Molto bella

4 da manhã do sábado e vou fazer o check out no hotel. Desço com minha filha dormindo no meu colo.

Na recepção dois italianos bêbados com um saco plástico com água e cerveja. Com eles estão duas mulheres: uns vinte e poucos anos. Uma, a que tem cabelos mal pintados de louro e uma tatuagem tribal imensa no cóccix, é cearense, pelo sotaque; a outra pode ser de qualquer lugar entre o Rio Grande do Norte e Sergipe. As mulheres preenchem o formulário de check in da Embratur.

Os italianos estão bêbados. Passam a mão pelos corpos das mulheres, beijam-nas com ardor, mostram aquela lascívia de quem passou a noite em busca de algo que finalmente vai conseguir. Seus movimentos tentam ser fluidos, a fluidez da embriaguez, e mostram a falta de força, de punch dos europeus. Amantes que se querem sensuais, mas que não vão satisfazer suas musas, pelo menos não aquelas.

As mulheres conversam esporadicamente entre si, ocupadas consigo próprias. Não olham para mim nem para a minha filha no meu colo.

“Ele me chamou de molto bella, molto bella“, diz a morena para a loura, com a entonação cínica de quem já ouviu aquilo muitas vezes, e há muito deixou de acreditar.

O italiano que fala mais alto encosta-se com força na bunda da loura, os mesmo movimentos fluidos e embriagados e fracos. Passa a mão onde pode, beija seu pescoço com a volúpia dos incompetentes, mal consegue esperar subirem para o quarto.

Quando o elevador fecha a porta, olho para o funcionário do hotel com o mesmo sorriso cínico da morena ao espalhar aos quatro cantos que tinha sido achada molto bella, molto bella.

“Freqüência boa, a daqui.”

O funcionário olha para mim, se desculpando com um meio sorriso envergonhado:

“A gente não pode negar o check in, pode ser processado por discriminação. É difícil acabar com a prostituição desse jeito.”

Eu não falo mais nada, mas começo a pensar em evitar o Ibis das próximas vezes que for a Fortaleza; talvez jogue fora meu cartão de fidelidade da Accor. E como minha filha estava dormindo posso me permitir rir dos italianos, que saem do lugar onde vi mais mulheres bonitas por metro quadrado para passar uma noite inteira atrás de duas prostitutas baratas em Fortaleza, e então voltar à sua terra vangloriando-se de suas aventuras sexuais na terra da luz e da luxúria.

Originalmente publicado em 5 de dezembro de 2004

Simpatia para ser vadia

A imagem da moça não me sai da cabeça: moça pura, na casa dos vinte, com um desejo que queima sua carne mas que não é tão forte quanto as imagens de danação que lhe assombram quando fecha os olhos.

Foi ela quem foi parar no Monicômio atrás de uma informação que talvez seja fundamental para o seu futuro: “macumba para ser vadia”.

Ela cansou. Cansou mesmo. Ela queria ser mais solta, queria reagir melhor a toques grosseiros de homens apressados, queria ser como suas amigas e dormir hoje com um, amanhã com outro. Ela queria desencanar, porque algo lhe diz que não está adequada ao mundo em que vive. Seu comportamento talvez fosse louvável em 1904; mas agora, duas guerras mundiais e um sem-número de revoluções depois, ela é como um peixe fora d’água.

Sente que se conseguisse ser diferente, se suas pernas abrissem com menos hesitações, ela seria mais feliz. Talvez se passasse a usar lentes de contato, quem sabe? Talvez se mudasse a cor do batom.

Assim como até hoje ela não conseguiu ver graça na vida que leva, aquela vida insossa regrada por preconceitos que sua mãe colocou em sua cabeça desde cedo, também a vida com que sonha está começando errado. Porque para ser vadia ela não precisaria de macumba, não precisaria que Mãe Gorete de Oxum tirasse o seu dinheiro para lhe dizer o óbvio.

Para ser vadia ninguém precisa da ajuda dos orixás, não precisa de banhos de ervas nem de ebós na encruzilhada, não precisa sequer da pombagira. Para ser vadia, vadia de verdade, daquelas que as senhoras de Santana olham com nariz torcido, ela precisa fazer apenas uma coisa: dar.

Portanto dê, minha filha. Dê muito. Dê o quanto quiser: sentada, deitada, em pé, de ponta-cabeça. Dê com a mão na cabeça para não perder o juízo.

Mas simplesmente dar não caracteriza ninguém como vadia. No máximo fica uma fama de promíscua, o que se resolve quando achar um inocente que se case com você.

Para ser uma vadia, mesmo, você precisa apenas misturar prazer e negócios. Precisa se conscientizar que seu capital de giro está entre suas pernas.

Isso não quer dizer cobrar pelo que dá, porque então você não seria vadia, você seria uma puta. Há uma diferença; talvez pequena, mas há.

Uma verdadeira vadia funciona em função de presentes. Não pagamentos, repito: mas presentes, vantagens, agrados. No entanto, diferente das prostitutas que batem calçada, ela não dá para receber presentes; ela recebe presentes por dar. Há uma troca, claro, mas enquanto prostituição é uma profissão, o ser vadia é só um modo de vida.

Portanto, minha querida moça cheia de dúvidas, esqueça essa conversa de macumba. Um copo com água deixado de lado por sete dias só vai lhe trazer mosquitos da dengue agora que o verão está começando; um despacho só vai lhe custar o dinheiro que seria melhor aproveitado em um conjunto de lingerie tão provocante que ultrapassa o limite do bom gosto.

Deixe a macumba de lado. A não ser, claro, que uma de suas fantasias seja dar em um terreiro ao som dos atabaques que imploram a descida de Oxum. Em vez disso, lembre-se de Chico Buarque:

Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim…

Originalmente publicado em 05 de novembro de 2004

Lições

Um amigo entrou numa fria.

Estava saindo com uma menina de seus 20 anos, 10 a menos que ele.

Até o dia em que ela veio com aquele papo estranho. Disse que não estava preparada para um relacionamento a longo prazo. Que era muito nova para namorar a sério.

Então esse amigo disse o que 11 entre 10 homens diriam nessa hora:

“Tudo bem, a gente sai sem ser a sério.”

É claro que a menina se revoltou, como se revoltariam 11 entre 10 garotas na faculdade. “Tá pensando o quê? Eu não sou dessas, não!” Ele não conta o resto, mas gosto de imaginar a moça, insultada, levantando-se calada, chapéu à la Ingrid Bergman, abandonando-o de uma vez e para sempre, saindo do bar com a dignidade das grandes mulheres.

(Pode ter sido diferente e ela estava em motel e teve que esperar bufando ele tomar banho para irem embora e ainda lhe pediu que comprasse um sanduíche, mas a minha imagem, cá para nós, é mais bonita.)

Se serve de consolo ao amigo, cumpre notar que a moça já saiu de casa naquele dia com a firme disposição de terminar tudo. Nada do que ele dissesse poderia resolver. Se ele respondesse que queria “namorar a sério”, levaria a mesma tabocada nas fuças. Ela não era muito nova para namorar a sério. Ela era muito nova ou muito velha para namorar com ele.

Mas há algumas lições a serem retiradas desse episódio.

Caso uma garota diga o mesmo para você, caro senhor, não fale nada. Porque qualquer coisa que você disser vai dar em merda. Olhe no fundo dos olhos dela, como se estivesse buscando as profundezas do seu ser, admirando a pessoa maravilhosa, única, especial que ela é. Se maravilhosos nela forem os peitos e a bunda e o remelexo, tire isso da cabeça imediatamente: tais lembranças costumam acarretar reações fisiológicas inadequadas a esse momento. É preciso afetar sinceridade, a mais perfeita, a mais absoluta sinceridade, sinceridade casta como freira feia.

O tal olhar é fácil de fazer. Olhe fixo nos olhos dela e não pense em nada, por desnecessário: ela vai concluir que você está pensando coisas mil em meio a sua dor, talvez indagando-se o que fez para merecer tamanha infelicidade, talvez buscando no fundo dela suas mais secretas vontades, talvez simplesmente arranjando coragem para dizer o quanto a ama. O nada e o infinito são tão parecidos, e a vaidade costuma torná-los ainda mais semelhantes.

Vai parecer que por trás desse olhar que lhe desnuda a alma há algo profundo, denso, misterioso. Provavelmente depois de alguns momentos, confusa, ela lhe peça para falar alguma coisa, porque o seu silêncio digno e enigmático vai despertar, nela, uma sensação incômoda de que está fazendo uma grande sacanagem com um bom sujeito (se não despertar corra, porque ela é uma psicopata e na TPM fica pior); ela vai precisar de alguma palavra sua para achar que está tudo bem.

Se recuse então, porque se você disser que “tudo bem” ela se sentirá desculpada, e se começar a chorar sua dor ela vai achar que você é apenas um viadinho enjoado que merece mesmo ser jogado fora. Portanto diga que não há nada para falar — mas por favor, não insista muito nessa linha ou você vai se ferrar. Quando ela insistir pela segunda vez, e ela insistirá, saia pela tangente. Fuja do assunto e diga que ela é maravilhosa, que é isso e que é aquilo. Elogie. Elogie o quanto puder. Se for verdade, ótimo. Menos um pecado nas suas costas. Mas se não for, elogie do mesmo jeito. Minta. Minta até o fim, sem nenhum pudor. Não tenha escrúpulos em mentir descaradamente. Talvez Deus não lhe perdoe por uma mentira tão venal, mas se Deus é pai ele sabe que pecado maior é sair de casa achando que vai cair na putaria e em vez disso levar um pé na bunda.

A partir daí é preciso um pouco de calma. Vai depender dela e de um mínimo de sensibilidade de sua parte. Talvez ela se veja pensando que “tudo bem, talvez seja melhor dar uma chance a ele”. Talvez ela simplesmente vá embora.

Mas as chances são de que ela volte atrás.

E aí você consegue o que queria. Continua traçando a garota, e falando para os amigos: “Bicho, tô comendo uma ninfeta de 20 anos!”. Agora sem o peso de uma namorada.
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Este serviço é uma cortesia da GhostLovers, Inc.

Originalmente publicado em 10 de outubro de 2004

Da arte de dar bons conselhos

Fulana diz:
Eu queria ganhar dinheiro conversando. O problema é que não existe muita gente com saco pros meus assuntos.

Rafael diz:
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!

Fulana diz:
O legal é que eu digito super rápido. Então, daria para atender vários clientes ao mesmo tempo.

Rafael diz:
Ué, faz um MessengerSex. Não tem phone sex? Daqui a pouco os tarados vão pagar pra fazer sexo virtual. Nunca subestime essas coisas.

Fulana diz:
HEHEHEHEHE!!!! Que idéia boa!!!

Fulana diz:
Se bem que eu correria o risco de enjoar de sexo. Principalmente se os caras fossem burrões, se escrevessem muito errado…

Rafael diz:
Enjoa não.

Rafael diz:
Se fosse assim puta não se apaixonava.

Fulana diz:
Ah, mas você acha que eu ia ter algum cliente de alto nível? Até parece! Imagina eu me apaixonando por alguém que escreve: “oi putinha eu sinto uma tezaum enorme por vc. quero tranzar com vc, gostoza.”

***

Beltrana diz:
Rafa… qual o segredo prum cara se apaixonar? De verdade?

Rafael diz:
Um bom boquete.

Beltrana diz:
Não entendo onde é que eu erro.

Beltrana diz:
hauahuahuahuahuah

Beltrana diz:
não hehehe

Beltrana diz:
pra ele querer que eu seja dele, e de mais ninguém hehehe

Rafael diz:
Ah, aí só dando a bundinha.

Sério? Eu só queria saber o que faz uma pessoa me pedir conselhos a essa altura da minha vida.

Originalmente publicado em 16 de setembro de 2004

GhostLovers, Inc.

Como sempre, preciso de dinheiro.

E nessas horas é que a crise pare a oportunidade.

Sempre me incomodou o fato de não saber como ganhar dinheiro com a internet. Mas a Crica finalmente me mostrou o caminho.

Eu vou virar ghost writer daquele pessoal que se expõe nas vitrines do Par Perfeito e similares.

Será um serviço feito sob medida para aqueles homens necessitados e desesperados, ou simples maridos entediados que usam o site para pular a cerca. Gente que precisa urgentemente de uma — ou outra — mulher, mas que não sabe escrever direito e assim perde boas oportunidades de encontrar o amor de sua vida ou, o que é mais provável, a trepadinha do fim de semana.

Porque até no mundo virtual a coisa anda complicada. A mulherada anda seletiva, exige que o sujeito escreva corretamente e com o mínimo possível de lugares comuns. É injusto, porque se fossem bonitos, ricos e inteligentes esses “bons partidos” estariam na rua, aproveitando a vida; mesmo assim elas insistem. Mulheres nunca foram justas, e essa é grande parte de sua beleza.

Começo a me convencer de que há um grande futuro nessa iniciativa. Afinal de contas, em um mundo em que as pessoas têm cada vez mais medo de se apaixonar por alguém real, em que preferem enamorar-se das imagens de si mesmo que vislumbram nas palavras dos outros piscando em seus monitores, há espaço para uma nova carreira. Isso diz respeito a segurança, ao medo de serem magoadas; e é aí que nós entramos.

A GhostLovers, Inc. pretende oferecer um jeito simples de fazer com que esses aspirantes a amantes virtuais evitem cair em lugares comuns escritos em mau português, ou descambem para pérolas do bom humor descolado como “Você já viu perereca tomar leite de canudinho? Quer ver?”.

Porque com essas cantadas ninguém vai longe.

Vai ser simples. O cliente passa o briefing e a gente escreve seus e-mails. A idéia é garantir que a mulher vá para sua cama, e só depois descubra que ele é analfabeto e chato, e que tem frieira no dedinho do pé.

Poderemos falar de amor com ternura e paixão. Não estaremos envolvidos no processo que gera o interesse de uma pessoa por outra, nenhuma combinação química além daquela vontade premente de ganhar dinheiro se processará em nossos cérebros. Teremos a frieza necessária para jogar pacientemente todos aqueles joguinhos de sedução, os pequenos avanços e refugos, os pequenos negaceios que fazem a delícia dos amantes.

Ou seja: seremos apaixonados com juízo.

Estaremos para o amor como os jogos de ação estão para as guerras reais: você pode ter a mesma sensação, sem nenhum dos riscos. Na prática, seremos garantia de sucesso para sua empreitada, esteja você apaixonado ou simplesmente querendo carne nova.

Também poderemos evitar alguns traumas pós-coito. Melhor ainda, poderemos otimizar (já estou treinando o jargão) a única parte mais difícil que a conquista: a separação.

Por exemplo, o sujeito já comeu a coitada e agora quer ir embora. Mas terminar um namoro é sempre chato, e a maioria das pessoas fica tentando achar o melhor jeito de romper sem magoar a outra. Como normalmente esse pudor se deve não aos sentimentos da outra pessoa, mas à sua própria vaidade — porque não quer se sentir mal, não quer que sua imagem seja arranhada –, nós faremos esse trabalho sujo para ele. Cuidaremos de tudo e garantiremos que a pobre-de-cristo nunca mais lhe encha o saco. Ela vai entender o nosso recado, pode apostar.

Também poderemos realizar pequenas vinganças. Por exemplo, ela terminou com você de uma forma que o humilhou para sempre, que lhe deixou minúsculo, e você não sabe o que responder? Deixe que a gente resolve. Nós a humilharemos para você. Podemos ser maus, cruéis, perversos, porque nada disso é difícil quando você não tem nenhuma razão para segurar sua raiva.

Ela vai se arrepender de ter ousado tripudiar de você. Você broxou? Foi porque ela é uma baranga derrubada com crateras de celulite, bunda mole e pele flácida. Você não é mal-dotado; ela é que é larga. Ela disse que você é um fracassado? Na verdade ela é que não vale a pena por você gastar o seu dinheiro, ela é só uma mulher barata. Um tira-gosto.

A GhostLovers diz respeito a competência, não a escrúpulos.

Mas preferimos, claro, ser amorosos e bons. Porque acreditamos no amor, como putas que ao amanhecer voltam para casa e para seus filhos e maridos.

Acho que faremos sucesso.

Originalmente publicado em 06 de setembro de 2004

A bunda da mulher de John Lennon

Na livraria, aparece um livro chamado “Como John Lennon Pode Mudar Sua Vida”.

Não li sequer a orelha, mas tudo indica que seja um livro de auto-ajuda. E a síndrome da auto-ajuda tem chegado a absurdos quase inimagináveis. Talvez porque a arte de escrever algo do tipo exige a observância estrita de algumas regras.

Por exemplo, não se pode ser muito original. É preciso dizer algo com que o leitor não apenas concorde, mas em que já tenha pensado antes. Auto-ajuda, no fundo, é apenas uma forma de bajulação do leitor, ainda que injustificada. É um elogio à mediocridade. O talento do escritor de auto-ajuda é o talento do redator, de alguém capaz de dizer o que já foi dito de maneira convincente.

E então chegamos a John Lennon.

Ao ver o livro fiquei imaginando o que, exatamente, John Lennon teria a me oferecer. Conheço razoavelmente sua vida, como os leitores provavelmente sabem. Um amigo, por sinal, filmou o sujeito esvaindo-se na noite de 8 de dezembro de 1980. Era produtor da MCA, passava por perto, ouviu os tiros e correu para lá. Não que isso aumente ou diminua meu conhecimento biográfico sobre o finado, mas demonstra, de certa forma, o meu interesse no assunto. Ou talvez nem isso: vai ver contei apenas para me vangloriar de conhecer uma testemunha do crime. Freud explica. Ou Adler.

O fato é que conheço razoavelmente a vida do sujeito, do número 251 da Menlove Avenue ao quinto andar — ou melhor, à calçada — do Dakota Building.

E talvez por isso me sinta autorizado a dizer que qualquer livro que pretenda ensinar a viver a partir do exemplo de John Winston Ono Lennon é uma fraude.

Afinal, o que se pode aprender com a vida de Lennon? A se viciar em heroína? A ser um pai abominável, tragédia agravada pelo fato de ter feito um trabalho melhor com o segundo filho, só porque este teve uma mãe mais exigente? A ser uma pessoa insegura, agressiva e assustada, alguém que compensava sua personalidade detestável com um carisma impressionante?

Eu não quero aprender a viver assim. O mais grave, no entanto, ainda não foi dito.

Na contracapa de Two Virgins, primeiro disco da dupla, Lennon e Yoko Ono aparecem nus, de costas. E a verdade trágica então se revela, uma verdade feia, triste: a bunda dele é mais bonita que a dela. Não que alguma das duas preste para alguma coisa, mas a bunda dela é mais feia que a dele.

Então é isso que Lennon tem a me ensinar? A casar com uma mulher com uma bunda mais feia que a minha? É a isso que chamam ensinar? Porque um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua é indigno desse nome, indigno como o pipoqueiro que oferece o primeiro cigarro de maconha ao garotinho da terceira série. Um homem tem o direito de casar com seios grandes ou pequenos, rijos ou flácidos; mas nunca, mas jamais poderá casar com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua. Esse não é um homem, não merece o direito de coçar o saco. Esse não é um homem.

Em verdade, não importa quão feia ou bela seja a bunda dela. Não. Este não é um conceito absoluto, porque toda bunda — quase toda — tem seus atrativos, suas graças. O que importa é apenas que ela seja mais bonita que a dele. O contrário é um crime contra bilhões de anos de evolução da espécie. É um crime contra as gerações que virão. Um casamento desse tipo só pode ser celebrado em um beco escuro na zona do cais do porto por um bêbado inconsciente e possuído por Belial — não, por uma legião de demônios, dos piores e mais malvados e mais cruéis que possa haver.

Aos homens que se casam com mulheres cujas bundas são mais feias que as suas já é reservado um justo castigo, o de não saberem em sua plenitude o que é encostar-se à bunda dela sob o chuveiro, com a mão ensaboada sob a dobra do seio; mas esse ainda não é castigo suficiente.

Um homem que se casa com uma mulher cuja bunda é mais feia que a sua melhor faria se dormisse com cabras; e deveria ser justamente apedrejado por homens que depositariam suas vestes aos pés de Saulo de Tarso — e talvez tenha sido esse o crime de Santo Estêvão, casar com uma gentia cuja bunda era mais feia que a sua; e o crime de Madalena seria ter uma bunda mais feia que aquele com quem deitou em adultério, e a Bíblia teria escondido tudo isso porque é um livro de bondade e de perdão, paz na Terra às mulheres de bunda mais feia que a dos seus maridos.

(Mas no caso de Madalena o verdadeiro culpado é aquele que a cobiçou, pois não está em seu direito ao desejar a mulher do próximo quando a bunda dela é mais feia que a sua.)

Talvez eu exagere, mas tenho a impressão, sempre tive, de que Lennon tinha absoluta consciência do crime tenebroso cometido, e por isso cantava “Imagine que não há posses”; porque se não tivesse casado com uma mulher cuja bunda era mais feia que a sua, Lennon saberia que ela — a bunda, não a mulher — é sua propriedade única e absoluta, a ser guardada zelosamente com cerca elétrica e cães de fila. Mas Lennon não sabia de nada disso, não poderia, e tinha que se contentar em ser um sonhador. A falta que faz uma mulher cuja bunda é mais bonita que a sua.

Não, John Lennon não tem nada a me ensinar, o livro se me afigura inútil. A única coisa que Lennon poderia me ensinar seria a compor obras-primas, mas um livro não pode me ensinar a ter talento. E sobre o que é realmente importante, a capacidade de adorar a verdade calipígia, ah, sobre isso aquele rapazinho de Liverpool não tem nada a me dizer.

The real Brazilian bombshell

Não li a biografia de Carmen Miranda escrita pelo Ruy Castro.

Tenho certeza de que se trata de leitura agradável, embora os meus gostos atualmente se inclinem para a biografia de Stalin por Isaac Deutscher ou para as memórias de Churchill, livros não lidos mas bem na frente em ordem de preferência por interesses pessoais. São esses interesses que me dão a certeza de que, se eu ler a história da luso-brasileira, vai demorar muito tempo, e que só vou ler antes de ler qualquer biografia de escritores, que não valem nada, nunca, porque se escritores têm alguma coisa interessante a dizer eles dizem em seus livros.

De qualquer forma, mesmo sem ter lido tenho certeza de que o Ruy Castro fala desta foto, de Carmen Miranda rodopiando nos braços de Cesar Romero e mostrando para as câmeras a verdadeira brazilian bombshell.

É uma das fotos mais famosas da história de Hollywood, mais famosa até que os lendários filminhos de sacanagem da Joan Crawford, aqueles que ninguém viu mas de que todos ouviram falar. E talvez por essa foto se entenda por que Cesar Romero fez, anos mais tarde, o Coringa do seriado do Batman na TV. Porque ele tinha que rir de alguma coisa.

Só não sei se ele também fala de outra, de Carmen cantando num palco pequeno, e de um protótipo de paparazzo pegando um ângulo adorável e sugestivo.

Não sei que conclusão se pode tirar do aparecimento das vergonhas da Carmen. Não é só não usar calcinhas para não marcar a bunda, não pode ser. É mais que isso. Talvez seja uma atitude. Talvez seja um vacilo.

A única conclusão que eu consigo tirar é a de que, com toda a certeza do mundo, nesses dois dias Carmen Miranda não estava menstruada.

O sumiço das bichas

De uns tempos para cá Hollywood vem se especializando no homossexual da nova era, e a sociedade vem se dando tapinhas nas costas com seus bons sorrisos hipócritas por ver seus preconceitos diminuírem. A visão de si mesmos no espelho, de uma sociedade cada vez mais liberal e tolerante, é corroborada pela aceitação do que chamam de “amor entre dois homens” e que Oscar Wilde, mais sinceramente, chamava de “o amor que não ousa dizer seu nome”.

Talvez ela até esteja certa, e aceite mesmo que dois homens façam sexo entre si. Mas se forem duas bichas, ah, mona, aí a coisa muda de figura.

Viados e sapatões fazem parte de uma comunidade literalmente singular. Se você é pobre, pode ter a certeza de contar com o apoio de ricos que vão aliviar sua culpa defendendo melhor distribuição de renda, desde que não toquem no deles. Se você é mulher, vai aparecer um bocado de homens defendendo os seus direitos (e, talvez, tentar te comer depois, que isso é bom para todo mundo e faz bem para a pele). Se você é negro, uma porção de brancos vai cerrar fileiras ao seu lado contra o racismo.

Mas se você é gay, você vai estar sozinho.

Movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, como o Dialogay de Sergipe, não costumam contar com o apoio claro de outros setores do que chamam de sociedade civil organizada. Se fazem uma passeata, não se vê heterossexuais nelas — isso quando fazem, porque uma passeata de bichas e sapatões deve ser prato cheio para vaias e ovos podres. Para a maioria dos heterossexuais, bichas e sapatões podem até não ser mais aberrações, como já foram, mas ainda são incômodos. Algumas vezes justamente.

E nesse processo, parece ter se tornado fácil aceitar os dois extremos mais visíveis. Por um lado o homossexual que não trai os códigos comportamentais de seu sexo, como o viado com pose de homem e a sapatão de batom; por outro a caricatura, inofensiva de tão estridente, como a drag queen. Então a sociedade elogia os viados machos de Brokeback Mountain e se diverte na parada gay de São Paulo.

Este último caso é um dos mais interessantes. Porque ali não há mal nenhum. Porque desde que o carnaval é carnaval as pessoas vão aos montes para bailes gays, e se travestem em desfiles como os das Muquiranas em Salvador. Porque as bichas encapsuladas em paetês são engraçadas. Porque a partir do momento em que a coisa se assume como festa e paródia não há mais ameaça. As paradas gays são apenas um carnaval fora de época.

Enquanto isso o mito propagado por Brokeback Mountain, e outros tantos filmes que tratam ou tocam na temática gay, acaba sendo o de que viadagem é aceitável, desde que os homens falem grosso e as mulheres se mantenham femininas. A sapatão barra pesada, de calças baixas e pose de Humphrey Bogart sem saco, está automaticamente banida da imagem sanitizada do novos gays hollywoodianos.

No fim das contas, esse estereótipo do viado comportado de Hollywood é confortavelmente anódino. A única coisa que os diferencia de heterossexuais comuns é o fato de, à noite, dividirem sua cama e seus fluidos corporais com outros homens. Não há sequer uma sombra da bicha louca que usa jeans apertados e fala sibilando afetação. Fazendo uma comparação com o movimento negro, é como se seus defensores brancos definissem como padrão aceitável apenas os mulatos clarinhos.

Apesar das aparências, Brokeback Mountain não mostra gays; não tem sequer a gayety que lhes deu o nome. Mostra apenas uma variedade de amor e sexo perfeitamente aceitável por uma sociedade que se sente desconfortável ao lidar com algo que foge aos seus padrões.

Até há pouco tempo — antes que o politicamente correto levasse os bobos a acreditar que chamar alguém de “diversamente orientado sexualmente” o tornava menos viado e que homófobos iriam deixar de espancá-lo — , o termo preferido pelos gays americanos para se auto-definir era queer, esquisito. Partia do reconhecimento de que ser gay não era apenas manter relações homossexuais, mas principalmente ostentar um comportamento diferente. Uma bicha não está dentro dos padrões de uma sociedade baseada na família nuclear. E ao evitar tocar no direito dos homossexuais de assumir um comportamento diferente, filmes como Brokeback Mountain acabam reforçando o preconceito, definindo o padrão pelo qual homossexuais devem ser julgados.

É muito fácil aceitar homossexuais machos (aparentemente mais machos até que eu, este velho porco chauvinista, porque eu não falo grosso daquele jeito) como Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, ou lésbicas extremamente femininas e bonitas como as que de vez em quando colam um velcro discreto nas novelas das oito. Levantar a voz para dizer que não tem preconceitos porque não vê estranheza nesses casais é muito fácil, porque isso não representa nenhuma superação dos próprios preconceitos. Difícil, mesmo, é se sentir à vontade — ou pelo menos tolerar, de verdade — com a bichona que mora no apartamento do lado e tem um comportamento que, definitivamente, lhe incomoda — aquelas festas noite adentro ao som de Maria Bethânia e risadas quase histéricas. A bicha cheia de trejeitos, escandalosa, às vezes apenas uma caricatura de mulher, essa não aparece nos filmes, a não ser como motivo de riso. Porque, se aparecesse, não despertaria os mesmos bons sentimentos em uma sociedade que, por mais que se orgulhe de defender obviedades como a união civil homossexual, ainda cuida para que seus filhos mantenham distância do tio viado.

Mas, voltando a Hollywood, o que parece estar acontecendo é curioso. Se esse modelo se afirmar, o que parece ser um avanço social vai se tornar um retrocesso enorme. Porque a partir dele, as bichas acabarão perdendo o direito de ser bichas.