Rubem Fonseca morreu

Grandes escritores têm o dom de lhe dar o equivalente intelectual a uma porrada quando você os lê pela primeira vez. De repente você encontra um universo novo, com idéias novas, e a excitação causada por isso tem poucos paralelos na vida. Quem se perdeu em meio às madeleines de Proust sabe o que é isso.

No entanto é raro que o mesmo escritor lhe dê essa porrada duas vezes.

Rubem Fonseca fez isso comigo. Quando li “O Cobrador”, me vi diante de uma linguagem nova, de uma temática densa como a realidade brasileira, e um talento raro e conciso para a a narrativa. Aquilo era diferente de tudo o que eu tinha lido. E, até hoje, considero o conto que dá título ao livro um dos mais brilhantes que já li.

Acontece que Fonseca (ou Zé Rubem, como dizem seus amigos) tinha mais para mim. Quando terminei de ler “Lúcia McCartney”, eu estava em êxtase. Aquele é, certamente, o mais perfeito livro de contos já escrito em língua portuguesa. Só por esse livro, Fonseca merece todo e qualquer prêmio que tenha recebido ou venha a receber.

Mas aquela seria a última supresa que Rubem Fonseca me proporcionaria. Pelo menos a última agradável.

Acho que comprei “Romance Negro” (seu primeiro livro de contos em muitos anos desperdiçados com romances sofríveis) no dia em que chegou às livrarias. E de repente o que se tinha lá, 13 anos após seu último livro de contos, era um amontoado de repetições temáticas e lingüísticas de sua obra anterior.

Foi uma frase de um conto daquele livro que acabou com o estado de admiração absoluta que eu sentia por ele. “Seu corpo nu está me dizendo que é tudo verdade”. Essa frase me chocou. Corpos nus não falam nada, dizem apenas se estão com frio ou calor, no máximo se estão com tesão. Corpos nus não têm o monopólio da verdade.

A partir daí, a obra de Rubem Fonseca foi perdendo o interesse para mim. Ainda corro para comprar seus livros quando são lançados, por puro e invencível vício. Mas depois de desastres como “O Selvagem da Ópera” e “O Doente Molière”, ou livros fracos como “A Confraria dos Espadas” e “Histórias de Amor”, eu não espero mais o brilhantismo de antes. Espero apenas mais artesanato, mais repetições de cacoetes literários cansados. É como o oitavo cigarro do dia. É só mais um.

Durante algum tempo pensei que eu podia estar passando por uma espécie de “fastio” da obra de Fonseca, que tivesse me acostumado, ou que o tempo tivesse simplesmente passado. Para resolver essa dúvida reli todos os seus livros; e a impressão que tinha sobre livros brilhantes como “A Coleira do Cão”, “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador” se manteve.

Não era eu que tinha cansado.

Era ele.

Deus é marciano

A edição de setembro da Atlantic Monthly traz um bom ensaio de Paul Davies, professor australiano, sobre uma questão interessante: até que ponto a descoberta de vida extra-terrestre afeta a nossa noção de Deus?

A questão levantada por Davies é simples: a existência de vida inteligente fora da Terra põe em cheque a noção cristã de que somos a raça escolhida. Afinal, rezam que Deus mandou seu filho único comer o pão que o diabo amassou só para nos salvar. Como diz o sujeito, Cristo não morreu pelos golfinhos ou pelos homenzinhos verdes, mas pelo Homem.

Portanto, vida inteligente fora deste planetinha poria em cheque toda a noção judaico-cristã de que somos o ápice da criação divina. O encontro com uma civilização espiritualmente superior seria um duro baque para a idéia de que somos os “escolhidos”. O ensaio, claro, lida com temas mais profundos e com mais hipóteses, e por isso vale a pena.

As questões levantadas são curiosas, e discutem o papel de Deus e a validade da crença humana. E ele chega à conclusão de que, embora o cristianismo tenha que se virar para explicar a base de seu sistema teológico, a humanidade teria provavelmente chegaria à conclusão de que o trabalho de Deus se revela na criação de condições propícias à vida em todo o universo.

(Curiosamente, ele chama isso de uma nova tendência; pois eu, que entendo tanto de teologia quanto de física quântica, cheguei a essa mesma conclusão há muito tempo, sem precisar discutir tanto o assunto; é a única plausível depois de Darwin.)

Para os brasileiros, claro, a coisa é ainda pior. Admitir que Deus não é brasileiro é um golpe quase insuportável. Pior só se encontrássemos uma seleção de futebol melhor que a nossa.

Auto-psicografia

Há alguns artistas que, se eu tivesse chance de encontrar pessoalmente, não hesitaria em encher-lhes a cara de porrada.

Godard, Pollock, Picasso estão na lista. Pollock e Picasso porque sua genialidade (eu não engulo Pollock, mas reconheço o talento do sujeito) estabeleceu um padrão para os simples mortais impossível de ser seguido, ao mesmo tempo que irresistível, que resultou numa coleção de absurdos artísticos pela qual até hoje pagamos a conta. E Godard… Bem, não sei direito como aquele chato pôde influenciar tanta gente. Mas influenciou, e por isso um dia ainda lhe acerto as fuças.

Mas nenhum deles me deve tanto quanto Fernando Pessoa.

Aquele sujeito acabou com a poesia em língua portuguesa, porque milhares de pessoas que não tinham sequer a sombra do seu gênio acharam que poderiam seguir seu exemplo. Confundindo poesia com divã de analista, encheram o saco de milhares de leitores desavisados. “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todo os sonhos do mundo”. Os responsáveis pela minha raiva são aqueles idiotas que não entenderam esse recado, ou entenderam bem demais. Talvez não seja culpa de Pessoa; mas que ele é o responsável, é. Nos tempos da métrica o sujeito pelo menos fazia um esforço para se adequar. Hoje, nem isso.

Tudo culpa daquele esquizofrênico filho da puta.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil…

Falei daquele grande canalha, o Pessoa, e lembrei de um trecho de “Poema em Linha Reta”: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco”.

Há muitos anos eu ia sempre a uma cidadezinha do interior de Sergipe, Canindé do S. Francisco, onde fica a usina hidrelétrica de Xingó. Ia porque lá eu era rei: “o neto do dono da ‘rádia’ “. Não era neto, era amigo e discípulo, mas isso importava pouco.

E os forrós da região eram movimentados.

Só quem conhece a situação de ser forasteiro bonitinho e aparentemente poderoso em um cu de mundo pode saber o que isso significa. Você entra no salão e dá uma olhada. Você não se pergunta em quem vai dar em cima; você se pergunta quem vai comer, só isso. Não há dúvidas, só certezas. O único cuidado é saber se a felizarda está desacompanhada; do contrário você pode terminar a noite com uma peixeira delicadamente alojada em suas tripas.

Nesse dia fiz como sempre. Olhei em redor e escolhi. Um pouquinho de dança, um pouquinho de conversa, e lá fui eu embora.

Algumas horas depois voltei. De novo: uma olhada, uns passos de dança e uma saída providencial.

A noite estava tão boa que não custava nada tentar a sorte mais uma vez. E assim lá volta este pós-adolescente esfomeado. Já era dia claro e mais uma vez o ritual se repetia. Uma olhada e uns passos de dança.

Mas enquanto eu dançava e iniciava a litania de convencimento, um sujeito empurrou outro ao meu lado. O cabra foi ao chão. Quando levantou, uma peixeira brilhava em sua mão.

Foi tudo muito rápido. Olhei para a mulher que estava comigo e pensei: “Foda-se.” Larguei a moça nas mãos do acaso e saí correndo.

É. Sabe o Álvaro de Campos? Eu saco o cara.

O problema de Deus

Acho que isso faz de mim um ignorante, mas discussões sobre Deus me interessam muito pouco. Já a idéia de fé, um problema humano, é outro departamento, e esse até que é instigante.

Há muito tempo cheguei à conclusão de que a existência ou não de Deus independe de eu acreditar ou não n’Ele. Há quatro opções possíveis, e a nenhuma das quatro há uma resposta definitiva e comprovável.

Além disso, independente de existir ou não, Deus não deixa de ser uma invenção do homem. Para a maior parte das pessoas, a perspectiva de um fim absoluto é insuportável; há que existir uma razão para a vida, ou no mínimo uma explicação. Como dizia Lennon, “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”.

Tudo isso é um prato cheio para quem gosta de discussões metafísicas. Mas ainda adolescente cheguei a uma conclusão simples — talvez covarde — e fiz um acordo com Deus. Se Ele existir, quando morrer eu descubro. Se Ele não existir, quando eu morrer já não vai mais importar.

Enquanto isso eu vou rezando.