O inimigo do meu inimigo

Uma conspiração de oficiais nazistas para assassinar Hitler no final da II Guerra já foi tema de vários filmes, e agora os conspiradores foram reconhecidos pelo primeiro-ministro Gerhard Schroeder como “patriotas“.

O reconhecimento tardio não é apenas um equívoco histórico. É também uma tentativa da Alemanha de se reconciliar a qualquer custo com a herança mais maldita que um país já carregou. Mostra que o desconforto alemão com a sua história está longe de acabar.

O reconhecimento tardio passa por cima de várias questões importantes. Por uma analogia torta, tenta fazer da tentativa de golpe de Estado uma espécie de ápice da resistência alemã. Tenta fazer crer ao mundo que o nazismo, afinal, não foi a coroação de um longo processo de formação da identidade nacional, e sim a conseqüência de um putsch numa cervejaria de Munique, restrito a uns poucos alucinados. Que a culpa pelo Holocausto não é da Alemanha, mas de uma excrescência histórica específica e impossível de se repetir, antes ou depois.

Infelizmente, não houve absolutamente nada de heróico nesse complô. O que se via ali eram oficiais nazistas, participantes entusiasmados da aventura expansionista e anti-semita alemã, desesperados ante o fracasso iminente. A tentativa de golpe nem longe se assemelha, por exemplo, à atuação dos maquis franceses. Não se tratava de resistência popular ao nazismo, nem mesmo de divergências ideológicas internas. O que estava em jogo, ali, eram as peles daqueles oficiais. Mais que “patriotas”, eram políticos oportunistas que se viam encurralados, percebendo que o sonho megalomaníaco tinha acabado, e que precisavam de um expediente que lhes permitisse escapar a um destino que, acertadamente, adivinhavam problemático.

Para que os conspiradores pudessem ser chamados com justiça de “patriotas” seria preciso que se insurgissem contra a base ideológica do nazismo. Seria preciso que acreditassem que o anti-semitismo foi o maior crime já cometido contra o gênero humano; e se isso for pedir demais, deveriam ao menos ter bem claro que as políticas interna e externa nazistas eram moralmente erradas, e não apenas um erro estratégico. Eles não discordavam do arcabouço moral ou ideológico do nazismo: basicamente, achavam apenas que tudo aquilo tinha sido mal conduzido. O problema de Hitler era não ter feito as coisas direito.

Há dois elementos básicos que constituem o nazismo. Um é o totalitarismo político combinado ao tradicional expansionismo teutônico; mas o que realmente o diferencia de outros regimes totalitários, como o fascismo, é o seu conteúdo anti-semita. Nisso a chata da Hannah Arendt (que criou o conceito delirante de “riqueza que não explora”) está corretíssima. A noção hedionda de que se pode estabelecer um sistema mecânico e extremamente funcional para a eliminação total de um povo cujo único crime era descender da tribo de Judá, e transformar isso em política de Estado, foi um momento único na história, e não pode ser esquecido ou minimizado com a glorificação de meros oportunistas.

Não era a Solução Final que horrorizava os conspiradores, muito menos o anti-semitismo; não era sequer a guerra que causou a morte de bem mais de 30 milhões de pessoas. O que os amedrontava era a perspectiva de declínio e queda, de fim de suas carreiras. Não são mais patriotas que Himmler tentando negociar a rendição alemã em meio ao caos de uma Berlim em ruínas, pouco antes de ser expulso do partido por Hitler.

E isso não é patriotismo. É política barata, pragmática, que qualquer vereador de cidade pequena entende e pratica. É sobrevivência. Seria preciso que se revoltassem contra a Noite dos Cristais, contra as meninas judias trancadas nos porões da Alemanha e escrevendo diários de desespero, contra os milhões morrendo na Rússia. Mas não fizeram isso, fizeram apenas o que qualquer rato faz quando o navio está afundando.

Louvar a memória de golpistas de última hora não é resgatar a dignidade alemã. É manipulação barata que visa, unicamente, maquiar a história e tornar um passado degradante algo mais palatável. A Alemanha, 60 anos depois da grande mancha em sua alma, ainda precisa desesperadamente de alguns exemplos que mostrem que o nazismo não pode ser confundido com a própria identidade nacional naquele momento.

Simplismos desse tipo ajudam a obscurecer a compreensão do mais aterrador fenômeno de massas já visto. Dão a ele uma dimensão extraodinária que o desliga do seu processo de construção. Levam o nazismo ao território dos contos de fadas, removendo-o da realidade, dos pequenos oportunismos dos Speer e Göering da vida, e o tornam tão fantástico que é apenas como se fosse um sonho maluco já esquecido.

Talvez isso possa servir de acalanto ao sentimento de honra alemã. Talvez. Se acreditam que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, talvez isso possa servir como um consolo mínimo. Mas ao fazerem isso se afastam da verdade, e o consolo não se torna sequer um analgésico. Não dá para encontrar a paz com mentiras. A dor e a vergonha vão continuar.

6 thoughts on “O inimigo do meu inimigo

  1. Salve Rafael! Mandou bem. Concordo com quase tudo o que você falou, mas, tenho minhas dúvidas quanto ao holocausto judeu ter sido o maior crime contra a humanidade. Penso que foi um crime hediondo, mas questiono essa supremacia em relação a tantos outros crimes hediondos que se cometeram (e se cometem) contra a humanidade ao longo da história. Mas, isso não é uma disputa de quem sofreu mais, não é mesmo? Embora alguns segmentos judaicos façam parecer o contrário. Entendo a discussão em torno do holocausto, como uma discussão em torno da crueldade, da ignorância e da ganância humana. Elementos que permeiam várias histórias dentro da História. Também me incomoda um pouco esse lance de imputar a todos os alemães, de todos os tempos (a nação alemã), passado e futuro, a culpa (que é muito diferente de responsabilidade) pelo ocorrido durante a segunda guerra. Fico pensando em como é nascer e crescer sob o peso dessa culpa. Será que o resto do mundo tem dignidade suficiente para cobrar isso? Será que todas as nações que um dia dominaram, exploraram e devastaram, têm dignidade real para se colocarem no lugar de juízes, e condenar a nação alemã pelo ocorrido? Inclusive as nações que durante boa parte da segunda guerra faziam vista grossa para o que acontecia na Alemanha. A história é muito mais complexa do que nos parece, eu penso. Tem muitas informações que são distorcidas, ocultadas e manipuladas antes, durante e depois dos fatos ocorridos. Não quero com isso amenizar o holocausto, muito menos desculpar seus idealizadores, só estou querendo pensar com mais parcimônia os fatos ocorridos. Ninguém é santo na história humana, e infelizmente, apezar de todo o sofrimento, quase ninguém aprende a lição de respeito e tolerância pelo diferente. Somos todos, em alguma medida, coniventes com o sofrimento alheio. No mais, vou me despedindo por enquanto, estou indo fazer meu doc (explico tudo no meu blog), não sei quando voltarei a aparecer, mas quando der eu te visito porque vale a pena a leitura. Um grande abraço. A salamo a-leikom!

  2. Esse trauma alemão gera um sentimento de culpa tão grande que chega a ser ridículo. O cara não pode peidar perto de um judeu que é acusado de nazista… credo!!! A Alemanha passou de inferno à paraíso para os judeus.

  3. São inúmeros os exemplos de falta de bom senso do ser humano, seja ele de qq raça, cor, credo e condição social, se tem algo que realmente une a humanidade é a falta de equilíbrio e bom senso. Nisso estamos todos nivelados.

  4. E o pior disso tudo…
    Digo, nunca é pior suficientemente pois a humanidade costuma surpreender!
    Mas penso com tristeza que os filhos de meus filhos talvez vejam filmes em que os judeus (como estado) sejam os vilões e os muçulmanos (o povo religioso) sejam as vítimas. É surrealista como o situação pode se repetir tantas vezes em tantas realidades e tempos diferentes.
    Eu lembro dos filmes de cowboy (e os índios se lascando), dos filmes de colonizadores (e os nativos se lascando), dos filmes sobre as grandes dinastias européias (e a plebe européia se lascando), dos filmes sobre a inquisição e a colonização protestante norte-americana (e os “não cristão” ou “heréticos” se lascando), nos filmes sobre os grandes “movimentos” políticos e étnicos africanos, asiáticos e latinos (e os nativos se lascando mutuamente)…
    Eu vi tanta coisa hedionda (maquiada ou não), repetidamente, com cenários e personagens diferentes… mas como o mesmo roteiro.
    E meus netos vão ver também (se a coisa toda não “se lascar” antes disso). E seu eu estiver vivo até lá vai ser muito difícil explicar isso tudo… principalmente a parte de Israel e a Palestina.
    Acho que vejo mais filmes do que devia.
    É que nos filmes sempre tem alguém bem intencionado ou arrependido.
    Nem que seja um oficial alemão de tapa olho.
    Vamos (desculpa o trocadilho) ver.

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