Vale-tudo nos comentários

Eu estou perdendo a mão neste negócio.

Antigamente eu armava pequenas aratacas no caminho deste blog e as pessoas caíam nelas como pequenos preás inocentes. Isso está ficando mais difícil. As pessoas estão percebendo.

Sobre os comentários ao último post, o Blito fez um dos melhores. Eu só discordo de uma coisa: quanto ao conteúdo homoerótico presente em todos os esportes. Porque no caso do vale-tudo ele é certamente muito mais óbvio, até estridente, do que em qualquer outro esporte. Mais até que no sumô, que também consiste em dois marmanjos se agarrando.

Sugiro que os defensores do vale-tudo façam a experiência: gravem uma luta, coloquem em câmera-lenta, tirem o áudio e coloquem, em BG, uma música de motel — pode até ser, como sugeriram, uma música tipo “É o Amor”. Se é preciso esforço para falar de aparência gay no futebol — ou mesmo em outros esportes de contato físico como o futebol americano e o hóquei –, no vale-tudo ele é tão óbvio que, na verdade, até dispensa esses pequenos artifícios.

Agora, Blito, faça isso com o futebol e veja se consegue o mesmo resultado. Então não tem validade nenhuma a alegação de que o conteúdo homoerótico pode ser visto em qualquer esporte. Talvez até possa, mas é preciso muita força de vontade para ver isso. Na verdade com esforço e vontade você consegue ver qualquer coisa.

Além disso, eu não poderia ter incluído esgrima porque, por favor, eu nunca vi um esgrimista com a cara enfiada na virilha mijada de outro sujeito.

Nos comentários, o que mais me impressionou foi a defesa dos lutadores, do esforço individual, da técnica; basicamente os valores intrínsecos do negócio, que não interessavam ao post e no qual eu simplesmente não toquei em nenhum momento. Porque até onde sei, qualquer esporte demanda técnica e esforço. Até futebol de botão. O texto não falava disso, falava em aspectos estéticos, apenas. Falou apenas que é um esporte feio, grosseiro, esteticamente bizarro e que tem uma cara danada de gay.

A única coisa que me incomodou — porque no dia em que eu me incomodar com alguém me chamando de “bixona” com X eu vou estar pronto para o Phillipe, aquele lugar aprazível em Botafogo — foi a acusação de homofobia. Curiosamente, foram justamente os defensores do vale-tudo que partiram para o contra-ataque, dizendo “viado é você”.

(Eu, que segundo a moçada sou homofóbico, não teria problemas com isso. Cada é um aquilo para o que nasce, dizem umas senhoras ceguinhas cá por estas bandas. Se como disse o Tarilonte houvesse mesmo um esqueleto nesse armário, eu o decoraria com umas plumas, uns paetês e sairia por aí — de preferência, “fechando”. Mas acho que os moços aí se incomodariam com essa perspectiva. É provável até que, para resolver seus próprios conflitos, fossem lutar vale-tudo. É por isso que, para eles, dizer que vale-tudo é uma demonstração de feiura, uma luta tosca e uma regressão estética não ofende. Mas dizer o óbvio, que a luta lembra dois homens fazendo sexo, ah, isso são outros quinhentos.)

Eu sempre esperei que uma leitura um pouco mais atenta deste blog impedisse qualquer pessoa de chamá-lo de algumas coisas. Uma dela era de direitista. Outra era de homofóbico.

Sim, eu tenho que admitir com uma certa vergonha e inveja de outros blogs que este não é um blog politicamente correto, porque uma deficiência na minha educação (de resto esmerada, deixem-me dizer em defesa das minhas professoras) é a tendência a chamar as coisas pelos seus nomes reais. Certamente não é pseudo-feminista. Decididamente tem problemas com católicos, evangélicos, budistas, xintoístas, macumbeiros, gente que acredita em disco voador e gente que acha que o fato de ter nascido em tal dia faz de você isso e aquilo porque Plutão estava na casa do cacete. Basicamente, eu não tenho problemas em ser acusado de quase nada.

Mas homofóbico ele não é.

Tenho a impressão de que esse pessoal que se apressa em falar de homofobia é aquele mesmo que diz “respeitar os homossexuais, mas não tolerar as bichas assumidas”, que “bicha boa é bicha discreta, que não fica fazendo trejeitos”. É por isso que me impressiona um fato simples, que passou despercebido a quase todos os comentaristas que tocaram no assunto: eu falei que vale-tudo, além de uma luta feia, tem todas as características homossexuais, mas não falei absolutamente nada sobre esforço pessoal, ou que homossexuais não eram capazes de de se dedicar com afinco a um esporte. Foram eles que associaram uma coisa à outra, as duas como negativas. Segundo o seu raciocínio, o vale-tudo não pode ser gay porque demanda esforço. Na verdade, o preconceito contra homossexuais está neles.

Evitando personalizar — porque aí vem o Ricardo dizer que nunca fez isso, vem o tal professor Valdez dizer que seus alunos não fazem isso, talvez até, quem sabe, apareça um mais corajoso dizendo “ah, mas eu até dou a bunda!” –, não custa lembrar que o histórico de agressões contra homossexuais nesse universo no qual eles circulam ou simplesmente admiram é lamentavelmente alto.

Nada disso, no entanto, foi exatamente uma novidade. O que me impressionou foi uma certa louvação do masoquismo.

Eu não brigo. Na verdade, sou de uma covardia atroz e inamovível. A perspectiva de violência física me assusta. Mas por alguma razão pessoas como o Ricardo acham que eu deveria dar a carinha que mamãe beijou para um vagabundo bater. Infelizmente, eu sou covarde, não masoquista. É engraçado que as pessoas não entendam isso. Por exemplo, eu gosto de hipismo — mas não queria, nem por um momento, ser o cavalo ali. E por isso não entendo a lógica desse pessoal, acho meio precária e inexplicável: “você tem que apanhar para gostar de vale-tudo”. Eu pensava que só aqueles que apanhavam muito na cabeça eram capazes de um raciocínio tosco como esse.

E no fim das contas fica uma impressão engraçada: esse pessoal, com suas caras grosseiras, orelhas amassadas e narizes tortos é muito sensível.

Como sabem alguns leitores deste blog, eu sou beatlemaníaco. Mas certamente jamais ficaria ofendido se alguém disse que os Beatles são uma banda de merda, ou se fãs dos Beatles são uns bostas. Fazer o quê?

Sinceramente, isso é comportamento de mariquinhas.

Eu estou perdendo a mão nesse negócio. Acho que vou para o Twitter.

Sobre o boxe

Aí pela virada do ano assisti a Holyfield vs. Valuev, luta válida pelo título mundial de pesos pesados de uma dessas tantas federações mundiais do boxe.

De um lado um lutador de perfeita técnica, um boxeur velho embora ainda digno desse nome, mas sem a força que nunca teve, sem a capacidade de nocautear seu oponente. Do outro uma aberração tosca cujo único mérito é a sua estatura elevada, um sujeito que só é campeão porque é grande demais — Valuev me lembra uma antiga jogadora de basquete chinesa, lenta e com cara de retardada, que só estava no time porque era gigantesca. O resultado, vitória por pontos do ogro russo, para mim foi mais que isso: foi um — mais um — epitáfio.

É melancólica essa sensação de que o boxe morreu.

Até os meus 20 anos eu não gostava de pugilismo e subscrevia uma paródia do “If” de Kipling escrita por Stanislaw Ponte Preta, “se gostas de boxe és uma besta, meu filho”. Mas por causa do sucesso de Mike Tyson no final dos anos 80, quando o esporte se viu diante do seu primeiro fenômeno em 15 anos, para assistir a Twin Peaks nas noites de domingo da Globo eu tinha que passar por algumas lutas.

E então o caminho não tinha mais volta.

Assisti às últimas lutas de Sugar Ray Leonard, de Roberto “Mano de Piedra” Durán e de Julio César Chávez; vi Pernell Whitaker provocar seus adversários e vi George Foreman reconquistar um título aos 45 anos. Vi a ascensão de Oscar de La Hoya, de Lennox Lewis e do melhor boxeador dos anos 90, Roy Jones Jr. Era uma grande época para se gostar de pugilismo, essa é a verdade, e vi grandes lutas e aprendi o que é boxe.

Boxe é força e beleza. É a realização máxima das possibilidades do corpo humano em um campo específico. É a estilização de um dos mais básicos instintos humanos, o da agressão, da destruição do outro ainda sem a sofisticação social da guerra; e para dominá-lo é preciso técnica, é preciso a sistematização dos movimentos de ataque e de defesa. Boxe é a maneira como um corpo se move com graça e perfeição em busca do seu objetivo.

É por isso que quem escreve sobre pugilismo gosta de ressaltar questões técnicas e blá blá blá. Mas a verdade é que boxe é, acima de tudo, violência — e é a aceitação disso que torna possível a apreciação do esporte. Porque no fim do último round não importa se um lutador tem melhor jogo de pernas, boa esquiva e domínio perfeito dos fundamentos — se o outro lhe aplicar um bom direto no queixo e ele beijar a lona, nada daquilo lhe valeu de alguma coisa. Boxe é também o nocaute perfeito — o soco dado na hora certa e no lugar certo, que manda um sujeito inconsciente ou quase para o chão e então a platéia instintivamente se ergue e grita o nome do vencedor.

Grandes campeões tinham essa combinação de técnica e força. Joe Louis, George Foreman, Joe Frazier, em certa medida Rocky Marciano. E ninguém as teve mais do que Muhammad Ali. Float like a butterfly, sting like a bee, ele dizia; e até hoje há poucas coisas tão perfeitas quando Muhammad Ali no ringue, esquivando-se, jabeando, golpeando. É assombroso que ainda haja críticos de boxe afirmando que Joe Louis foi melhor que Ali — mas isso se pode creditar apenas ao seu medo da personalidade altiva de Ali, em contraste com a atitude de “bom neguinho” de Joe Louis.

Porque ninguém jamais lutou como Muhammad Ali. Ele foi o último grande gênio do boxe; foi também o maior de todos, aquele em que cada lutador deveria se espelhar, aquele de quem cada um deveria ter uma estátua em um altar sagrado e, toda manhã, se ajoelhar diante dela em respeito contrito. Com Ali, a violência adquiria a graciosidade de um balé — o mais perfeito em sua categoria a que o corpo humano pode chegar, um mestre absoluto daquilo que torna o boxe, mais que uma luta, uma arte.

Foi isso o que aprendi assistindo às lutas daqueles grandes lutadores de outrora. O que eu não entendia era que, a cada nova luta, via o declínio do boxe.

Desde a aposentadoria de Muhammad Ali, cada novo campeão era um pouco menor que o anterior; e foi isso, mais do que a roubalheira, mais do que Don King, que destruiu o boxe. O último boxeador peso pesado excepcional que vi lutar foi Mike Tyson — e mesmo ele era incompleto, um lutador limitado e de técnica banal que jamais seguraria os tantos rounds da melhor luta de todos os tempos, Ali vs. Frazier em Manila — luta que se pode achar facilmente no YouTube — ou  fazer o que Ali fez contra Foreman no Zaire, se deixar espancar durante oito rounds para só então nocautear um dos maiores punchers de todos os tempos. Tyson batia, e batia como ninguém jamais bateu, mas não fazia muito mais que isso. Paradoxalmente foi um dos tantos responsáveis pela aceleração da decadência do boxe, com vexames como a luta contra Bruce Seldom ou a mordida na orelha de Holyfield.

Com a queda de Tyson, caiu junto o boxe. Um a um, campeões foram sendo sucedidos por lutadores inferiores, e o resultado é isso, um Valuev campeão apenas porque é grande, uma negação absoluta dos valores do boxe e um retrato da decadência de um esporte de beleza singular.

Isso não quer dizer que não existam grandes lutadores em atividade. Existem, sim. Mas é apenas na categoria dos pesos pesados que o boxe pode se realizar em sua plenitude, e ela hoje consiste em lutas com excesso de tática e clinches e pouca arte. Hoje os melhores lutadores estão nas categorias mais leves. Cerca de um ano atrás vi um grande lutador, franco-argelino cujo nome esqueço, dar uma aula de técnica e rapidez. Mas isso não muda nada, porque esses lutadores não passam muito de mosquitinhos brigando e zunindo. Nessas categorias inferiores o boxe não pode se realizar completamente — porque se nela sobra técnica e rapidez, falta a completa violência, a celebração absoluta da força. É isso que faz do boxe uma arte masculina por definição. E é por isso que ele está decaindo, esperando que surja novamente um grande campeão para lhe dar novo fôlego.

Para piorar as coisas, é também por isso que o vale-tudo está ocupando o espaço que deveria ser da nobre arte do Marquês de Queensberry.

O vale-tudo está para o boxe assim como a dança da galinha está para o balé, como o Bonde do Tigrão está para Mozart, ou como a vulgaridade da Mulher Melancia está para a elegância de Márcia Haydée. Um arremedo de dança do acasalamento homossexual, o vale-tudo é o retrato de uma época em que o que importa é sempre, e apenas, o resultado. Não importa que para isso seja necessário dar uma cotovelada no rosto do oponente ou uma joelhada em seu estômago. Se o boxe tem a beleza estética que decorre da sistematização e da limitação das possibilidades da agressão, o vale-tudo é apenas violência rasteira. E feia.

Badminton e peteca são esportes mais masculinos que esse vale-tudo. Até patinação no gelo é mais masculino, porque eventualmente o patinador com seus paetês e suas calças justas vai sentar a moça em seus ombros, os dois frente a frente, e vai lembrar a todos uma das melhores razões pelas quais é bom ser homem. Enquanto isso lutadores de vale-tudo fazem meia-noves intermináveis com a voracidade de um amor vespertino e urgente, cabeças enfiadas com sofreguidão nas virilhas dos seus parceiros, e na falta de outros fluidos se contentam com a urina em seus calções.

Vale-tudo é um sujeito dizendo para o outro “vem e me domina, meu homem”. Por baixo, o sujeito aperta com as pernas os quadris do seu amor com força, chama-o para si, e os abraços são fortes e esganados e desesperados, “diz que eu sou teu”. Não é à toa que um dos movimentos ali se chama submissão. É um sujeito meio depravado dizendo para o seu objeto de desejo “vem, cachorro, eu sou o teu senhor, faz a minha vontade”, variação sado-masoquista de uma relação de domínio. Vale-tudo é sexo selvagem, sem limites, em que o cheiro do sangue se torna o maior afrodisíaco imaginável. É por nunca ter conseguido enxergá-lo de outra forma que durante muito tempo brinquei com a idéia de fazer um curta-metragem sobre essa coisa bizarra a que chamam “esporte”, mostrando as cenas desses lutadores atracados em suas lides de amor enquanto, em BG, ouviríamos Serge Gainsbourg e Jane Birkin cantando Je t’Aime (Moi Non Plus). Mas uma moça já fez esse filme.

Eu me recuso a me contentar com o vale-tudo, eu que vi grandes lutadores darem o melhor de si nos ringues. Mas há uma esperança. Enquanto o vale-tudo é sublimação homoerótica de playboys de zona sul, que gostam de passear com seus pitbulls pelos calçadões da vida, o boxe ainda é praticado em academias de subúrbio. E é isso, essa fé meio boba na força do povo, que me faz acalentar a esperança de que um dia um novo Muhammad Ali apareça no ringue para dizer que é o rei do mundo. Esse dia vai chegar.

Jerry Lewis

Tive a chance de rever um filme de Jerry Lewis e Dean Martin visto há muito tempo e do qual eu praticamente não lembrava: “Malucos no Ar”, uma comédia ambientada nas Forças Armadas. É um filme da metade da carreira cinematográfica da dupla, que se separaria depois de Hollywood or Bust. Àquela altura, a dupla Martin & Lewis era um fenômeno de popularidade nos Estados Unidos.

Curiosamente, é um dos poucos filmes a dar papel pouco relevante a Dean Martin, centrando sua atenção no histrionismo de Lewis. É uma pena. Martin era o par ideal para Jerry Lewis. Provavelmente seria para qualquer outro. Generoso, despreocupado, Martin estava à vontade em seu papel — mais ou menos o de Dedé Santana em relação a Renato Aragão, com mais categoria, mais presença e elegância e um ar de cinismo absolutamente verdadeiro e cafajeste. Dean Martin dava a Jerry Lewis todas as condições necessárias para que ele, um talento cômico como poucos outros, pudesse brilhar. E fazia isso sem nenhum problema. Dean Martin era autêntico, coisa rara em Hollywood, e um sujeito que sentia não dever nada a ninguém, nem estava preocupado com isso. Mais tarde, seria o único membro do Rat Pack a não ter medo de Frank Sinatra. Sua morte em 1995 foi uma das poucas de celebridades a me deixar triste.

Assistindo ao filme pude lembrar o que faz de Jerry Lewis o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Lewis era anárquico, subversivo, incontrolável. Mas não é a anarquia dos Irmãos Marx. Se estes são intencionalmente anárquicos e deletérios, a subversão de Lewis vem da incapacidade de adequação ao mundo. Não há má vontade em Jerry Lewis: ele é um ingênuo que tenta fazer as coisas da maneira certa, mas que simplesmente não consegue porque não pode evitar fazê-las do seu próprio jeito.

A subversão presente em Jerry Lewis não era politicamente óbvia — ele jamais faria um filme como If, por exemplo. Em vez disso, o seu era o tipo mais perigoso: subversão social e de costumes. Tudo em Lewis é insolência, rebeldia e incapacidade de se adaptar ao mundo, ainda que de forma inconsciente e involuntária. Seus personagens não são como os de Charlie Chaplin, em que há, ainda que de maneira sutil e graciosa, uma atitude clara de confronto com o mundo. Tudo o que os personagens de Jerry Lewis querem é se encaixar uma sociedade com padrões claros e perfeitamente compreensíveis — e no entanto, inadvertidamente, são eles que acabam ameaçando sua estrutura.

Em “O Meninão”, refilmagem de um filme de Billy Wilder, esse aspecto subversivo de Lewis está bem claro em uma única cena, que pode servir de ilustração para toda a sua obra: ele interfere em um treino de educação física e, enquanto tenta dar o melhor de si, leva o grupo de garotas ao caos absoluto, destruindo qualquer possibilidade de ordem. O mundo não pode funcionar direito se Jerry Lewis está nele.

É possível lembrar um pouco dos irmãos Marx a partir capacidade de gerar o caos, embora a comparação com Chaplin fosse mais adequada. Mas Lewis tem atrás de si outras tradições, principalmente a de Bob Hope e Bing Crosby, e uma delicadeza que os Marx, definitivamente, não tinham.

Foi essa capacidade subversiva que os franceses da Cahiers du Cinema perceberam imediatamente. Deram a Lewis um reconhecimento que lhe faltou em seu próprio país. Se nos Estados Unidos ele era visto como pouco mais que um careteiro, na França esses aspectos foram percebidos e valorizados. Os franceses foram os primeiros a apontar a genialidade de Lewis; a isso acrescentaram, claro, a bobajada da teoria do autor, para justificar as eventuais explosões de genialidade que se vê ao longo de vários filmes de Lewis. Com isso acabam relevando defeitos na obra de Lewis que tornam a apreciação de seus filmes uma tarefa mais complexa do que o usual: Lewis tem problemas em costurar uma sucessão de gags muitas vezes geniais em uma narrativa coesa e fluida, ao ponto de parte deles simplesmente abrir mão dessa premissa para ser nada mais que coleções de cenas, como The Delicate Delinquent e The Bellboy. Por outro lado, seu uso da metalinguagem sugere um autor consciente e com domínio da idéia de narrativa cinematográfica.

Mais tarde, a persona cinematográfica de Lewis se desgastaria e acomodaria. Ele desenvolveria seus próprios tiques cinematográficos, combinaria isso a um ego desproporcional e que lhe levou a equívocos como “A Família Fuleira”, e na segunda metade dos anos 60 seus filmes perderiam o vigor e o frescor que apresentaram até então.

Mas nada disso apaga um fato simples: Jerry Lewis foi o maior humorista americano da segunda metade do século XX. Jerry Lewis era um gênio.

***

Escrever sobre Jerry Lewis é sempre um prazer para mim. É algo que eu devo a mim mesmo.

Em uma noite do primeiro semestre de 1979, a TV exibiu uma chamada para o filme da Sessão da Tarde do dia seguinte: “O Rei do Laço”. Minha mãe comentou que assistia aos filmes dele no cinema, nos anos 60, e que gostava muito dele. Isso bastou para que eu quisesse assistir ao filme.

O resultado foi paixão à primeira vista. De repente, Jerry Lewis era o meu novo ídolo. Não só meu, na verdade: meus amigos paravam o que estavam fazendo para assistir aos seus filmes na TV. Não foram poucas as vezes em que estávamos na rua e de repente todos debandávamos porque ia começar um filme de “Djeury Líus”, como eu pronunciava na época e como, por respeito à criança que fui, continuando pronunciando.

Naquele ano e nos dois seguintes, eu vi todos os filmes de Jerry Lewis exibidos na TV, com exceção de “De Caniço e Samburá”. Mais tarde, assistiria a praticamente todos. Mais tarde ainda, revendo boa parte daqueles filmes, eu identificaria os muitos defeitos, aqueles que fazem com que os americanos torçam o nariz para ele.

Mas depois eu faria as pazes com Jerry Lewis. Porque no seu caso não se trata de entender seus filmes. Se trata apenas de reconhecer a sua genialidade, maior que o que se pode ver se analisamos apenas seus filmes em vez do conjunto de sua cinematografia. Principalmente, se trata de reconhecer e gostar do fato de que, durante a minha infância, Jerry Lewis foi um dos meus grandes ídolos.

Sobre beleza e censura

O Sítio do Sergio Leo pergunta se apoiamos as iniciativas de deputadas inglesa e francesa por leis que proíbam o uso de Photoshop em fotos de mulheres. Segundo as moças, que aparentemente devem saber do que estão falando, as imagens retocadas trazem a possibilidade de jovens se sentirem obrigadas a corresponder a esse tipo de beleza, que elas, provavelmente por experiência própria, julgam inatingíveis para moças de fino trato mas pobre estética.

Este blog, obviamente, apóia iniciativas valorosas como essas e que devem orgulhar os cidadãos franceses e ingleses.

Na verdade, acho até que é muito pouco.

Claro que a beleza extorsiva dessas modelos de revista representa uma enorme e intolerável falta de respeito aos teiús que se miram no espelho e não vêem nada além da fealdade, e então têm que se consolar com frases como “a verdadeira beleza é a beleza interior”, aquela frase que só é dita por decoradores e por jaburus, gente feia, consciente de que é feia e conformada por ser feia.

Por isso eu vou além, porque proibir é comigo mesmo: é urgente e imprescindível a aprovação de uma lei que proíba as pessoas de nascerem bonitas, porque isso causa uma tristeza sem par às legiões de mocréias, urutaus e tracajás que se espalham por esse mundão sem porteira, e terão que conviver com esses exemplos opressivos no seu dia a dia.

São exemplos ainda mais graves porque um trabuco pode simplesmente não comprar uma revista “photoshopada”, mas não poderá evitar ver na rua exemplos vivos de beleza que lhe farão sentir ainda mais feia, coisa que interiormente ela não é.

Que as dignas deputadas européias libertem e protejam a feiúra, esse valor universal.

Podem também criar uma lei que obrigue homens bonitos a casarem com trapizombas, porque essas moças, coitadas, vítimas de um darwinismo estético incompatível com o nosso estágio de desenvolvimento sócio-cultural, também têm o direito de acordar pela manhã ao lado de um homem bonito.

E se não for pedir demais, que alguma deputada também proíba que moças bonitas nasçam com bundas e peitos grandes, porque aí já é demais, e se vamos incentivar a feiúra que seja de maneira completa e absoluta, e tudo é válido em nome do direito das barangas de serem felizes.

Uma pequena diferença entre Londres e Paris

Em Londres, praticamente todas as livrarias têm uma seção de história militar, têm até mesmo um número incomum de livrarias especializadas no assunto. Nelas a II Guerra Mundial ocupa lugar de destaque. A Inglaterra tem alguns dos maiores historiadores das grandes guerras do século XX, como Martin Gilbert — sem falar em Churchill, o sujeito que pelo menos no front ocidental definiu o que foi a II Guerra.

Uma parte importante dessa fixação vem, claro, da longa história de um império em que o sol nunca se punha, como eles gostavam de dizer. Os domínios ingleses abrangiam os cinco continentes, e eles podem se orgulhar até mesmo de terem sido pioneiros na exploração da Antártida e do Ártico. Além disso, durante séculos tiveram a mais importante marinha do mundo. É fascinante a história de como começaram como piratas e acabaram usurpando de Portugal, da Espanha e dos Países Baixos o posto de donos do mundo.

Em Paris essas seções não são tão facilmente encontradas nas livrarias. Em vez disso, pode-se passar o olho no passatempo preferido dos franceses, livros de filosofia em capas sóbrias e espartanas (estética aliás importada por Portugal), muitas vezes disfarçando um conteúdo medíocre e redundante, como é a maior parte da tal filosofia contemporânea. Ninguém pode acusar os franceses de desprezo à história — na Passage des Panoramas no Boulevard Montmartre, por exemplo, pode-se encontrar facilmente à venda moedas antigas que datam dos tempos do Império Romano, e alguns dos maiores especialistas em história européia, como Georges Duby e Paul Veyne, vêm de lá —, mas é como se eles achassem que não têm exatamente muitos motivos para celebrar aquela guerra. O que, num país de gente orgulhosa de sua história como os franceses, merece uma explicação.

Acho que ela pode ser encontrada nas ruas de Paris. Em boa parte delas encontram-se placas indicando que ali tombou um combatente da liberdade — em esquinas, pontes, marquises, sempre se pode achar um lembrete de que naquele local, durante a II Guerra, nazistas e colaboracionistas mataram um membro da Resistência Francesa. Muitas vezes a vítima sequer tem um nome, não passa de uma lembrança, quase um diz-que-diz. Mas a sua memória tem que ser lembrada, heróis anônimos também criam uma lenda, e por isso a Resistência Francesa alcançou, no imaginário mundial, uma importância muito maior do que a que realmente teve.

Por mais que tentem assumir um certo flair de vitoriosos de uma guerra perdida — como fez Clemenceau em 1918, por exemplo —, a França perdeu a II Guerra Mundial, e perdeu de maneira humilhante. Se com excesso de boa vontade a I Guerra pode ser vista como uma vitória, porque bem ou mal a França esteve do lado dos vencedores, se comportou com a bravura necessária e ainda levou seu quinhão do butim, a Alsácia-Lorena, a II foi a guerra em que se recusou a lutar, em que se rendeu quase instantaneamente e aceitou a ocupação e a palhaçada que foi o governo do Marechal Pétain em Vichy. Nessa guerra, o único ato francês realmente louvável foi declarar Paris cidade aberta e evitar a sua destruição.

Uns anos atrás, uma moça francesa veio a este blog defender seu país. Como poderia uma França despreparada, em crise desde a queda da III República, ousar enfrentar a Alemanha?, ela perguntou. A moça não sabia a diferença entre coragem e covardia, e certamente olhava para o exemplo da Polônia — que mesmo sabendo que não tinha a mínima chance lutou até onde pôde contra a invasão alemã, e ninguém poderá jamais desprezar a imagem da cavalaria polonesa investindo contra os Panzers alemães, quixotesca e bela — com desprezo pela sua burrice: como pôde um paisinho daquele resistir a uma potência como a Alemanha nazista?

O curioso é que Inglaterra tampouco poderia se orgulhar de ter vencido a guerra, objetivamente. É provável que o maior erro de Hitler tenha sido não tentar invadir a Grã Bretanha quando teve chance, preferindo invadir a União Soviética e entrando de cabeça no erro estratégico que é lutar uma guerra em dois fronts. Em 1941, a Inglaterra já estava de joelhos diante da máquina de guerra nazista. Não fosse o erro de Hitler, além do apoio posterior de Stálin e Roosevelt , o Reino Unido teria caído.

Mas a história da resistência inglesa à Alemanha é memorável. Londres e cidades portuárias como Liverpool sofreram bombardeios só superados pela destruição causada pela vingança — não há outra palavra que possa definir o bombardeio de Dresden, por exemplo — aliada na Alemanha. Ainda hoje se descobrem bombas que não explodiram. Se não podem dizer que ganharam a guerra por seus próprios méritos, como podem os soviéticos, os ingleses podem se orgulhar da sua postura e do seu orgulho. Durante a Blitz, resistiram com uma dignidade que ainda hoje impressiona, mesmo quando amontoados em estações de metrô ou em abrigos anti-aéreos. Filmes como o autobiográfico “Esperança e Glória”, de John Boorman, e livros como o recente Keepin’ Mum, de Brian Thompson, contam o que foi viver em um país sob ataques constantes.

Os franceses não passaram por essa experiência. Daí a insistência em glorificar a Resistência e os maquis que morreram combatendo Hitler. São o último fiapo de dignidade naquela guerra a que a França pode se agarrar, e por isso espalham placas por toda a cidade como uma tentativa de lembrar a todos que afinal a II Guerra Mundial não foi, para a França, apenas vergonha e humilhação. A Resistência Francesa, ainda que pouco eficiente, foi uma mostra do que gente com coragem pode fazer para defender seus ideais: são a diferença entre o espírito de Napoleão e a tibieza de Pétain. Acima de tudo, são uma lembrança mais digna do que o que se seguiu depois da libertação.

A postura francesa no pós-guerra é uma das coisas mais impressionantes daquela época. Se o país não foi bravo o bastante para resistir à Alemanha, coragem não lhe faltou para perseguir as mulheres que “colaboraram” com a Alemanha — ou seja, que tentaram sobreviver dormindo com o inimigo, como mais tarde milhares de alemãs ganhariam o chucrute de cada dia de pracinhas americanos. Deve ser algo na psique francesa: os alemães podiam estuprar o país, mas não podiam seduzir suas mulheres.

Um cronista mau-humorado poderia dizer que os franceses não foram homens o suficiente para enfrentar os alemães, mas o foram para raspar cabeças de mulheres cujo crime de guerra foi tentar sobreviver da única maneira que lhes era possível. Obviamente as coisas não são assim tão simples, e é razoavelmente fácil entender a revolta francesa contra colaboracionistas. Um observador mais imparcial poderia inclusive dizer que não há, necessariamente, uma relação entre os dois fatos, embora isso fosse um tanto difícil de provar.

Independente disso, o que se viu nos momentos que se seguiram à libertação francesa foi, no fundo, o extravasamento da frustração que todo francês deve ter sentido ao ver a Wermacht marchar na Champs Elysées, mas feito da maneira mais fácil. Talvez seja compreensível; mas é difícil perdoar sua indignidade. Porque é impossível olhar para as imagens de mulheres humilhadas das maneiras mais cruéis, uma humilhação completa a partir de sua nudez e da sua “emasculação” simbólica ao lhes cortarem os cabelos, e imaginar que, assim como a mancha causada pelo nazismo jamais será realmente apagada da história alemã, será difícil esquecer a vaga sensação de que a única hora em que os franceses pegaram em armas de maneira realmente efetiva na II Guerra Mundial foi para raspar as cabeças de suas mulheres.

As revoluções dos Beatles

Pergunte às pessoas que gostam um pouco que seja dos Beatles e a grande maioria dirá que boa mesmo é a segunda fase da banda, aquela que por uma convenção meio claudicante se inicia com o Revolver. Dirão que a primeira fase é bobinha, e em parte isso vai se dever ao respeito a outra convenção simples e já consolidada: a chamada segunda fase, melódica e harmonicamente mais ambiciosa e mais sofisticada, é a fase universalmente considerada “revolucionária” dos Beatles.

E elas estarão erradas. Porque em termos de “revolução” nada se compara àqueles quatro meninos cabeludos de Liverpool que cantavam ié ié ié. Esses são os verdadeiros revolucionários. O resto é só conseqüência.

É engraçado que se tenha perdido a perspectiva histórica do que representou a chegada dos Beatles ao cenário musical. Foi o som de uma única canção, Please Please Me, que criou o que hoje se chama de rock inglês e que, por tabela, revitalizou o então moribundo rock americano, além de abrir caminho para que dezenas de outras bandas e artistas aparecessem e trouxessem elementos novos, alguns dos quais fundamentais, para a evolução da música.

As pessoas esquecem que no início da década de 60 o rock and roll estava morto. Buddy Holly e Eddie Cochran haviam morrido em acidentes (respectivamente de avião e de táxi), Chuck Berry tinha ido para a cadeia, Little Richard tinha entrado numa grave crise existencial e se convertido à religião, Jerry Lee tinha caído em desgraça porque comeu a prima — mas casou —, e Elvis, bem, Elvis tinha morrido também. Outros grandes artistas da primeira onda do rock tinham se esgotado em termos de inovação criativa — e aí se inclua Carl Perkins, Everly Brothers, Gene Vincent e tantos outros. O que se ouvia então era twist. Twist não é música que se dê ao respeito.

Dentro desse cenário, o que os Beatles representaram em termos de renovação da música pop em 1963 é virtualmente impossível de ser quantificado. Há uma série de teorias sobre as razões pelas quais os Beatles tomaram os Estados Unidos de assalto em 1964, que vão da necessidade de uma válvula de escape para o trauma do assassinato de John Kennedy à combinação de irreverência e seriedade ilustrada nos terninhos eduardianos que eles usavam sob seus cabelos compridos. Mas nada disso é tão importante quanto a sua música.

I Want To Hold Your Hand não se parece com nada feito antes dela. A energia, a coesão harmônica e a inventidade melódica que faziam parte da música dos Beatles representaram uma mudança de padrão muito mais importante, por exemplo, que a que eles fariam anos mais tarde com o Sgt. Pepper’s, considerado por muita gente o disco mais importante da história do pop.

Era aqui que estava o novo.

Havia mais coisas acontecendo simultaneamente — ou melhor, sendo gestadas. Na California os Beach Boys apareciam com um pastiche meio bobo de CHuck Berry e Everly Brothers; quem quer que ouça seus primeiros discos vai ver como o som parecia comportado e bem enquadrado. Em 1965 eles partiriam para uma grande aventura sonora, em canções mais elaboradas como Good Vibrations, mas em 1963 apenas repetiam a fórmula da surf music com letras debilóides como as de Be True To Your School. Enquanto isso, a Inglaterra se preparava para regurgitar o rhythm and blues americano, mais ou menos como a França tinha absorvido e transformado o cinema americano em sua nouvelle vague uns poucos anos antes; e lançava, ali, uma abordagem diferente e renovadora da música pop que estouraria em 1965 — da qual Satisfaction, dos Rolling Stones, talvez seja o seu maior símbolo.

Mas foram os Beatles que mostraram o que era realmente o novo. Satisfaction é caudatária direta desse caminho aberto por Please Please Me, inclusive na sonoridade. Com aqueles seus primeiros compactos — Please Please Me, She Loves You, I Want To Hold Your Hand — os Beatles definiram um padrão novo para a música pop. O que hoje pode até parecer bobinho para quem não consegue ver a história da evolução da música pop porque não consegue colocar a música em seu contexto, era revolucionário em 1964.

Bob Dylan percebeu isso imediatamente: ele lembra de estar na estrada quando ouviu pela primeira vez I Want to Hold Your Hand, e entendeu imediatamente que era dali que vinha o futuro; e abandonou o folk para entrar de cabeça no rock and roll (o que talvez não tenha sido uma boa idéia, mas essa é uma opinião bem pessoal). O poeta Phillip Larkin também:

Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the
Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

Up to then there’d only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.

Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.

So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles’ first LP.

O impacto da chegada dos Beatles também é sentido em outras áreas do show business. Foram eles, por exemplo, que criaram o que hoje se entende por cena rock. Foi a beatlemania que possibilitou os shows em grandes estádios. Para que se tenha uma idéia do que isso representa é só lembrar que Elvis, o maior de todos antes de JPG&R, costumava se apresentar sobre tablados em feiras estaduais.

Nada disso significa que se deva subestimar a sua importância a partir do Revolver, o momento em que eles viraram os queridinhos de um público pretensamente sofisticado que finalmente se rendia incondicionalmente à força musical e social do rock, mas queria manter ainda uma certa dignidade intelectual; no entanto é bom lembrar que em 1967, ano do Sgt. Pepper’s, também surgiram coisas como os primeiros do Velvet Underground e dos Doors.

No Verão do Amor os Beatles não estavam mais sozinhos. Mas em 1964 estavam. Um sujeito com o cabelo na cintura podia ser transgressor em 1967, mas havia muitos outros como ele ao seu lado. Em 1963, os cabelos nos ombros dos Beatles eram absolutamente únicos. Quase tão únicos quanto a música que faziam. E por mais ingênuos que eles hoje pareçam, assim como a irreverência e até mesmo suas canções, a verdade é que foi naquele momento que eles pariram um mundo novo.

A ex-ministra, o frei e o sociólogo

Há alguns anos encontrei a então ministra Marina Silva no aeroporto de Salvador. Estávamos diante das vitrines de uma loja que vendia artigos de couro belíssimos e com preços condizentes com a sua beleza. A ministra carregava uma bengala, e minha sobrinha, despachada, perguntou o que ela tinha. Marina Silva sorriu para ela, falou alguma coisa e, acompanhada de um assessor, entrou na loja. Eu, que não podia sequer ousar sonhar em comparar aqueles artigos caríssimos, fui embora.

Saí do “encontro” impressionado com a ministra. Marina Silva tem ao redor de si uma aura de pureza e tranqüilidade que raramente se vê por aí — e que eu nunca vi em nenhum político.

Deve ser essa simpatia, essa aura de superioridade humana que qualquer pessoa honesta precisa reconhecer na pessoa de Marina Silva que justifica parte da empolgação de setores da esquerda com a sua eventual candidatura à presidência do Brasil.

Frei Leonardo Boff escreveu um artigo no Onda Latina defendendo a candidatura da ex-ministra. Consiste basicamente na citação de uma carta do sociólogo mineiro Pedro Ribeiro de Oliveira, autor de um livro recente chamado “A Consciência Planetária e a Religião”. Ambos defendem a candidatura de Marina Silva, partindo da presunção de que estamos em uma encruzilhada histórica e que chegou o momento de trocar a idéia do “progresso sem fim pelo caminho da harmonia planetária”.

Esse discurso telúrico parece surgir a partir de uma leitura equivocada da realidade, temperada com uma boa dose de messianismo político. Talvez o fato de os sujeitos desse texto — o sociólogo, o frei e a candidata — terem fortes vínculos religiosos ajude nisso.

É provável que um dos maiores erros da esquerda brasileira em toda a sua história tenha sido não perceber e não entender a emergência da questão ambiental como um dos temas fundamentais do final do século XX. Preocupada com uma visão que já fora correta, mas tinha se defasado com a evolução do capitalismo, de modo geral a esquerda repudiou o movimento verde como “coisa de burguês”. A questão ambiental, como qualquer outra questão — racial, de gênero, todas as outras — seria resolvida quando se resolvesse o problema da luta de classes.

O resultado não foi bom. No vácuo gerado pela incompreensão da esquerda e pelo óbvio desinteresse da direita, a bandeira ecológica foi empunhada pelo PV, basicamente oriundo de uma parcela de guerrilheiros de classe média que, exilada na Europa nos anos 70, presenciou o fortalecimento político do movimento verde, na esteira do vácuo ideológico pós-1968. Gabeira e outros perceberam que o ambientalismo, como o chamam agora, apontava o futuro. Era algo que, de tão importante, transcendia a luta de classes.

O problema é que essa última frase é uma pequena armadilha. Ainda que permita uma atuação autônoma, ecologia não transcende a luta de classes. E não pode ser analisada fora do panorama macro-estrutural. É nesse nem tão pequeno detalhe que mora a raiz do equívoco em que se transformou o PV e também do erro que é esse artigo de Frei Leonardo Boff.

Sem estofo, sem conteúdo real, o resultado dessa visão foi um partido que, apesar de armado com excelentes intenções e uma grande intuição sobre o que seria o futuro, foi incapaz de entender o presente e construir a base teórica necessária para sua consolidação. Ideologicamente pobre, o PV — uma grande idéia que, fosse a vida diferente, hoje poderia representar o que o PT representou 30 anos atrás e o que o Partido Comunista do Brasil representou há 90 — não conseguiu construir um ideário consistente e degenerou em um partidinho de aluguel barato para a direita, na prática não muito diferente dos PRONAs da vida. Apenas um pouco mais chique.

É provavelmente isso que está na base da incompreensão de frei Leonardo Boff e Pedro Ribeiro de Oliveira. Ao declarar que “o paradigma do progresso sem fim desnuda sua fragilidade teórica e seu dogma antes inquestionável ameaça ruir”, especialmente dentro do contexto de uma candidatura presidencial, fica subentendido que, para eles, o governo Lula e o modelo de governo que ele representa já completaram o processo de superação de um momento histórico, e que Marina Silva seria o passo lógico à frente.

Se olhassem em volta e tentassem ver o Brasil real, o frei e o sociólogo não diriam que o “paradigma do progresso” se esgotou. Porque não é preciso procurar muito para ver um bocado de exemplos vivos para os quais o progresso sequer chegou. Não foi apenas para o pessoal que mora nos cafundós Amazônia ou no Raso da Catarina, mas também milhões de favelados em qualquer centro urbano. Há ainda um longo caminho a ser trilhado nesse sentido, e ele passa, sim, pela concretização do vilificado discurso desenvolvimentista que Marina Silva quer combater. Longe de ter realizado seu papel histórico, esse grupo que inclui Lula e Dilma Rousseff não completará esse ciclo. Isso ainda vai demorar.

É óbvio que a questão ambiental é hoje um tema fundamental. Mas em hipótese alguma esse discurso empalmado por Marina teria condições de ser o eixo da ação. Por exemplo, o PV tem torcido o nariz para as possibilidades abertas pela exploração de petróleo no pré-sal alegando preocupações ambientais. É o discurso do atraso disfarçado de moderno. E é a diferença entre o moderno e o atraso travestido que frei Leonardo Boff não consegue entender.

A solução, no entanto, não está em lutar para eleger uma presidente politicamente fraca que será incapaz de realizar as mudanças prometidas. Está em discutir e implementar mudanças na forma como se realiza o tal “paradigma do progresso”, torná-lo mais moderno, respeitar uma conjuntura nova e transformá-la em, bem, progresso.

Esse artigo não passa muito de uma justificativa teórica mambembe que Boff e Oliveira tentam apresentar para a candidatura de Marina Silva. Talvez para tentar afastar a impressão de que a candidatura da ex-ministra, neste momento, é oportunista. A justificativa teórica não consegue se sustentar, mas provavelmente é a única maneira de tentar legitimar essa candidatura: quando tentam sair da utopia e do discurso pretensamente ideológico, o resultado pode ser desastroso:

É evidente que o PV é um partido que pode até ter sido fundado com boas intenções mas hoje converteu-se numa legenda de aluguel. Ninguém imagina que a Marina — na hipótese de ganhar a eleição — vá governar com base no PV. Se eventualmente ela vencer, terá que seguir o caminho de outros presidentes sul-americanos eleitos sem base partidária e recorrer aos plebiscitos e referendos populares para quebrar as amarras de um sistema que “primeiro tomou a terra dos índios e depois escreveu o código civil”.

Frei Leonardo Boff e Pedro Ribeiro de Oliveira falam isso com alegria — olha a revolução chegando aí, gente! É impressionante que eles achem que o Brasil esteja no mesmo nível de uma Venezuela ou Bolívia — no plano institucional ou econômico. Se é essa a proposta de país que eles querem, as coisas estão complicadas. É difícil acreditar que realmente defendam um discurso bolivariano que, se talvez justificável na Venezuela e certamente aplicável à Bolívia, no Brasil não passa de insanidade. E do jeito que falam até parece que Marina Silva teria condições de polarizar um país como Júlio César Chavez. A única coisa louvável nesse trecho é o reconhecimento da condição de michê da política ocupada pelo PV hoje. E isso, definitivamente, não é um bom sinal.

As besteiras que dizem em nome dos Beatles

Ainda não ouvi os discos remasterizados dos Beatles que foram lançados na semana passada. Estão demorando muito para baixar (“desculpe, Paul e Ringo, mas você já são ricos o bastante”, escreveu o moço gentil que disponibilizou essas gravações na internet, e eu faço minhas suas palavras). Mas ouvi uns trechos e posso começar a comparar. Pelo menos uma canção parece pior do que sua última versão, Hey Bulldog, tendo perdido um bocado de sua força — na verdade, a versão mono é melhor. Já o álbum Please Please Me parece recuperar a riqueza sonora do antigo LP estéreo, e isso já é uma grande vantagem. Que ninguém espere uma grande revelação, no entanto: são exatamente as mesmas gravações. Ou seja, isso que está saindo agora é interessante, é legal, mas não é fundamental.

Infelizmente, mesmo sem ouvir as canções alguns efeitos colaterais ruins já se fazem notar. Um dos mais curiosos é causado pela avalanche de mídia espontânea gerada pelo lançamento. Isso obriga fãs bobos como o autor destas maltraçadas a ler algumas críticas e comentários que beiram a idiotice. Nenhuma, no entanto, foi tão ruim quanto a matéria assinada pelo Luís Antônio Giron na revista Época desta semana.

A matéria de Luís Antônio Giron é um amontoado de erros crassos e uma coleção de bobagens. Por exemplo, se refere ao Past Masters como uma coleção de “faixas raras”. She Loves You, I Wanna Hold Your Hand, Let it Be, Get Back, Day Tripper são algumas das canções do disco, que basicamente reuniu, em dois discos, os compactos dos  Beatles; era em compactos, aliás, que eles lançavam suas principais canções. Por isso não são exatamente raridades. O mais curioso é que Giron parece centrar sua atenção no Past Masters, fazendo-o inadvertidamente parecer a grande novidade do pacote, quando ele existe há 21 anos. A única diferença é que agora, em vez de dois volumes separados, é um álbum duplo (como aliás foi a versão em vinil lançada em 1988).

Giron diz que os Beatles gravaram Komm, Gib Mir Deine Hand (versão em alemão para I Want To Hold Your Hand) porque “sentiram a deficiência” das condições de gravação. É uma grande estupidez. Eles gravaram essa canção — e Sie Liebt Dich, versão de She Loves You — pela mesma razão que Nat King Cole gravou aquele bocado de canções em castelhano: para seduzir um mercado específico, mais nada, e por pressão da Electrola Gesellschaft, o braço alemão da EMI. Gravar canções em língua estrangeira era uma prática comum na era anterior à dos Beatles; eles não queriam gravar essas versões.

Mas a coisa ainda fica pior: os Beatles apenas regravaram os vocais para essa canção, sobre o instrumental original de I Want To Hold Your Hand. Ou seja, mudaram nada, apesar de, segundo o Giron, “terem sentido a deficiência”.

O jornalista diz também que You Know My Name (Look Up The Number) “foi a última faixa produzida pelos Beatles, em novembro de 1969”.

A faixa foi gravada em duas sessões em 1967 (com Brian Jones, dos Stones, tocando sax, entre outras curiosidades) e esquecida. Em abril de 1969 John e Paul fizeram alguns overdubs para a canção. Em novembro (26, mais exatamente), John Lennon, sozinho, se juntou a Geoff Emerick (engenheiro de som dos Beatles que, recentemente, deu uma grande entrevista sobre o Abbey Road) para fazer a edição final da canção, sem nenhum outro beatle presente. Sua idéia era lançar a canção assinada pela Plastic Ono Band. Mas isso geraria problemas com McCartney (é fácil imaginá-lo dizendo : “I’m no part of any friggin’ bloody Plastic Ono Band!“). You Know My Name acabaria saindo como o lado B de Let it Be.

A última gravação dos Beatles ocorreria pouco mais de um mês depois. Em 3 e 4 de janeiro de 1970 Paul, George e Ringo (Lennon estava em férias na Dinamarca) se reuniram no estúdio para finalizar I Me Mine, de George, e essa seria a última vez que mais de um Beatle trabalhariam juntos no estúdio. (Só para constar: a última vez em que os quatro estiveram juntos nos estúdios da EMI, hoje Abbey Road Studios, foi no dia 20 de agosto de 1969, finalizando I Want You [She’s So Heavy]).

Outra informação impressionantemente equivocada é a de que a discografia americana foi lançada no Brasil. Isso é uma das maiores mostras de ignorância que eu já vi. Porque as versões americanas dos discos dos Beatles, com grandes diferenças em relação aos originais ingleses, nunca, jamais, em hipótese alguma foram lançadas no Brasil.

Até 1965 o Brasil lançava suas próprias versões dos álbuns dos Beatles, como acontecia nos Estados Unidos. Lá foram lançados os seguintes discos (descontando outros lançados por outras gravadoras como a Swan e a VeeJay): Introducing The Beatles, Meet The Beatles, The Beatles’ Second Album, A Hard Day’s Night, Something New, Beatles’ 65, The Early Beatles (basicamente o Introducing The Beatles com outra ordem de músicas, agora lançado pela gravadora Capitol), Beatles VI, Rubber Soul, Yesterday and Today e Revolver. Todos esses discos trazem diferenças em relação aos originais ingleses. Daí em diante os discos seriam iguais aos ingleses, com exceção do Magical Mystery Tour; a Capitol não gostou do EP duplo original, e transformou-o em um LP, agregando os compactos lançados na época, como Strawberry Fields Forever, All You Need Is Love e Hello, Goodbye. O álbum ficou tão melhor que o lançamento original que os ingleses, ao unificar as discografias em todo o mundo em 1976, substituíram o lançamento original por ele.

No Brasil foi lançada uma série diferente de discos, com nomes, capas e músicas diferentes do orignial inglês: o “Beatlemania” (1963), “Beatles Again” (1964), “Os Reis do Iê, Iê, Iê” (1964; era o único com as mesmas canções do original inglês, o A Hard Day’s Night), “Beatles 65” (1965) e “Help!” (1965); só a partir do Rubber Soul os discos passaram a ser iguais aos originais. São versões diferentes das inglesas e também das americanas. A propósito, algumas das gravações americanas eram levemente diferentes das inglesas. As brasileiras eram iguais.

Mas a maior barbaridade escrita pelo Giron nesse artigo absolutamente ignorante diz respeito à versão de Love Me Do presente no Past Masters: “o compacto [a versão incluída no disco, com bateria tocada por Ringo, diferente da versão do LP Please Please Me, que tem bateria tocada por um músico de estúdio chamado Andy White] traz a versão lenta do primeiro sucesso da banda, com um arranjo mais acústico. Bem diferente da gravação percussiva que figura no LP de estréia.”

É uma das idéias mais estúpidas ditas sobre os Beatles ao longo dos anos, quase igual a uma matéria antológica de Ruy Castro sobre a banda na Folha de São Paulo há uns 20 anos, um samba do crioulo doido escrita por alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe onde.

A pergunta que eu faço, nesse caso, é simples: custava pelo menos ouvir a droga da música? Porque as duas versões são virtualmente iguais, e eu duvido que um ouvinte médio consiga distinguir uma da outra. Tudo isso que o Giron falou só existe na cabeça dele. Não seria um grande trabalho se informar um pouquinho sobre as canções antes de falar essas bobagens.

Giron se pergunta ainda se faz sentido lançar esses discos apenas em CD, e não nos sites de música como o iTunes. O volume de vendas devia ser uma boa resposta. Dos dez CDs mais vendidos da Amazon hoje, oito são dos Beatles. A caixa estéreo está no top 100 há 60 dias — quase dois meses antes de ser sequer lançada. Me desculpe, Giron, mas isso faz todo o sentido do mundo. O que os Beatles perceberam foi que, ao não oficializar as canções em downloads, pelo fato de serem ícones da cultura pop, valorizam momentaneamente o produto que estão lançando, que tem alguns diferenciais em relação ao já disponível e que agrega muito mais valor que os downloads. Essa estratégia não deve voltar a funcionar, mas por enquanto tem dado muito certo. Provavelmente, quando a empolgação pela novidade passar, as músicas irão para o download.

Minha sorte é que eu não leio a Veja. Tenho a impressão de que seria ainda pior. Porque essa é a situação atual do jornalismo cultural pátrio: os jornalistas são os mesmos de 20, 30 anos atrás, com os mesmos vícios e a mesma ignorância. Mas agora há a internet, e as pessoas não podem mais escrever esse tipo de besteira (ou cópias como a matéria da Veja sobre o lançamento do Anthology, em 1995; o jornalista Celso Masson basicamente traduziu uma matéria da Newsweek) impunemente.

Beatlemania

Um dos posts que comecei a escrever e que nunca terminei ou publiquei, há uns três anos, comparava a Apple Corps, a empresa dos Beatles, a um elefante. Na época todo mundo batia na dita por não ter aderido ao iTunes, por estar perdendo dinheiro com o P2P, essas coisas.

Eu achava que a Apple estava correta. Que não tinha necessidade de correr atrás da última inovação. Se não me engano, eu tinha um título para o post: quando elefantes se movem. Elefantes são lentos, mas seus movimentos nunca passam despercebidos. Por isso eu achava que na hora em que eles se movessem em direção ao comércio eletrônico, depois de passada a primeira empolgação do mercado e depoois de criada uma certa expectativa quanto a eles, eles ganhariam mais dinheiro. Do ponto de vista de mercado, os Beatles não são exatamente o Bon Jovi. Podem se dar ao luxo de criar suas próprias condições. E podem esperar o momento propício, porque quando isso acontecer nada disso passará em branco.

Eu devia ter terminado e publicado o post porque eu hoje poderia dizer: olha, eu sei ver o futuro. Não exatamente, porque a Apple ainda não anunciou o que vai fazer do comércio eletrônico. Ou mesmo se vai fazer: eles estão ganhando um dinheiro danado apenas reempacotando o que já tinham.

O lançamento dos CDs remasterizados dos Beatles ontem virou a grande notícia do showbiz deste ano. Para que se tenha uma idéia, a New Musical Express está distribuindo uma edição com 13 capas diferentes — uma para cada álbum dos Beatles. Gente insuspeita de beatlemania está desesperada pelas caixas com os CDs. A primeira prensagem das caixas já se esgotou. Respeitadas as proporções, é uma nova pequena beatlemania. Nada mal para uma banda que no próximo dia 20 completará 40 anos de morta, embora a notícia oficial só tenha sido dada meses depois.

A máquina de relações públicas dos Beatles é impressionantemente competente.

Mas apesar disso, e apesar de assumidamente beatlemaníaco, até hoje não comprei os CDs dos Beatles. Porque já tinha tudo em vinil e porque me parece muito mais simples (e justo) copiar os MP3 de qualquer canto da internet. Mas havia um outro motivo para não comprar os CDs: eu não gostava do trabalho porco que foi feito com a remasterização (que eles sempre negaram, mas que foi realmente feita) de algumas canções e álbuns.

Para não ser injusto, algumas canções foram bem realçadas, especificamente os da segunda fase — o Magical Mystery Tour pós-1987 tem uma sonoridade geral muito melhor que as disponíveis até então. Feitas as contas, o resultado foi positivo. Mas algumas canções foram massacradas. Quem nunca ouviu o Rubber Soul em vinil não sabe exatamente quão bom é aquele disco, e que em Drive My Car há pequenos trechos que foram modificados. Quem nunca ouviu I Feel Fine no Oldies But Goldies ou naquele álbum duplo vermelho antes da remasterização sequer sabe que os Beatles ficam latindo no final da música. O som do Please Please Me em CD é ruim, metálico, culpa da má masterização dos CDs e muito inferior aos LPs em fake stereo disponíveis até 1988.

A nova remasterização pode resolver esses problemas de violação de cadáveres, e é o que eu espero. Eu estou curioso para ouvir — embora jamais o suficiente para gastar 1500 reais numa dessas caixas. Porque no fim das contas, muito disso que se discute agora é uma grande bobagem. Não há nenhuma música nova; o que se vai ouvir é a mesma coisa que se ouve há quase meio século, apenas com uma qualidade de som um pouco melhorada. No fim dos anos 90, quando relançaram o desenho animado Yellow Submarine, deu para se ter uma amostra de como a sonoridade das canções ficariam. Muito boas, é verdade. Mas continuam as mesmas canções. E agora, com remasterização ou não, elas continuam as mesmas.

Mas depois disso, fica-se imaginando o que restará para ser lançado e chamar a atenção de novos compradores.

Eu apostaria no Let it Be restaurado e com horas de cenas extras. Por pior que seja o filme — e acredite, é um filme realmente ruim –, seria a última coisa realmente interessante que a Apple Corps poderia oferecer aos fãs.

Mulher de um homem só

Eu tinha esquecido que “Mulher De Um Homem Só” era tão bom.

Li o livro há alguns anos. Uns cinco, acho. Foi logo que conheci o Alex, e na época “Mulher de um Homem Só” circulava pela internet livremente. Li, gostei acho que comentei sobre o livro com o Alex.e o livro passou para a galeria daqueles livros que você leu. Talvez o fato de me tornar amigo do Alex tenha contribuído para isso, esse excesso de familiaridade intelectual.

Reli agora, impresso, e fiquei impressionado com o tanto que tinha esquecido. E com o quanto o livro é bom.

“Mulher De Um Homem Só” é um livro maduro, bem pensado. Dentro dos limites da obra, esgota com propriedade as suas possibilidades narrativas.

O livro conta a história da relação entre Carla, a narradora, e a melhor amiga do seu marido, Julia. É um livro carioca sobre o ciúme, narrado do ponto de vista feminino. E é nessa narração que está um dos grandes trunfos do livro. Em Carla, Alex cria uma personagem crível, rica, e explora bem suas possibilidades. É aqui que o Alex demonstra ser um excelente escritor: ele tem perfeito domínio da voz feminina da Carla. É esse o grande segredo do livro. Durante anos o Alex vem insistindo na questão da onisciência de sua narradora. É a chave para a compreensão de “Mulher de um Homem Só”. Estritamente, essa é uma história que só existe na cabeça de Carla. Alex faz um grande trabalho ao assumir a voz de Carla. Todas as incongruências, todas as incompatibilidades desse discurso são expressos admiravelmente pelo texto do Alex.

Eu gosto de imaginar a Carla como uma mulher de seus 30 anos internada numa clínica de repouso, contando entre um surto e outro de esquizofrenia uma história que mistura realidade e ficção e que não respeita limites de tempo e de espaço.

É também um livro carioca ao extremo, um detalhe de uma classe média alta espremida entre os morros. É outro grande trunfo do livro: embora carioca, está longe daquela “literatura urbana” que deriva imediatamente de Rubem Fonseca e que, nos últimos anos, se tornou praticamente sinônimo de literatura feita naquelas plagas.

Umas poucas coisas me incomodam no livro. Uma delas é um trecho em que Julia dá a entender que décadas se passaram entre os acontecimentos narrados e a narração em si — e então a Carla se mostra como uma mulher que não aprendeu absolutamente nada depois de tanto tempo, algo razoavelmente improvável. Além disso, mesmo admitindo-se que o objeto do fixação de Carla é a Julia, e mesmo entendendo que o personagem é definitivamente filtrado pelo seu olhar — o que é um dos trunfos do livro –, ainda assim Murilo poderia ser construído de maneira mais elaborada. Finalmente, o último parágrafo não apenas me parece abrupto, mas também desnecessário dentro do contexto do livro.

São poucos defeitos para um livro inteiro. O que “Mulher de um Homem Só” prova é que o Alex é exatamente aquilo que ele vem dizendo ser há tanto: um escritor. E um bom escritor.