Devaneios literários

Acabo de romper relações com o senhor Luiz Biajoni.

O sacana ligou para mim só para me dizer, na minha cara, sem pejo nem pudor, que eu sou um capitalista nojento por não morrer de vontade de publicar um livro.

Duas ou três pessoas, falando nisso, já disseram que eu deveria publicar alguns dos posts deste blog em livro.

Acenam com a glória literária e com a satisfação da minha vaidade.

Além de eu achar que o melhor meio para estes posts é este mesmo, a internet, esses são os acenos errados.

Me prometam dinheiro, boa comida, uma garrafa de Jack Daniels, fornecimento vitalício de suco de mangaba e as mulheres mais cachorras que há nesse Brasil tropical e eu escrevo até “Guerra e Paz”.

Eu soube que ela estava

Eu soube que ela estava doente numa noite de abril.

A primeira reação foi de incredulidade, porque ela era a última pessoa que poderia ter câncer, esse tipo de câncer. A idéia está lá, você sabe que é verdade, mas ao mesmo tempo parece não ser. E então vem a raiva por isso estar acontecendo, as perguntas do por quê isso está acontecendo. Não há resposta. Nunca há.

E à medida que o tempo passa você tenta se acostumar com a idéia, passa a simplesmente conviver com isso.

Durante a campanha deste ano o plano era simples: acabar e voltar imediamente para o Rio, para pelo menos poder me despedir dela. Quando vim para Aracaju ninguém sabia que ela estava doente. Nos meus relatórios quase diários sobre a campanha, eu podia notar que ela estava feliz, também. Ambos contávamos os dias para a minha volta, embora por razões diferentes. Ela não sabia que tinha câncer e minha volta seria só isso, uma volta — e talvez pudéssemos ir para a Colombo, para comer meu viradinho de banana e bomba de creme com coca-cola enquanto ela tomava um chope, e rir quando o garçom, coitado, trouxesse a coca para ela e o chope para mim. Ou caminhar de braços dados pela rua do Ouvidor quando eu fosse tomar meu mate.

Mas quando a campanha acabou eu fui proibido de voltar. Já não fazia sentido, nem para mim nem para ela.

É se contentar com as lembranças, pelo menos. Foi ela quem me deu o nome de Rafael. Na maior parte dos momentos mais importantes da minha vida ela estava lá. Estava no meu casamento, orgulhosa com um vestido azul. Esteve ao meu lado durante a minha separação. Mais que amor, eu sinto falta de sua lealdade.

Das gargalhadas que dávamos, ela com seu jeito calmo mas soltando umas farpas aqui e ali. Ou ela deitada no sofá, pernas no meu colo, assistindo televisão e rindo. Do dia em que enchi a lata de vinho no almoço, rindo com ela, e tive que ir à Tijuca, resolver alguma coisa. Ou das perguntas que eu lhe fazia este ano pelo telefone: “Ô, velhota, cê tá cuidando bem dos meus livros?”, “Falaí, você tá é feliz porque eu tô longe, né?”, e eu sabia que ela iria fingir indignação, ou sorrir e dizer “Você sabe que não…”

Talvez a melhor definição dela tenha sido dada pela mulher do seu sobrinho e médico: “Se você a virar pelo avesso, não vai encontrar um defeito”. Ela tinha defeitos, sim, e sabia disso. Mas sua sobrinha não mentiu: se havia uma característica que a definia era uma bondade quase limites, uma generosidade que pouca gente conhece: e os meninos de rua que a rodeavam pedindo um real, que ela dava para todos eles, sabiam disso. Como sua irmã disse hoje, “as pessoas especiais vão embora no sábado, dia de Nossa Senhora”.

Eu pensava que assim que ela morresse — e nos últimos meses essa idéia esteve presente em cada hora do meu dia — o que iria ficar não seria dor, seria alívio e saudade. Foram mais de seis meses para me acostumar com a idéia. Talvez essa seja a única vantagem do câncer, lhe dar tempo para se acostumar com algo que, do contrário, lhe pega de surpresa. Eu estava enganado. Mas acho que se ela pudesse me ouvir agora diria que não, que eu tinha razão, que o que tem que ficar mesmo é só a saudade — mas só um pouco, porque saudade demais não é bom.

Agora, a única coisa que eu poderia fazer era escrever algo bonito para ela. Não posso. Porque nada do que eu escreva pode sair bonito; só doído. A dor vai passar, eu sei, e vai ficar só a saudade. Mas até lá dói.

Ela faria 77 anos amanhã.

Mil posts depois

Este blog completou um ano e só depois percebi; decidi que não ia deixar o milésimo post passar em branco. Ontem foi o dia.

Ele nasceu como “Pensamentos Mal Passados”, um trocadilho bobo com a atitude de transmitir alguma coisa e a analogia imediata com um bife mal-passado. O primeiro post foi sobre o fim do Netscape, meu companheiro desde os primeiros dias de internet.

Demorou algumas semanas até ele ter uma cara própria. E é esse ainda o seu principal problema. Até hoje não sei direito o que ele é. Sei o que não é: não é um blog jornalístico, não é um blog literário, não é uma coleção de links, não é um diário online.

A única unidade temática que consigo ver nele é o fato de os posts terem sido escritos por mim. É por isso que, cada vez mais, a impressão que ele me dá é a de que é uma versão meio torta de um diário. Por isso a mudança de nome. Como eu já disse antes, o blog nasceu como uma forma de tirar da cabeça um montão de bobagens, para desocupar espaço; e acabou tendo uma dialética própria, me fazendo pensar em mais e mais bobagens.

É um blog um pouco elitista e meio cabotino. Elitista no sentido de se dar ao luxo de emitir as opiniões que bem entende, e até de mudá-las quando acha que deve; cabotino porque talvez, no fundo, ele seja pouco mais que uma tentativa de dizer “olha como o que eu penso é importante”, quando, na verdade, nada é tão importante assim.

Até o começo do ano este blog era lido regularmente por poucas pessoas: Mônica, Daniela, Paulo, Plataformista, Tuzi, Lau e o Humbert Humbert Bia Desses, só o a Mônica, o Bia e o Paulo continua aqui. Os outros, ao que parece, enjoaram. De lá para cá a média diária de visitas únicas mais que decuplicou — primeiro graças a um texto que fiz para o blog da Tata, depois com os elogios do Alexandre Cruz Almeida e do Inagaki, elogios que provavelmente não mereço (mas que faço questão de espalhar, claro, pelo orgulho que me dão).

Hoje os websites que mais trazem visitantes são o Liberal Libertário Libertino, o Pensar Enlouquece e o Tiro e Queda, nessa ordem. A maioria, no entanto, tem o blog em seus bookmarks. Obrigado.

Provavelmente, um dos meus maiores orgulhos hoje em dia é ver que um bocado de gente faz do blog leitura diária. É, provavelmente, o maior elogio que posso receber. E embora a minha pernosticidade não mostre, sou grato por isso. Ainda lembro que no começo eu não fazia questão de incluir comentários, e depois ainda relutei em colocar um medidor; perdoai-me, Senhor, eu não sabia o que fazia.

Não acho que os textos daqui, com raríssimas exceções, caibam em qualquer outra mídia que não esta: um blog. Não é suficientemente profundo para constituir um livro. Não é exatamente jornalístico. De qualquer forma, como acho que deveria entrar em uma Academia Qualquer de Letras e assim, pelo menos, ter um lugar onde cair morto — os imortais têm um mausoléu legal –, eu deveria pensar nisso.

Lembro de poucas coisas que tenham me dado tanto prazer durante tanto tempo quanto este blog. Eu, que normalmente me comporto como uma quenga volúvel e leviana que enjoa rápido das coisas, gosto cada vez mais dele. Talvez seja o fato de não ter nenhuma obrigação de atualizá-lo seja o que me faz postar quase religiosamente. De alguns posts gosto muito, da maioria não; mas gosto do ato de postar.

No fim das contas, de publicitário eu estou virando blogueiro. Não é ruim. Não é, mesmo.

Meus verdes anos III

Para o Allan:

Nunca pensei nisso, mas acho que o segredo para sobreviver é só fazer o professor rir uma ou duas vezes, e tirar boas notas. Acho que era por isso que eu me controlava nas aulas de matemática.

(Encontrei um antigo professor de matemática no aeroporto este ano. Ele estava com uns amigos e eu disse que ele tinha me posto para fora da sala uma vez — foi o único professor de matemática a conseguir essa façanha. Ele disse que eu devia ter aprontado alguma, mas perguntou: “Mas eu era bom professor, né?”. Respondi: “Porra nenhuma, eu não sei polinômios até hoje”. Os amigos dele gargalharam. E mais uma vingança foi tirada do freezer. O pior é que foi injusta, porque ele era um excelente professor: tanto que anos depois montou um bom colégio.)

No caso da Rosa Virgínia ela não entendeu o espírito da coisa e resolveu sacanear: me deixou em recuperação por faltas, mesmo com minha média sendo boa. Fez por sacanagem, porque independente da sua média, em recuperação por faltas você tinha que tirar 8 na prova. Tirei 10.

Acho também que um mínimo de dignidade ajuda. Por exemplo, uma vez emprestei um isqueiro para um colega acender um daqueles “barbantes cheirosos”. Ele era incompetente e foi pego. Além de incompetente era um sujeito sem honra e me dedurou. Passei uma hora diante da coordenadora de disciplina, ela tentando me fazer dizer quem tinha me dado o isqueiro.

Eu não disse. Já estava ferrado, mesmo, aí aproveitei para dar uma de durão. Eu não iria me tornar um dedo-duro. Ela tentou todos os argumentos possíveis, e aquilo acabou se tornando uma discussão sobre filosofia e ética.

De qualquer forma, dizer que eu tinha pego escondido de minha mãe não ia ajudar em nada. Ia parar por ali e pronto. E eu não ficaria com a fama de sujeito de princípios firmes.

Aquele alcagüete hoje é advogado. Aposto que é do tipo que faz tudo por dinheiro.

Meus verdes anos

Não acredito em quem diz que não se arrepende de nada do que fez, só do que não fez. Porque das duas, uma: ou é um psicopata que além de tudo não confia na própria intuição, ou é um idiota que não aprende nada com a vida. Eu, pelo menos, só me arrependo das coisas que fiz. E olha que tem muitas.

Mas tem uma coisa que não fiz que até hoje me arrependo de não ter feito.

Digamos que minha passagem pelo ginásio foi meio conturbada. Digamos também que eu tinha um pequeno problema com autoridade. E digamos também que eu tinha senso de humor suficiente para fazer algumas brincadeiras que o padre Carvalho, diretor do colégio, não conseguia compreender. O resultado é que eu conhecia a sala da coordenação de disciplina (alô, Inara, tu tá viva ainda?) melhor do que meu próprio quarto. Meu único consolo é que quase todos os meus professores gostavam de mim. Isso não os impedia de me botar para fora da sala, às vezes até injustamente, mas o faziam sem rancor em seus corações. Negócios, sabe como é. Éramos leais adversários, apenas.

Algumas das brincadeiras foram muito boas. Mas a melhor de todas não fui eu quem fiz, e é isso que me deixa, até hoje, irritado por não ter tido a idéia antes.

Um ano depois de eu sair do Arquidiocesano, um grupo das mais brilhantes mentes daquela venerável instituição de ensino subiu à caixa d’água do colégio e derramou alguns pacotes de Ki-Suco.

Naquele dia, os alunos que abriram os bebedouros se viram diante de um belo líquido avermelhado. Meninas da quinta série que davam descarga pensaram “meu Deus, fiquei mocinha!. Com tanta coisa nova acontecendo, gente mais criativa poderia imaginar coreografias de Busby Berkeley para Esther Williams naqueles jatos rubros. Mas, tadinhos, o fardo da responsabilidade pela formação de tantos adolescentes era demais para o pessoal que mandava no colégio.

Blasfêmia!, não fui eu quem concebeu essa obra de arte. E disso me arrependo profundamente.

Meus verdes anos II

Zilma, professora de português, entra na sala.

— Rafael, trouxe o livro?

— Não.

— Saia.

— Professora, eu não fiz nada!

— Mas vai fazer. Saia.

***

Santos, professor de inglês, cuja tese de que “tchê” era uma palavra e “oxente”, não, gerou algumas discussões:

— Vocês sabem quantas vezes as bombas atômicas que os Estados Unidos e a União Soviética têm podem destruir o mundo?

Eu levanto a mão.

— Uma, professor.

— Nada disso! São mais de 500!

— Uma, professor.

— São mais de 500!

— Só tem um mundo, professor.

***

Rosa Virgínia, de geografia:

—… Nostradamus preveu que o mundo…

— Nostradamus não preveu nada, professora.

— Como não? Eu tenho o livro!

— Dizem que ele previu algumas coisas. Mas não preveu nada.

***

Zilma me pega dando cola a Fabiano numa prova e me tira um ponto.

A redação daquele dia foi mais ou menos assim:

“Algumas pessoas xingam suas professoras. Xingam de vagabunda, de piranha, até de coisas ainda mais feias como prostituta. Isso não se deve fazer. Isso é feio.”

***

Dênisson quebra o pau com Santos e vai para a coordenação de disciplina, que julga o caso grave o suficiente para ir ao padre. Enquanto ele espera, me sento ao seu lado para fazer companhia.

Inara volta e leva os alunos que estão ali para a sala do padre Carvalho. E diz para eu ir também. Não adiantam os meus protestos de inocência. Eu também vou para o padre, revoltado com tamanha injustiça, reiterando meus protestos de inocência, enquanto alguém — Paulo? Dênisson? — enfia a mão no aquário e tenta matar os peixes do padre. Foi a única vez que o padre Carvalho não passou a mão na minha cabeça. Não gostou muito dos meus protestos.

O Arquidiocesano tinha acabado de inventar a punição retroativa. E talvez a preventiva.

Tirando da geladeira

Ao filho da puta que roubou minha digicam no começo do ano:

A minha câmera é melhor do que a sua. Aliás, você ainda não morreu, desgraçado?

Eu já

Atendendo ao pedido do Alexandre, resolvi entrar nessa onda confessional e aqui vai o meu “Eu Já”.

Eu já comi arroz
Eu já comi feijão
Eu já comi carne
Eu já comi macarrão

Eu já comi alface
Eu já comi berinjela
Eu já comi brócolis
E brigadeiro na panela

Eu já comi doce de caju
Eu já comi goiabada
Eu já comi doce de leite
Eu já comi marmelada

Eu já comi porco
Eu já comi javali
Eu já comi búfalo
Cobra não, nunca comi

Eu já comi caranguejo
Eu já comi siri
Eu já comi ostra
Eu já comi sushi

Eu já comi lagosta
Eu já comi pitu
Eu já comi escargot
Ah, que rima feia eu ia fazer

Eu já comi pão
Como eu gosto de pão
Eu já comi pão
Eu já comi pão

Eu já comi rã
Gosto muito, até
Tanto quanto de coelho
E eu já comi jacaré

Eu já impliquei com garçom
Porque ele não trazia carneiro
E quando trouxe, deixei de lado
Porque sempre fui encrenqueiro

Eu já comi espaguete
À bolonhesa e à marinara
Ao alho e óleo e quatro queijos
Mas gosto mesmo é à carbonara

Eu já comi sashimi
Eu já comi camarão
Mas até hoje desconfio
Que aquele peixe não era salmão

Eu já comi feijão, já disse
Mesmo sem gostar nada
É que eu não gosto de feijão
Mas encaro uma feijoada

Eu já comi pimentão
Eu já comi ervilha
Eu já comi rúcula
Eu já comi lentilha

Eu já comi acarajé
Eu já comi abará
Cocada branca e morena
No Tempero de Dadá

Eu já comi bolinho de estudante
(Que a Dadá, engraçadinha
Resolveu, com muito mau gosto
Chamar de punhetinha)

E como comi sanduíche
De todo tipo: bom e ruim
Mas gosto mesmo é de comida baiana
Só não gosto de xinxim

Já comi comida grega em Paris
Prova de que éramos burros
Adoro pastel velho, de boteco
E sempre gostei de churros

Eu já comi tanta coisa
Inclusive o que não devia
Mas o mais engraçado, mesmo,
É que tudo vai embora no outro dia

Essa é a minha filosofia.

Daqui a 20 anos

Frase bonitinha, esta: “Daqui a 20 anos, vamos nos lembrar de tudo isso e rir muito”.

Andei lembrando de alguns acontecimentos de 1984.

É. Quem sabe daqui a mais 20.

Túnel do Tempo

Aí pelos 18 anos fiz uma lista de lugares e épocas em que eu gostaria de ter vivido.

Atenas antes de Cristo.

Roma depois de Cristo.

Itália no cinquecento.

Paris no tempo de Luís XIV.

California, Arizona ou Texas na segunda metade do século XIX.

Viena nos anos 1900.

Paris nos anos 20.

Nova York nos anos 30

Nova York nos anos 40.

Nova York e Rio de Janeiro nos anos 50.

Londres nos anos 60.

Qualquer lugar nos anos 70.

Eu não gostava dos anos 80.

E gostei de estar onde estive nos anos 90.