Coragem sob fogo

Em maio de 1988 eu era presidente do grêmio de uma escola pública. Fui obrigado a comandar uma greve de estudantes, e o resultado foi a saída da diretora do colégio.

Agora um amigo me traz um jornal atual do grêmio, que curiosamente tem as mesmas preocupações de 15 anos atrás, as mesmas características. É quase como uma viagem no tempo.

Em uma “Nota de Repúdio”, o grêmio faz uma ameaça à direção da escola:

Se a diretora pensa que é insubstituível no cargo, lembramos ou informamos que há quinze anos atrás (sic) os estudantes deste colégio “afastaram” uma diretora. O que nos impedirá de fazermos (sic) o mesmo?

A confiança e arrogância dos garotos me deixa meio perplexo. Talvez não valha a pena contar a eles a verdadeira história daquela confusão, cuja moral é que herói é aquele que não teve tempo de correr e que a história é melhor contada por aqueles que, pelo menos aparentemente, venceram.

O passado que não passa

Sempre que venho a Aracaju é a mesma coisa: alguém conta uma história de adolescência que eu esqueci.

A maioria, claro, foi esquecida por conveniência. Coisas que se não obliteradas corroem a boa imagem que tenho de mim mesmo. Não entendo por que as pessoas insistem em lembrar certas coisas.

A impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice

O nome dela era Vanderlice, tenho quase certeza. Era uma catarinense loura, olhos talvez azuis, seios balouçantes livres de importuno sutiã, uma impressionantemente volumosa bunda redonda sempre em shorts folgados e minúsculos, tão ciente era a moça de suas graças. Corria o verão de 1988 e estávamos em Petrópolis, no congresso nacional da União da Juventude Socialista, ao qual cheguei inconsciente por excesso de sangue na corrente alcoólica. Sem dinheiro, enfadado por todo aquele blá-blá-blá, eu e dois amigos fundamos uma dissidência política: a UJA, União da Juventude Aloprada, instrumento popular revolucionário que se dedicava a ser o mais demente possível enquanto era expulsa de boates que não podia pagar. Petrópolis era uma cidade tão enfadonha. Para não dizer que estávamos totalmente à parte do processo político, assistimos a uma palestra sobre sexo (claro que porque a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice estava lá, tentando acomodar sua exuberância calipígia em medíocre e falta cadeira). Um de meus amigos, comovido pela impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice, fazia insistentes perguntas sobre sexo anal, enquanto todos nós contemplávamos ostensivamente o óbvio motivo de suas singelas dúvidas. Infelizmente, na noite daquele sábado, a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice agraciou outro sujeito, um paulista que não me parecia capaz de apreciar devidamente o maná caído em suas mãos. Mas na plenária final, no último dia, sentado a sudeste da impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice enquanto tentava convencê-la — sem sucesso e com excesso de tato, lamento admitir — de que prazeres inauditos e celestiais a aguardavam naquele paraibinha com cara de bobo, eu tive a minha redenção: ao apoiar firmemente no chão suas mãos e seus joelhos para se levantar em uma votação, a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice se revelou em toda a sua glória e exuberância diante de mim, a um ínfimo palmo destes pobres olhos que por fim encontravam sua razão de ser. E é por isso, por esse único momento fugaz e tão desgraçadamente transitório, que jamais me será possível esquecer a impressionantemente volumosa bunda redonda de Vanderlice. Boas lembranças e diamantes são para sempre.

Desejos

Um filho da puta furtou minha câmera digital.

O ladrão safado está achando que lucrou 1.200 reais.

Otário.

O pobre desgraçado não faz idéia de quanta coisa ruim vai acontecer este ano com ele.

Retificando (ou ratificando…)

Fuçando os comentários antigos (dificilmente leio comentários novos a posts antigos, a propósito) achei um interessante, em resposta a este post sobre John Updike:

Psoríase é uma enfermidade dermatológia que atinge cerca de 3% da população mundial. Não sei nem como classificar alguém que tem uma atitude dessas, demonstrando alegria e felicidade porque um outro é portador de psoríase.
Haroldo Tajra.

É chato admitir, mas concordo com o tal Tajra. É canalhice mesmo. É baixeza tripudiar sobre problemas físicos dos outros. É algo que minha mãe me ensinou a não fazer e que me incomoda. Portanto ele pode me classificar como quiser, que terá razão.

Mas pior é admitir que não sinto nenhum arrependimento, que faria tudo de novo, e que ainda acho aquele escroto mal-educado um escritor medíocre. Porque para mim ele vai estar para sempre sentado nos únicos bancos daquela estação de vaporetto, incapaz de oferecer seu assento a uma mulher grávida. E eu vou continuar alegre por aquele grosso ter psoríase e eu não.

Mau conselho

Engage people by expressing who you are.”
Barbara Moses, presidente da BBM Human Resource Consultants Inc.

Nossa. Se eu fizer isso todo mundo sai correndo. E ainda chamam a unidade de controle de zoonoses.

Resoluções de Ano Novo

Ser mais modesto. (Se não der, fingir. Dá no mesmo.)

Deixar de fumar.

Deixar de rir dos outros nas suas caras e rir pelas costas.

Acreditar que todo mundo é igual.

Aprender a dizer “sim, senhor” com mais boa vontade.

Ter mais paciência diante da teimosia ignorante dos outros e deixar de fazer o mesmo.

Deixar de ser um filhinho da mamãe mimado.

Abdicar do posto de dono da verdade.

E mais 92 resoluções que, assim como estas, eu não cumprirei de jeito nenhum.

Às cinco da tarde, na Confeitaria Colombo

Dizem que todo mundo tem o seu “canto do Rio”. O meu é a Confeitaria Colombo.

Não é pela comida; os doces de lá não são exatamente especiais, embora eu sempre peça a mesma coisa: viradinho de banana, bomba (que eles ainda chamam de éclair) de creme e uma coca com gelo e limão.

Eu amo a Colombo pelo seu pathos.

Conheço dezenas de confeitarias e docerias, nos mais diversos lugares. Mas não conheço outra que tenha um charme que sequer se aproxime da atmosfera que a Confeitaria Colombo; um charme que está presente desde o seu nome — não existem mais confeitarias, e sim docerias, casas de chá, qualquer nome que pareça mais sofisticado que um velho e prosaico “confeitaria” — e que passa pelos seus espelhos de cristal europeu, pelas molduras elegantemente trabalhadas, pelos detalhes de seu teto e pelo seu piso de ardósia.

É na Colombo que encontro a melhor tradução para o que me fascina no Rio, uma fascinação talvez específica para paraíbas, acho: essa mistura de história e grandiosidade, a sensação de que aqui estou no lugar que por séculos foi o centro do país, o lugar para onde tudo convergia. Talvez seja um Rio que nunca existiu de verdade, mas existência é algo que pode ser discutido noite adentro sem que se chegue à verdade.

É claro que o Rio de Janeiro não precisa dessas glórias passadas: tem beleza suficiente para justificar qualquer desvario. Mas eu amo a cidade principalmente pelo que ela foi, o lugar onde tudo acontecia.

E é na Colombo que percebo isso com mais nitidez: era aqui, em uma destas mesas, que Machado de Assis se sentava diante das mulheres com chapéus elegantes e vestidos diáfanos, era aqui onde o presidente tomava seu chá, era aqui que um mundo diferente espelhava a imagem idealizada que fazia de si mesmo.

Inventário

Pela primeira vez fiz um inventário dos meus livros e discos. Um trabalho cansativo, como minhas costas podem contar e a poeira que quase me sufocou podem confirmar. Minhas unhas ainda estão pretas.

Algumas poucas centenas de livros e uns 200 discos (a maioria em vinil; pelo visto, eu não compro mais discos há uns 10 anos), eis o meu patrimônio. Menos livros e mais discos do que eu imaginava ter. Entre eles as minhas pequenas preciosidades: uma primeira edição de Henry Miller que vale quase mil vezes o que paguei, uma Batman de 1965, uns cinco ou seis discos raros dos Beatles, bobagens que só têm algum valor porque pelo menos duas pessoas resolveram ir de encontro ao bom senso e fizeram um acordo, através do qual a insensatez de um justifica a estupidez do outro.

Dentro dos livros, pequenos objetos esquecidos: fotos de antigas namoradas, folhas soltas de papel com informações irrelevantes, telefones de gente que nem lembro quem é. Algumas agendas mostram que o meu passado é muito menos interessante do que as minhas lembranças dele, mas confirmam a minha tradição pessoal de nunca, nunca chegar na hora a coisa nenhuma. E constato que namorei em excesso mulheres que gostam de escrever bilhetes e cartas, como se o fato de suas idéias estarem escritas em letras normalmente bonitas as fizessem indeléveis e mais verdadeiras. Pelo menos as declarações de amor são maioria. Eu dei sorte. Ou então só guardei as coisas boas.

Era uma oportunidade de ouro para jogar fora o que não me interessa mais, como revistas, papéis, etc. Mas fico cada vez mais parecido com Gobseck, o usurário delirante de Balzac: incapaz de jogar fora qualquer coisa que um dia tenha significado algo, por mais ínfimo que tenha sido esse significado e por mais reduntante que tenha se tornado — como se algum dia historiadores da idiotice fossem precisar deles.

Como se todos esses pequenos nadas fossem a moedinha número 1 do Tio Patinhas.