Peguei um táxi e me mandei para Botafogo.

Aí pelas 3 da tarde peguei o carro e fui encontrar os loucos. O Alex já tinha passado na casa da Tata e apanhado ela e o Bia. Fomos almoçar num bar qualquer de Ipanema. Não sei de quem foi a idéia.

Por mim ia no Adriano, na Real Grandeza, e enchia o rabo de comida por quaisquer dez contos. Mas o Bia e o Alex têm umas manias de maluco, o Bia não tem praia, queria comer no Leme, depois no Posto Seis, qualquer buraco onde ele pudesse ver o mar. Parou num boteco metido a besta que servia uma picanha sofrível — mas olha, ali era a praia de Vinícius de Moraes.

Enquanto comíamos liguei para a Carol, só para ter o prazer de falar com ela de boca cheia. Melhor só se ela me visse assim. Eu ainda tinha a esperança de passar a mão na sua bunda, esperança que aumentou quando ela disse que ia nos encontrar com um shortinho minúsculo. Ela fez isso só para me provocar, eu sei.

Dali fomos ver o Mauro na Barra. A Tata veio comigo que da Barra eu não conheço é nada, e por mim morro sem conhecer. Sentamos no píer do começo da Sernambetiba e ficamos conversando um pouco. Até que chegou a hora de ir pegar a Carol na frente do Barrashopping.

Ela estava mesmo com um shortinho minúsculo.

Quando voltávamos o Alex ligou para avisar que ele e Bia estavam indo para casa. E iriam nos encontrar mais tarde em algum lugar para um chope e mais conversa. A Tata, então, disse que queria tomar um banho e fomos para a casa dela.

A Tata foi ao encontro do seu chuveiro depauperado e ficamos a Carol e eu na sala. Ficamos a Carol com um shortinho minúsculo e eu, a essa altura já não tão minúsculo assim. Os dois deitados no sofá da Tata. Por via das dúvidas, porque prudência é coisa muito boa e muito útil na lida com ninfetas do demônio, perguntei pelo Febrônio. A Carol não tinha trazido. Oba.

Primeiro fiz charme. Imitei a boca nojenta do Wando para ficar sexy. A Carol sorriu. Falei que o Febrônio era uma gracinha. Ela riu.

Aí eu ataquei. Dei um beijo e ela arrancou um pedaço dos meus beiços. Tentei passar minha mão direita no peito esquerdo, ela devolveu um direto de direita. Envolvi sua perna com a minha e ela me deu uma joelhada no saco. Com a mão esquerda, num golpe de surpresa, tentei agarrar finalmente a sua bunda, e fazer valer a passagem. Aí a miserável me deu um golpe de jiu-jitsu (“Ih, rapaz!”, pensei enquanto voava, “Tô tentando pegar o Bruno!”), me derrubou no chão e me deu um chute na cara.

Exausto após esse longo e vigoroso embate amoroso, desisti. Comecei a chorar em posição fetal. Mas em algum lugar daquele coração negro e gélido como cu de foca há algo de maternal. Ela me pegou no colo e cantou uma musiquinha sado-masoquista para mim. Adormeci olhando para os olhos febris dela.

Acordei com algo me cutucando.

Vaca mentirosa. A Carol tinha trazido o Febrônio.

Ela gritava, ensandecida:

“Tu é viado, Galvão! Tu é viado, Galvão!”

A Tata chegou.

“Meu Deus, o que é isso?”

Respirei aliviado. A Tata ia me salvar.

Mas ela deu um mergulho cinematográfico e começou a dar tapas no chão, cara colada com a minha, como se estivesse em um tatame:

“Finaliza, Carol! Finaliza!”

Felizmente o primeiro grito da Tata tinha distraído a Carol. Consegui me desvencilhar, levantei e corri. Saí porta afora desci as escadas corri a Nossa Senhora de Copacabana corri a Princesa Isabel corri Botafogo considerei entrar no Pinel corri o Flamengo corri a Senador Vergueiro caralho eu sou só um paraíba eu sou só um paraíba foi para isso que eu viajei tanto meu Deus puta que pariu puta que pariu. Ali pelo Garota do Flamengo dei uma parada, precisava respirar, queria chegar no Planalto do Chopp com um mínimo de dignidade; mas aí alguma vagabunda gritou “Rafael!” — merda de cidade cheia de Rafaéis — e o pânico voltou e eu corri até a mesa do Alex e do Bia.

A Tata e a Carol iriam chegar logo mais. Fui sentar perto do Alex, achando que ele, grande e gordo, me protegeria daquela maníaca. Então lembrei da visão de ontem, lembrei do Alex babando o pé da Umpa-lumpa, e o terror voltou e fui sentar ao lado do Bia. Ele é magrinho e mirrado e tem lá uma cara de Mister Magoo, mas ainda parecia, àquela altura, o mais normal daquele grupo. A escolha do Planalto do Chopp, aliás, foi mais uma das maluquices do Bia, porque bem em frente estava o Devassa, muito mais interessante; mas as vozes na sua cabeça disseram que ali se faz a melhor pizza do Rio e que seus pecados seriam remidos se ele comesse uma pizza maluca e salgada, cheia de aliche.

A Carol e a Tata chegaram. A Tata trazia cabelos molhados. A Carol também. O Bia e o Alex se entreolharam com caras de adolescentes e seguraram risinhos. Eu, ainda sob o peso das lembranças de minutos atrás, abaixei a cabeça. A vergonha e o terror me consumiam.

Sei lá por quê, começamos a discutir a razão pela qual escrevíamos blogs. O Bia, que é zen, disse que escrevia porque a gente encheu o saco dele para montar um. O Alex, que é escritor, disse que aquela era uma ferramenta de divulgação do seu trabalho. E eu, que não tinha nenhuma dessas desculpas nobres para dar e tenho vergonha de mentir, tive que assumir que fazia um blog apenas para ser elogiado, mas que as coisas andavam meio chatas porque um bando de filhos da puta aparecia o tempo todo para me aporrinhar.

O Bia então disse que eu era mais bonito pessoalmente e menos chatão que pelo MSN. O Bia disse que eu era quase lindo. Eu fiquei lisonjeado, mas só até o momento em que ele decidiu me patolar. Tudo aquilo era só mais uma cantada biajônica. Os danados dos comprimidinhos ainda faziam efeito. Não se pode mesmo confiar nesses homens, eles só querem uma coisa da gente. Animais.

A partir desse momento fiquei em pé.

De repente a Carol decidiu que era hora de ir embora. Mas ela estava vestindo apenas aquele short minúsculo, e não queria voltar daquele jeito. Achei que ela ia ficar.

Eu devo ser muito idiota para achar que isso impediria a Ninfeta do Demônio de fazer qualquer coisa. Ela abriu os zoião e ficou de butuca em quem entrava no banheiro feminino.

De repente ela se levantou e foi até lá. Uns sons esquisitos vieram do banheiro, um grito de terror genuíno, e logo depois saiu a Carol vestindo uma calça da Gang novinha em folha. Fiquei muito curioso acerca dos métodos de persuasão que a Carol usa. Aí lembrei do Febrônio.

Ela me deu um último olhar sinistro e foi embora.

Enquanto uns garotos tocavam violão na porta do Planalto o Bia decidiu ir embora para o sertão em que mora. O Alex o levaria até a rodoviária e eu deixaria a Tata em casa.

Parei em frente ao edifício da Tata e, mesmo com um maluco jogando beisebol no meio da Barata Ribeiro sem taco, sem luva, sem bola e sem ninguém, juntei coragem e tentei passar a mão na sua bunda. O murro que levei no meio das fuças e que fez meus óculos voarem longe deu a entender, sutilmente, que eu não deveria fazer aquilo. Mas a Tata endurece sem perder a ternura jamais, e me deu um beijo de boa noite e subiu.

Quando ia entrando no carro, disposto a voltar para casa e finalmente dormir um pouco, eu a vi.

Ela estava atrás de uma pilastra. Eram dois olhos azuis enormes, vidrados. Os cabelos ruivos refletiam a luz dos postes e davam um ar demoníaco ao travesti gigantesco. Sua boca, que momentos antes me fazia imaginar delícias dignas de paraíso muçulmano, sorria em um esgar diabólico.

De suas mãos pendia o Febrônio.

Corri para o carro, tranquei as portas. A Ninfeta do Demônio pulou sobre o capô, gritando “Galvão, tu é viado! Galvão, tu é viado!”. Dei marcha a ré, ela caiu. Tentei passar por cima dela, a desgraçada se esquivou. Dei um cavalo de pau e desci a Barata Ribeiro na contramão, peguei a Nossa Senhora de Copacabana.

Quando dobrei a Princesa Isabel, olhei pelo retrovisor.

E lá estava ela.

Eu já sabia para que serviam aqueles joelhos: para me estourar o saco. Agora sabia para que serviam aqueles pernões: para correr atrás de mim com o Febrônio na mão. No túnel, sua voz ecoava mais forte que os motores dos carros: “Galvão, tu é viado! Galvão, tu é viado!”.

Não sei quantos quilômetros separam Copacabana do Galeão. Não sei como o motor do carro não fundiu, ou como não sobrei em uma curva da Perimetral; mas eu consegui chegar ao aeroporto, sabendo que a Ninfeta do Demônio estava atrás de mim. Ao longe eu a ouvia gritando: “Galvão, tu é viado! Galvão, tu é viado!”

Estou agora na sala de embarque, Querido Diário. A Ninfeta do Demônio está lá fora. Conseguiu passar pelo raio X porque a arma letal que carrega é de couro. Ouvi sons de luta, por um breve instante tive esperanças, mas ainda ouço os ecos de seus gritos e imagino corpos mutilados espalhados pelo corredor. O chão treme com os socos que ela dá na porta de vidro. Não sei quanto tempo a porta vai agüentar. Ouço sirenes, mas eles não vão chegar a tempo. O monitor diz “embarque imediato”, o avião já pousou, e conto cada segundo até que o portão para a sanfona se abra. Eu tenho uma chance. Estou ajoelhado. Rezo. Reze por mim também, Querido Diár

Volta, vem viver outra vez ao meu lado

Acabaram-se as reprises. Agora só no ano que vem.

Quando este post for publicado eu estarei no Rio. Na verdade, no exato momento em que este post vier à tona eu deverei estar no Amarelinho, contando mentiras, aprendendo com o Mauro, escondendo meu pé do Alex, discutindo com o Quacre Punk, um filho da mãe que nunca concorda comigo, declarando meu amor eterno à Tata e tentando passar a mão na bunda da Ninfeta do Demônio — se a desgraçada não der o cano, coisa que ela costuma fazer.

Também espero que o XXX BBB — Trigésimo Batalhão de Balzacas Bufantes — não resolva me encher de porrada justamente em um momento de alegria e confraternização, ou que os Astrólogos de Maria resolver realizar um tribunal de inquisição, ou que os amantes de animais nao joguem tinta na minha cara, ou… Ah, esquece.

Durante as férias eu fiz algumas mudanças no blog. Agora o index.rdf contém posts completos, também. E há um novo feed, apenas para os comentários.

Cena baiana

Salvador, conversando com um amigo num boteco.

— Rafael, tem uma festa de 15 anos ali no Cabula pra gente ir. Vamos?

Vamos. Entramos na festa lotada e Waltinho pergunta:

— Como é o nome da aniversariante?

— Adriana.

De repente, algo me diz que não fomos convidados para a festa.

Mais uns passos e Waltinho comenta com alguém que passa:

— A Adriana está linda, né?

Vejo duas mulheres e me afasto de Waltinho. Começo a conversar com elas, falo umas gracinhas. Uma delas já está na mira. Elas são amicíssimas da aniversariante, cujo ar da graça até agora não vimos.

— Você conhece a Adriana?

— Não.

— Você veio com quem?

— Com Waltinho.

— Quem é Waltinho? E quem convidou ele?

— Ninguém. Ele entrou de penetra.

— Quer dizer que você é penetra?

— Não, sou convidado. O Waltinho me convidou.

E a conversa continua, elas me chamam de descarado enquanto riem, aquela moça olha diferente para mim, até mesmo sou apresentado à Adriana — que não estava tão bonita assim.

Algumas horas depois, eu sentado numa escada esquecido da festa, me aplicando em descobrir mais detalhes da anatomia da moça, e Waltinho aparece com dois copos de uísque na mão. Nada demais, se todos ali não estivessem bebendo cerveja.

10 anos se passaram, e ainda continuo convicto de que nunca dois penetras foram tão bem tratados em festa alguma.

Originalmente publicado em 3 de julho de 2004.

Ser baiano

Achando graça em um post da Dani, em que para dizer que ser recifense é ser isso e aquilo ela investe desnecessariamente contra a velha e boa baianidade, dizendo que ser recifense é “ter orgulho de dizer que o sonho do baiano é ser carioca e o do cearense é ser pernambucano”.

Pois é, Dani. A verdade é que não sabemos o que é ser baiano, porque normalmente temos outras coisas para adiar, e nossos próprios umbigos para admirar. Dizem que o Rio é lindo; mas em nossa sabedoria, sabemos que lindo mesmo é uma neguinha da bundinha empinadinha, quebrando numa roda de samba na Engomadeira.

Mas vamos lá, vamos tentar definir. Ser baiano é… Ser baiano é… Olha, minha preta, deita aqui do meu lado, faz um cafuné em mim e depois a gente pensa no assunto, tá?

Ou não.

Originalmente publicado em 6 de novembro de 2003

Igreja Rafaélica de Todos os Tostões

Eu tenho um sonho.

Não é um sonho onde as pessoas não sejam julgadas por sua cor, porque esses sonhos bonitinhos eu deixo para o Luther King.

Meu sonho é fundar uma igreja.

Ela já tem até nome. Igreja Rafaélica de Todos os Tostões. Tem também um slogan: “A salvação a preços módicos”.

E antes que as más línguas venham falar de eventuais semelhanças com a igreja do Bispo Macedo, vou avisando que não há nenhuma. Para começar, eu serei cardeal, o que demonstrará nossa superioridade em relação a essas igrejas mercenárias que pululam por aí. Cá para nós, “Cardeal Galvão” soa bem.

A obreiros e fiéis, a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões oferecerá a salvação. Você nos dá o seu dinheiro — inclusive aquele que você guardou na meia, pão duro safado; pensou que podia esconder dinheiro do Pai? — e nós lhe damos a salvação. É justo. A salvação de sua alma pecadora vale mais que o dízimo. E se você não aprendeu a dar, como espera receber?

É asim: primeiro a gente mete a mão no seu bolso, depois te mete no Paraíso.

Os céticos, essa raça ímpia incapaz de ver a pureza e a verdade d’alma, podem alegar que Jesus oferece a salvação de graça. É. Pode ser. Mas na Igreja Rafaélica de Todos os Tostões você fala com o dono, cara a cara, olho no olho. Você quer falar com Jesus pessoalmente, quer? Pois é. Achei que não. A Igreja Rafaélica de Todos os Tostões oferece a salvação com certificado de garantia — e se você não a conseguir, pode voltar do Além e falar com o Cardeal Galvão que ele te dá o dinheiro de volta.

Mas nem só dos assuntos de Deus a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões se ocupará. Porque somos evangélicos mas temos algo de católicos, e acreditamos que a obra do Senhor se realiza aqui, quando estendemos a mão aos nossos irmãos carentes e os ajudamos a seguir em frente com dignidade. As boas ações é que nos levam ao Paraíso.

A Igreja Rafaélica de Todos os Tostões se dedicará à santa obra de ajudar aqueles menos favorecidos pela Providência, aqueles a quem precisamos dar as mãos no esforço de criar um mundo mais solidário.

Nossa obra social começará por mim. Não venha alegar que é malandragem, porque não é. Como você espera que o Cardeal Galvão se dedique à evangelização se tem que se preocupar com coisas de somenos importância, como a sua sobrevivência com um padrão mínimo de dignidade?

A nossa obra social começará por mim porque eu ando carente.

Eu ando carente de um Jaguar, com motorista surdo-mudo.

Eu ando carente de um apartamento pequeno, coisa de 300 m2, no Faubourg Saint Germain. E de outro, ainda menor, na Via Vêneto.

Eu ando carente de um Lear Jet.

Eu ando carente de uma casa na Riviera Italiana (com vista panorâmica para o Mediterrâneo porque eu preciso de um ambiente bucólico para pensar em tão espinhosos assuntos teológicos; aquela que aparece em “A Condessa Descalça”, com sua praia particular, serve) e de um castelo no Vale do Loire, daqueles que já vêm com título de nobreza.

Cacete, eu ando carente de tantas coisas que só de pensar nelas dá vontade de chorar.

E é tão pouco.

Por isso a Igreja Rafaélica de Todos os Tostões. Porque precisamos estender as mãos uns aos outros. Precisamos de um mundo mais justo, e o Cardeal Galvão é o líder que vai nos levar em direção à Luz — e, graças às suas contribuições, agora sem que a Light a corte por falta de pagamento.

Originalmente publicado em 28 de fevereiro de 2004.

O pequeno burguês

Salvador, praia de Stella Maris, 1993. Manhã cedo, aí pelas seis horas. No bar de um amigo, eu procuro alguma coisa para comer depois de uma noite meio agitada, quando aparece um sujeito que eu nunca tinha visto.

“Waltinho tá aí”?

Tá dormindo, eu acho. Procure em uma das redes na praia.

A única coisa que se podia comer era xinxim de galinha, e eu não sou filho de Oxum para gostar daquilo. Ora yeye o!, Oxum, mas vou morrer achando que galinha não vai bem com dendê. Volto à cerveja. E a gente começa a conversar.

O sujeito, um neguinho de seus 40 e alguns anos, magro, vesgo, dentes que sobraram apodrecendo, veste apenas um short azul, e traz no corpo corroído pela cachaça as marcas de uma vida de trabalho braçal. Ele se diz chamar Wilson, mas se eu quiser posso chamá-lo de Zoinho, é assim que todo mundo o chama. É alcoólatra, é claro que é alcoólatra.

Zoinho conta histórias, enquanto derruba uma garrafa de vodca. E então me conta o seu grande momento na vida. Ele se diz autor de “Canudo de papel”. “Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade é particular”.

A primeira coisa em que penso é que aquele bêbado está inventando histórias; pagando a vodca que eu graciosamente ofereço como se fosse minha. Mas ele fala com tanta certeza, e tão sem revolta, como se a miséria em que vive fosse tão natural como compor um samba numa mesa de boteco, que eu passo a acreditar nele. A única glória que reclama é ser reconhecido com o autor do samba, só isso. É tão pouco. Para mim, Zoinho é o autor de “Canudo de Papel”.

Algumas doses depois ele vai embora. Eu nunca mais veria Zoinho.

O samba na verdade se chama “O Pequeno Burguês”, e a autoria oficial pertence a Martinho da Vila. Se Zoinho é mesmo seu autor, eu nunca vou saber. E algum dia até essa dúvida sumirá, assim como Zoinho sumiu um dia em Stella Maris.

Originalmente publicado em 13 de novembro de 2003.

A impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice

O nome dela era Vanderlice, tenho quase certeza. Era uma catarinense loura, olhos talvez azuis, seios balouçantes livres de importuno sutiã, uma impressionantemente volumosa bunda redonda sempre em shorts folgados e minúsculos, tão ciente era a moça de suas graças. Corria o verão de 1988 e estávamos em Petrópolis, no congresso nacional da União da Juventude Socialista, ao qual cheguei inconsciente por excesso de sangue na corrente alcoólica. Sem dinheiro, enfadado por todo aquele blá-blá-blá, eu e dois amigos fundamos uma dissidência política: a UJA, União da Juventude Aloprada, instrumento popular revolucionário que se dedicava a ser o mais demente possível enquanto era expulsa de boates que não podia pagar. Petrópolis era uma cidade tão enfadonha. Para não dizer que estávamos totalmente à parte do processo político, assistimos a uma palestra sobre sexo (claro que porque a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice estava lá, tentando acomodar sua exuberância calipígia em medíocre e falta cadeira). Um de meus amigos, comovido pela impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice, fazia insistentes perguntas sobre sexo anal, enquanto todos nós contemplávamos ostensivamente o óbvio motivo de suas singelas dúvidas. Infelizmente, na noite daquele sábado, a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice agraciou outro sujeito, um paulista que não me parecia capaz de apreciar devidamente o maná caído em suas mãos. Mas na plenária final, no último dia, sentado a sudeste da impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice enquanto tentava convencê-la — sem sucesso e com excesso de tato, lamento admitir — de que prazeres inauditos e celestiais a aguardavam naquele paraibinha com cara de bobo, eu tive a minha redenção: ao apoiar firmemente no chão suas mãos e seus joelhos para se levantar em uma votação, a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice se revelou em toda a sua glória e exuberância diante de mim, a um ínfimo palmo destes pobres olhos que por fim encontravam sua razão de ser. E é por isso, por esse único momento fugaz e tão desgraçadamente transitório, que jamais me será possível esquecer a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice. Boas lembranças e diamantes são para sempre.

Originalmente publicado em 15 de janeiro de 2004.

Retorno a Zohar

Final de uma tarde de verão em 1979, Salvador. Eu estava no playground do edifício brincando com meus dois melhores amigos, Jailton e Pedrinho. Tínhamos arranjado alguns pedaços de pau, e algumas caixas de papelão das quais fizemos escudos. Brincávamos de batalha medieval; sou de um tempo em que as referências do passado, como cruzadas e cowboys, eram mais fortes que as do futuro nas brincadeiras infantis.

O edifício fica numa espécie de vale, porque de um lado está a escarpa da Ladeira da Barra, e do outro a 8 de Dezembro, outra grande ladeira. Além disso há prédios altos em volta.

E então, no meio da brincadeira, alguém notou algo estranho, que passava rápido e silencioso no céu. Quando olhamos para cima vimos um espetáculo inédito, e assustador. Um show de luzes vermelhas e azuis, informes, passou rápido e sumiu, em menos de um segundo, atrás do prédio que ficava em frente.

Eu era um garoto urbano. Nada relativo ao progresso, à civilização, me era estranho. Os cachorros dos lugares onde morei já não corriam atrás de carros. Nunca brinquei de pião ou de bola de gude quando era menino. Nunca me emocionei ao ver o mar pela primeira vez.

Mas aquilo era diferente. Era um disco voador, só podia ser um disco voador. Não era um avião — eu já tinha visto tantos, já tinha viajado em alguns. No mínimo, aviões faziam barulho.

Aquilo era um disco voador.

Jailton, Pedrinho e eu ficamos aterrorizados. Minha mãe havia ido comprar pão, e na volta viu um Jailton que, de bem pretinho, estava cinza de medo. Pedrinho também estava apavorado. Quanto a mim… Eu poucas vezes havia sentido um terror tão grande. Nada neste mundo — e, dadas as circunstâncias, em qualquer outro — me faria subir aquela escada. Eu tinha certeza de que havia um ET no vão embaixo dela. Esperei mamãe para subir com ela. Tinha certeza de que ela botaria aqueles homenzinhos verdes e maus para correr.

Os anos passaram. Minhas conclusões sobre o que eu tinha visto foram mudando com o tempo até que cheguei a uma conclusão preguiçosa de que aquilo era algo perfeitamente explicável, um balão meteorológico ou um avião (apesar da falta de som), ou qualquer coisa do tipo. Mas nunca tive certeza absoluta; era apenas uma conclusão racional, do tipo “discos voadores não existem, ponto”.

Exatos 20 anos depois, eu estava na varanda do meu apartamento em Fortaleza, de madrugada, ninando minha filha. De repente minha ex-mulher olhou apavorada para o céu atrás de mim: “O que é aquilo?” Me virei, rápido. E então eu vi.

Havia demorado duas décadas, mas meu disco voador havia voltado.

Pensei claramente algo em um átimo, imensurável de tão rápido. E naquele momento eu gostaria de ser outro, de não ser este ser humano cansado e lógico que acha que entende as coisas e que pode explicar tudo.

Eu gostaria de ter pensado que guerreiros do planeta Zohar haviam voltado para me buscar, duas décadas depois de terem sido impedidos naquele dia pela presença indômita de minha mãe. Que ali estavam pesquisadores waldosianos que me abduziriam e fariam experimentos genéticos inomináveis comigo. Que iriam me levar para Kandor e me exibir como um espécime de uma raça inferior, imperfeita e estranha, preciosidade de um planeta tão distante. Ou que, fascinados com minha perfeição genética, sábios yukiahans iriam me levar para revitalizar sua raça, devolver a eles atributos ancestrais que a evolução lhes havia tirado.

Gostaria de ter pensado qualquer coisa assim, que mostrasse que a criança de 8 anos ainda estava ali.

Mas naquele momento eu só pensei em uma coisa: “Pronto. Agora vou saber que porra é essa”. E então eu soube.

Era um avião.

Um simples, um prosaico Boeing, voando baixo por entre nuvens também baixas. Aviões têm luzes azuis e vermelhas que piscam intermitentemente. Por causa das partículas de água contidas nas nuvens, a luz se dispersa e dilui, e o resultado é um objeto disforme e assombroso. Não é tão comum; em duas décadas só vi algo assim duas vezes.

Durante a maior parte daqueles 20 anos, tive a certeza de que aquele disco voador era um fenômeno humano perfeitamente compreensível, provavelmente um avião, mesmo. Mas, lá no fundo, havia a esperança de que fosse realmente uma nave interplanetária de um planeta distante, trazendo pesquisadores para entender melhor esta raça de que faço parte.

Ali o adulto cético e racional obtinha a sua vitória definitiva e incontestável, e a sombra da criança de 8 anos se esvanecia para sempre. A falta de imaginação venceu.

Originalmente publicado em 11 de setembro de 2003.