Perereco

Nas férias de julho de 1980 eu fui para Aracaju. Foi quando conheci Perereco.

Eu nunca soube seu nome. Ele nos chamava de Perereco, e era assim que nós também o chamávamos.

Era um homem magro, alto, com um nariz enorme e sempre vermelho, cheio de furos, um andar meio trôpego e um sorriso triste no rosto. Todo dia, religiosamente, às cinco da tarde ele parava no bar que ficava ao lado da casa de minha avó, O Globo a tiracolo. Perereco era um homem elegante, sempre bem vestido dentro de seus conceitos – o que significava que lembrava vagamente um bicheiro, com sapatos brancos e camisas de manga comprida; isso não o fazia menos elegante, no entanto.

Nós, os meninos, ficávamos por perto. Sabíamos que eles iria nos pedir para comprar cigarros, sempre Carlton, e nos deixaria ficar com o troco, imediatamente transformado em balas e doces. Para mim ainda tinha uma vantagem: eu sempre lia a página de quadrinhos de O Globo, na época muito maior que a de hoje. E conversava um pouco com ele. Pelo menos para mim, aos 9 anos, Perereco parecia um homem inteligente e bem-informado.

O que eu não sabia era que Perereco era veterano da II Guerra Mundial. Segundo minha avó, ele tinha voltado da Itália “descalibrado”. Parece ter sido um rapaz promissor, inteligente, mas a guerra tinha deixado traumas que ele só conseguia afogar na cachaça. E ele se esforçava aplicadamente nesse exercício. Ele era irmão de um conhecido meu, líder comunista nos anos 60, com quem troquei ofensas — não, ofensas não, argumentos — através dos jornais no final dos anos 80.

O tempo passou e perdi Perereco de vista, mesmo indo morar em Aracaju. Da última vez que o vi, no início da década de 90, ele estava trancado do lado de fora de sua casa, ameaçando a todos os que estavam lá dentro, desesperado para entrar. E não deixavam.

Pequenas vinganças

Uma de minhas passagens favoritas dos Beatles — e tenho que confessar que são muitas — se deu quando a banda foi apresentar Yesterday pela primeira vez ao vivo.

Alguns anos antes, a mãe de Dotty Rhone, namorada de McCartney, disse que ele não tinha sentimentos.

Cá para nós, acho que não tinha mesmo. Mas a acusação calou fundo no rapaz. E então, naquele dia, sabendo a obra-prima que tinha em mãos, McCartney ligou para a dita senhora e disse: “Assista à TV hoje à noite pra ver se eu não tenho sentimentos”.

Um dia eu vou pegar alguns dos posts deste blog e esfregar na cara das pessoas que, repetidamente, dizem a mesma coisa para mim.

Como jogar um livro fora

Durante muito tempo tive um sentimento meio calvinista em relação a livros. Se eu começava a ler tinha que terminar, não importava quão ruim fosse o livro em questão.

Foi preciso Salman Rushdie para me libertar dessa maldição.

Não sei se alguém ainda lembra, mas em 1989 um livro de Rushdie, The Satanic Verses, foi condenado pelo aiatolá Khomeini e seu autor marcado para morrer, porque o consideraram ofensivo ao Islã.

No Brasil o livro só foi lançado no meio da década de 90, provavelmente por covardia. Mas Portugal editou o livro naquele mesmo ano; eu comprei em 90.

É preciso explicar uma coisa: o livro foi traduzido no Brasil por “Os Versos Satânicos”, culpa de algum repórter meio analfabeto em inglês, e a tradição ficou quando o livro foi finalmente traduzido aqui. Acontece que verse, em inglês, significa também versículo — como os da Bíblia. E era esse o significado original do livro: “Os Versículos Satânicos”. Foi traduzido assim em Portugal.

As pessoas podem acusar Khomeini de qualquer coisa, menos de que ele era burro. Ele percebeu a verdade, e qualquer leitor desavisado percebe também nas primeiras 30 páginas do livro: a intenção de Rushdie era provocar, mesmo. O livro inteiro era uma grande provocação. É ofensivo a Maomé e a praticamente tudo o que diz respeito ao islamismo.

Claro que nada justifica a atitude de Khomeini. O cristianismo, por exemplo, agüenta insultos piores tranqüilamente. E a liberdade de expressão é um direito sagrado no Ocidente. Mas nunca é demais lembrar uma lição que mamãe me ensinou: nunca cutucar uma onça com vara curta.

De qualquer forma, “Os Versículos Satânicos” foi uma obra libertadora em minha vida. Lutei, enfrentei briosamente aquele livro — mas aí pela página 100 eu simplesmente não agüentei. Tive que confessar que aquele era um dos livros mais chatos que já lera em toda a minha vida, a começar pelo estilo, uma derivação bastarda de Joyce e Faulkner. E pela primeira vez em toda a minha vida desisti conscientemente de um livro. Como dizia Dorothy Parker, “este não é um livro para ser posto de lado. É para ser jogado fora, com toda a força”.

É. Eu devo muito a Rushdie. E sempre agradeço a ele quando me defronto com um livro ruim. Para alguma coisa aquele feioso tinha que servir.

Ser baiano

Achando graça em um post da Dani, em que para dizer que ser recifense é ser isso e aquilo ela investe desnecessariamente contra a velha e boa baianidade, dizendo que ser recifense é “ter orgulho de dizer que o sonho do baiano é ser carioca e o do cearense é ser pernambucano”.

Pois é, Dani. A verdade é que a gente não sabe o que é ser baiano, porque normalmente temos outras coisas para adiar, e nossos próprios umbigos para admirar. Dizem que o Rio é lindo; mas em nossa sabedoria, sabemos que lindo mesmo é uma neguinha da bundinha empinadinha, quebrando numa roda de samba na Engomadeira.

Mas vamos lá, vamos tentar definir. Ser baiano é… Ser baiano é… Olha, minha preta, deita aqui do meu lado, faz um cafuné em mim e depois a gente pensa no assunto, tá?

Ou não.

Nossos comerciais, por favor

Infelizmente, por motivo de viagem, este blog vai passar por um pequeno recesso durante os próximos dez dias.

Rafael tem que fazer o seu trottoir.

Por isso, resolvi publicar aqui um pequeno esquete escrito há mais de dez anos. Depois dos acontecimentos de agosto de 1997 ele perdeu o sentido e a família real saiu de moda. Mas, com todo o cabotinismo de que sou capaz, ainda acho bastante interessante. E é, provavelmente, a única ocasião em que acertei em uma previsão.

Um abraço a todos, e até a volta.

Noblesse obliges

Palácio de Buckingham. Interior. Noite. Em uma sala luxuosa, decorada em estilo vitoriano, encontra-se reunida a Casa Real de Windsor. Presentes a rainha Elizabeth, sentada em frente a uma escrivaninha amontada de papéis, o príncipe Charles agarrado a uma samambaia, o príncipe Andrew ao seu lado, o príncipe Edward abandonado em um divã, lady Diana sentada ao lado do chefe da Guarda Real, acariciando suas coxas. Afastado do centro, o príncipe William assiste a tudo.

ELIZABETH: Muito bem. Os jornais já estão reclamando: dois meses e nada, nadinha.

Silêncio.

ELIZABETH: Qual é, pessoal? Precisamos de um escândalo, um escandalozinho que seja. Pelo amor de Deus, o que é que vocês querem? Acabar comigo? Por favor, colaborem! Defendam o que é de vocês!

Pausa. Ela olha para Charles.

CHARLES: Não olhe para mim. O último escândalo foi meu. Fui eu que dei. Por falar nisso, a Camilla quer o cheque dela.

Elizabeth finge que não ouviu e olha para o outro lado.

ELIZABETH: Di?

DIANA (parando de passar a mão na coxa do major): Pelo amor de Deus, Bess, eu não! Desse jeito vão cansar de mim. Ainda estão comprando a minha biografia. Um escândalo agora seria demais, você não acha? Pelo menos não tão cedo. (Pausa.) E tem uma coisa que eu queria falar, Bess: estou levando prejuízo nessa história. O dinheiro vai quase todo para o Morton. Bem que eu queria escrever minha própria autobiografia, mas você disse (em falsete) “não, não fica bem, deixa alguém escrever.” Certo. Fiz o que você mandou. O Morton escreveu e está enchendo o rabo de dinheiro. Eu devia parar de ouvir você. Nunca mais eu ouço você, nunca mais.

ELIZABETH (demonstrando ostensivamente infinita paciência): O que é que você queria, Diana? Você acha que eu sou maluca? Você é a nossa galinha dos ovos de ouro — perdão. Se você escrevesse a sua história, ela só podia sair de duas formas: ou ia ser um escândalo total ou então uma historinha de contos de fadas. Se fosse uma historinha melosa iam lhe chamar de mentirosa e aí adeus, Diana. As pessoas gostam de você porque parece sincera e sofrida, porque agüenta o Charles, você não viu aquela pesquisa? Mas, é claro, você poderia apimentar tudo e fazer um livro de deixar a vaca da duquesa de Windsor vermelha de vergonha. Pois se fosse um escândalo todo mundo ia achar que era tudo verdade, e quem vai ter pena de uma piranha, de uma vagabunda que faz tudo aquilo que está no livro? E aí, minha filha, fim de escândalos. E fim do seu cheque no fim do mês. Você ia ter que voltar a dar aulas para aqueles bacuris catarrentos naquela escola mixuruca, onde o máximo de escândalo que você ia conseguir era deixar que um idiota qualquer te fotografasse usando uma saia transparente. Você ainda lembra dos tempos difíceis, Di? Você quer voltar a eles?

Diana olha para baixo, volta a olhar para Elizabeth, sorri sem graça.

DIANA: Você tem razão, Bess. Desculpe.

ELIZABETH: Esquece. (Voltando-se para Andrew) E você, Andrew-my-darling? Tem alguma idéia?

ANDREW (com cara de enfado): Ah, mãe, tudo sobra para mim! Eu levei um baita corno no ano passado, lembra? E lembra quanto custou aquela viagem para que a Sarah pudesse fazer a parte dela? Eu lembro: uma grana, mãe, uma grana. O povo reclamou nem tanto de eu ter levado um chifre, mas de ter esbanjado o dinheiro deles. Aí a Sarah se mandou pra Argentina, e quem teve que ficar aqui agüentando as piadinhas de corno fui eu. Sei não. É melhor dar um tempo.

ELIZABETH: Mas meu filho, a gente podia criar uma bela história pra você. (Pausa.) Veja só: você podia desertar da Marinha…

ANDREW: Nem pense nisso, mãe. Marketing errado. O povo ia ficar com raiva de mim. Ia me achar um traidor. No mínimo um covarde. Afinal o dinheiro que a gente gastou para botar o moral das Forças Armadas lá em cima foi bem gasto…

ELIZABETH: É, tem razão… Deixa ver então… Que tal punk? Você não conhece nenhum príncipe punk, conhece?

ANDREW: Isso combina mais com o Charlie.

CHARLES (enfático): Me deixa fora disso!

DIANA: Ei, por que é que a Anne não está aqui? Talvez ela pudesse ajudar.

ELIZABETH: Ajudar como?

DIANA: Ora, Bess, ela se casou agora, não foi?

ELIZABETH: Foi.

DIANA: E existe algo mais excitante que traição na lua-de-mel?

ELIZABETH: Eles não estão mais em lua-de-mel.

DIANA: E de que isso importa? A gente grava uma fita com a Anne telefonando e se referindo ao casamento recente. O Charlie é bom de imitar vozes, diz umas putarias para ela. E depois a gente arranja alguém para ser o caso dela. Fácil.

ELIZABETH: Mas quem?

DIANA: Um soldado, ora. A Anne sempre gostou de soldados. Ela até já casou com um. Além disso o povo gosta, e cobram pouco. (Para o major) Não é nada pessoal, meu bem.

ELIZABETH: Não… Acho que não ia dar certo… A Anne já corneou o Mark antes. É repetitivo. Os jornais já disseram tudo o que tinham para dizer da… (Pára, iluminada por uma idéia.) Esperem! Acho que tive uma idéia! Genial, genial!

TODOS (vozes misturadas, balbúrdia): Que foi? Diz! Conta logo!

ELIZABETH: Incesto! É isso! Incesto! Charles e Anne! Mas que grande idéia! Caralho, isso nem aquele povinho de Mônaco fez ainda!

CHARLES (se levanta, transtornado): Não, não, e não! Puta merda, sempre que tem bagulho no meio sobra para mim?! Primeiro foi aquela crioula brasileira ridícula — eu até tive que dançar com ela, lembra? Que vergonha, meu Deus… Depois casei com a Diana e pensei que iam me dar uma folga. Porra nenhuma, era só um refresco. Aí vocês me castigaram com a Camilla. Mãe, eu já vi um acidente de trem na Índia. Mais de 300 mortos. E eu juro: aquilo não era tão feio quanto a Camilla nua. Porra, aquela do Tampax foi foda… Até hoje, quando lembro disso no almoço, eu perco o apetite. Agora vocês querem me empurrar a Anne. Ah, não. Aí já é sacanagem.

ELIZABETH: Mas, Charlie…

CHARLES: Não!

ANDREW: Mãe, eu tive uma idéia.

ELIZABETH: Ah, meu filho, idéias são o que eu mais quero agora. Vamos, meu amor, diga, diga, diga!

ANDREW: Que tal se o Edward pegasse Aids?

EDWARD (levantando-se do divã): Eu? A maldita? Ohhh… (Desmaia. Diana e o major ajudam-no a se recompor.)

EDWARD (irritado): Você sempre querendo me foder, né?

ANDREW (irônico): Eu teria que pegar uma fila imensa…

EDWARD: Seu corno!

ANDREW: Viado!

EDWARD: Corno!

ANDREW: Viado!

EDWARD: Corno!

ANDREW: Melhor tomar corno que tomar no cu!

EDWARD: Eu gosto e pronto! Corno manso! Chifrudo!

CHARLES (abraçando a sua planta): Parem com isso! Parem, agora! Vocês estão assustando a Gertrude! (Para a planta, em tom doce) Calma, Trudie… Isso vai passar logo… Daqui a pouco a gente vai embora daqui…

ELIZABETH (exasperando-se, dando tapas na mesa): Vocês dois, parem com isso, já! Vocês parecem crianças! É isso o que vocês são: crianças. Crianças mimadas. Parece que não percebem que têm a responsabilidade de um império nas mãos. Irresponsáveis. (Olha suplicante para Diana) Di, você não…

DIANA (interrompendo-a): Já sei! Tão simples, meu Deus! Chama a Sarah, Bess. Faz tempo que ela não dá as caras.

ELIZABETH: Eu não sei… Se tivesse outro jeito… (Pausa. Elizabeth pensa) É, Di, gostei da idéia… É boa. (Pega o telefone. Disca. Espera) Alô? Sarah? Sou eu, Elizabeth. Tudo bem com você? Recebeu seu cheque direitinho? An-han… Que bom. Fergie, meu amor, sabe o que é? Eu andei pensando muito em você ultimamente e…

SARAH FERGUSON (voz em off): Ah, não, Beth. Nem pensar. Porra, da última vez eu tive que mostrar meus peitos. Ninguém teve que mostrar os peitos, só eu. Por que não mostram os da Diana agora? Não são grande coisa, mas… Sei lá, manda ela fazer um filme pornô quando tinha quinze anos, uma coisa desse tipo. Eu mereço um descanso. Me deixa fora dessa! (Desliga o telefone.)

ELIZABETH (balançando a cabeça, desanimada): Essa Sarah… Intempestiva, não?

DIANA: Sempre foi uma mal-educada e desbocada e incompreensiva. Desligou na sua cara, Bess. Na sua cara. Você tem que fazer alguma coisa.

ELIZABETH (resignada): Deixa pra lá, Di. Reinar é isso mesmo, é a arte de engolir sapos. Mas como cansa, meu Deus… Tem cada um enorme…

CHARLES: Mãe?

ELIZABETH: Fala, filho meu.

CHARLES: Por que a gente não usa a vovó desta vez?

ELIZABETH: Onde já se viu velha dar ibope, filhote? Se desse, você não acha que ela já tinha ido parar nos jornais? Você acha que eu não pensei nisso, que não penso nisso toda noite, quando vejo aquela velha encher o rabo de comida e peidar e arrotar a noite toda sem fazer nada? Deixa de ser burro, meu filho…

Charles baixa a cabeça amuado.

ANDREW (resmungando, à parte): Eu ainda acho que o Edward devia arranjar um caso público e pegar Aids.

ELIZABETH (colocando as mãos na cabeça): Ai, meu Deus… Está cada vez mais difícil, e eu não conto com a colaboração de vocês… Se pelo menos o Maxwell estivesse aqui… Ele teria uma idéia. Ele era tão bom nisso. Sinto tanta falta do Bob nessas horas… Nós precisamos de novidades. O público quer sempre mais, não passam de uns abutres. Enquanto eram só besteirinhas era fácil, mas agora… Agora só falta um de nós matar o outro.

EDWARD: Quer que eu mate o Andrew? Dou umas três giletadas na cara dele, faço um buraco do tamanho de Piccadilly Circus na bochecha dele, arranco os seus cabelos…

ELIZABETH (horrorizada): Eddie! Isso é coisa que se diga?

ANDREW: Ele queria que eu pegasse Aids!

ELIZABETH: Foi só brincadeirinha, não foi, Andy? (Andrew olha para o lado e começa a assoviar o God Save The Queen) Você não pode ter levado isso a sério, Eddie… O Andy ama você, é seu irmão. E ainda que não amasse, ele sabe a falta que você faria aos negócios. (Pausa.) Vamos, meus queridos, qualquer idéia serve. Sexo, mentiras, traição. Qualquer coisa. Vamos! Precisamos trazer divisas para o país! Precisamos manter a monarquia viva! (Solene.) Se eu não fosse tão importante pra manter a estabilidade desta bosta, juro que arranjava alguma coisa para mim. Sei lá, algo assim como a Belle de Jour, por exemplo… (Elizabeth levanta os olhos para o alto, suspira longamente, sonhadora. Volta a si de repente, batendo palmas.) Vamos, meus queridos. Precisamos de novidades, urgente! A Inglaterra não pode parar!

Todos se calam, concentrados. Longa pausa.

Diana olha com expressão ausente para o seu filho William, que sentado do jeito como está é o mais perfeito retrato da pureza infantil.

Ela volta a olhar para Elizabeth.

DIANA: William.

Todos olham para William. Ele se encolhe ao ver todas as atenções voltadas para ele. Então todos voltam os olhos para Elizabeth, cujo olhar é indecifrável.

Apagam-se as luzes. Fecham-se as cortinas.

ELIZABETH (voz em off): Di, você sempre foi a mais inteligente da família…

Após cinco segundos a claque inicia os aplausos.

O Jogo do Foda-se

Alguém já prestou atenção à sensação de alívio que às vezes se tem quando tudo dá errado?

Passa-se, por exemplo, por horas ou dias de angústia, e tudo dá irremediavelmente errado. E então, como por milagre, toda a ansiedade vai embora, e fica apenas a sensação de que, mesmo com tudo devidamente ferrado, pelo menos você está livre daquela agonia. É como se o caminho estivesse liberado para o futuro. Quase como começar de novo.

Mas tem horas que nem isso acontece. E foi por essa razão, aliada ao fato de carregar uma herança genética de séculos de baianidade, que decidi seguir o caminho de Pollyanna e inventei o Jogo do Foda-se.

É para aqueles momentos em que o tal “Jogo do Contente” não funciona, porque não há qualquer motivo para você ficar feliz.

Deu tudo errado e mesmo assim você não está aliviado? Então dê de ombros, admita que você não pode resolver e diga, tranqüilamente: “Foda-se”.

De advogados e outros animais

Sempre achei que a principal razão para não ter concluído o curso de direito era o fato de me achar honesto e ético demais para ser advogado, juiz ou promotor.

Ou porque sempre achei que o exercício do direito (com D maiúsculo, como querem os “operadores do direito”, como se esse detalhe fosse dar dignidade à sua profissão) exigia a mais rasteira das inteligências, que basicamente consiste em não estragar o que os outros fizeram antes de você.

Mas agora, pensando nisso, descobri que há um outro motivo para a minha antipatia: o desprezo com que a raça trata o português. Pior: pensando que estão sendo brilhantes quando estão apenas sendo pernósticos e obtusos.

O português é uma língua gostosa como uma mulata do Pelourinho, feita para ser tratada com carinho e doçura, em diminutivos carinhosos; e não com mesóclises que mais parecem um estupro.

Logo no começo da faculdade fui obrigado a ler o livro (quer dizer, pedaços do livro) de um sujeito chamado Carlos Maximiliano. Esse macróbio é idolatrado no curso de direito, mas só porque advogados são antas ignorantes: Carlos Maximiliano foi quem arranjou o casuísmo legal que possibilitou a Getúlio Vargas mandar Olga Benário para o forninho na Alemanha de Hitler. Ele era conhecido como o “príncipe dos hermeneutas”; eu não perdia uma chance de chamá-lo de “príncipe dos apedeutas”.

Em vez de escrever, o retardado resolvia dar aulas de arcaísmo e de conhecimento da língua portuguesa. Ele não era só canalha; era um chato, e isso é pior, muito pior.

Como minha passagem pela faculdade foi pouco comum, não agüentei o dia em que minha professora leu um trecho daquele livro insuportável, em que o desgraçado se referia a ser “ofuscado pelas nuvens” de alguma coisa. “Professora, esse príncipe dos apedeutas escreve difícil, mas é burro como uma porta. Nuvens não ofuscam. Nuvens obnubilam”.

Acho que ela nunca entendeu o ponto que eu tentava defender.

Evolução

Quando era adolescente, eu queria levar uma vida de sexo, uísque e rock and roll.

Aos 20, queria levar uma vida de sexo, uísque e blues.

Aos 30, quero levar uma vida de sexo, uísque e jazz.

Sei não. Essa minha inconstância ainda me mata.