OnoLennon

O comentário do Allan me fez pensar um pouco sobre a relação de Lennon e Yoko.

A primeira pergunta é fácil de responder: Lennon viu em Yoko uma mulher, só isso. Uma mulher extremamente inteligente com quem ele sentia estar falando de igual para igual, diferente daquela matuta que tinha em casa cuidando do filho indesejado. E que, a julgar pelas litografias que ele publicou, era muito melhor de cama do que ele poderia imaginar. Essa é uma excelente razão.

Acho que há outros fatores, também. Imagine-se fazendo parte dos Beatles nos anos 60. Deve ser algo assustador. Você não existe, a não ser como um beatle. E então aparece uma mulher que reforça o seu ego, que lhe vê como um indivíduo, e que o acha maior que a banda que se tornou parte de sua vida.

Durante muito tempo me perguntei que diabos Lennon estava pensando quando dizia que seu trabalho fluiu melhor fora dos Beatles, quando sua obra solo é nitidamente inferior. Precisei envelhecer um pouco para perceber o que ele queria dizer.

Cada disco dos Beatles tinha, em média, de 12 a 14 faixas. Dessas, duas eram de George. Uma era tradicionalmente de Ringo, composta por quem quer que fosse. A John e Paul restava a briga por umas 10 faixas.

Agora imagine-se dono de um talento monstruoso, na flor dos seus 20 anos, compondo como quem faz xixi. Você tem umas 15 músicas para o próximo álbum, mas sabe que só vai conseguir emplacar umas cinco — e essa era a maravilha dos Beatles, serem uma democracia de verdade em que só o que todos gostavam via a luz do dia. Essas cinco canções certamente terão sua concepção, ou pelo menos sua execução, alteradas pelo resto da banda.

Se isso foi a grande força dos Beatles, essa seleção que a competição forçava deve ter deixado alguém como Lennon ansioso por um modo de despejar o resto de sua criação, de dizer como cada canção seria gravada. Porque o talento que ele possuía vinha com um ego do mesmo tamanho. O resultado pode ser considerado inferior, canções mais fracas baixam a média de cada disco, mas o que está ali é a sua obra, como ele quis.

Eis o ponto: foi Yoko quem lhe deu coragem para assumir isso. Em troca o influenciou muito com a sua própria atitude artística, que podia até fazer algum sentido nos anos 60, mas que consistia basicamente em fingir que aquele amontoado de bobagens era algo realmente importante. Lennon, que sempre teve um senso de humor brilhante, passou a se levar a sério demais, e pelo menos na minha opinião isso prejudicou sua obra. Pelo menos um disco seu foi destruído por Yoko, o Some Time in New York City.

Quanto às razões pelas quais Yoko ainda vive à sombra do falecido, bem, pode não ser só por isso, mas certamente é pelo dinheiro, também. Sempre é pelo dinheiro. Os milhões de dólares que os beatlemaníacos despejam anualmente em sua conta são certamente um bom incentivo para tirar dos arquivos arrotos de Lennon e empacotá-los para consumo.

É interessante notar que, segundo as más línguas, o casamento dos dois já estava fazendo água quando Lennon foi assassinado, e dizem que ela já namorava Sam Havadtoy. É bem provável. Mas seria cinismo dizer que aquela não foi uma belíssima história de amor, que chegou às raias da loucura. Pelo menos durante a maior parte dos anos 70, eles viram a si mesmos com duas partes indivisíveis de uma mesma entidade. Imagine pode ser assinada só por Lennon, mas tem a mão de Yoko. O ataque mais pesado a McCartney, How Do You Sleep?, foi composta em parceria.

Talvez ela seja mesmo uma sombra. Mas é bom lembrar uma sombra só existe em função de um corpo. E não seria exagero dizer que Yoko era um dos membros do corpo que ela hoje divulga incessantemente. No fim das contas, ela trabalhou por aquele dinheiro.

***

Falando em dinheiro: os Beatles sempre odiaram as versões diferentes que a Capitol, gravadora que os representava nos Estados Unidos, lançava de seus LPs. Diziam que de cada disco deles a Capitol fazia 3 ou 4. Conseguiram unificar os lançamentos em 1966, e em 1975 a discografia oficial no mundo inteiro passou a ser a inglesa.

Agora estão lançando todos aqueles discos em CD. Certamente vão alegar que contêm versões diferentes de algumas músicas, que são documentos históricos, etc.

Só não vão dizer que é pelo dinheiro.

3 thoughts on “OnoLennon

  1. Rafael,
    Fiz algumas afirmações ingênuas no último comentário, sobre Lennon e Yoko. A realidade é que eu não gosto da Yoko. Nunca gostei. Não a acho culpada pelo fim dos Beatles, que cedo ou tarde ocorreria, mas sempre me incomodou a presença daquela sombra pegando carona no sucesso de Lennon. Coisa de fã. Quanto aos motivos que a fazem editar e reeditar qualquer material a respeito de Lennon, é óbvio que a grana conta (e muito!), mas acredito na existência de outros motivos, como manter o próprio espaço na história, que aumentará com a morte dela. Lennon sem Yoko já existia. Yoko sem Lennon teria prosseguido sua trajetória anônima, mas ela encontrou Lennon e ele era um mito. O mito morreu. Viva o mito! 🙂
    Ciao.

  2. “Talvez ela seja mesmo uma sombra. Mas é bom lembrar uma sombra só existe em função de um corpo”.

    Putz, que bela frase, Rafael. Belo texto também, como habitual.

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