E a classe C incomoda muita gente

Um dos textos mais bobos publicados na imprensa brasileira nos últimos tempos, o artigo “Sobre a Classe Média” de Artur Xexéo na revista do Globo do último domingo já chegou às redes sociais. Nele, Xexéo reclama do incômodo que a ascensão da classe C está causando em quem, como ele, representa a “Velha Classe Média”. É um artigo leve; é preciso lembrar que um caso bizarro como o do Ed Motta reclamando de gente feia é a exceção, que em suas melhores encarnações aquela classe média de Ipanema-Leblon é doce, tranquilinha e sorridente. O texto do Xexéo traz isso, essa condescendência e essa suavidade que mascaram um grande preconceito e um enorme incômodo da Velha Classe Média ao se ver diante de ex-pobres nos mesmos lugares que ela.

Talvez o aeroporto seja o lugar onde as frustrações e o desconforto desse pessoal sejam mais evidentes. É altamente simbólico, isso. O aeroporto era um dos lugares em que a pequena burguesia, para usar termos antigos como a Velha Classe Média, se sentia superior à patuleia e mais próxima dos ricos. Porque pobre paulista, por exemplo, não ia para Porto Seguro de avião; pegava um ônibus para Pindamonhangaba no Terminal do Tietê e passava uns dias na casa de uma irmã. A ascensão social das duas classes mudou isso: para Porto Seguro agora vão os ex-pobres, enquanto a Velha Classe Média passa uns dias na Europa todo santo ano.

O problema é que tem mais gente esperando ser atendida, as filas aumentaram, aquele povo mais feio ocupa atravanca o diacho do aeroporto. No entanto não dá para reclamar disso, porque cá entre nós seria indigno de uma classe que afeta uma elegância que raramente tem, é quase como reclamar de preto no mesmo clube que você.

Aí a classe média reclama dos cereais nos aviões.

É tão bobo, isso, tão bobo colocar a culpa pela barra de cereal na Nova Classe C. Alguém podia dizer ao Xexéo que essa culpa não é dela. Porque esse processo, comum no mundo inteiro, não tem nada a ver com a afluência recente desse grupo socioeconômico no Brasil. Tem a ver com corte de custos em terra e começou bem antes do governo Lula. Na verdade é a classe C que está possibilitando que a Velha Classe Média possa continuar a viajar de avião, dando mais fôlego a um setor que, a julgar por sua história, é cronicamente inviável — e viajar para a Europa, ainda por cima. Eu, pelo menos, venho de um tempo distante em que só os ricos viajavam para lá.

Mas a VCM precisa de um bode expiatório para justificar o que ela não tem coragem de dizer: que não quer pegar filas maiores, que não quer aquela gente perto demais, que se sentiria mais confortável com a plebe atulhada nos ônibus da Itapemirim. Então fica achando motivos para implicar.

Essa reação, esse desconforto generalizado, podem ser vistos em outros lugares. No incômodo causado pelos evangélicos, enquanto a intolerância católica é mais aceita. Na reação de tanta gente à proliferação dos ciclomotores em 36 prestações, quando o problema aí é a falta de uma legislação mais rigorosa e maior fiscalização. Essa Velha Classe Média tem vergonha de dizer que a classe C a incomoda. Tem vergonha de dizer que não gosta de viajar ao lado de gente mais feia, de assumir que para ela a culpa pelos engarrafamentos maiores é dos outros que agora têm carros e não deixam mais as ruas exclusivamente para eles, que não gosta das concessões que é obrigada a fazer. Isso não seria polido; e a Velha Classe Média, sejamos justos, sempre teve pruridos em excesso.

Para fins de implicância disfarçada, normalmente não há nada como preconceito cultural. Mas não para o Xexéo. Ele é o sujeito que teve coragem de escrever que “Eu quero de volta o meu filme legendado na TV e torço pela possibilidade de passar um intervalo comercial inteirinho sem assistir a um anúncio do Supermarket”. Porque na melhor das hipóteses ele deve estar gagá e lembrando de um tempo que nunca existiu. Na TV aberta filmes legendados só eram exibidos uma vez por semana, por força de lei, em horários muito ingratos como a meia-noite da segunda-feira. Na TV por assinatura, essa de que ele provavelmente reclama agora, os filmes legendados continuam aí, em canais como Telecine Premium, Cult e Fox. O que o incomoda, no fundo, é a simples existência dos filmes dublados — e o viralatismo que os faz, em vez de pressionar os canais a disponibilizar filmes simultaneamente dublados e legendados, tentar tirar o doce da boca dos pobres. Eles jamais assumirão; mas é a diversidade que incomoda o Xexéo e toda a Velha Classe Média. (Quanto aos comerciais, faz mesmo diferença se é anúncio de Supermarket ou Chanel?)

Mais bobagem ao reclamar que “a tal Classe C ama música em alto volume”. Bobagem porque as outras também gostam, principalmente quando se trata de rock and roll — e aposto que um ou outro tem um orgulho danado de ouvir ópera bem alto para impressionar os vizinhos: “L’amour est un oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser” tem efeito melhor do que “Ai, se eu te pego, ai, ai se eu pego”. Mesmo no subúrbio.

Mas que não se diga que o texto do Xexéo é totalmente desprovido de qualidades. Há um ponto que a Velha Classe Média poderia levantar, com mais razão do que ao fazer picuinha com cereal.

Para todos nós, a classe C se tornou uma espécie de panaceia universal. É justificativa para tudo. E acaba obscurecendo o fato de que a Velha Classe Média (que gosta de ser chamada assim, percebo agora pelo texto do Xexéo, porque lembra vagamente o seu conceito deturpado de “quatrocentão”; como quem diz “eu viajo na classe econômica dos aviões há mais tempo do que você!”) tem, sim, uma certa razão.

O afluxo de uma quantidade alta de consumidores fez com que a qualidade de muitos serviços diminuísse sensivelmente. É cada vez mais comum ouvir justificativas do tipo “o trânsito está pior, mas poxa, deixa para lá porque isso quer dizer mais pobre com carro”. E essa é uma atitude equivocada. É preciso encontrar soluções para isso, e não apenas tolerar.

Mais de 20 anos atrás, li uma entrevista muito interessante com o Stephen Kanitz na revista Imprensa. Ele apontava um caminho para o desenvolvimento do país; o investimento na classe C. E dava como exemplo o videocassete: em vez da indústria apostar em VCRs sofisticados, com 739 cabeças (alguém lembra disso?), era melhor fazer aparelhos mais simples, com duas cabeças apenas, e vendê-los mais barato. Me pareceu válido, na época. E de certa forma foi isso que a ascensão da Nova Classe C possibilitou.

O desafio agora é outro, não é oferecer produtos e serviços de segunda para esse pessoal ascendente. É oferecer mais qualidade por preços mais baixos. E quem não entende isso não entende a classe C. É o caso desse pessoal. Fossem mais inteligentes e deixariam um pouco de lado seus preconceitos de classe, se juntariam ao “diferenciados” para exigir mais. Sairiam ganhando. Mas essa Velha Classe Média não consegue ver isso, assim como viralatas não conseguem ver em cores. E por isso acabamos lendo artigos como esse.

Versão brasileira

O André Setaro é um dos melhores críticos cinematográficos brasileiros, e leitura obrigatória de todo dia. Seu blog é uma verdadeira aula de cinema.

Mas ele ontem fez um post com o qual eu não concordo. Nele, detona a idéia de dublagem.

Eu até entendo o Setaro. Como qualquer pessoa que se arvore dona de algum nível de sofisticação intelectual, eu também prefiro filmes na voz original. Assino embaixo de todos os exemplos dados por ele. Mas daí a odiar toda e qualquer dublagem vai um longo caminho.

Há algum tempo, alguém fez um libelo anti-dublagem num blog por aí. Infelizmente não lembro quem — e não faço questão de lembrar. Li na época e fiquei fascinado pela capacidade que as pessoas têm de ser esnobes e pedantes. Vi também um reflexo do que achei ser um certo sentimento de colonizado, a noção de que tudo em língua de gringo é melhor, não interessa o quê — e é a isso que leva a idéia de que toda e qualquer dublagem é ruim e deletéria.

Mas além do ângulo sociológico, do fato de que se se investe cada vez mais em dublagem é porque há um mercado ávido por isso, que deve ser respeitado, há questões estéticas interessantes.

É até compreensível que cinéfilos não gostem muito de dublagem. O trabalho do ator não pode ser apreciado completamente com ela. Mas além da questão de princípios, há um certo exagero. Porque para um Marlon Brado a dublagem é realmente prejudicial, represents a morte da genialidade de sua atuação. Mas alguém tem certeza de que no caso dos atores de “Hannah Montana” ou da série “Crepúsculo” — se a dublagem for boa, ao menos — isso faria muita diferença? A maioria dos atores de qualquer filme é fraca, fraca, e isso vale até para astros: para mim, pelo menos, a dublagem brasileira da abertura de “Jornada nas Estrelas” (da grande, excelsa, maravilhosa AIC São Paulo) é infinitamente melhor que a vozinha furreca de William Shatner, no original, ao fugir do naturalismo americano e adotar a impostação de voz típica do rádio e TV dos anos 60.

Alguém prefere, de verdade, um documentário daqueles do Discovery cheio de imagens belíssimas em câmera lenta com as legendinhas embaixo? Se você prefere você é um tolo, porque não apenas não ganha nada em termos de “atuação”, como ainda perde boa parte da ação do documentário porque está ocupado lendo as letrinhas.

Resumindo: demonizar a dublagem como algo intrinsecamente ruim é bobagem.

A dublagem possibilitou a milhões de pessoas conhecer e se apaixonar pelo cinema desde muito cedo. E embora seja realmente uma alteração na idéia do filme como obra de arte, o fato é que a dublagem não atrapalha em excesso a compreensão do filme. Sem ela, por exemplo, mesmo esses esnobes (que estão num limbo curioso: não são sofisticados o suficiente a ponto de ver os filmes sem a legenda, mas tampouco admitem a idéia da última vagaba do Lácio nas oiças) não poderiam assistir a desenhos ou filmes quando eram crianças.

Qualquer pessoa que prefira um desenho animado em sua língua original às versões brasileiras tem problemas sérios, na minha opinião. Porque nenhum desenho animado fica melhor no original. Mesmo a versão brasileira do “Rei Leão”, cujo Scar original foi dublado por Jeremy Irons, está à altura do original. Até hoje, quando vejo desenhos animados em inglês, sinto falta das inflexões linguísticas que só um brasileiro pode dar. Eu não me reconheço naquelas vozes, nem acho que isso seja necessário, como seria com um filme em live action.

É por isso, por causa de coisas simples como essas, que não consigo condenar a idéia de dublagem. E talvez minha tolerância venha do fato de que, como quase todo mundo da minha idade, eu seja filho dela.

No início, a dublagem era feita nos próprios estúdios em Hollywood (que além disso eventualmente refilmavam filmes inteiros com atores de um mercado específico, como o México). Era o início da consolidação do studio system e as coisas eram feitas em casa. Mas eles perceberam logo que podiam alcançar melhores resultados se deixassem que a dublagem fosse feita nos países de destino — além de ser mais barato, claro.

E assim surgiram os estúdios de dublagem, como a Herbert Richers e a AIC de São Paulo. Dubladores eram geralmente atores, dos bons. E por causa deles, em algum momento — principalmente entre o fim dos anos 60 e começo dos 70 — a dublagem brasileira alcançou um nível de qualidade invejável. Eu não duvido que em muitos filmes os dubladores fossem melhores que alguns dos atores originais.

Por causa deles a ligação emocional que eu e certamente muita gente temos com a dublagem é enorme. Virtualmente todos os filmes a que eu assistia na TV quando criança eram dublados. Cresci ouvindo dubladores incríveis. Para mim, pelo menos, “Disneylândia” só é “Disneylândia” com a narração do Márcio Seixas. A voz de Isaac Bardavid. Newton da Matta. Helena Samara, a Endora de “A Feiticeira”. E um dos mais fantásticos de todos, o Carlos Vaccari. Todo mundo conhece o Vaccari; pelo menos todo mundo com mais de 30 anos. Vaccari era aquele que anunciava: “Versão brasileira: AIC, São Paulo”. Ou “A Fox Film do Brasil apresenta…”

Aquela foi a era de ouro da dublagem. Obviamente, já faz algumas décadas — e os últimos resquícios dela estão, hoje em dia, no canal pago TCM. Hoje a dublagem é ruim. Muito, muito ruim. Os novos estúdios são de uma mediocridade estonteante. O curioso é que nunca foi tão fácil dublar: hoje cada dublador pode fazer seu trabalho sozinho, de maneira não-linear; antigamente tudo tinha que ser feito ao mesmo tempo. Um erro e todo o trabalho (medido por anéis de filme) era perdido; e não apenas o de uma pessoa.

Há vários sites dedicados à dublagem. E um site específico, o Vídeo Séries, vende seriados antigos com a dublagem original.

15 anos depois e eu ainda me maravilho com essa diversidade da internet. É o que me salva no esnobismo.

Seu Gusmão, mais uma vez

Duvido que alguém acredite nisso que vem a seguir, porque até para mim parece história de mineiro mentiroso. Mas eu tenho os e-mails para provar.

O caso é que o senhor Gusmão, que já foi motivo deste e deste posts, respondeu ao último e-mail que lhe mandei, logo depois que o enviei. Isso já tem algumas semanas:

Em primeiro lugar, Sr Rafael, nunca lhe faltei com o respeito. Sempre achei o Sr. uma pessoa digna. O sr. nunca tem um meio de comunicacao certo pois tem infinitos e mails e mil telefones. Era so entrar em comunicacao como fazem meus outros inquilinos que a gente sempre resolve as situações inexperadas, mas para isso precisa de COMUNICACAO. Sei que o sr. passa por uma situaçao dificil mas nao sabia que chegava a tanto como fazer programa mas isso nao cabe a mim julgar. Por outro lado eu VIVO somente dos meus alugueres, por isso tenho que ficar preocupado em recebe los, pois tenho inumeos compromissos como plano de saude, cartao de credito, condominios caros, remedios que tomo para pressão carissimos e para sindrome do intestino irritavel.. Pois é . fica entao o Sr sabendo que não e so o Sr. que passa dificuldades.Nao sou nenhum cara rico para me dar esse luxo. Todos tem problemas na vida, e se eu pudesse nao tinha esses apartamentos que volta e meia me dão so dor de cabeça.
alem disso passei muito mal todo o mes de fevereiro, ficando em CTI por dez vezes consecutivas com minha pressao a 21×12, por meus remedios de pressao nao surtirem mais efeitos. tive que muda los e so ontem melhorei, e isso tudo me incomoda demais. Outra coisa. nao sabia que o Sr sublocava o apartamento o que e proibido no nosso contrato, mas ate relevo isso pelo seu pagamento sempre efetuado pelo sr e por sempre ter sido boa pessoa comigo, mas se o Sr. nao estiver satisfeito, podemos encerrar nosso contrato, ja que se passou o prazo do mesmo. Nao quero o seu mal mas tambem nao quero o meu.

Ps achei desnecessario isso tudo e podemos conversar

Dr. Antonio Gusmao

E eu me compadeci do senhor Gusmão. Certo, ele tem a mania de lascar um “dotô” na assinatura, mas esse tipo de asneira é perdoável em advogado. Isso e carro grande: são compensações, você entende. O que me comoveu foi o fato de que qualquer pessoa que se recusa a entender o despautério absoluto que era aquele e-mail que enviei não poderia ser totalmente má; ou pelo menos deveria ser tratada com certo cuidado. Além disso, pessoas boas não merecem que outras pessoas boas sacaneiem com eles.

O problema é que só sou gente boa lá no fundo. Por isso foi preciso um acordo, e eu e as vozes na minha cabeça, essas que me fazem responder às pessoas, chegamos a um compromisso: eu não continuaria sacaneando o seu Gusmão, mas tampouco esclareceria as coisas. Não respondi ao e-mail.

Mas aí, algumas semanas depois, no Sábado de Aleluia, recebi mais uma mensagem do sujeito:

Sr. Rafael. Por favor entrar em contato pois precisamos conversar sobre o imovel.

Opa. Esse e-mail me deixou intranqüilo. Fiquei pensando que seu Gusmão, coitado, com sua pressão a 21×12, é do tipo que guarda rancor. Imaginei o seu dotô trancado em seu escritório repleto de livros antigos de direito, puto com aquele Rafael que ainda por cima violava o contrato e sublocava o apartamento, e imaginando as medidas cabíveis para ferrar de vez o rapaz.

O meu doppelganger pode ser um caloteiro safado, mas não merece perder o apartamento. E seu Gusmão pode ser uma anta, mas não merece perder um inquilino por causa de um mal-entendido.

Eu disse: no fundo sou gente boa. Um e-mail, então, serviria para resolver as coisas, para esclarecer o mal-entendido causado pela estupidez do seu Gusmão.

Caro senhor Gusmão,

O senhor vem mandando e-mails para o endereço errado há algum tempo. Eu respondi há algumas semanas, como se fosse o Rafael Galvão que é seu inquilino, dizendo que tinha perdido o emprego, sublocado o apartamento e etc., esperando que o senhor percebesse que estava mandando e-mails para o endereço errado.

No entanto o senhor não percebeu, e até respondeu o e-mail. Por isso, peço que corrija os endereços que o senhor tem aí. O e-mail xxxxx@gmail.com não pertence ao seu inquilino. E eu sequer moro no Rio de Janeiro.

Obrigado,
Rafael

Pronto. Fiz minha parte, ia dormir tranqüilo no Sábado de Aleluia, e nem ia precisar ver o filme do Zefirelli para isso. Não esperava mais resposta. No máximo um e-mail me esculhambando, me chamando de irresponsável, cafajeste — essas coisas às quais, sinceramente, eu já estou acostumado e nem ligo mais.

Mas eu não contava com a mente analítica e inquieta do dr. Antônio Gusmão. Ele respondeu com um e-mail de uma linha só:

COMO E ISSO SE O PAGAMENTO CONFERE COM O DEPOSITO BANCARIO? PODE ME EXPLICAR ISSO?

E aí chega. Porque eu tenho cá meus limites, e eles normalmente são ultrapassados por desafios, principalmente aqueles mais estúpidos.

Caro senhor Gusmão,

O senhor tem razão. Me pegou. Este e-mail realmente pertence ao seu inquilino caloteiro que nunca paga o aluguel em dia. Por isso, continue mandando seus e-mails para cá. Eu prometo que, assim que recebê-los, vou correndo ao banco pagar o aluguel imediatamente.

Nada como perceber que um sujeito não diz a verdade por um detalhe tão simples, não é? Claro. “Como é isso se o pagamento confere com o depósito bancário?” Eu obviamente não faço idéia do que o senhor está falando, mas isso não interessa. Obviamente, não posso explicar isso, nem acho que valha a pena. O importante é que o senhor tem a verdadeira alma do detetive. Uma mente inquisitória, que não se detém até encontrar a verdade. Senhor Gusmão, o senhor poderia ter sido um Einstein.

Eu andava dizendo por aí que o senhor não era lá um corretor dos mais espertos.

Como eu estava enganado.

Um abraço,
Rafael

Aí eu pensei que tudo tinha terminado, que o senhor Gusmão tinha ficado satisfeito com o e-mail — se ele não era capaz de entender a brincadeira anterior, era improvável que entendesse o sarcasmo nessa mensagem.

Mas não é o danado entendeu? E no dia seguinte, em vez de comer um ovo de Páscoa, respondeu com um e-mail duro para mim:

Sr. Rafael. O que mas detesto nesta vida sao tribulacoes como esta acontecendo conosco. Acho que como esta o nosso relacionamento, o melhor para nos dois e encerrar definitivamente com isso, pois esta tanto fazendo mal a mim como ao sr. Nunca passei por isso e espero que nunca mais aconteça. O que quero e que nos encerremos nosso compromisso, ja que o contrato terminou e nao ha mais dialogo entre nos. Fui no apartamento ontem e vi que esta vazio faz tempo e que os recibos se acumulam. O que queria e que o sr. nos liberasse do nosso compromisso permitindo a mim a entrada do mesmo, ja que o sr. nao vem ao Rio e o mesmo se encontra abandonado.
Desculpe por qualquer coisa

Antonio Gusmao

Logo depois, um adendo:

em tempo: Podemos encerrar de comum acordo tudo isso sem o sr. nao me dever mais nada, encerrando assim, pelo bem estar de nos dois. O sr. por estarem dificuldades, e eu para viver mais tranquilo, pois ja parei ate em hospital , pela pressao alta que tenho, nao so pelo sr. mas com coisas que acontecem na vida cotidiana que maltratam a gente. Acho que seria bom tanto para o sr. e para mim.

E assim o pobre do caloteiro homônimo ficou ameaçado de perder seu apartamento. Tudo bem que não o usava (eu faço idéia do por quê, julgando por um dos e-mails do sujeito), mas se ele o mantinha era por alguma razão. E assim, contrariando os meus mais básicos instintos, respondi mais uma vez, uma última tentativa de mostrar a luz para o cérebro hipertenso do senhor Gusmão:

Senhor Gusmão,

Eu não ia mais responder aos seus e-mails, porque o senhor pelo visto se recusa a acreditar que está enviando mensagens à pessoa errada.

Vou repetir mais uma vez: este e-mail específico, xxxxx@gmail.com, não pertence ao seu inquilino. Os outros e-mails para os quais o senhor manda mensagens eu não sei; mas se o senhor não percebeu, é só deste que o senhor recebe e-mails desaforados com histórias malucas.

Ou seja: não é o seu inquilino que está lhe mandando e-mails dizendo barbaridades. É uma pessoa para a qual o senhor mandou mensagens por engano.

Eu não sei quem é o Rafael Galvão que aluga o seu apartamento. E não deveria estar preocupado com ele. Mas odiaria saber que ele perdeu um apartamento por minha causa. Meu homônimo pode ser um caloteiro, a julgar pelos seus constantes e-mails de cobrança, mas acho que nem ele merece ter um contrato de locação cancelado porque o senhor enviou e-mails a outra pessoa por engano, e não entendeu que era tudo uma brincadeira.

(Cá para nós: sublocação a uma prostituta da Help? Piloto de provas de fábrica de supositórios? O senhor nunca percebeu que isso era uma grande brincadeira, do tipo que só quem não tem nada a ver com a história escreveria? Eu sei que há um monte de Rafaéis Galvão por aí, mas duvido que algum deles fosse idiota a ponto de mandar um e-mail a seu senhorio dizendo que sublocava o apartamento.)

Obviamente, eu estou fazendo o que posso para evitar que o senhor tome uma decisão impensada. Além disso, não gostaria que o meu sósia onomástico perdesse o apartamento, nem que o senhor perdesse um aluguel. No entanto, eu já fiz o que posso. Se o senhor se recusa a entender o que está acontecendo, paciência.

Boa sorte a vocês dois, e um abraço,
Rafael

Quer saber? Seu Gusmão e meu clone que se virem para resolver isso. Porque se esse Rafael Galvão pagasse as drogas de suas contas em dia, e se a mãe do seu Gusmão tivesse dado miolo de boi para ele quando era pequeno, para ficar esperto, nada disso teria acontecido.

O futuro aos olhos de todos

O Facebook está contribuindo seriamente para um mundo pior, mais intolerante, mais chato, mais neurótico, em que a vida de todo mundo pertence a todo mundo — e onde seus amigos percebem o quanto você é burro.

National Geographic Magazine

Diante de mim três edições da National Geographic Magazine — 1957, 1971 e 2008. (Só a mais recente é brasileira. As outras são americanas, compradas em sebos. A National Geographic só chegou ao Brasil há relativamente pouco tempo; antes o que existia era um genérico chamada “Revista Geográfica Universal”, cuja moldura de capa era vermelha em vez de amarela, mas que era basicamente a mesma revista, pelo menos na minha memória.)

Olhando para elas, o que sinto é uma pena grande por algo que parece não fazer mais sentido. Uma fascinação pessoal por revistas antigas, por anúncios dos anos 50 e 60 e pelas técnicas de impressão da época, com suas cores distorcidas — tudo parece ter sido impresso em três cores, apenas — acaba dando lugar a uma sensação triste: a de que eu olho para um fóssil vivo, cujos dias estão prestes a terminar.

Não importa muito o ano da National Geographic. Ela é sempre basicamente a mesma, não mudou muito nessas tantas décadas de vida; a principal mudança foi a adoção de fotos na capa, em 1959, progressivamente substituindo o índice de matérias. O conteúdo no entanto é basicamente o mesmo: reportagens sobre coisas importantes ou curiosas do mundo e muitas, muitas fotografias.

Uns tantos anos atrás, a leitura de uma National Geographic significava a descoberta de um mundo novo. Imagino que gerações inteiras ficaram sabendo de coisas do mundo que os rodeava através suas páginas — fiordes na Noruega, mergulhos em Bora-Bora, mulheres com roupas multicoloridas feitas com pelo de lhama na Bolívia, festivais de rena estranhos em algum lugar da Lapônia, esquimós são aqueles indiozinhos besuntados de gordura de baleia? A revista era uma janela importante para o mundo que hoje, mais de cem anos depois de sua primeira edição, vemos principalmente na TV, numa era de informação farta, até excessiva.

Por isso é triste olhar para uma National Geographic. Porque é triste ver algo perder sua função. Ela não faz mais sentido — por causa da TV e por causa da internet. Não tenho idéia de seus números de circulação. Não sei se aumentaram ou diminuíram nos últimos anos, mas se aumentaram são um caso raro entre revistas. Porque o que ela fazia agora é feito de maneira mais eficiente nos canais de TV, como Discovery e o próprio NatGeo, em alta definição e em câmera lenta. E quanto às fotos, elas abundam na internet.

Ou seja: uns 60 anos atrás o sujeito no interior de Minas via uma foto do mar, pela primeira vez — e aquilo já era mais do que 150 anos antes, quando nem isso ele tinha, tinha apenas as impressões eventuais de um viajante que lhe descrevia a imensidão da água, o ribombar das ondas, o sal em seus lábios. E mesmo aquela foto ainda era uma experiência incompleta, não era ainda o mar, era algo como a sombra platônica na parede da caverna. O cinema e o vídeo diminuíram ainda mais esse fosso, deixando menos espaço para a imaginação, para a criação de um mundo próprio, de um mar apenas seu. Isso não é algo necessariamente bom ou ruim; mas é mais um pedaço de um tempo que se vai, um modo de ver as coisas que o progresso tornou obsoleto.

É por isso que sei que a National Geographic Magazine vai acabar, mais cedo ou mais tarde. Com ela vai embora, ao menos em termos simbólicos, uma grande tradição do século XX, a da fotografia como principal janela visual para o mundo. E junto vai uma forma de descobrir esse mesmo mundo, sempre incompleta, sempre distorcida — mas paradoxalmente de alguma forma mais rica também. Porque todos esses canais que aos poucos sucedem a National Geographic podem transmitir as mesmas informações de maneira mais eficiente, sim; mas também são menos poéticos, deslumbram menos, porque não me permitem mais completar o vazio que as fotos permitiam e recriar o mundo de acordo com o que eu gostaria que fosse, ou com o que eu podia pensar.

Transexuais

Um comentário do Gabriel à minha homenagem ao Dia da Mulher merece ser republicado aqui, porque ao resumir algo que eu penso é algo embaixo de que eu assinaria.

Rafael, pode até parecer uma piada aleatória, mas o travesti e o transexual dizem muito sobre as lutas feministas do último século.

É como bem disse outro dia o Rogério Skylab em uma entrevista ao Danilo Gentili (no minuto 17:50 mais ou menos), o travesti/transexual é um dos grandes retratos da modernidade.

Se a modernidade é a fluidez de valores, inclusive, e principalmente talvez, de identidade, se o movimento negro subvertia a ideia de superioridade de raças, se a luta operária subvertia uma realidade histórica de exploração, se o feminismo a o movimento gay já discutiam a construção cultural do que deve ser homem e do que deve ser mulher, se tudo isso é a cara da modernidade, um passo mais adiante ainda é aquele sujeito que além de querer subverter o papel social que lhe foi imposto ainda contesta a determinação biológica sobre sua identidade.

Pago pau mesmo pros transexuais, estão entre o que há de mais revolucionário e corajoso nesses tempos.

É isso.

Flanelinhas, a salvação da humanidade

No meu tempo era diferente, revistas femininas diziam como decorar a casa e o que vestir no verão; acho que prefiro os novos tempos.

O caso é que, lendo uma matéria numa dessas revistas sobre as necessidades de comunicação durante o sexo oral, fiquei sabendo que os participantes de tal colóquio se beneficiariam amplamente de um pouco mais de diálogo em hora tão prazerosa.

Como leigo no assunto, me espantou o fato de que ninguém até hoje tenha percebido a oportunidade que está bem aí, debaixo — literalmente — de seus narizes. Uma profissão nova poderia surgir para administrar essas necessidades e vontades, cuidando para o desempenho satisfatório de tais atividades.

Flanelinha de boceta.

Ou seja, alguém que desse ao senhor inexperiente as indicações necessárias para o bom cumprimento de sua tarefa. Que facilitasse as coisas e tornasse irrelevantes as vergonhas do senhor e da senhora — o senhor, que nunca para para pedir direções; e a senhora, que tem vergonha de dizer para aquele puto que porra, mordida dói.

Profissão tão útil, essa seria. E, pelo menos para mim, não é difícil imaginar o flanelinha desempenhando seu doce mister:

“Vai! Vai! Isso. Pra esquerda! Vai, vai! Mais um pouquinho! Desfaz, desfaz! Pra frente. Agora um pouquinho pra direita! Um pouquinho pra direita! Agora desfaz! Isso! Vai, vai direto! Isso! Isso! Cavuca fundo!”

Nova carta para seu Gusmão

Um tempão atrás publiquei a resposta que dei a um sujeito que me mandou um e-mail cobrando de um dos meus tantos homônimos o aluguel de um imóvel em Copacabana. Esse doppelganger caloteiro vive atrasando o aluguel. E por alguma razão seu locador acha que o meu e-mail é o dele.

A resposta, no entanto, não sensibilizou o sujeito. Ele continua mandando e-mails para mim, me cobrando algo que não devo. Deve ser mau corretor, porque sequer sabe o e-mail correto de seu cliente. Por isso escrevi um novo e-mail para ele na esperança de que esse senhor finalmente entenda que está mandando e-mails para a pessoa errada.

Seu Gusmão,

Olha, eu venho evitando falar isso faz tempo: mas o senhor é muito chato.

O senhor sabe que estou passando por uma fase delicada na vida. Perdi o emprego, perdi a mulher, as coisas começaram a dar errado para mim de repente. E mesmo assim o senhor vive me mandando esses e-mails de cobrança.

Eu estou me esforçando, de maneiras que o senhor nem imagina. Mas mesmo assim, mesmo sublocando o apartamento para uma amiga que trabalhava na Help e agora recebe seus clientes aqui em casa, nem sempre é possível pagar o aluguel em dia.

O senhor quer mesmo saber por que eu atraso?

Eu lhe disse que tinha perdido o emprego, o senhor lembra? Não me foi possível arranjar uma colocação à altura da anterior. Inicialmente fui ser piloto de provas numa fábrica de supositórios. Não é o melhor emprego que há por aí, e isso me deixava com uma certa má vontade em relação ao mundo, mas serve para o senhor entender o que estou disposto a fazer para lhe pagar os aluguéis que lhe devo.

Infelizmente fui demitido por causa do meu hábito de beber. Então agora eu faço vida.

É, seu Gusmão. VI-DA. V-I-VI-D-A-DA — vida. Tudo isso para pagar o aluguel que o senhor me cobra.

Olha, seu Gusmão, é uma vida dura, sabe? Mas até que compensa. Alguns clientes são delicados, tratam bem a gente, levam até para jantar no Giraffa’s da Barata Ribeiro.

Mas claro que nem todo dia é bom, porque a crise, o senhor sabe, está chegando até nós. O dinheiro é difícil. Tem dias — e eu não falo isso apenas para conquistar a sua simpatia — que a gente sai só pelo sanduíche do Cervantes com Fanta.

Certo, eu atraso de vez em quando. Mas eu pago essa merda, não pago? Cá entre nós, não é sequer um grande apartamento esse que alugo do senhor. Mesmo assim, todo mês o senhor me manda uma cobrança que nós dois sabemos ser desnecessária. Eu vou pagar. Eu sempre pago, não importa que para isso eu tenha que sair com 20 numa noite só.

Eu só peço ao senhor um pouco de compreensão.

Portanto, o senhor tem duas alternativas. Ou para de me mandar essas cobranças, ou então me arranja uns clientes assim, tipo cheios da grana, para que eu possa pagar tudo em dia.

Este seu criado,
Rafael Galvão

***

Mas seu Gustmão não desistiu de receber o seu dinheiro: Seu Gusmão, mais uma vez.

Minha singela homenagem ao Dia Internacional da Mulher

“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.”
Simone de Beauvoir

“Aê, Simone, assino embaixo.”
Roberta Close

PT saudações

Recebi um telegrama dia desses. Parece brincadeira, mas recebi.

Os telegramas estão bem diferentes dos de antigamente. Mais parecem aerogramas, aquelas cartas alaranjadas pré-fabricadas que os Correios vendiam — não sei se ainda vendem.

Eu já sabia o que o telegrama dizia, mas de alguma forma, ainda que incompleta, consegui relembrar um pouco da sensação qeu se tinha ao, de repente, receber um telegrama inesperado. Mais que isso, veio também a impressão de que esse, provavelmente, é o último que receberei na vida. É um telegrama temporão, porque eles não fazem mais sentido no mundo de hoje.

Há alguns anos, quando a Western Union avisou que estava cancelando sua unidade de telegramas nos Estados Unidos, foi colocada a lápide sobre uma instituição do século XX. No entanto essa agonia começou em silêncio, e ninguém parece ter notado. Telegramas já não faziam sentido há muito tempo. E o passar dos dias não melhora, em nada, a sua situação.

É difícil, para quem não recebeu alguns telegramas, entender exatamente o que significava a chegada de um deles. Um telegrama era um carimbo de urgência e de importância em um tempo que não era tão corrido, em que as pessoas ainda admitiam não encontrar outras no momento em que queriam; o telefone celular ainda não existia. Um telegrama era uma esfinge à espera de um Édipo. Podia significar algo que teria a faculdade fatal de mudar sua vida, de transformar radicalmente, e para sempre, o seu mundo. De certa forma, era imparcial como a mão divina, e igualmente inesperado: podia lhe avisar de maneira seca que alguém querido havia morrido, que alguém que mais tarde também seria querido tinha nascido, ou podia simplesmente mandar você passar em algum lugar para pagar uma dívida.

Telegramas tinham uma linguagem própria. CHEGO SEGUNDA TREM DAS ONZE PT, e a gente sabia o que o PT e VG significavam. E isso fazia com que fossem mais concisos que SMS ou Twitter, porque não era uma limitação tecnológica que lhe fazia ser sucinto, mas o preço de cada letra, ou palavra, não lembro bem.

Eu disse que eles podiam significar que algo bom havia acontecido com você,  mas não falei toda a verdade. Porque algo na natureza humana, talvez a sensação permanente de queda iminente, fazia com se soubesse instintivamente que um telegrama, quase por princípio, trazia notícia ruim. Boas notícias não vinham por telegrama com a mesma freqüência com que as más chegavam. Más notícias, não, essas sempre fporam rápidas; com o telegrama, elas passaram a voar na velocidade da luz. Por alguma razão esquisita, as pessoas parecem achar que boas notícias podem esperar. Já as más, por menos relevantes que sejam, por menos que você possa fazer em relação ao fato que elas contam, precisam ser ditas com urgência. E para isso inventaram o telegrama.

O mais próximo da sensação causada pela chegada de um deles, hoje, é a sensação de alerta que se tem ao ouvir os acordes da vinheta do plantão do Jornal Nacional. Vinheta que hoje, mesmo vulgarizada em toques de telefones celulares, causa o mesmo desconforto instintivo, a mesma sensação de urgência, de acontecimento importante. Mas há uma diferença, e é por isso que o telegrama não tem nada, hoje, que se possa comparar a ele: o telegrama era algo pessoal, urgente. Dizia respeito a você, diretamente. O plantão do Jornal Nacional diz apenas que uma pessoa que você não conhece se fodeu, ou uma catástrofe aconteceu — e aí muitas pessoas que você não conhece se foderam. É uma má notícia, também, mas menos má porque é impessoal, não lhe afeta diretamente.

Não que isso signifique algo hoje. Tudo isso pertence a uma era atrás. O telegrama foi destruído pelo telefone e pela internet. Em um mundo em que quase todos têm celular, ficou mais fácil comunicar-se com a urgência que o telegrama implicava, e muito mais. E se o telefone não tinha a capacidade de dar um caráter definitivo às coisas, faltando a ele a solidez e inevitabilidade da palavra impressa, o e-mail representou o golpe de misericórdia.

Não foi um processo linear ou imediato, mas foi constante. Há uns 30 anos, se alguém — mesmo no Brasil, que já tinha um dos sistemas de telefonia mais avançados e abrangentes do mundo — queria falar com uma pessoa de alguma cidadezinha no interior da maioria dos Estados, ligava para o posto de serviços da companhia telefônica na cidade ou povoado. De lá mandavam alguém chamar o cidadão em questão: “Zinho, vai ali chamar Neco de Cotinha que tem uma moça de João Pessoa querendo falar com ele.”

Se o telefone celular conseguiu acabar com isso, destruir o telegrama foi, então, como tirar doce da boca de criança. Ele se tornou redundante. É por isso que vou guardar esse que acabei de receber. Daqui a alguns anos quero mostrar a minha filha o que era esse negócio já esquecido, da mesma forma como ainda guardo um aerograma como os que mandava para minha avó. Eles ainda têm a mesma cor, laranja, e com a sua praticidade já prenunciavam a decadência da carta pessoal escrita à mão. Talvez, com um telegrama, eu consiga explicar o que ele significava, e dar a ela uma noção específica de tempo e espaço que a ubiqüidade da informação suplantou para sempre. Mas duvido que ela se importe com isso. O telegrama acabou, não vai fazer falta, e PT saudações para ele.