O tempo passa até nos quadrinhos

Cena um: há alguns anos, numa banca de revistas, um sujeito grisalho futuca a seção de revistas de super-heróis. Minha primeira reação é de susto calado: o que esse coroa está fazendo lendo revistinhas de super-herói?

Cena dois: um amigo, Edilson, leitor e colecionador de quadrinhos há mais de 40 anos, sai do cinema onde foi assistir a “Homem Aranha: Longe de Casa” e se submete à extrema humilhação de, ao reclamar do novo Peter Parker como discípulo humílimo de Tony Stark, ouvir de um adolescente: você não entende nada de quadrinhos.

As duas cenas parecem não ter nada a ver uma com a outra, mas têm. Eu e Edilson estávamos errados.

O sujeito grisalho na banca de revistas não era mais que alguns anos mais velho que eu, se tanto — vai ver ele era só mais acabado, mesmo. Eu não percebi algo que devia ser óbvio: aquele senhor vetusto, fruto envergonhado dos anos 80 como eu, cresceu lendo os mesmos quadrinhos que eu lia. O meu susto então se devia especificamente a um preconceito: para mim, criado em outros tempos, quadrinhos eram leitura de crianças e adolescentes — ou pessoas descalibradas como o personagem de Richard Gere em Breathless, o que não é muito diferente.

A minha foi a primeira geração que levou esse padrão de leitura para a idade adulta, e não sei se porque os roteiros ficaram mais complexos, ou porque nós ficamos mais infantilizados; ultimamente, tendo a botar mais fé na última hipótese. Estranhar o velhinho na banca de revistas é muito mais que uma recusa estúpida a admitir que envelheci: é não compreender que a minha geração transformou a maneira como se consome quadrinhos. Nós demos legitimidade cultural ao que era visto, até então, como algo meramente comercial e inferior. Duro de aceitar é que isso foi também o resultado de um processo generalizado de emburrecimento. Em qualquer lugar hoje se vê gente falando de quadrinhos como alta literatura, ou seu equivalente, com a mesma seriedade que reservaria a um Faulkner. A aceitação social dos quadrinhos como arte significou, para milhares de pessoas, que elas não precisavam castigar um Proust ou um Joyce para serem consideradas minimamente cultas.

Mas justamente por não serem alta literatura, por estarem em primeiro lugar submetidos às lógicas do mercado e dos tempos, os quadrinhos são eminentemente mutantes, como os X-Men. Eles dialogam quase que exclusivamente com o seu tempo, e têm a liberdade de fazer tábula rasa do passado. Não interessa que você leia “No Caminho de Swann” em 1913, 1955 ou 2016: Gilberte vai ser sempre Gilberte, a menina do seu tempo percebida pela sensibilidade infantil de um mariquinhas que gostava de madeleines e que durante muito tempo costumava deitar-se cedo. Mas o Batman adquire sempre as cores do presente: o justo implacável dos anos 30, o detetive infantilizado dos anos 50, o borderline dos anos 90.

Por isso o Edílson se sentiu profundamente ofendido por aquele trombadinha arrogante. O problema é que o moleque tinha razão.

Imagine um sujeito de seus 40 anos em 1990, que passou a infância e a adolescência lendo Batman ou Homem Aranha. Ele lia histórias com uma dinâmica estrutural que ainda pertencia aos quadrinhos idiotizados dos anos 50, guiados pela hecatombe de “A Sedução dos Inocentes” — talvez nem tivessem chegado a Stan Lee. Agora imagine-o assistindo, horrorizado, à transformação de heróis tão seus conhecidos. Ele olharia para o Batman de Frank Miller e diria não, não é isso, vocês não entenderam o personagem. Vocês não entendem de quadrinhos.

Ao estranhar o novo Peter Parker, ao desprezar seu conformismo submisso e a relação de dependência não só ao grande capital, mas à figura paterna acolhedora que Tony Stark representa para uma geração que não sabe mais o que é passear na rua, que sequer tem coragem de ir sozinha à banca de revistas da esquina, eu e o Edílson simplesmente não conseguimos admitir que os quadrinhos mudaram, falam para um público que não é mais o nosso. Pior, nos recusamos a entender que nada disso faz desse Peter Parker lambe-botas menos verdadeiro do que o que acompanhávamos todos os meses nas revistinhas da hoje desgraçada Editora Abril.

Quadrinhos são assim mesmo. Já faz tempo que deixei de acompanhar esse mundo. Eu não consigo gostar, geralmente nem mesmo entender, de virtualmente nada do que se faz hoje. Quando abandonei esse universo, eu sentia falta de alguma simplicidade. Para mim, é tudo complicado e confuso demais, e o que era um golpe de marketing em 1992 se tornou a regra, como a morte dos super-heróis e sua substituição por qualquer bizarrice que atenda ao zeitgeist. Acredito que os meninos de hoje olhem para as histórias de que gosto — a não ser quando transformadas pelo cinema, como a origem do Homem de Ferro ou as partes de “Capitão América: Soldado Invernal” inspiradas nas histórias que eu acompanhava no início dos anos 80 — e as desprezem por serem simplórias, óbvias, esquemáticas demais. Em resumo, infantis. Mais ou menos como eu olhava as historinhas desenhadas pelo Jerry Robinson, e que hoje leio feliz e nostálgico no tablet.

O Peter Parker de 1963 era o resultado do olhar de um sujeito nascido nos anos 20 sobre o que eram os baby boomers (alguém deve ter falado em algum lugar que o Aranha é o primeiro grande herói baby boomer, não é possível que ninguém tenha escrito sobre isso). Era um olhar de fora, com os limites de compreensão que o gap geracional condicionava. Por genial que fosse, Stan Lee era um sujeito de outro tempo tentando compreender uma geração que começou a exercer seu protagonismo nos anos 60 e 70. O novo Aranha, que antevi em meio a engulhos em Spider Man: Homecoming, reflete necessariamente uma geração diferente, de millenials e Y’ers e X’ers e seja lá qual o nome dessa meninada: garotos mais dependentes do que fomos, com uma ética de vida e de trabalho diferentes da minha, e cujo maior sonho é serem completamente inseridos no establishment e chamar Tony Stark de painho. Eu sou suspeito para falar deles porque os tenho em muito baixa consideração, mas não é possível relevar o fato óbvio de que é a sua sensibilidade que define o que será feito desses personagens, as maneiras como suas histórias serão conduzidas. Eles estão acostumados a padrões narrativos e artísticos que eu não consigo mais, nem quero, entender.

Mas me sobrou um mínimo de racionalidade. Já passei da idade de ter que achar que tudo o que é novo é bom, porque não é, e espero que os longos anos que passei neste vale de lágrimas tenham sido suficientes para me conferir algum juízo e integridade. E por isso, do alto da sabedoria e da maturidade que os cabelos brancos supostamente me conferem, eu sinceramente acho que o Edilson deveria ter dado um cascudo naquele pivete idiota e dito pra ele: o meu Homem Aranha é melhor que o seu.

8 thoughts on “O tempo passa até nos quadrinhos

  1. Rafael:
    Sobre esse negócio de cultura pop se tornar alta cultura, minha primeira surpresa tive quando, agora nos anos 2000, Star Trek passou a ser considerada coisa de nerd, de gênio, gente super inteligente, quando no meu tempo era apenas fantasia pura praticamente sem nexo com a realidade, o que não deixa de ser verdade pois, fora um cheirinho de Einstein na dobra espacial, o resto é só fantasia descompromissada.

    • Serge, eu comecei a ver esse fenômeno nos anos 90, quando a internet surgiu aqui. Vi um mundo em que Star Trek tinha importância desmedida, que eu nunca tinha visto aqui fora. A questão é que a série inspirou muitos dos que, nos anos 70, 80 e 90, se aventuraram pela computação e criaram a internet como ela é hoje. Sua importância está aí, na inspiração, não na ciência real exibida. Ou seja, ela é a razão dos nerds, e não o contrário.

    • Na verdade, “Star Trek” tinha um público cativo entre os nerds lá dos EUA já no final dos anos 60, particularmente entre os estudantes de Engenharia do MIT. Sei disso porque um amigo do meu pai fez mestrado lá no MIT de 68 a 70 e ele voltou pro Brasil viciado. Mas claro que já não era na dimensão que atingiu com a internet…

  2. Cascudos teriam resultado num texto diferente, Rafael. E particularmente sou do tempo desse texto mesmo, que por sinal adorei.
    Abração

  3. Infelizmente ao generalizar quadrinhos de super-heróis como quadrinhos como um todo fica evidente o baixo conhecimento do autor sobre a arte em si.
    O texto é bom para esse universo específico, se considerarmos a arte Quadrinhos é apenas preconceito e desconhecimento.

    • Ahn… Certo.

      Quando eu escrever um texto sobre “quadrinhos como um todo” eu levo o seu comentário a sério. Até lá, vou continuar considerando-o uma das besteiras que já escreveram por aqui.

      É phoda, quase xará.

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