Os dois e-mails de Bill Clinton

Pouco antes de Clinton sair da presidência de Eviland, assisti a uma entrevista em que ele discorria sobre futuro e tecnologia.

Poucas vezes vi alguém tão preparado, tão consistente e tão seguro do que estava falando. Parecia que Clinton tinha feito isso a vida inteira, que passava suas tardes conversando com gurus das melhores universidades do mundo.

Como eu sempre soube que Clinton era mais inclinado a descobrir usos inovadores e gostosos para charutos a especular sobre o futuro da tecnologia, fiquei pensando que aquilo, sim, era uma assessoria competente. O que nem de longe é um demérito para ele. Clinton era a prova de que um sujeito que escolhe assessores mais inteligentes que ele é mais inteligente que seus assessores. E o seu carisma era algo de outro mundo.

Mas jamais poderia imaginar que o seu uso da tecnologia fosse tão ínfimo: em 8 anos na Casa do Mal Branca, Bill Clinton mandou exatos 2 e-mails pessoais.

Cada dia mais admiro Bill Clinton. É um artista.

Palavras, palavras, palavras

Conversando com um amigo, começamos a lembrar as tiradas de um político que ambos conhecemos.

A minha história era curta. Numa campanha, esse político começou escrevendo seus próprios discursos — o que para mim era uma maravilha, já que eu tinha outras partes do programa de TV e outros candidatos para cuidar. Um dia ele me chamou para dar uma olhada em seu texto.

“Senador, está bom. Mas essa referência ao “regime discricionário” é esquisita, ninguém vai entender. Coloque ditadura.”

“Você tá louco, Rafael? Eu fiz parte daquela bosta!”

A partir desse dia passei a escrever seus discursos na TV.

De carapinhas e pixains

Como é bom viver em um país que não é racista.

É curioso o modo como algumas pessoas concedem em admitir, candidamente, que alguns negros são bonitos. E citam, por exemplo, Denzel Washington. Com isso talvez tenham a sensação de que não são racistas, porque afinal de contas conseguem achar um negro bonito.

Sensação falsa. Os negros admitidos como “bonitos” são aqueles que, em geral, têm traços próximos ao caucasiano. Quanto mais afilado for o nariz de um negro, mais bonito ele é. Quanto mais finos forem seus lábios, mais bonito ele é.

Isso não tem nada a ver com sexo. Nesse aspecto, pelo menos, somos bastante democráticos — Gilberto Freyre fala que essa sensualidade percebida em uma pele mais escura vem já de Portugal, quando a loura do norte era para casar e as morenas do sul, com forte sangue mouro, eram para a saliência nossa de cada noite. Admiramos a bunda grande da negra, porque isso nos inspira sexualmente. E se essa negritude é “amaciada” pela infusão de sangue branco, no caso das mulatas, é melhor que o paraíso dos muçulmanos.

Esteticamente é diferente, entretanto. Este povo mestiço, ansioso por embranquecer, não consegue achar a raça negra bonita. Até que se esforça — que não se compare o racismo brasileiro ao americano –, mas é incapaz em ver a beleza negra em si, porque aplica seus padrões europeus a algo que tem seus próprios valores. Não é que achem negros realmente bonitos; acham brancos escuros bonitos, o que é bem diferente. Quantas pessoas não dizem que “não é que eu não seja racista; eu só não acho negro bonito”?

Como qualquer ideologia dominante, esse comportamento, de certa forma, é absorvido pelos próprios negros. Há outra razão para a moda de se raspar os cabelos? É como se, já que que não se pode esconder a cor da pele, que se elimine alguns dos indícios desse traço pouco recomendável na sociedade. Como se dissessem “pixaim bom é pixaim raspado”. A moda dos anos 90 de pintar os cabelos de louro, embora irreverente, debochada, no fundo era a mesma coisa: apontava para a discrepância de padrões estéticos e uma negação dos próprios valores.

O black power, imbuído da noção de enfrentamento e afirmação da força da raça (eu não gosto do termo; porque gente não é cachorro, e porque geneticamente não há diferença entre eu, um norueguês quase albino, um negão, um japonês e Raoni — com exceção daquele treco lindo que ele coloca na boca), valorizava o que era intrinsecamente negro: a carapinha crescia em direção ao céu, orgulhosa de sua forma e textura. Isso parece ter se perdido; e o resultado é a predominância dos valores europeus.

E um valor predomina sobre outro, ainda que modificado e suavizado.

Como seria bom viver em um país que não é racista.

A última morte dos neanderthais

Há um mistério em paleontologia que sempre me interessou: o que fez com que os neanderthais se extinguissem?

Várias teorias explicam seu fim, e elas aumentaram desde que se descobriu que eles não eram antepassados do homem, como se pensou no início, e sim que chegaram a coexistir na Europa durante algum tempo. Alguns achavam que o frio os tinha dizimado, outros que não sobreviveram ao isolamento genético. Alguns acham que houve cruzamentos com o homo sapiens, a maioria rejeita a hipótese.

A teoria que mais me agrada foi transcrita em ficção — sempre mais interessante que a realidade — por William Goldman (autor de “O Senhor das Moscas”), num livro chamado “Os Herdeiros”. Os neanderthais, tecnologicamente atrasados, teriam sido dizimados pelo homo sapiens. É um comportamento típico nosso, essa agressividade latente que nenhum lustro de civilização consegue destruir. Se um dia chegarmos a Andrômeda, chegaremos nos estapeando na nave espacial.

Essa teoria é a minha preferida porque seus elementos de tragédia épica não podem ser suplantados por nenhuma outra.

Há uma grandiosidade cruel na extinção de toda uma espécie semelhante, no ódio gerado pela mera diferença. Para que se tenha uma imagem aproximada do que isso significa seria necessário imaginar uma horda de homens embrutecidos pela ignorância e pelo preconceito, armados com paus, pedras e archotes, atacando um grupo de deficientes mentais.

Agora um grupo de 30 cientistas lança uma nova teoria: eles não conseguiram resistir aos invernos cada vez mais fortes da última era glacial, há cerca de 30 mil anos. A novidade é que o frio teria matado também a maior parte dos primeiros humanos europeus.

Em paleontologia a verdade é volátil, extremamente frágil. Um fragmento de osso, uma cárie no lugar errado ou os restos de uma fogueira milenar podem colocar de cabeça para baixo tudo o que temos por real. Essa nova teoria deve se tornar a dominante, porque quando a verdade é tão leviana o consenso assume seu papel.

O último vestígio de majestade da história dos neanderthais vai embora. Deixam de sucumbir em combate e morrem encolhidos de frio, impotentes e famintos, por não poderem compreender a idéia darwiniana de que o mais adaptado sobrevive.

Mais uma vez, a ciência mata um pouco da poesia que encontramos neste mundo e em sua grande pequena existência.

Comentário sobre os comentários

É interessante que quando gostamos de alguma coisa tendemos a achar que ela é a melhor. É natural: confiamos no nosso próprio julgamento, e se gostamos de algo é porque ela passou por nosso crivo. Logo, é a melhor possível.

Mas podemos gostar de uma coisa e, ao mesmo tempo, admitir que ela não é a melhor. Você pode gostar de alguém e ter juízo suficiente para não achá-lo um Richard Gere ou uma Gisele Bündchen.

Por exemplo, sou beatlemaníaco há mais tempo do que consigo lembrar. Acho, sinceramente, que são a melhor banda pop de toda a história, a mais inventiva, a mais consistente. Posso passar meses falando deles aqui neste blog, de detalhes bobos como por que McCartney solta a franga no baixo em Don’t Let Me Down à importância histórica de uma letra imbecil como a de Love Me Do.

Mas eu disse pop. Por mais que goste deles, não caio na armadilha de achar que sua música é a melhor em termos absolutos.

Por um lado, o termo “melhor” é geralmente relativo. Por outro, requer alguns padrões objetivos de julgamento. Sob esse prisma os Beatles perdem longe de gente como Mozart e Beethoven, para ficar nos hors-concours; baixando o nível, melódica e harmonicamente o bebop é muito mais inventivo. Portanto, os Beatles são os melhores dentro de um universo restrito. Se os comparamos, por exemplo, aos Rolling Stones, isso é verdadeiro; mas quando se considera o que de melhor se fez em música, e padrões artísticos e técnicos, eles infelizmente não chegam aos pés de Bach. Reconhecer isso não impede que eu troque dez discos de Bach por um compacto dos Beatles. Questão de gosto, fazer o quê?

Outro exemplo pessoal: eu gosto de romances policiais. Até já coloquei uns dois posts aqui, comentando quais autores acho melhores e por que tenho ojeriza a Agatha Christie. Dentro desse universo você pode definir os melhores e os piores; mas se você tenta extrapolar e comparar um Hammett, por exemplo, a um Cèline, aí a coisa complica.

Resumindo, pode-se gostar do número 7 sem achar que ele é maior que o 9.

No caso de J.K. Rowling, o que Bloom falou foi exatamente o que o DNAS achou: que ela é o maior amontoado de clichês que ele já viu, que encheu folhas e folhas de papel com as frases repetidas nos livros de Harry Potter. Eu nunca li mais que uma página de Harry Potter, mas se o acho objetivamente ruim, longe de mim dizer que crianças devam manter distância dele. Pelo contrário. Clichês muitas vezes são legais — se uma coisa se tornou clichê é bem provável que tenha sido porque era verdadeiro ou abrangente. Para crianças, Harry Potter deve ser muito interessante. Mas não o tomemos pelo que não é: Harry Potter é entretenimento de massas para uma faixa etária limitada, não é literatura. O mesmo vale para Stephen King.

A questão aqui é que há um padrão pelo qual se julga literatura, e hoje interesses de mercado promovem material inferior como se fosse obras primas. Por isso a necessidade de um Bloom, com respaldo suficiente para dizer que o branco é branco e o preto é preto.

O venerável senhor Bloom

Tenho infinita cautela diante de livros que pesam mais que um seio (não sabes quanto pesa um seio? Oh, pobre, pobre, pobre de ti!).

Talvez tenha sido por isso que deixei passar a chance de comprar a primeira edição de The Western Canon, o livro de Harold Bloom que fez sua fama internacional (além de má escolha estética foi mau investimento; o livro valeria muito mais hoje). Achei, depois de folhear o livro, que sua visão literária era descaradamente anglo-saxã, o que normalmente encaro como neo-colonialista; essa impressão foi confirmada depois de alguns artigos elogiosos sobre o livro.

A outra razão para deixar passar o livro foi o fato de que ele não dava a Balzac o valor que lhe era devido, pelo menos na minha opinião. Ou seja: o topo absoluto, o mestre dos mestres, posição que Bloom reserva para Shakespeare.

Na Primeira Leitura deste mês há uma entrevista do senhor Bloom. Conheço quase nada dele. Está lançando um novo livro, com uma interpretação interessante de Hamlet: sua inação não vem da ignorância, mas do fato de que sabe demais, e se recusa a participar de uma vingança medíocre e sem significado em uma peça também medíocre. Nietzsche tinha dado o primeiro passo nessa direção interpretativa, que Bloom agora aprofunda.

Essa entrevista me tornou, de repente, um apreciador do venerável senhor.

Eu não posso deixar de gostar de alguém que não tem o mínimo pudor em colocar Stephen King e similares em seu lugar — a lata de lixo da literatura. Normalmente as pessoas fazem elogios pífios ou se calam a respeito desses fenômenos “literários”, por razões de mercado. É um bom negócio para todo mundo, pelo dinheiro para uns, pelo disfarce da ignorância para outros.

O pior em tudo isso é que essa visão, que tem mais a ver com mercado que com cultura, fortalece uma espécie de ditadura da mediocridade, que julga esnobe e elitista qualquer manifestação cultural acima da capacidade de compreensão do espectador americano médio, o six-packer, viciado em basquete, apolítico e abestalhado pela TV e pela indústria cultural.

É cada vez mais comum ver gente ostentando um orgulho tosco em achar música erudita chata, em julgar ópera uma palhaçada. Perdem a chance de se deliciar com uma cantata de Bach ou de perceber a beleza de “La Traviata” (aliás, acham que toda ópera é igual, quando normalmente se referem à escola italiana. “Carmina Burana” é ópera. As obras de Wagner são ópera, pelo menos quando não são dirigidas por Gerald Thomas).

A democratização do acesso à educação e à cultura criou apenas milhões de semi-analfabetos. E o século americano foi cruel com o que chamam de highbrow.

Aos poucos essa cultura média, fermentada com marketing e alimentada pelo mínimo denominador comum vai se tornando o verdadeiro referencial universal. Literatura deixa de ser arte para ser julgada segundo os padrões da indústria de entretenimento. Para que ler Thomas Mann ou Proust se John Grisham dá mais assunto de conversa, se me faz sentir mais integrado ao mundo em que vivo? A diferença está também em um fato simples: o tempo que “No Caminho de Swann” me toma é igual ao de uns 15 livros de Michael Crichton. E numa cultura quantitativa, é melhor ler 15 livros imprestáveis que uma obra genial. Assim as pessoas podem se orgulhar de ganhar por 15 x 1. Só resta citar o dinamarquês de olfato sensível: O, throw away the worser part of it, and live the purer with the other half. Good night, but go not to my uncle’s bed. Assume a virtue, if you have it not.

É por isso que um Harold Bloom, sem medo de assumir que alguns valores não são relativos e devem ser julgados pelo que são, se torna cada vez mais necessário. É preciso que alguém mantenha os padrões em uma altura razoável. Alguém que mostre as coisas como elas realmente são: Bush um canalha corrupto, J. K. Rowling uma escritora medíocre, King uma fraude, e por aí vai.

Do jeito que as coisas vão, é até possível que um dia eu compartilhe a opinião de Bloom acerca de Shakespeare. Lady, by yonder blessed moon I swear.

O esquema nigeriano

A essa altura todo mundo já ouviu falar do “esquema nigeriano”, um conto do vigário que age por e-mail.

Um sujeito diz que tem alguns milhões de dólares para receber, numa operação financeira complicadíssima, e diz que precisa de sua ajuda. Em troca, você ganha uma pequena fortuna. Então você dá seus dados bancários e eles limpam sua conta. Algumas pessoas se divertem levando a troca de e-mail às últimas conseqüências, se divertindo às custas dos malandros; outras simplesmente caem na conversa e entram pelo cano.

É o caso de 171 clássico: alguém lhe promete uma vantagem pouco ou nada lícita por estar em situação desfavorável, você acredita e acaba sendo enganado.

O curioso é que, mesmo nas poucas aulas de direito que eu freqüentava, defendia a descriminação desse tipo específico de estelionato, ou pelo menos mais simpatia dos juízes. Há vários e vários tipos de golpes, a maioria dos quais injustificável. Mas, para mim, quando alguém se ferra achando que está tirando vantagem de alguém em dificuldades, essa pessoa deve simplesmente tomar seu prejuízo calada e aprender a ser um pouco mais ética.

É como diz o ditado: “você não consegue enganar um homem honesto”. A vítima desse tipo de estelionato não é uma pessoa honesta. É apenas um malandro burro.

E um dos Princípios de Rafael reza que você pode nascer mau-caráter ou burro, nunca os dois ao mesmo tempo.

As delícias de um mundo real time

Uma coisa é dizer algo, se arrepender imediatamente e depois fingir que não disse. Outra é imprimir a bobagem, distribuir para meio mundo e depois ter que desdizer tudo aquilo.

Steve Jobs tem um blog, onde colocou mais um de seus posts mínimos às 15:39 do dia 22:

My colleague Chris Bell gave an interview to E-Commerce Times, about iTunes.

Às 19:19 ele resolveu ampliar o post:

My colleague Chris Bell gave an interview to E-Commerce Times, about iTunes. I know that all those articles are becoming tiring, but we always mention our products. We can’t stay here and not advertise when we have easy opportunities to do it.

Às 23:52, vendo que talvez tivesse dito uma bobagem e ofendido o pessoal que apesar do seu market share minguante lhe dá ampla cobertura, corrigiu mais uma vez:

My colleague Chris Bell gave an interview to E-Commerce Times, about iTunes. I know that all those interviews are becoming tiring, but we always mention our products. We can’t ignore the media and not advertise when we have easy opportunities to do it.

O problema é que o blog oferece um canal RSS: e assim todos nós, assinantes, recebemos as burradas de Jobs seguidamente, uma atrás da outra. Em real time.

Essas maravilhas do mundo moderno escondem perigos insondáveis.