Aparecida

Tá, eu sou baiano.

Eu já disse aqui: a minha Bahia é a de Caymmi, não é a de Ivete Sangalo. A Bahia que eu conheci ainda tinha os encanadores esperando fregueses no relógio de São Pedro, e esse para mim é o grande símbolo de uma Bahia que trazia bem claros em si seus elos com o passado, porque os encanadores com seus maçaricos e suas expressões de desânimo eram os últimos remanescentes dos cantos de escravos que se espalhavam pela cidade desde muitos séculos atrás.

As coisas mudaram, Caymmi morreu e a Bahia não é mais o celeiro cultural deste país — se alguém quer ver o futuro que olhe para Pernambuco, porque é de lá que vem o novo de braços dados com a tradição. Se eu pelo menos gostasse de Recife.

Mas morta ou não, soterrada pela indústria do axé e do trio elétrico ou não, a Bahia ainda me dá régua e compasso para que eu avalie o mundo — assim, um tantinho menores que os de Gil, mas suficientes para que eu faça bom uso deles.

É à Bahia que recorro quando vejo os comentários que uma moça chamada Aparecida deixa aqui. Quase todo dia ela vem a este blog, deixando comentários irritados nos posts mais inapropriados, reclamando do “dinheiro sujo dos políticos que me patrocinam”, pedindo para eu tergiversar sobre Sarney com a minha “verve sem diploma”, coisas assim, sempre assim, sempre as mesmas. A Aparecida não gosta de mim e faz questão que eu saiba disso.

Aparecida, minha filha, fica assim não.

Eu não sei se Aparecida é jornalista, deve ser. Não sei se ela tem algum problema, deve ter. Mas em minha ignorância fico entre o assustado e o lisonjeado quando vejo seus comentários, todo dia, todo dia. É esse buscar constante de atenção, essa necessidade de se fazer notar através de um comportamento agressivo, às vezes ofensivo, que torna a Aparecida fascinante. Fascinante é também a sua persistência, porque não importa quantos comentários sejam bloqueados, ela vai voltar e reclamar de mim, e me forçar a dizer coisas que eu não quero dizer. Aparecida vem aqui há tanto tempo, sempre dando com a cara na porta mas sempre voltando, moça persistente e tenaz, que acho que é chegada a hora de lhe prestar alguma explicação, de reconhecer a sua existência e admitir que sim, eu sei quem é a Aparecida, eu sei que ela vem aqui todos os dias, e eu sei que ela tem uma relação estranha de amor e ódio comigo.

E para isso tenho que recorrer à Bahia, porque um dos princípios imutáveis da vida é o de que não há nada que se possa pensar em dizer que não tenha sido dito antes por algum baiano, num discurso em Haia por um Ruy Barbosa ou numa mesa de um brega da Ladeira da Montanha por um vendedor de fitinhas do Senhor do Bonfim.

Antes que eu pudesse sequer pensar em uma resposta a Aparecida, Renato Fechine, provavelmente o melhor cronista da Bahia moderna e do seu falar, essa que se embaralha em novas avenidas tortuosas e em plataformas de metrô e se estapeia no Saboeiro, já tinha tranqüilizado a moça:

Aparecida, tu sois mió do que Neide,
Edileusa e Corrinha,
Tu sois mió do que Creide

Neide é menor de idade
E ainda depende dos pais
Sou doido pra azarar ela
Mas vai me criar pobrema dimais
Seu sonho é ser eriomoça
Ou trabalhar in ni televisão
Ela quer ser atriz de novela
E além de amarela não curte negão

Aparecida, tu sois mió do que Neide,
Edileusa e Corrinha,
Tu sois mió do que Creide

Edileusa enganchou-se com um gringo
Que conheceu lá no Candeal
E ni dezembro ela vai pras Oropa
Mas volta perto do carnaval
Sonhava em ser manequinha
E ser modela profissional
E hoje é triste a sua labuta
Virou protistuta externacional

Aparecida, tu sois mió do que Neide,
Edileusa e Corrinha,
Tu sois mió do que Creide

Corrinha só fede a cigarro
E é ausviciada em mausconha
Não pode ver um macho num carro
Eita muié sem vergonha
Só veve embrenhada nos morro
Eu acho que é até traficante
Já foi uma gata retada
Hoje tá derrubada e num tem quem levante

Aparecida, tu sois mió do que Neide,
Edileusa e Corrinha,
Tu sois mió do que Creide

Creide dançava pagode
A vida dela era quebrar
Depois que estorou umas varize
Ela teve que se aposentar
Deixou muito marmanjo barbado
Com aqueles olhos aziuis
Ela fazia a alegria da gente
Mas hoje ela é crente e só serve a Jesus

15 thoughts on “Aparecida

  1. eu sou pernambucano e também não sou grande fã de recife, embora alguns dos melhores anos de minha vida tenham sido passados por lá. segundo minha irmã, a cidade tem cheiro de cachorro molhado, especialmente na estação de chuvas. no que diz respeito a pernambuco, caruaru e garanhuns são cidades mais bonitas, apesar de menores.

    no entanto, é preciso dar a mão à palmatória no que diz respeito à produção cultural de lá. dá de lapada!

  2. É verdade victor, Recife fede, principalmente agora entre maio e agosto, mas o resto das características dessa cidade que amo tanto descontam esse mau cheiro :-P.
    “Num dia de Sol, Recife acordou
    Com a mesma fedentina do dia anterior.”
    A Cidade – Chico Science & Nação Zumbi

  3. Tá difícil…
    Se Recife fede a cachorro molhado, Salvador a mijo, Sampa a fumaça, eu que sou soteropaulistano tou indo mais é pra Exu, que pelo menos fede a pólvora…

  4. Texto genial. Música genial. Com essa “menage” genial, agora que Aparecida num quieta!.

  5. Estava sem jeito de fazer um comentário que foge um pouco do tema, mas como o povo tá discutindo cheiro de cidades (!)…
    Adorei “é de lá que vem o novo de braços dados com a tradição”, quase pude ver os dois descendo uma ladeira de Olinda. E o “Aparecida, minha filha, fica assim não” me arrancou uma gargalhada, pude escutá-lo com um sotaque baiano que eu nem sei se vc tem.
    Parabéns, fiquei com uma pontinha de inveja porque eu também tenho uma espécie de “aparecida” no blogue e não tive ainda essa maestria que vc teve para confrontá-la. Ainda torço para que ela seja menos determinada que a sua e canse.
    Ah, e assim que comecei a ler fiquei com ouvindo na rádio cabeça “acontece que eu sou baiano”. E continuei pensando na canção, porque provavelmente ela não é 😉 .

  6. eu não sou baiana, nem jornalista, nem Aparecida. Uma pena! Gostava de ganhar um post assim, só pra mim.
    Aparecida tá com a vida ganha e nem sabe!
    abração

  7. Fabuloso, cheguei inclusive a invejar Aparecida. parabéns pelo blog, leio sempre! Abraço.

  8. Rafael:

    Tive conhecimento do seu blog por meio do blog do biscoito fino e a massa. No recente post, ora comentado,vc confirma a crítica do mestre Avelar. Essa preguiça de escrever é uma virtude, pois foi sob pressão que surgiu a Aparecida. Moça apressada, mas que tirou vc da hibernação.Saudações alagoana!

  9. Paraíba,
    Desculpa a intimidade, mas é que vejo teus amigos te chamarem assim (o Bia por exemplo é um) e, apesar de não nos conhecermos, é assim que me sinto só de ler teu blog: como se ouvisse um velho amigo entre uma e muitas outras biritas… quanto a tua preguiça, não te preocupes com ela, que é fichinha perto da minha que tenho/tinha um blog, atualizado com a frequência em que ocorrem eclipses lunares totais e perfeitamente visíveis de dentro de uma caverna… ou quase nunca, se eu fosse um cara mais sucinto e menos reticente…
    Enfim, só queria dizer isso mesmo: tu és meu amigo e não sabes
    O dia em que passares por Santa Catarina já podes bater no peito e dizer com desgosto: tenho um amigo nesse cú! (assim mesmo, com o mau gosto e a ambiguidade maliciosa que cabem nessa frase)
    Um abraço,
    Thiago

  10. todo mundo falando do cheiro de cachorro molhado, mas diz aí, rafa: pq vc não gosta de recife?

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