George Martin

Sir George Martin é objeto de um documentário, exibido ano passado pela BBC, que sai agora em DVD.

Martin foi o produtor de quase todos os discos dos Beatles (não produziu o Let It Be, perpetrado por Phil Spector, e parte do “Álbum Branco”). É uma lenda do rock, um entre os muito poucos produtores que conquistaram esse status.

Não conheço o teor do documentário e não sei se ele insiste em um mito muito difundido: o de que George Martin foi o grande responsável pelo avanço dos Beatles no estúdio, que sem ele a banda não teria avançado musicalmente da maneira como avançou.

É o tipo de bobagem que as pessoas escrevem e repetem sem pensar muito no assunto; pelo menos essa é a única explicação que encontro para que algo desse tipo ainda mereça espaço. Porque a prova dos nove desse mito frágil pode ser feita de uma maneira muito simples. Basta fazer uma pergunta: o que foi mesmo que Martin fez sem os Beatles?

Ninguém tem essa resposta. Não porque Martin não tenha produzido muita coisa — sua carreira pós-Beatles foi bastante movimentada, principalmente em seu estúdio em Montserrat, aquela ilhota destruída por um vulcão há uns 15 anos. Mas porque o que ele produziu é simplesmente desimportante. Do outro lado do aquário dos Beatles, George Martin participou de uma das maiores revoluções musicais da história. Sem a banda, foi só mais um entre tantos excelentes produtores, cuja função é fazer o melhor disco possível a partir da obra de um artista.

Isso não é um demérito. Martin foi um produtor brilhante, de bom gosto e sensibilidade impressionantes e uma enorme capacidade de ouvir. Mas é só isso. Objetivamente Phil Spector, o inventor do famigerado Wall of Sound, exerceu uma influência maior que a de Martin. Não se trata de diminuir o seu papel, mas de reconhecer exatamente qual foi ele.

De certa forma, aconteceu com Martin o que aconteceu com Ringo e, em menor medida, Goerge Harrison: caudatário da obra impressionante de dois gênios em um tempo especial, Martin acabou adquirindo uma aura muito superior à sua verdadeira capacidade. Talvez por isso, alguns anos atrás, McCartney — o único amigo de Martin entre os Beatles; Lennon chegou a ter uma briga pelos jornais com ele, em 1972 — tenha se mostrado ressentido ao ver que pareciam dar mais crédito a Martin pelo álbum Sgt. Pepper’s do que ele achava que o produtor merecia.

Mas tudo isso são apenas palavras. Há um jeito muito fácil de entender o papel real de George Martin no estúdio, e me impressiona que as pessoas não façam isso com mais frequência. Porque é tão fácil: pegue uma canção de Lennon/McCartney que ele tenha produzido tanto com os Beatles como com outra banda. Por exemplo, I Call Your Name. Lennon originalmente deu a canção a Billy J. Kramer, mas logo depois também a gravou. As duas versões foram produzidas por Martin.

Esta é a versão de Kramer:

E esta é a versão dos Beatles:

A versão de Kramer envelheceu mais que a dos Beatles — e é uma canção que não está entre os grandes clássicos da banda —, é muito mais pop e traz aqueles “vícios” típicos de sua época. A versão dos Beatles traz inclusive alguns compassos de ska, novidade então e que dá uma pista da inventidade musical e sonora da banda. O que faz a diferença, nessa e em tantas outras canções, é justamente a criatividade e o talento da banda. Não é o produtor. É simples assim.

Post para a Lucia Malla

O tubarão cabeça-chata é comum em todo o Brasil, em especial na costa nordestina, e mais especificamente no Ceará. Mede até 3 metros e meio e sua dieta é composta principalmente de surfistas pernambucanos. É considerada uma espécie alegre e amigável, e tem mania de contar piadas. Se ameaçado, costuma reagir com um “arre égua, macho!”.

Magnatas

Um post antigo do Inácio Araújo sobre o cinema canta, incidentalmente, loas aos bons tempos em que os estúdios eram dirigidos por gente que amava o cinema, ao contrário dos tempos de hoje quando é tudo pelo dinheiro:

Que os produtores atuais são, em geral, nefastos, nenhuma novidade. São negociantes. Não entendem de cinema como os velhos magnatas e nem estão aí para o desgaste que causam. Mas a proporção absurda de gastos é novidade. O dinheiro não está na tela (de fato, eu vivo me perguntando onde estão os alegados não sei quantos milhões gastos).

O Inácio Araújo é um dos melhores críticos de cinema brasileiros, e seu blog é leitura cotidiana. Mas eu não faço idéia de que tempos foram esses em que os velhos magnatas entendiam tanto assim de cinema. A mim parece outra lenda, como aquela de que na Depressão os estúdios cresceram, quando na verdade, além de precisarem desesperadamente do auxílio do Governo, sofreram muito no início da crise e apenas acompanharam a retomada econômica pós-New Deal.

Se se falar de gente como Irving Thalberg, cujo talento e capacidade de trabalho viabilizaram o surgimento do studio system, na Universal e posteriormente na MGM, tudo bem. Mas Thalberg não era exatamente um magnata — era basicamente um produtor muito bem pago, e perdeu bastante poder pouco antes de morrer.

Magnatas de verdade eram os donos dos estúdios, que aliás ficavam em Nova York. Ou, ao menos, os executivos como Jack Warner ou Louis B. Mayer.

O fato é que, mesmo no auge do studio system, os estúdios eram comandados basicamente por administradores. Era um pessoal que estava no negócio de teatros e cinemas e fugiu para Hollywood para não pagar royalties a Thomas Edison. O negócio de Hollywood, no fundo, sempre foi fazer dinheiro, muito mais do que filmes.

Os Laemmle, pai e filho, quebraram a Universal quando tentaram ir além dos filmes formulaicos, mais apropriados à TV do que ao cinema como o entendemos hoje, e que eram o material com que a Universal trabalhava. Jack Warner? Pouco mais que um açougueiro — e isso se refletia nos produtos da Warner, normalmente de qualidade inferior em valores de produção (o acabou dando no cinema noir). Louis B. Mayer era tão incompetente que após a saída de David Selznick da MGM criou uma tal de “gerência por comitê”, em que diluía responsabilidades, diminuía riscos e limitava criativamente a MGM, passando a depender de uns poucos produtores de talento como Arthur Freed. Mais tarde, esse modelo levaria à derrocada da MGM, que se notabilizaria por custos elevadíssimos mas produção pouco acima do medíocre.

Além disso, Hollywood sempre gastou muito. Sempre, e isso não deveria ser surpresa. Sonhos custam caro — e está aí o Jaguar que eu quero que não me deixa mentir. Filmes classe A sempre tiveram orçamentos milionários, mesmo na era do cinema mudo. Os padrões orçamentários de Hollywood sempre foram desproporcionais. “…E o Vento Levou” custou cerca de 3,9 milhões de dólares em um ano em que uma casa custava cerca de 3.800 dólares e um carro novo, 700. E ainda assim custou menos que a primeira versão de “Ben-Hur” (3,9 milhões em 1925).

Nem sempre se vê o resultado nas telas, é verdade. Mas isso é tão verdadeiro hoje quanto ontem. Os custos de Hollywood são necessariamente altos porque precisam sustentar um grande ecossistema. E porque qualquer atividade criativa precisa de um grande investimento para resultados incertos.

Por tudo isso, esse mito de que antigamente é que era bom é só isso: mito. Hollywood sempre foi uma grande indústria, é que o dizem. Nesse caso, a presidência ficava em Nova York e a Califórnia era, basicamente, o chão de fábrica. O que fazia a diferença, mesmo, eram as circunstâncias. A indústria cinematográfica obedecia a uma lógica diferente nos anos 30 e 40. A ausência de televisão fazia com que se exigisse não apenas os filmes “de prestígio”, como “Grande Hotel”, mas filmes B em proporção muitas vezes maior. Centenas de filmes eram produzidos anualmente porque as pessoas precisavam assistir a um, dois filmes por semana, e os cinemas eram os únicos lugares onde isso era possível. Essa enxurrada de filmes era necessária para sustentar as redes de cinemas e atender a uma população cada vez mais ávida por entretenimento.

Claro que, havia, sim, alguns poucos magnatas do tipo que as pessoas mencionam com saudades desses tempos dourados que nunca existiram, os grandes independentes: Selznick, Sam Goldwin, mais tarde Darryl Zanuck — gente que trabalhava mais ou menos à margem do sistema, se concentrando em filmes de alta qualidade e alta rentabilidade. Mas não eram eles que definiam a indústria, até porque dependiam do studio system; afinal, esse era um sistema sofisticado — ainda que canalha e monopolista — de financiamento, produção e distribuição.

Mesmo hoje é só olhar a lista de produtores de boa parte dos filmes de Hollywood para ver que, no final das contas, o pessoal que gosta de cinema está lá, como sempre esteve. Scorsese, por exemplo, é um cineasta acabado, mas ninguém jamais poderá negar seu amor obsessivo pelo cinema. Spielberg, Lucas, Jack Rollins, Johnny Depp que produziu “A Invenção de Hugo Cabret”, todos esses estão aí. A indústria cinematográfica continua dando espaço para seus amantes, para gente que gosta de cinema como redatores publicitários em início de carreira amam a publicidade. Mas eles são, como sempre foram, a minoria. O resto são aqueles cujo negócio, ontem como hoje, é fazer dinheiro.

Facebook

Eu gosto de Facebook.

Até então eu não gostava tanto assim de redes sociais. Sou um mastodonte para essas coisas, passei batido pelo Orkut, Twitter nem sei quem tu és. Mas do Facebook eu gosto.

E gosto mais porque descobri também que amo ver as pessoas reconstruindo seus passados com frases bem escolhidas, de maneiras mais ou menos sutis, porque a história da gente é a gente que faz, e o passado é uma obra em eterna construção. O sujeito que como eu não comeu ninguém a vida inteira passa a ser fodão; o moço que ninguém respeitava se comporta de maneira superior a todos, esperando que afinal de contas esse negócio do mundo ser dos nerds seja verdade. O bullying na escola passou a não existir, os tapas não doeram, e a foto na Europa esconde a bolsinha da CVC.

É assim mesmo, e talvez isso seja bom: as pessoas merecem ser felizes e ter a história que gostariam de ter, porque aquilo em que a gente acredita muito se torna realidade em nossas lembranças, quem vai dizer que não? E agora o que é verdade em nossas memórias pode ser verdade também nas memórias dos outros, porque o poder agora está em nossas mãos, longa vida à internet. E se a gente consegue convencer os outros, talvez consiga convencer a nós mesmos.

É por isso que gosto tanto ver as declarações de amor eterno e tão grande de casais que, eu sei, fora do Facebook se pegam de porrada, fazem troca de casais e às vezes se apaixonam pelos outros, corneiam o marido ou esposa amados — não é interessante como a gente sempre sabe da intimidade dos casais, a intimidade verdadeira? E isso me ensinou muito: aprendi que mesmo rolando na cama com outra pessoa eles ainda amam suas mulheres. E daí que ela deixa o amante lhe dar na cara, mas não o marido, se é dele que ela gosta, e a brasileira é mineira com marido e sueca com os outros?

A única mudança, menos sutil do que parece, é que antigamente a gente achava que as outras pessoas eram mais felizes por omissão. Ou seja, a gente achava que o casal tal era feliz porque não os via brigando, porque eles não lavavam sua roupa suja diante de nós, não se estapeavam na nossa frente; e por isso nos surpreendíamos quando se separavam: “mas eles pareciam tão felizes!” Hoje isso mudou, as pessoas passaram a mistificar as outras de forma ativa, e agora a gente acha que o casal tal é feliz não porque não os vê brigando, mas porque eles dizem que são felizes o tempo todo, sem que ninguém pergunte. E fulano que não vê o filho há seis meses mostra aqui e ali as fotos dele, os dois juntos sorrindo e meu filho, como eu te amo, gente, vê como eu sou um paizão?, e talvez, quem sabe, daqui a tantos anos o filho tome isso como atenuante, é, o puto realmente gostava de mim.

Todos dizem isso, claro, através do Facebook. E com tudo isso, com esse império de mentiras que não são mentiras, de verdades que não eram verdades, é engraçado como mais pessoas se tornam mais infelizes porque comparam a felicidade aparente dos outros com a sua própria, e vêm que suas vidas jamais serão como as vidas dos outros parecem ser, como as vidas dos outros nunca serão.

Velhices

A vida é para quem pode.

Eu, por exemplo, tinha um ideal de velhice: queria ser um velho sibarita, com um passado de pecados grandes e pequenos, um passado de vergonhas e de shhhs discretos — e na lembrança tudo de ruim que uma pessoa pode fazer na vida em nome de um hedonismo desenfreado.

Queria ter uma velhice de velhas chorando ao pé da minha cova, como um Brás Cubas moderno, e se não fosse querer demais queria umas novinhas chorando também; o seio arfando, era o seio que eu queria fazer arfar mesmo depois de morto.

Queria uma velhice desdentada mas de sorriso fácil, uma velhice de transplante de fígado, uma velhice de tosses em meio a baforadas, uma velhice de meninas dóceis diante do velho safado em troca de uns dinheiros aí.

Enquanto pude, enquanto ainda havia esperança, quis uma velhice de histórias que encantavam jovens incapazes de viver com tamanho abandono, velhice de histórias que atrás do riso escancarado mascaram sua maldade egoísta, escondem a dor que causaram — uma velhice de cínico que admite que a vida só pode ser realmente aproveitada apesar dos outros, e não se arrepende de nada disso.

Velhice de culpa se possível, de dolo se necessário.

Uma velhice de tornozelos inchados pela cachaça e de memórias esquecidas, memórias boas, que as memórias ruins a gente tenta enterrar e finge que não existem.

Enquanto pude: uma velhice de gente errada, que essa é a velhice que vale a pena, quando nada mais funciona direito, quando a gente percebe que a velhice não é um bicho de sete cabeças, tem apenas duas e nenhuma funciona direito.

Sei não, mas deu tudo errado, eu não sabia que as lembranças do futuro tinham que ser agora, e é, não vai dar mesmo, a preguiça não deixa e a ressaca é dura de aguentar, e minha filha já disse que vai vender meus livros quando eu morrer e quer saber o preço de cada um deles para não ter prejuízo.

Exercício de memória

Diante do meu cafofo surgiu um Karmann Ghia à venda. Azul, estacionado na frente do edifício. Pergunto ao porteiro de quem é aquele carro, é de um vizinho que recentemente escreveu um livro polêmico, e eu não conheço vizinho nenhum, mas agora gostaria de conhecer — e aí, vizinho, tem uma xícara de açúcar? –, porque acho o Karmann Ghia um carro belíssimo em seu tempo, bonito ainda hoje, e se tivesse dinheiro compraria o danado. Eu sou um saudosista e um nostálgico.

Ver o Karmann Ghia me lembrou que há mais de 30 anos, quando eu era criança, havia muito menos carros do que hoje.

Ainda peguei a Willys, que àquela altura já pertencia à Ford: vi na rua e andei em Gordinis, AeroWillys, em Rural e no Jeep, carros que já não eram fabricados. Havia também aqueles menos menos comuns, mas muitas vezes mais desejados, dos quais se viam um ou dois circulando por aí: Miúra, Puma, Lafer, Toyota Bandeirante. Havia também os Gurgel. Cheguei a dirigir um Gurgel Supermini. Foi o pior carro que já dirigi na vida.

A Chevrolet tinha a Veraneio, o Opala, o Chevette e a Caravan circulando nas ruas. A Fiat tinha apenas o 147, a não ser que se conte os Alfa Romeo que ainda circulavam por aí, e era montadora de péssima fama.

A Chrysler tinha o Dodge Dart e o Polara, pouquinhos, muito pouquinhos. Vi dia desses um Polara — olha, um Doginho!, como quem diz “olha, um iguanodonte!” — e eu nem sabia que esses carros com mais de 30 anos ainda circulavam.

A Ford tinha ainda o Galaxie, o Corcel I e II, o Jeep, a Belina e o Maverick. Que carro bonito era o Maverick. Minha última lembrança de um Maverick é a de estar pendurado no capô traseiro de um deles, o desgraçado do motorista a 100 por hora no caminho da praia, numa madrugada de carnaval de muito tempo atrás. Eu devia ter parado de beber então, mas não parei e olha só no que deu. E a F-10. Ou era C-10? Eu não lembro mais. E a Volkswagen, de longe a maior de todas, tinha o Fusca (ou simplesmente Volks), Kombi, Karmann-Ghia, o 1600, o TL, a Variant, o SP2, Brasília, e Passat. De todos esses carros, só a Kombi sobreviveu.

É triste conseguir lembrar de tudo isso, e talvez mais triste fazer uma lista assim, uma lista sem sentido. Não pelos carros, porque eu não gosto de carros, não gosto sequer de dirigir. Mas por mim.

House of Dolls

Uns anos atrás fiz este post dizendo que o House, aquele doutor do seriado, era entre outras coisas gay.

O resultado foi uma enxurrada de gente argumentando, reclamando ou simplesmente me xingando. Não, não, seu burro, House não é gay. O amor óbvio entre ele e Wilson é só amizade. Como pode alguém que eu admiro tanto ser gay? Não, Rafael, você entendeu tudo errado, você é um idiota que fica denegrindo as pessoas, viado é a mãe.

Em tantos anos de história deste blog juro que nunca vi tanta gente tão zelosa quanto às pregas dos outros. Pior: pregas fictícias.

Então o seriado acabou esta semana. Leio no jornal que, nele, House forja sua própria morte para poder passar os últimos meses de vida de um Wilson com câncer terminal ao seu lado.

Por isso retiro o que mais eu disse sobre House. Ele era um bom homem, no fim das contas, capaz de se sacrificar pela felicidade do seu grande amor. Não é todo mundo que é capaz de algo assim, de tamanho altruísmo. Só o amor verdadeiro é capaz de um gesto tão nobre, de se dar dessa forma.

E as pessoas que vieram aqui me contradizer e me xingar e negar a homossexualidade de House e o seu amor verdadeiro e feérico por Wilson deviam se envergonhar do que fizeram.

Os Três Mosqueteiros, assassinados mais uma vez

E daí que eu jurei que não ia ver, mas assisti a “Os Três Mosqueteiros” dia desses.

Eu tinha jurado que não assistiria ao filme porque há alguns anos perdi umas duas horas de minha vida, horas que não voltam mais, assistindo a uma coisa bizarra chamada “A Vingança do Mosqueteiro”, que deixo de descrever por falta de palavras suficientemente baixas. Certo, sou um velho cada vez mais velho e um chato cada vez mais chato, e paciência é artigo cada vez mais escasso; mas aquele era um filme tão ruim que mesmo minha ranhetice se viu sem palavras diante de tamanha barbaridade.

Esse novo filme é talvez ainda pior. E isso é assustador porque “Os Três Mosqueteiros”, o livro original, é literatura juvenil no que ela tem de melhor, tão bom que adultos podem ler com prazer. Ainda hoje passo de vez em quando os olhos por ele; e um dia ainda leio suas continuações inteiras.

Em princípio, um livro como o de Dumas deveria ser um roteiro pronto para o cinema. O trabalho necessário seria apenas o de enxugar a trama para fazer com que tudo caiba em hora e meia, duas horas de filme. Por alguma razão, no entanto, não é o que acontece. Assim como tem gente que acha que pode melhorar o que já está bom, ninguém parece conseguir deixar de tentar deixar sua marca em “Os Três Mosqueteiros”.

A esta altura do campeonato, já não tenho muito contra adaptações e licenças poéticas exageradas no cinema. Não é apenas questão de rendição; mas por entender, finalmente, que um meio diferente e sensibilidades diferentes às vezes demandam uma certa flexibilidade. Mudanças aqui e ali, alterações no roteiro para fazer com que fique tudo mais espetacular, a criação de razões para o uso de efeitos especiais, já fazem parte do cotidiano da gente. Reclamar contra isso é bobagem. Até mesmo quando se trata de personagens e tramas com quase 200 anos.

É isso o que me faria aceitar uma Constance Bonacieux que não morre, ou uma Milady que parece uma mistura de Aeon Flux e Viúva Negra, por exemplo. Essa nova Milady é muito pobre diante da intrigante original, certo, mas fazer o quê se os tempos são outros?

Mas “Os Três Mosqueteiros” tem tantos problemas que é difícil não desligar a TV sem xingar o idiota que o criou de nomes que deixariam São Cipriano ruborizado.

O primeiro problema do filme é o nível altíssimo de infantilização de seus personagens. O rei, para começar: que rei é aquele? D’Artagnan mata Rochefort no filme — para quê, se no livro eles terminam amigos, e isso reflete um pouco a compreensão da política real em Paris? Richelieu, mesmo interpretado por um grande ator como Christoph Waltz, não tem a sutileza dos grandes, resvala na caricatura e se torna óbvio; além disso, quem fez as legendas sequer sabe onde fica a Gasconha e o que é um gascão.

O excessivo nível de espetacularização é medonho. Uma esquadrilha de dirigíveis é provavelmente a idéia mais ridícula que alguém já teve desde que Ed Wood pendurou discos voadores em cordões, e não apenas porque é um impropério físico. Mas são as mudanças morais que incomodam e entristecem no filme.

É deprimente, e provavelmente a pior evidência contra a nossa sociedade, que uma obra do século XIX precise ser moralmente sanitizada em pleno século XXI. Constance (que na nova versão não tem sobrenome nem dorme com o homem que lho deu, o velho e frouxo Bonacieux) não passa de uma menina, em vez da senhora casada e mal amada que se apaixona por D’Artagnan. Milady não é a mulher promíscua e amoral que foi casada com Athos; e a rainha Ana não fez saliência com o Duque de Buckingham, porque rainhas nesses tempos novos devem ser moralmente inatacáveis, Pompéias modernas virtualmente castas e ascéticas (não só no cinema, porque até a princesa Diana virou moça decente depois que morreu). A Hollywood do início do século XXI tem vergonha e pudor do que era visto naturalmente há quase dois séculos; e agora ela não precisa mais de código Hays, basta tentar agradar seu público, e oferecer a ele aquilo que ela acha que ele pede.

O que fez “Os Três Mosqueteiros” sobreviverem por mais de século e meio foi justamente a qualidade de sua história. A trama rocambolesca mas fácil, a ação quase ininterrupta, os personagens bem definidos, a dubiedade moral inerente a praticamente todos os seus personagens, com exceção de D’Artagnan. É um livro que serve perfeitamente de argumento para um filme; e eu recomendaria a versão de 1948, dirigida por George Sidney, com Gene Kelly e Lana Turner. Nas Americanas ela pode ser encontrada em DVD por 13 reais. É mais barato que uma entrada de cinema, e certamente mais recompensador.

Teoria da reciprocidade

Encontro a moça num elevador.

Bom dia, os olhos para baixo como é praxe em elevadores, aquele o que é que eu faço com as mãos, e então a voz da moça na frente: Como está sicrana? Eu me surpreendo, como ela sabe?, faz tanto tempo, e então ela diz, Eu sou fulana, morei perto de você em tal lugar, Ah, sim, claro, Fulana, agora lembrei, como você vai?, vinte e tantos depois eu não lembraria de você nem mesmo se o tempo lhe tivesse sido mais generoso, mas sei que vou lembrar em minutos, então não estou mentindo, estou apenas me antecipando a mim mesmo, pronto, lembrei.

Tchau, legal te ver, entro no carro pensando que o Gama é que é um sábio e é quem tem razão, o tempo é um fazedor de monstros, e essa moça há vinte e tantos anos era tão gostosinha, o que aconteceu com você, moça?, como o tempo lhe foi ingrato.

E é só então que a ficha cai.

Nesse exato momento, ela deve estar pensando a mesma coisa, e com ainda mais razão.

Sobre esse pessoal que só gosta de matinho

Eu não gosto de militantes vegetarianos. Me dão preguiça, sempre deram. Mas de uns tempos para cá começam a incomodar.

A minha preguiça era principalmente estética, e obviamente não se aplica apenas aos militantes. Eu realmente não consigo compreender o que leva uma pessoa em sã consciência a abjurar o sabor do sangue que escorre de uma picanha mal passada, ou aquele fenômeno da natureza comparável à aurora boreal: aquilo que chamam de marmorização da carne de vitela. O bichinho, coitado, vai morrer de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde; que seja para vir parar na minha barriga. Eu sinceramente acho a vida dos vegetarianos mais pobre, e tenho pena deles por isso. É como se faltasse algo — uma costela, por exemplo. Vegetarianismo, para mim, não é consciência: é deformação de caráter.

Mas os militantes, aqueles que fazem de sua vida uma pregação constante, estão passando a me irritar. Talvez porque adquiriram mais e mais visibilidade; talvez porque, como acontece com virtualmente todo movimento, à medida que esse negócio de comer só mato vai se espalhando como metástase e tendo suas ideias mais aceitas, vai desenvolvendo também um certo tipo de proselitismo fundamentalista, uma certeza puritana de que só eles estão certos e que é dever sagrado de cada um levar a Boa Nova aos gentios, salvar o mundo dos meus pecados.

É basicamente a mesma certeza bovina de evangélicos e antitabagistas, sonhando com um mundo chato, sem sabor. A diferença está na aceitação e, principalmente, na composição social. Porque eu, pelo menos, não conheço vegetariano pobre: são sempre de classe média ou ricos. Não é à toa que esse negócio é mais forte na Europa, especialmente na sede do antigo Império Britânico. Vegetarianismo e suas variações são perversões de sociedade rica e autocomplacente, que acha que alimentos nascem em sacos de papel alumínio e que supermercados são chocadeiras de ovos orgânicos. Pobre — e aqui incluo a nova classe C — não pode se dar a esse luxo; precisa antes passar ao nível de comer aquilo que os vegetarianos, de barriga cheia, desprezam. Imagine o sujeito que mora no sertão do Piauí se dando ao desfrute de dispensar um bife de alcatra. Seria linchado pelos seus conterrâneos, e com razão.

Essas coisas — e as roupas feitas de fibras naturais, cultivadas no estilo príncipe Charles, em que se fala carinhosa e às vezes até libidinosamente com as plantas — são coisas de rico porque, se não fosse tudo isso a que esse pessoal hoje pode se dar ao luxo de virar as costas, a galinha de granja, a soja transgênica, mesmo os agrotóxicos que possibilitaram os aumentos constantes de safras e de áreas cultivadas, ao mesmo tempo em que barateavam os preços, a profecia de Malthus se teria cumprido já há algum tempo.

Que Deus abençoe as granjas e os frangos criados nelas. Antes delas, o Barão de Itararé dizia que quando pobre comia frango, um dos dois estava doente. Ou seja: foi esse frango criado em condições aparentemente desumanas, repleto de hormônios para que possa ser abatido o quanto antes, que possibilitou a inversão desse estado deletério das coisas. Sem isso, sem esse ganho de escala, frango continuaria sendo iguaria para poucos.

Talvez seja verdade o que dizem, que esses frangos fazem mal à saúde em longo prazo. Mas, se fazem, eu sou capaz de apostar que os pobres que hoje comem seu franguinho ensopado vão morrer mais felizes daqui a uns 30 anos do que aqueles que só tinham farinha e, eventualmente, jabá de jumento para comer e morreriam depois de amanhã.

Os militantes europeus que protestavam contra a soja transgênica no Brasil (num momento em que virtualmente todos os grandes produtores brasileiros já tinham aderido a ela, a propósito, e o processo já era irreversível) não ligam em subsidiar a sua agricultura cara e ineficiente em detrimento da agricultura dos países do terceiro mundo. São aqueles que podem dar mais de 25 euros num quilo de filé mignon (é o Allan quem me faz o favor de informar, e a ele sou eternamente grato; também me diz que a carne italiana não tem lá muito gosto, e minha admiração pela bota diminui um pouquinho). São os pobres coitados que, com paladar embotado e sustentados pela certeza messiânica de estarem sendo superiores à humanidade animalesca, já não sabem a diferença entre acém e filé mignon.

Dentre as perversões desse pessoal, uma em especial é curiosa: uma tendência tatibitate ao antropomorfismo, agregando emoções e qualidades humanas a animais, e tentando nos fazer crer que somos todos iguais, nós e os bichinhos. Vi há algum tempo uma dessas imagens de Facebook em que havia dois gráficos: uma com um desenho de um homem acima dos outros animais, outra com o homem no mesmo nível e uma pergunta, algo tipo “Dá para entender agora”?

É essa arrogância que é irritante (a única arrogância que toleramos é a nossa, afinal). Porque não é que a gente não entenda a maneira como eles pensam. A gente entende. Só que acha uma grande imbecilidade. É muito triste ter que dizer a um adulto que não, nós não somos iguais aos outros animais desde o momento em que amarramos uma lasca de sílex a um pedaço de pau, e passamos a transformar o mundo em que vivemos, em vez de apenas nos adaptarmos. Não é só uma questão de desejo. Ou melhor: somos diferentes desde a hora em que aprendemos a fazer fogo e cozinhamos a carne de um bichinho fofinho como um mamute para que ela ficasse mais macia.

Essa “superioridade” nos obriga a concessões, claro. Não se trata aqui de continuar a defender aquele modelo de consumo que viabilizou a evolução econômica do mundo e levou mais qualidade de vida para cada vez mais pessoas. O processo civilizatório custou caro ao planeta, claro; mas a questão não é voltar as costas a tudo isso, é saber como garantir essas conquistas. É saber se o mundo pode pagar de maneira permanente esses custos, e garantir as condições para isso.

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Há algumas semanas vi uma coisa no Facebook que me deixou meio bobo, meio descrente: o germe de uma campanha em prol da construção de um hospital veterinário público. É a classe média, velha e nova, sentindo o peso da ração e das vacinas no orçamento familiar. (Não duvido que daqui a pouco venham a pedir que as farmácias populares deem ração de graça.)

A saúde pública tem problemas muito graves: de gestão, de profissionais e de dinheiro. Vem melhorando nos últimos anos, universalizando-se aos poucos; mas só um gestor irresponsável e canalha teria a pachorra de dizer que ela funciona a contento. No entanto um grupo de gente doida acha que a situação dos cachorrinhos de madame e dos gatos que pouco a pouco vão se tornando os animais de estimação preferenciais de um mundo fragmentado, substituindo aos poucos as relações humanas, deve merecer a mesma atenção.

Eu gostaria de acreditar que esse pessoal que pede a um Estado problemático — que não consegue garantir saúde para todos os seus cidadãos — dinheiro para um hospital veterinário público jamais foi aos corredores de um pronto-socorro público de grande porte. Mas já há algum tempo acho que não faz diferença. Que é uma questão simples: é gente mais preocupada com os bichos bonitinhos que criam do que com pobres malcheirosos gemendo numa maca, no corredor de um hospital.

O que me assustou foi a tentativa de mobilização, a ideia imbecil de pressionar o Estado para que ele cuide dos seus poodles e yorkshires. É paradoxal que justamente essa capacidade de raciocínio, essa consciência de nossa existência e de nossa finitude que nos faz humanos traga dentro de si justamente o germe de sua autodestruição. É para isso que esse pessoal quer lutar? Por sorte o conceito de luta deles é diferente, consiste em dar likes em fotos no Facebook. Eu teria medo desse pessoal realmente organizado, porque algo neles me lembra o “Planeta dos Macacos”, com seus arremedos de civilização.