O comunista e os especuladores

Michael Jackson sempre foi a prova de que o comunismo não acabou: ele continua comendo criancinhas.

Não gosto dele. Não gosto da idéia de comprar um disco dos Beatles e lhe pagar royalties. Sua música não me interessa, e seus tempos de brilhantismo se esgotaram em Thriller, uma boa mistura de música negra e rock. Como o resto do mundo, olho para o seu rosto como quem olha para um circo de horrores, entre enojado e fascinado pelo que ele tem de bizarro, de realidade distorcida.

Não tenho nenhuma dúvida de que ele se divertiu com o menino que o processa agora. Não tenho dúvida de que a grande maioria, se não a totalidade, dos depoimentos a seu favor são comprados, e caro.

E no entanto estou torcendo por ele no julgamento que se arrasta.

Jackson é doente. É um doente burro, ainda por cima, porque para evitar complicações bastaria a ele pegar um órfão de um país qualquer do terceiro mundo para suas brincadeiras que, e nisso eu acredito, ele julga razoavelmente inocentes — o que é uma mão boba aqui, uma boca ali? Pedofilia se dá bem com poder econômico. Pedófilos de todo o mundo vêm fazendo isso há séculos, desde que o mundo é mundo.

Não acho que ninguém em sã consciência tenha alguma dúvida de que tudo aquilo foi armado; que a mãe do cucaracho que apareceu segurando a mão de Michael Jackson em um documentário sabia o que estava fazendo ao mandá-lo para Neverland, que ela entregou o filho a um pedófilo para tirar dinheiro dele — e se o primeiro caso, aquele do início dos anos 90, foi resolvido em um acordo de cerca de 30 milhões de dólares, este certamente daria mais dinheiro. Como qualquer especulador ela fez um investimento, e seu capital de giro foi seu filho.

É difícil acreditar que pedófilos, a raça mais abjeta encontrável em uma humanidade que se esmera em apresentar horrores sempre renovados, possam ser principalmente vítimas. O julgamento de Michael Jackson prova que sim.

Não que Jacko seja inocente. Sem dúvida nenhuma ele merece ser castigado, tanto quanto merece tratamento. Mas a idéia de que sua desgraça é causada por uma mulher sem escrúpulos, uma mulher que vende o seu próprio filho, consegue ser mais enojante que a pedofilia do tarado de Neverland.

Em tese, a justiça serve para proteger a sociedade de ameaças. Jackson, certamente, é uma delas. Mas serve também para evitar que especuladores gananciosos e sem escrúpulos predem suas partes mais frágeis — e, por alguma razão esquisita, Jackson também é uma delas.

Falta alguém no banco dos réus, e esse alguém é a mãe mais canalha, menos merecedora desse nome que apareceu em muito tempo.

Os frutos do outono

Saímos do supermercado, eu e minha mãe, ao mesmo tempo que um velho e sua namorada.

Velho mesmo: seu andar era vacilante e encurvado, em contraste com a energia proletária da mulher que o acompanhava. Minha mãe fez um comentário horrorizado, algo sobre o velho ser explorado.

E eu não entendi, não entendi nada. Respondi que aquele era o meu sonho, chegar à velhice daquela forma. Não interessa o óbvio, que ela esteja com o velho por causa do dinheiro dele; por causa de sua beleza, de sua virilidade, da firmeza de suas carnes é que não poderia ser. O que interessa é que passando dos 70 anos ele tem alguém que lhe faz companhia, lhe dá um pouco de alegria. Ela serve aos seus interesses, e por sua vez recebe a sua parte. É quase um acordo comercial — desigual, talvez, mas justo –, e um dá ao outro o que pode dar. Ele não era explorado.

Foi o que eu disse à minha mãe. Tudo o que quero é chegar a essa idade, e chegar com capacidade para fazer um acordo desses. Eu só queria ter mais dinheiro e conseguir algo melhor, porque aquela era uma mulher feia e eu, bandeiriano, amo como as criancinhas.

***

Vi meu outro personagem pela primeira vez numa doceria aqui perto, sentado com a mulher cerca de 40 anos mais nova e o filho de seus 3, 4 anos.

Eu o conhecia, embora ele não se lembrasse de mim. Foi meu professor de história na quinta série, e era um bom professor: suas aulas falavam pouco de história, e acabavam sendo grandes conversas sobre conhecimentos gerais. Nunca tive muita intimidade, porque nunca fui de dar ousadia a professores, mas gostava de suas aulas, em meio àquela modorra de matemática, português e a parte mais chata da geografia.

Uns seis anos depois nossos caminhos se cruzaram mais uma vez, ele agora diretor de uma escola pública — uma daquelas escolas que o movimento estudantil considera fundamentais. Era o tempo das passeatas e das manifestações públicas, e puxei uma ou duas de lá; minha lembrança é de um diretor bastante cooperante e simpático, mas todo mundo colabora com a democracia quando há centenas de alunos meio selvagens gritando palavras de ordem à sua porta.

Olhando para ele deu para imaginar a sua história de vida. Se aproximando dos 60 anos, se separou de sua primeira mulher — ou talvez tenha apenas engravidado a namorada, e se divorciado e se casado com ela e tentado um recomeço tardio em sua vida.

Agora eu sempre o vejo nos finais de tarde, às vezes com a mulher, sempre com o filho, fazendo-lhe mimos, olhando para ele sempre com um sorriso meio bobo nos lábios. É um pai como poucos: carinhoso, atencioso. Deve ser melhor pai para esse menino temporão que para os outros que tenha tido.

A vida tem umas coisas engraçadas, e ela nunca pára de me espantar.

O fã, esse desconhecido

Fã, decididamente, é uma raça esquisita.

Nos últimos tempos apareceram dois comentários aqui de fãs diferentes. Uma dos Beatles, outro do Nirvana.

São provavelmente duas das bandas mais importantes da história — embora o Nirvana costume ser superestimado demais. Ninguém contesta isso. O engraçado é que, por causa da admiração excessiva, eles andaram dizendo umas coisas esquisitas aqui.

A fã dos Beatles se recusava a ver a realidade — ela discordava do fato de John Lennon ter sido um pai abaixo do execrável para seu primeiro filho, Julian Lennon, ou de McCartney ser um egomaníaco, essas coisas. Em e-mail (porque eu também sou fã dos Beatles) citei algumas frases nada abonadoras de Julian sobre seu pai. Mas mesmo assim ela se recusava a ver as coisas. Ela sabia mais sobre Lennon como pai do que o seu filho. Eu desisti. Era como se, para admitir que eles foram grandes músicos, eles tivessem que ser também santos. É um comportamento comum entre beatlemaníacos.

O outro caso, mais recente, foi de um fã do Nirvana. O comentário referia-se ao show que o Nirvana deu no Brasil e onde Cobain, para lá de Bagdá, cuspiu na câmera e mostrou o pinto:

Bom caro “colega”, realmente eu não concordo com sua opinião. Kurt era muito mais do que colocava no palco, ou do que a mídia fazia transparecer. Ele era um ser humano, e como todo indivíduo, era diferente dos outros, tão diferente que não concordava com o rumo que sua carreira tomou, com sua individualidade sendo vendida em bancas de jornais ou na podridão da MTV. Realmente creio que vc viu o que Kurt quis que pessoas como vc visse.

Sempre que vejo essa história de “pobre rock star vítima do sucesso” tenho vontade de vomitar, porque é a coisa mais adolescente e monomaníaca que conheço. Dizer que um sujeito rico, famoso e etcetera enfiou uma bala na cabeça porque sua carreira estava tomando rumos estranhos é de fazer rir, apenas, mas “individualidade sendo vendida” traz de volta aquele revirar do estômago. As pessoas idealizam umas coisas muito malucas.

Eu devo ter visto aquilo que o Cobain quis, mesmo. E continuo dizendo que tudo o que eu vi foi um sujeito caindo pelas tabelas de tanta heroína, mostrando um pinto pequenininho como se isso fosse o máximo da rebeldia.

Eu não pude evitar ouvir

É um dos meus blogs preferidos.

O Overheard in New York é, basicamente, uma coletânea de frases entreouvidas em Nova York. O resultado é um blog sempre interessante, que mostra como a vida pode ser surpreendente.

Como dizia o Jules Dassin, “há 8 milhões de histórias em Nova York”. Estas são algumas delas.

Guy on cell: Of course I hate her! However, that’s not gonna stop me from fucking her.
–Park Slope

Hood on cell: Yo man, that bitch stole two ounces of coke from my house!…She’s your friend, you go get it back!
–outside The Martini Red Lounge, Staten Island

Jewish guy: You know, all the famous people are Jewish, like Einstein, and–
Black guy: Man, shut the fuck up, what the fuck is wrong with you? Ain’t you ever heard of Martin Luther King, Jr.? He ain’t Jewish; hell, that motherfucker ain’t even white. Jesus Fucking Christ!
Jewish guy: Very good! Jesus Christ!
–E train

Queer: So how was your date?
Hispanic chick: Oh, it was nice, he was nice and sweet, and a real gentleman, you know, he would hold open doors, make sure to walk between me and the street, you know, really nice.
Queer: Oh, you know what that totally screams?
Hispanic chick: What?
Queer: That totally screams: I want to get into your vagina right now!
–6 train

Teenage girl #1: Oh come on. Just try weed. It’s not that big of a deal.
Teenage girl #2: That’s one line I’ll never cross. That and sucking dick.
–4 train
(O título desse é “I Give Her 2 Months”)

NYU chick #1: Aren’t vegetarian hot dogs just as sketchy as normal hot dogs?
NYU chick #2: Maybe, but I would rather eat the stamen of a sketchy plant than the anus of a sketchy pig.
–Criff Dogs, St. Mark’s Place

Jewish Professor: …for example, we have the white people that vote, and we have the nig…bla…African-Americans that vote…
–NYU classroom

Mom: I know you would love homeschooling but you would have to be really sick or have a broken leg or something.
Son: Then why won’t you just break my leg?
–Lexington & 63rd

Health nazi: Y’know, smoking is bad for your health.
Security guard: So is fucking with people at 8:30 in the morning.
–28th & Park

Suit #1: …and he’s been playing on that game City of Heroes for two months straight now.
Suit #2: You reckon he’s still alive?
Suit #1: Well, he’s been typing nothing but “J” for a whole week on MSN.
–JFK

O meme dos livros

Seguindo a deixa do Smart:

1- Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Sinceramente? Esqueça aquelas grandes obras literárias. Eu queria mesmo era ser um livro de Sidney Sheldon ou Harold Robbins: rico, canalha e depravado.

2- Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção?
Talvez o melhor personagem de ficção, o mais complexo e mais rico, seja Lucien de Rubempré, née Chardon.

3- O último livro que compraste?
The Press and America, Emery e Smith.

4- Os últimos livros que leste?
A Cavalaria Vermelha, Isaac Babel, e A Mulher do Próximo, Gay Talese.

5- Que livros estás a ler?
Os Escombros e o Mito: A Cultura e o Fim da União Soviética, de Boris Schnaiderman, Soldier’s Pay, William Faulkner, e Crime, Sociologia e Políticas Públicas, do Guto.

6- Que livros que levarias para uma ilha deserta?
Faço uma troca: prefiro levar 5 mulheres. Essa coisa de livros é superestimada.

Mas a pergunta não é sobre saliência e eu tenho que responder. Portanto, desde que satisfeita essa condição, deixa eu ver:

A Comédia Humana, Balzac: são, ao todo, 89 títulos, entre romances, contos, novelas e uma “fisiologia”. Mas, para mim, é uma obra só. Na verdade não precisaria levar mais nenhum.

Memórias de um Revolucionário, Victor Serge: já que, em tese, eu e meu harém estaríamos começando uma nova civilização, o livro do Serge serve para dar uma certa direção ética ao novo mundo.

As Flores do Mal, Baudelaire: um dos poucos livros de poesia de que eu gosto.

A Ilíada, Homero: longe de ser o meu livro preferido, mas é a base da literatura mundial. Fazer o quê.

As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain: li quando era criança, continua sendo o meu herói favorito.

E a obra completa de Dostoiévski, Mann, e tudo aquilo que eu ainda não li.

7 – Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e porquê?
Rapaz, sobrou alguém? Então lá vai: o Alex, o Ina, a Tata e o Marcus.

Museu de Rua de Aracaju

A Ponte do Imperador foi construída em 1862 para receber a visita de Dom Pedro II. Mas sempre foi uma ponte que não levava a lugar nenhum: na verdade era apenas um atracadouro, inicialmente de madeira, mas reformado algumas vezes depois.

Ano passado a prefeitura de Aracaju deu uma finalidade àquela ponte. Construiu o primeiro Museu de Rua de Aracaju: uma enorme maquete do centro de Aracaju entre as décadas de 20 e 40. É uma obra magnífica, principalmente em uma cidade cujos poucos museus são pífios e indignos desse nome (em compensação, na cidade ao lado, São Cristóvão — a quarta mais antiga do país — está um dos melhores museus de arte sacra do Brasil).

A história de Aracaju sempre me interessou. Em parte porque é recente, em uma cidade que completou 150 anos. Em parte porque conheci, de uma forma ou de outra, vários daqueles que a fizeram.

Como a história do monsenhor Olímpio Campos, tio de minha bisavó, que em protesto contra o fim da educação religiosa na Escola Normal escreveu ao governador, que alegou não ter professores suficientes; Olímpio Campos então se ofereceu para ensinar de graça; e no debate que se seguiu, Olímpio chegou a governador do Estado — era uma época em que política podia ser movida, principalmente, por paixões e ideais.

Hoje Olímpio Campos é o nome do que, até há alguns anos, foi o Palácio do Governo e deve se tornar a Pinacoteca do Estado. Numa dessas ironias da vida, fica em frente à praça Fausto Cardoso.

Fausto Cardoso — que tem uma importância marginal na história da sociologia brasileira — representava a burguesia urbana do Estado. Quando invadiu o palácio criou um dos mais importantes acontecimentos políticos do Estado, porque depois de expulso e ficar xingando o batalhão que protegia o palácio de “Exército de bandidos”, acabou sendo morto na praça.

Foi minha bisavó quem deu abrigo ao homem que teria disparado o tiro contra Fausto Cardoso. A turba correu para lá, revoltada, exigindo o homem que tinha assassinado a face mais visível do progresso em um Estado coronelista e atrasado. Sinhá saiu à porta e disse: “Ele está aqui, sim. Agora quero ver alguém entrar.” Ninguém entrou.

(Algum tempo depois Olímpio Campos seria assassinado no Rio pelos irmãos de Fausto Cardoso, ao lado do Palácio Monroe. Dizem que seu corpo chegou a Aracaju em pedacinhos.)

Por tudo isso, por conhecer a história de Aracaju sempre por uma ótica pessoal, fiquei maravilhado com o museu. Não somente pela iniciativa de levar a história da cidade para o povo, mas porque eu conseguia me reconhecer ali. O Museu de Rua dava uma sensação de concretização a memórias que acabaram se tornando minhas.

Não posso dizer que sabia mais sobre a história da cidade do que as guias que ficam lá, explicando a maquete aos visitantes; mas certamente sabia coisas que elas não sabiam.

Ali está, por exemplo, a casa do calabrês Nicola Mandarino. Em 1954, Mandarino foi protagonista do crime mais sensacional de Aracaju, o assassinato de Carlos Firpo, ex-prefeito da cidade. É uma história fascinante, que envolve II Guerra, acusações de espionagem para o Eixo, assassinos de Paulo Afonso, dinheiro, sexo, amor e traição; uma história em que ninguém é inocente. Se algum dia eu escrevesse um romance, seria essa história que eu contaria: eu a conheço há uns 25 anos, porque minha avó não cansa de contá-la: Firpo era amigo de meu avô e padrinho de uma tia minha, e seu ódio aos assassinos continua intacto depois de 50 anos.

(Os autos do processo do crime sumiram do Tribunal de Justiça. Mas eu cheguei a vê-los, ainda criança, antes de serem retirados de lá.)

Rumo à zona norte fica o Mercado Thales Ferraz, provavelmente a única obra pública arquitetonicamente decente da cidade, atrás do antigo trapiche, que já não existe há muito tempo e onde saveiros não atracam mais. Lá no fundo está o morro do Bonfim. Perto dele havia alguns bordéis famosos. Quando ele foi desmontado, para dar lugar ao crescimento e à rodoviária da cidade, hoje Rodoviária Velha, diz a lenda que ali foram encontrados vários esqueletos de recém-nascidos, filhos das prostitutas. Só delas, de ninguém mais, de nenhum homem, porque filho de puta não tem pai, e ninguém se sente culpado pelos infanticídios cometidos ali.

O Museu de Rua eterniza uma cidade que não existe mais. A década de 40 passou e a cidade se descaracterizou. Hidroaviões não amerissam mais perto da Ponte do Imperador. A rua da Aurora hoje se chama Av. Ivo do Prado, mas o povo continua chamando-a de Rua da Frente, a rua que delimita Aracaju e o Rio Sergipe. E o sol continua nascendo ali, atrás dos coqueiros da Ilha de Santa Luzia.

Um ditadorzinho de alguma república

Eu não liberei o comentário abaixo porque não gosto muito de quem não assina seu nome; tudo o que sei é que quem fez esse comentário trabalha no governo do Paraná e usa o dinheiro do povo para deixar comentários bobos no meu blog:

IP Address: 200.189.112.59
Name: Menos Galvão…
Email Address: menos@ig.com.br

Comment:

Vc têm todos os pré-requisitos para se tornar um ditadorzinho de alguma republica.

Mas, Deus do céu, como fiquei orgulhoso.

Eu vou falar a verdade. Eu adoraria ser um ditador, zinho ou zão, de alguma república, zinha ou zona.

Qualquer república.

Naquelas horas de vigília, quando abri os olhos mas ainda não acordei, quando a mente vaga por um território só dela, quando não sou ainda responsável pelos meus pensamentos, naqueles momentos antes de fumar o primeiro cigarro do dia, eu fico pensando nisso.

É melhor que sonhar que se está voando, melhor que sonhar com a Zeta Jones, melhor até que estar batendo naquele desgraçado que lhe deu um soco na terceira série e a professora lhe impediu de revidar.

Se eu fosse ditadorzinho de uma pequena república eu não usaria uniforme militar, porque sou mais bonito e mais fofo que Fidel Castro. Em vez disso usaria todos aqueles ternos Armani e Zegna que não pude comprar — mas sem gravata, porque não gosto de nada no meu pescoço e a sombra da forca, brandida como ameaça por revoltosos e invejosos que se amontoariam nas ruas batendo panelas e erguendo cartazes dizendo “Menos Galvão, mais comida!”, estaria sempre presente.

Se eu fosse ditador não sei quantos carros teria, porque não me interesso por isso, mas saberia que haveria sempre um motorista à disposição, que me serviria com uma mistura de admiração, inveja e medo por saber que, em caso de qualquer indiscrição, a única coisa democrática na minha ditadura seria o paredão.

Se eu fosse ditador, e tivesse um país aos meus pés, eu casaria com uma vagabunda sem classe mas ambiciosa, desbocada mas com bom remelexo, tirada do puteiro mais baixo, porque sempre gostei de cachorras e não deixaria a fama, a fortuna e o poder mudarem tão bela característica. E apresentaria minha escolhida à sociedade como uma afronta a que me permitiria por ser um ditador e como um exemplo de ascensão social, e me manteria olimpicamente indiferente enquanto os leitores ávidos de revistas de fofocas se deleitassem com os pequenos e grandes escândalos conjugais, com as orgias reais e imaginárias no palácio do governo, encontrando ali justificativa para suas próprias vidas vazias, tão vazias quanto seus bolsos, tão vazias quanto os gritos de “Menos Galvão, mais decência!”.

Seria essa puta que eu vestiria com Chanel, e ordenaria aos meus ministros que chamassem a própria Coco para fazer os vestidos — e ninguém pode imaginar o descaso com que eu ouviria algum mais corajoso dizer que isso era impossível, que a velhota havia morrido há muito, muito tempo, e enquanto nos corredores do Palácio os cochichos fariam alusão à minha ignorância crassa eu riria em segredo, porque eles não teriam entendido nada, não teriam entendido que há apenas um tipo de poder que permite isso, e é exatamente aquele tomado por um ditadorzinho de alguma república.

Se eu fosse ditador de alguma república acordaria todas as tardes com o mordomo me trazendo o café da manhã e os jornais do dia, entre os quais aquele de oposição que eu deixaria circular para dar uma impressão de democracia, mas deixando claro ao editor que ele deveria saber seus limites porque a oposição existiria apenas para dar um verniz de legitimidade ao meu governo.

Mas na minha ditadura não haveria mortes, pelo menos não mais que as estritamente necessárias, porque ainda que ditador eu continuaria baiano, e daria ao povo pão e circo, e eventualmente até consentiria em ouvir, da sacada do meu palácio, os poucos descontentes com coragem suficiente para pedir incentivos à cultura e carregar cartazes de “Menos Galvão, mais empregos!”, e faria isso com um sorriso paternal e a mesma atenção dada aos afghan hounds que decorariam o meu palácio.

Se eu fosse ditadorzinho de alguma república, qualquer república, eu jamais me disfarçaria de pobre para circular pela cidade e ouvir o que o povo dizia de mim, porque eu não estaria interessado em proletários mal-cheirosos e uma das prerrogativas de um ditador é ser poupado de opiniões desagradáveis. Em vez disso colocaria minha beca domingueira — porque embora ditador eu faria questão de lembrar que um dia fui pobre, e usaria essa história para ludibriar uns quatro ou cinco bestas — e iria para longas viagens por Paris, onde poderia me embebedar com putas senegalesas e russas, e dar presentes caros a elas pela simples razão de poder dar, sem que isso fosse motivo para os pobres opositores se revoltarem ainda mais, exatamente aqueles que levantariam o mais alto possível cartazes dizendo “Menos Galvão, mais Deus em nossas vidas”, como se na minha república Deus e Galvão não fossem a mesma coisa.

Quem quer que tenha deixado esse comentário está certo: eu seria um excelente ditadorzinho de alguma república.

Acontece que república talvez seja muito pouco, e como Júlio César eu conspiraria para criar o Império, e seria nomeado Defensor Perpétuo do meu modesto país. Porque ainda que me sinta à vontade no papel de ditadorzinho, eu gostaria também de ser rei, e usaria coroa como revolucionários usam boinas com botões do Che Guevara, e nas solenidades oficiais — que seriam muitas durante o meu reinado — eu usaria um manto de arminho como símbolo do meu poder.

Ah, mas divago, divago…

Livros ou o mal que eles fazem às minhas costas

Meus livros ficaram encaixotados desde que vim do Rio, ano e meio. Chegaram em novembro e só agora arranjei coragem para arrumar os coitados.

Não vou falar do trabalho miserável que é tirar livros de caixas, colocá-los na mesa, limpar e arrumar cada um deles. Não, ninguém merece isso. Minhas costas já sofreram o bastante para eu precisar descontar em cima de alguém. Prefiro colocar uma foto ao lado: ali está a primeira leva, as primeiras duas caixas. Havia mais algumas me esperando.

Eu tenho cá meu sistema de organização. Simples ao extremo, que eu não sou bibliotecário e Dewey para mim era apenas um promotor que queria ser presidente. Mas é eficiente.

São, basicamente, alguns níveis de divisão. O primeiro é simples: ficção e não-ficção. Tenho notado que o tempo age implacavelmente sobre mim; se há dez anos eu lia preferencialmente ficção, hoje em dia leio cada vez mais não-ficção. Os interesses mudam com o tempo.

Em ficção eu separo, em primeiro lugar, por país. Literatura brasileira, americana, inglesa, russa, etc. Cada uma dessas é subdividida em autores, em ordem cronológica. Primeiro os autores mais antigos. E cada autor, por sua vez, está classificado também em ordem cronológica. Não faço distinção entre prosa e poesia. Não me parece apropriado classificar poesia como ficção, mas tampouco é não-ficção. Fica aí, mesmo, e a minha Marianne Moore, paixão de muito tempo, fica entre um livro de contos do Edmund Wilson e um livro quase bom do Malamud. Além disso, eles são muito poucos. Como são muito poucos os livros de ficção latino-americana. Atrás de todos eles está o meu livrinho de 1500 dólares (comprado por um), Quiet Days in Clichy.

Há uma última divisão: literatura policial. Mas segue os mesmos padrões, com uma diferença: primeiro vem Hammett, depois Chandler, depois MacDonald, minhas três grandes preferências. James Cain. Chester Himes. Walter Mosley, o último autor a me empolgar. E então vem o resto. Jim Thompson, de quem já gostei mais, tem lá o seu lugar.

O que me espanta, aqui, é o número de livros ruins. “Os Versículos Satânicos” está lá, em literatura inglesa. Os livros de Evelyn Waugh se espremem entre um Joyce e um Greene — estão em boa companhia; mas é em literatura americana que está o maior número de lixo. Eu quase não acredito que tenha três romances de John Updike, e um de Gore Vidal, dois romancistas abaixo do aceitável (em compensação tenho dois belos livros de ensaios de Vidal e a autobiografia e uma coletânea de resenhas de Updike. Updike não chega aos pés de Richard Ellman, mas seu texto é melhor).

A parte de não-ficção é mais interessante.

As subdivisões são poucas, e como foram os primeiros a ser arrumados, na prateleira mais alta, ainda precisam ser ordenados. Há a parte do que eu chamo de “negócios”, o que inclui jornalismo, publicidade, marketing e marketing político e livros sobre algumas empresas (a história da IBM me fascina, por exemplo, desde que li a biografia de Tom Watson Jr). Há as biografias, a parte sobre música (desculpe: Beatles), cinema. História, política, ensaística e crítica literária. Os livros de arte se arranjam como podem, de acordo com seu tamanho.

É curioso que eu tenha tão poucos livros sobre publicidade, e menos ainda sobre marketing político. Mas tenho pelo menos tudo o que David Ogilvy publicou de decente, embora só precisasse, mesmo, de um: Ogilvy on Advertising. Se alguém fosse ler um livro, e apenas um, sobre propaganda, esse seria o livro que eu indicaria.

Há algumas curiosidades. “Minha Luta”, de Hitler, está ao lado de Hitler’s Willing Executioners. Talvez só eu ache isso engraçado.

Ali também descansam livros que, decididamente, eu não sei direito como foram parar ali: “O Óbvio e o Obtuso”, “O Ser e o Nada”, “A Reconstrução dos Direitos Humanos” (do Celso Lafer sobre a chatíssima Hannah Arendt).

Definitivamente, quem tentar me conhecer pelos meus livros não vai descobrir absolutamente nada sobre mim. No máximo vai conhecer o mal que eles fazem às minhas costas.