Quando a ignorância vence

Por acaso, achei um dos primeiros textos que baixei de um BBS, há mais de dez anos: uma lista de livros banidos ou protestados nas bibliotecas americanas. Dali para uma lista mais recente, de livros banidos ou protestados este ano.

A maior parte dos livros foram atacados pelo que se entende como o típico americano médio do meio-oeste, mesmo que as cidades em que os banimentos ocorram sejam as mais diversas; mas é a mesma mentalidade, o mesmo modo de ver a vida. Os censores, ao que parece, são normalmente pessoas que pretendem proteger suas crianças — da exposição a conteúdos sexuais ou meramente profanos. Acreditam que se seu filho não ler “O Apanhador no Campo de Centeio” não vai falar palavrões. Têm a fé dos mais pios em que, se o adolescente que tem em casa não ler Gays/justice: A Study of Ethics, Society, and Law, de Richard D. Mohr, não vai virar viado, uma crença tão válida quanto achar que se sua filha ler “O Diário de Anne Frank” vai se tornar prostituta numa esquina qualquer. É assim que essas pessoas analisam as coisas.

Mas a censura a livros não é prerrogativa exclusiva da direita americana. A esquerda politicamente correta também faz das suas, banindo textos que um ou outro idiota considera racistas (“As Aventuras de Huckleberry Finn” de Mark Twain para os pretos, “O Mercador de Veneza”, do bardo, para os judeus) ou preconceituosos em relação à sociedade de modo geral. Qualquer livro que não passe uma visão ideal da sociedade fundada em Massachussets é perigoso, sempre.

No fim das contas, não é exatamente o espectro político que importa na decisão de decidir o que as pessoas devem ler. O problema é de fundo religioso e histórico: tanto a direita como a esquerda americana têm raízes profundas no puritanismo protestante, e têm em seu destino manifesto a missão de guiar a humanidade em busca de conceitos abstratos como o bem comum e a virtude.

No que depender desses zelotes, o resultado será uma sociedade construída sobre a ignorância e a negação da realidade, porque é nisso que se baseia a histeria religiosa. Por desempenharem funções públicas, acham que têm o direito de decidir o que o povo pode ou não ler. Eles têm o direito de querer proteger suas crianças do que bem entenderem; o problema começa quando querem proteger também as dos outros.

Certo, é difícil justificar que o Estado gaste dinheiro disponibilizando em suas bibliotecas, por exemplo, How to Make Love Like a Porn Star: A Cautionary Tale, da atriz pornô Jenna Jameson. Não parece relevante. Ao mesmo tempo, é também difícil justificar que essa opção seja negada, a qualquer um, apenas porque um bando de egressos do culto dominical acha que as pessoas não devem ter o direito de escolher a informação que desejam receber. Se as dicas da Jenna não parecem relevantes para mim, podem parecer para alguém.

As listas de livros banidos impressionam pela diversidade temática e pela extrema suscetibilidade desses censores. No fim das contas, depois que se vê que baniram, tem-se a impressão de que o problema é mais que simples ignorância ou obtusidade. Ao banir livros, quaisquer livros, esses idiotas fazem uma apologia da ignorância e a tentam impor a um povo, negam o direito à informação a uma sociedade; não é à toa que What’s Happening to my Body? Book for Girls: A Growing-Up Guide for Parents & Daughters, de Lynda Madaras, foi banido recentemente.

Julgando-se pela reação causada, o livro disfarçado de educação sexual deve deixar a Adelaide Carraro se achando uma santa. Quase igual a essa gente que, graças aos seus preconceitos, tenta fazer com que se volte à Idade Média. Aqueles bons tempos em que o mundo era simples e a ressurreição no Senhor era o melhor a que se podia aspirar.

10 thoughts on “Quando a ignorância vence

  1. OK, mas sejamos justos para com o puritanismo: muita gente por aí já andou proibindo livros, incluindo a Igreja Católica.

    Não, acho que o problema é mais embaixo.

  2. tá acontecendo uma coisa com os gibis de heróis. deixei de ler há mais de 15 anos, mas recentemente folheei alguns desses novos, da marvel mesmo… insinuações sexuais abundam, formas sexys, uma energia estranha… alguém reparou nisso?

  3. Nada estranho nisso. Os gibis de super-heróis sempre foram eróticos, de acordo com sua época. O combustível básico sempre foi sexo e violência, e a Mulher-Gato ou a Supermoça ou as damas em perigo do Conan sempre foram tão sensuais quanto era possível ser.

    Dê uma olhada em Seduction of the Innocent, livro anti-quadrinhos da década de 50 que motivou muita censura; Killing Monsters para uma discussão psicológica interessante do porquê da sensualidade das super-heroínas; e o blog postmodernbay para comentário interessante sobre a reação recente à homosexualidade retratada em quadrinhos de super-heróis.

  4. Problema embaixo, em cima… é muito problema. Mas como não perceber que a censura não acabou, em vista ao aumento de números de publicações desde quando ela não era velada no Brasil. As televisões, editoras, gravadoras, rádios veiculam aquilo que querem. Não houve governo que democratizou a informação ainda. Talvez o número de livros que são censurados, mas não constam em listas alguma seja bem maior…

  5. Há! Bia! Pra sua informação o Arcanjo e o Homem-Múltiplo dos X-Men, tiveram um caso…

    E a Mulher-Maravilha tb está assumindo que é lésbica.

    Estava lendo o release da Europa Filmes, que recebi na cabine de “O Libertino” (o próximo filme do Johnny Depp) e nele o diretor dizia que teve a idéia de fazer a película depois que seu dentista, não querendo que sua filha adolescente lesse alguns livros de sua biblioteca, deu a ele um exemplar da biografia do Conde de Rochester, um dos mais revolucionários políticos da corte de Charles II e, no caso, o libertino do título. Fiquei pasma. Esse dentista coitado, quer criar a filha na redoma? Ele pensa que ela não vai pegar (se já nao teve acesso)nenhuma revistinha de sacanagem na vida? Cristo….eu acho que vc deve orientar o filho, jogar limpo..dizer que ele vai poder ler o livro mais tarde, mesmo pq não vai entender nada agora, mas proibí-lo? E acho que isso tb se aplica ao teu texto Rafa…bem,tá aí um motivo pra gente agradecer pela existência da internet…Aqui achamos de tudo, do bom e do ruim. O equilíbrio, ou a falta dele, na assimilação e aplicação de tais informações é o que realmente vai fazer a diferença…

  6. Aliás, outro dia andei vendo por curiosidade alguns animes de um canal de desenhos que tem na Directv (Animax ? Animex ? Animatrix ??) e também percebi que os desenhos andam bem mais safadinhos que no meu tempo de Super Dínamo. O interessante é que é uma coisa meio subreptícia, pois a história em si é totalmente inocente, só que tem umas cenas totalmente fetish.

    Adorei.

    Por outro lado tem gente por aí que se escandaliza com uma cena de fellatio e acha o “As Onze Mil Varas” do Apollinaire um troço super chique. Vai dizer ?

  7. Gente !!!!!!!

    Não tem jeito! Vão sempre existir mentes neuróticas e cheias de tabus tentando negar aquilo que existe – até nelas mesmas – erotismo e sexualidade. Pura babaquice! Não adianta proibir leitura disso ou daquilo, se o indivíduo tiver que , sei lá, optar por ser gay(se é que isso é realmente opção – tenho minhas dúvidas) não vai ser a leitura de um livro que vai determinar. Tudo bem, somos influenciáveis sim, mas a tudo aquilo que, de certa maneira, já está dentro da gente e não vai ser a leitura de um livro ou de um gibi que vai definir caráter, comportamento , opções ou seja lá o que for.

    Um abraço,
    Vevê.

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