Olivetto

Saiu uma autobiografia do Washington Olivetto, e junto obviamente saíram as esculhambações devidas. A mais pesada — entre as que li, ao menos — foi do Mário Sergio Conti na Folha. O título do artigo deixa claro o que se pode esperar dele: “No umbigo da Washingtonlatria”. Eu não sabia do livro até ver a matéria, e me assustei com o vitriolismo do texto. Talvez eu esteja completamente equivocado, mas tive a sensação de que Conti nutre ódio genuíno e pessoal a Olivetto, e não cabe aqui tentar descobrir as razões.

De alguma forma, me senti enviado de novo ao fim dos anos 80, começo dos 90, quando jornalistas e publicitários viviam às turras disfarçadas. Jornalistas gostavam de dizer que tinham uma missão social, que buscavam imparcialmente a verdade, essas coisas que a história recente do país tem passado na cara deles com desprezo, mas também um publieditorial aqui e ali para garantir o leitinho das crianças. Publicitários, por sua vez, então bem pagos e dedicando-se a um tipo curioso e provinciano de sofisticação, se achavam mais do que eram: fingiam que não eram os mascates, do pior tipo, que somos.

Passei os olhos no livro dia desses. É o tipo de obra que eu não compraria, porque é essencialmente o que o Conti diz dele: uma sequência pueril de “eu fiz”, “eu sou”, “eu brilho”. Não acrescenta nada à publicidade, não ensina nada. Está longe de um Ogilvy on Advertising, ou mesmo dos livros dos brasileiros Júlio Ribeiro e Alex Periscinotto, por exemplo. Sendo Olivetto quem foi, teríamos o direito de esperar, ao menos, reflexões e lições sobre o ofício de criador, ou pelo menos da publicidade como negócio; no entanto, encontramos apenas algo que se assemelha a uma “auto-hagiografia” glamourizada e edulcorada de Olivetto. Isso quase reforça o veredito do Conti. Quase.

Porque antes de tudo é necessário lembrar uma coisa simples: Washington Olivetto é maior que Mario Sergio Conti, no sentido de ser infinitamente mais importante para a publicidade brasileira do que o Conti o é para o jornalismo pátrio. E olha que a concorrência é desleal. A publicidade brasileira é, ou pelo menos foi, uma das melhores do mundo, digna, competente, talentosa; o jornalismo brasileiro é um desfile macabro de Chateaubriands, Marinhos, Civitas, Alzugarays, e isso para ficar apenas nos capi dei tutti capi; entre os soldados a lista é ainda mais insalubre, indo de Albericos da Souza Cruz e Mírians Leitão ao jornalista de província que escreve qualquer coisa em troca de uma assessoria ou um contrato de publicidade.

Por isso é injusto, talvez, esperar mais do Olivetto do que aquilo que ele sempre se propôs a fazer. Boa publicidade consiste em descobrir o que há de singular e verdadeiro no óbvio, e utilizar isso para vender. Fazer isso, ao contrário do que parecem pensar, não é tão simples. As pessoas confundem o óbvio com o medíocre, infelizmente. Washington Olivetto entendeu isso e por essa razão foi o maior publicitário da história brasileira.

Deslumbrado com a elegância do texto de um Neil Ferreira, ou a consistência de um Julio Ribeiro, durante muito tempo me recusei a reconhecer esse fato simples. Para mim Olivetto era apenas o símbolo da geração dos 80, aquela que consolidou a publicidade como  uma profissão digna, até desejável. Mais que isso, talvez: Olivetto foi fundamental para fazer do criador o grande protagonista da publicidade, ainda que abusando da autopromoção além do limite do ridículo — muitas vezes incentivado por essa mesma imprensa que gostava de se alardear superior, mas que gastou hectolitros de tinta em textos a respeito das gravatas ridículas que ele usava.

Olivetto foi o primeiro sujeito que se assumiu orgulhosamente, ostensivamente, até ofensivamente como publicitário. Orígenes Lessa criava anúncios para poder comprar o tempo necessário para escrever seus romances. Ricardo Ramos também. Uma multidão de jornalistas em todo o país se aventurou, bissextamente ou não, pela publicidade porque o jornal não pagava. Mas Olivetto não era um jornalista com contas atrasadas ou um escritor frustrado. Ele era publicitário. Não vinha do jornalismo, do direito, não era vendedor. Ele criava anúncios e tinha orgulho disso. Eu sempre tive a impressão de que só vagabundo se mete com publicidade, gente que não sabe fazer conta de dois mais dois; mas Washington Olivetto, com sua egolatria e sua vaidade, deu dignidade moral à profissão. Cada um dos meninos que, coitados, saem todos os anos das faculdades de comunicação lhe deveriam prestar reverência todos os dias — ou rogar uma praga, não sei bem.

Olivetto emergiu de uma geração singular da publicidade brasileira. Um desses estudiosos universitários poderia expandir uma tese que defendo há um bom tempo: a leveza provocativa da abordagem publicitária da Doyle Dane Bernbach nos Estados Unidos encontrou um terreno fértil no Brasil e possibilitou uma abordagem criativa única. Uma geração inteira parece ter se empenhado em criar uma propaganda que era ao mesmo tempo profundamente brasileira e universal. E brilhante.

Aqueles anos 70, que se estenderam 80 adentro, foram impressionantes. Houve tantos grandes publicitários, dos quais cito uns poucos: Neil Ferreira que morreu ano passado e chegou a comentar neste blog (para meu orgulho eterno); Júlio Ribeiro que também morreu há pouco; Duailibi, Petit, Zaragoza; Enio Mainardi que era um publicitário genial mas que parece que vai entrar para a história pelas imbecilidades que fez, a defesa intransigente do porte de arma e o filho Diogo; os baianos Rodrigo Sá Menezes e Duda Mendonça, e um Nizan Guanaes começando a aparecer, como a Christina Carvalho Pinto. Foram esses sujeitos (e mais uns tantos, claro, que a lista é grande demais para ser colocada aqui) que criaram aquela que chegou a ser considerada a segunda melhor propaganda do mundo, perdendo apenas para os ingleses porque os ingleses, bem, os ingleses sempre foram hors-concours. E nessa geração, Olivetto foi especial.

Eu acompanhei a sua trajetória, mesmo quando ainda não sabia que acompanhava. Sem saber de nada, vi alguns dos seus grandes momentos, como os primeiros comerciais do Garoto Bombril no final dos anos 70. Fiquei sabendo de sua existência em 86, quando uma matéria na Veja contava que ele tinha saído da DPZ para montar uma agência chamada W/GGK; a partir daí lembro da maior parte das suas grandes campanhas (até porque ele fazia questão de assinar seus comerciais): o primeiro sutiã que hoje é chamado de machista mas na época era de uma sensibilidade incrível, o comercial “Hitler” da Folha (tirado, acho, do livro do Menna Barreto, “Criatividade em Propaganda”), os anúncios excelentes para o SBT. Lembro da criação da W/Brasil em 89, um nome maravilhoso para uma agência que representava com perfeição a mística da publicidade dos anos 80.

Pensando bem, o parágrafo acima é desnecessário porque a história de Olivetto é conhecida. Ele a repete há uns 40 anos, e há pelo menos uns 20 isso é tudo o que ele diz: as mesmas coisas, das mesmas formas. Que começou na publicidade por causa de um pneu furado, que não saberia fazer marketing político, que é preciso estar atento ao povo, que lê Contigo e Amiga, essas coisas que foram interessantes na primeira vez que foram ditas, mas que aos poucos se tornaram redundâncias chatas, a mesma piada repetida e repetida e repetida, apenas ilustrando o seu envelhecimento e a perda de importância do seu papel na publicidade. Durante anos, Olivetto esteve aquém do limite do ridículo porque oferecia um trabalho à sua altura, até maior. Ultrapassou esse limite quando a vaidade ultrapassou a sua obra. E por isso, epíteto do criador publicitário, Olivetto também oferece involuntariamente uma lição a quem entra nesse mercado: criação publicitária é mister ingrato, adequado especialmente a jovens com fome de conquista do mundo.

Essa redundância acompanhou a W/Brasil. Já no final dos anos 90 ela parecia ter desenvolvido uma fórmula única para todos os seus comerciais: sempre uma coisa engraçadinha, com uma gag no final. Uma fórmula muito limitada, diga-se. Seu primeiro comercial para a Vésper, por exemplo, era inadequado, impertinente e perigoso: se lembro bem, uma série de cenas de bichos tirados do Discovery Channel e, ao final, um sujeito com uniforme da empresa dizendo algo como “Mãe, é isso que eu faço”. Pensávamos que veríamos um comercial de uma empresa telefônica, mas fomos apresentados a um fiscal da natureza, e eu não tenho dúvidas de que esse comercial equivocado, feito para uma empresa que nascia do zero para concorrer com a Embratel e sua estrutura construída ao longo de muitas décadas, deu sua pequena contribuição à debâcle da empresa.

Em 2001, se não me engano, a W/Brasil atendeu a ANEEL, ou algo assim, e se mostrou absolutamente inepta. Ainda lembro de um comercial que eles veicularam em pleno apagão e racionamento de energia dos anos FHC. Um comercial absurdo, aferrado à fórmula de Olivetto, fórmula que exigia uma gag no final. Se não me engano era um casal que conversava com um vendedor de pizza. Ali, a agência simplesmente não sabia o que estava fazendo, a verdade é essa, não entendia que precisava de uma abordagem mais séria. Ou pior, talvez: tinha acreditado no mito de Olivetto e passado a achar que mostrar um filme “criativo” era mais importante que resolver o problema do cliente.

Já então Olivetto tinha deixado de me interessar. Seu tempo já tinha passado. Tivemos um lembrete disso quando, uns tempos atrás, ele deu uma declaração envolvendo aspectos feministas que foi desancado nas redes sociais. Eu compreendi o raciocínio dele, e não discordo; mas ele não entendeu que nestes tempos estranhos a maneira de falar as coisas, e até mesmo as coisas em que se fala, precisam obedecer a critérios e mecanismos mais complexos e delicados. Olivetto dizia ter orgulho de ter “o dedo no pulso no Brasil”; era óbvio que não tinha mais.

Mas quando, há alguns meses, descobri que ele tinha se aposentado e ido morar em Londres eu fiquei chocado, porque tive a sensação de que uma era se encerrava definitivamente. Com atraso, talvez, porque o negócio publicitário mudou muito nas últimas décadas e não permite mais o tipo de protagonista que Olivetto era e preconizava. Além disso, já há algum tempo está claro que a geração de Olivetto também tinha criado um monstro. E não me refiro à publicidade ruim ou à apenas correta que sempre se fez e sempre se fará, agora cada vez mais respaldadas pelas novas ferramentas de marketing e pela própria evolução dos mercados. Falo das centenas de redatores e diretores de arte que hoje fazem serão criando peças fantasmas para concorrerem a prêmios em festivais, que não resolvem problema nenhum, que não contribuem em nada para absolutamente nada, que trabalham por miséria porque acabam acreditando num mito que, hoje, ninguém sabe mais direito qual é. A publicidade brilhante que o Olivetto ajudou a criar tinha se transformado em um clone disforme.

Mas isso não diminui, em nada, o papel do sujeito na história. E pensando no assunto, para mim já não era possível negar o que devia ser óbvio há muito tempo: ególatra ou não, velho ou não, Olivetto foi o maior publicitário da história do Brasil, e dificilmente haverá algum maior que ele, porque aquele tipo de publicidade morreu, as mídias mudaram, de certa forma as coisas se apequenaram, depois de terem esgotado suas possibilidades. Como o próprio Olivetto.

7 thoughts on “Olivetto

  1. O texto do Conti:

    No umbigo da Washingtonlatria

    Na penúltima frase de seu livro, Washington Olivetto deseja que quem o leu “viva mais de 100 anos”. Como se trata de uma autobiografia, gênero egocêntrico por definição, o vaticínio altruísta soa simpático. Pena que se descubra em seguida que o publicitário está dando uma de engraçadinho.

    Porque na derradeira frase do livro, a lapidar, o bom augúrio vira praga: “que a sua última leitura na vida seja de algo que eu tenha acabado de escrever”. Se a alternativa for ler de novo “Direto de Washington” (Estação Brasil, 398 págs.), viver 99 anos está mais do que bom.

    “Fui escrevendo de acordo com o que fui lembrando”, diz Olivetto na abertura. Imodesto, lembrou-se de dizer que é um “pop star”, um “grande publicitário”, o “mais premiado do país”. Nada contra o narcisismo. Desde que Narciso tenha o que contar e o faça com estilo.

    Como não tem uma coisa nem outra, ele recorre ao autoelogio. Fez anúncios “memoráveis”, “clássicos”, “históricos”, “antológicos”, os melhores da “história da publicidade mundial”. Excede-se em “excelência criativa” e teve a “agência mais badalada do país”.

    Ele não se enaltece sozinho. Fulana “me adorava”. Beltrano exortou-lhe a “coragem, personalidade e inteligência”. Sicrano escreveu três páginas de louvaminhas ao publicitário “brincalhão, apaixonado e criativo” –e Olivetto as transcreve na íntegra, adjetivo por adjetivo. Na Washingtonlatria, compostura é pecado.

    “Direto de Washington” é como um sujeito sem simancol, que puxa sua manga e teima em provar, por A+ B, que é esperto. Olivetto, por exemplo, escreve uma enésima tolice, compara-se a um gênio do humor e quase cobra royalties: “a frase é divertida; parece do Groucho Marx, mas é minha”.

    Se o assunto é relevante, recorre à autoridade incompetente de sempre: ele mesmo. Assim, ao defender anúncios com crianças, sentencia: “Sei disso porque conheço bem o assunto”. Conhece como? Ele explica que se casou com uma “arte-educadora” –seja lá o que for isso.

    Não dá nem para imaginar o que a tal arte-educação tem a ver com publicidade infantil porque Olivetto já mudou de assunto. É igualmente esquivo ao falar de álcool. Não vê nada demais em ter propagandeado bebidas, e se cala sobre os males que causou na saúde alheia.

    Quanto ao cigarro, acha que suas campanhas eram “bem-feitas do ponto de vista técnico” e “discutíveis do ponto de vista ético”. Pouco se lhe dá ter ajudado a viciar milhões de pessoas. Tanto que não pede desculpas a elas. A Washingtonlatria não admite arrependimento.

    Já o cinismo está liberado. Na ditadura, Olivetto fez um anúncio para demonstrar que era bobagem só contratar gente com menos de 40 anos. Pôs no ar fotos de quarentões ilustres: Einstein, Picasso, Sinatra e –tchan-tchan-tchan-tchan!– o general Geisel.

    Sua desculpa esfarrapada: “mesmo não tendo a estrutura intelectual dos outros protagonistas”, Geisel “presidia o país onde o preconceito” se dava. Logo, “não podia ser esquecido”. Em matéria de puxa-saquismo, o anúncio é, agora com razão, memorável, histórico, antológico etc.

    Numa campanha de máquinas de escrever, repetiu a palavra “reclamar” diversas vezes. Para ele, era “uma mensagem política, um pequeno protesto contra a censura”. Como o protesto não era pequeno, e sim invisível, a ditadura não se deu conta dele.

    Além de vender coisas úteis, inúteis ou daninhas, Olivetto ajudou a forjar a imagem de um Brasil brejeiro. Tal país entrou em parafuso, se é que existiu, e a sua publicidade, também. Seria proveitoso se analisasse o fracasso, duplo e interligado.

    Ocorre que, na Washingtonlatria, fracassar é heresia. Até porque o bezerro de ouro amealhou uma montanha de prata. O hipercamelô então vendeu sua banca e foi para Londres. Mas continua na propaganda da qual é mestre: a do seu umbigo.

  2. foi com olivetto que passei a me interessar por propaganda. A perceber que seria possível ter sensibilidade em vendas, que ao fim e ao cabo, é do que se trata. Não sou do ramo – de vendas, que como psicóloga devia ser do ramo da sensibilidade, o que temo nunca ter sido também – mas gosto do olivetto por isso, por ter ido morar em londres – que é meu sonho de aposentadoria também – e, é claro, por último mas nunca menos importante, por ser Corintiano!

  3. Ótimo artigo, como habitual.

    Mas, sendo cricri, só acho que você foi um pouco injusto com a Míriam Leitão, a colocando como paradigma de mau jornalismo. Lembre-se que ela tem sido praticamente a única entre os principais colunistas conservadores a criticar a ditadura militar e defender as cotas raciais nas universidades.

    • A que ponto chegamos: elogiar alguém por um minimo de humanismo. 😉

      Não, não fui injusto não. O jornalismo econômico da Leitão é podre. É o que interessa, pra todos os efeitos.

  4. Pelo menos o Olivetto não mente na sua biografia com seus autoelogios, apenas é imodesto. O Mario Sergio Conti, ao contrário, não passa, nem nunca passara, de um comunista ressentido e invejoso.

  5. Conti vai ficar para a posteridade como aquele cara que entrevistou o sósia do Felipão ou que ajudou o FHC no episódio da Miriam Dutra. Quanto ao Olivetto, foi sem dúvida revolucionário, mas a fonte secou no início dos anos 90. E melhor ser egolatra do que canalha como o Nizan Guanaes, conselheiro do Temer…

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