As alegrias que o Google me dá (XLII)

qual é a melhor posição para foder bem uma mulher de 30 anos
Diga que ela não vai mais arrumar um marido. Ela vai ficar deprimida por uns três anos.

como e chamada a profissao de quem faz doce
Filho da puta. Porque quem faz doce é filho da puta.

ninfeta espiritual
Ninfeta espiritual deve ser aquela vadia velha que deu para meia cidade mas que, em espírito, ainda se considera uma menina pura e inocente.

pesoas vestidas de coelhas transando
São pessoas de sorte, porque conseguiram achar um sujeito que não caiu na gargalhada com elas.

foto de garotas de chorrochó
É uma questão de gosto. Tem gente que procura fotos de garotas de Chorrochó (para quem não sabe, cidade no sertão da Bahia). Outros preferem fotos de chorrochós de garotas. Como dizia o velho Valois, tem gente para tudo nesse mundo, e ainda sobra um para comer merda.

o que fazer eu era testemunha de jeová e me arrenpedi porque sair e fui crente
Matemática básica: como Testemunha de Jeová você só tinha que ir encher o saco de pessoas em suas casas, pregando a palavra do Senhor. (Duas delas bateram na minha porta uma vez num domingo de manhã, algumas décadas atrás, e tiveram que aturar uma preleção sobre o Corão; eu não sabia nada, mas elas sabiam menos ainda, e eu pude mentir à vontade. Quase converti as moças. Foi uma manhã de domingo divertida.) Mas agora, como crente, você tem que dar a porra do dízimo, e quando viu o dinheiro indo para o bolso do bispo você naturalmente se arrependeu. Mas olha, podia ser pior: você podia ter virado católico e sido assediado pelos padres.

capador de cabra
Sempre que vejo um sujeito vestido de bicho de pelúcia distribuindo panfletos na rua fico pensando nas coisas que a gente é obrigado a fazer para ganhar a vida. Mas a partir de agora passo a achar que aqueles que aguentam esse pequeno martírio são pessoas de sorte, porque há sinas piores no mundo.

google o que aconteceu com o pastor q chutou a santa
Foi promovido pelo bispo Edir Macedo, encheu o rabo de dinheiro e agora se dedica a cuspir em Cristos crucificados.

quem tem tireóide nome do remédio que pode tomar para moderar a ansiedade e o apetite
Agora fiquei preocupado. Eu tenho tireóide. Aliás, todo mundo que conheço tem tireóide. Bicho, será que há uma epidemia de tireóide grassando por aí?

frase para a juventude dourada dos anos 70
“Os bons tempos não voltam mais”. E vocês, cocotas e pães que nos anos 70 desfilavam bronzeados por aí, 40 anos depois estão velhos e acabados, pelanca para tudo quanto é lado, o cabelo caiu, estão um caco, hein? Ô vida. Como diz o Gama, o tempo é um fazedor de monstros.

tenho depressão mandaram parar de fumar não é pior
Claro que é. O idiota que te falou isso devia ser processado e preso. Você já é deprimido pela vida merda que leva; vai ficar deprimido também pela falta de nicotina? Seu médico é um açougueiro e merecia ter seu CRM cassado.

a atual do meu ex quer tc comigo no msn oque devor fazer ou falar
E você ainda tem alguma dúvida? Minha filha, você vai mesmo perder essa chance de esculhambar aquele cachorro? Conte as verdades sobre ele, basta fazer isso. Transforme a vida dele num inferno e se vingue por tudo aquilo que ele te fez passar.

fotos homes de penisduro
Penisduro, para quem não sabe, é uma cidadezinha mineira, ali pertinho de Cordisburgo. Cidade que, pelo visto, anda com uma certa falta de homem.

mulher chega em casa com o cabelo molhado traição
Encha a cara dela de porrada. Não por causa das galhas com que ela te enfeitou, mas por causa da burrice dessa imbecil. Essa idiota não sabe que todo motel tem secador de cabelo justamente para isso? A não ser, claro, que ela tenha ido para uma birosca de dar medo em padre pedófilo, daquelas que em vez de banheira têm uma bacia para as putas se lavarem; e aí encha a cara dela duplamente de porrada, que te cornear com um pé rapado já é falta de respeito.

qual é a importancia de que os universitario participam de movimentos estudantis lei
É importante para o fortalecimento da democracia. Infelizmente, alguns se dedicam apenas ao movimento e esquecem o estudantil, e o resultado é um anafalbeto como você.

sobre o que as mulheres gostam de conversar no msn
Putaria. MSN é o toalete cibernético.

penis não sobe muito o que é?
E a galera responde: “É meia-bomba! É meia-bomba!”

resposta de kassab p/ marta sobre sobre sua opção sexoal
“Não é da sua conta, rachada hor-ro-ro-sa.”

google eu gostaria de fazer um blog so que eu nao sei fazer
E olha a sacanagem que o Google fez contigo: te trouxe aqui, um exemplo de tudo o que um blog não deve ser.

adoro pau fino
Mentirosa.

porque a queimadas é uma pratica que ilude o agricultor
Porque logo no comecinho, quando essa leviana está pegando fogo, faz parecer que a vida vai ser uma maravilha para o pobre lavrador. Mas logo depois a triste realidade se estabelece, e então o iludido homem do campo descobre que de tudo aquilo, afinal, só restaram cinzas.

qual o tempo certo para tirar a barba
Depende muito, sabe? Porque se você for mulher, o tempo certo foi ontem.

.simpatias feito com cenoura para o homem broxar
Essa é tão óbvia que não dá vontade nem de responder. É a Simpatia do Mário Gomes.

o que a história da branca de neve uer nos passar?
Que se você for uma princesa e sua madrasta for uma bruxa e você achar sete anões morando juntos, você está fodida e é melhor cortar maçã da sua dieta.

porque foi criado o estado de israel
Porque alguém tinha que ferrar com aqueles palestinos.

se voce fosse um vegetal qual voce seria e porque?
Eu seria professor de direito.

marcelo mastro padre no confessionario
Marcelo Mastro, mesmo? Ah, tá. Entendi. Era assim que esse padre se apresentava para os menininhos dos quais ia abusar, não é? Espertinho.

por que paris é chamada de cidade luz????
Porque os franceses pagam suas contas certinho, sempre em dia, e a Light nunca corta a energia elétrica de ninguém.

o foder
Eis um poeta, um verdadeiro poeta, e eu acho que ele é baiano, porque foi o baiano Caetano que fez “O Quereres”, e esse grande poeta anônimo, bebendo das mais finas tradições do também baiano Gregório de Matos, fez “O Foder”, e a gente sem imaginação como eu resta apenas imaginar que versos divinos, maravilhosos, podem ter saído de tão lírica cabeça. Ou não.

michael jackson estava com boa aparencia no caixão
Estava sim, mas por pouco tempo. Ninguém sabe, mas o seu último desejo foi que alguém consertasse aquela bisonhice que era o seu nariz: ele acreditava que ia para o céu e, como lá é cheio de anjinhos pueris, queria estar bonito para fazer a festa. No entanto ele foi para o círculo do inferno reservado a padres, e aí já não podia reclamar.

para que serve o genocidio?
Para que israelenses possam invocar o Holocausto: “Mas não foi a gente que começou!”

como ficar curado do bolo na garganta devido a ansiedade
Engula uma coca-cola e uma velinha. Depois cante “Parabéns a você”.

ver mulher transando anao com a morroida para fora
Eu juro pelo que há de mais sagrado, juro até por São Lula, que eu começo a rir quando tento visualizar essa cena.

se eu tomar dois valium 10mg durmo rapido?
Por que só dois, bobo? Tome vinte e durma para sempre.

cocotas menores fazendo sexo
Olha só, um velho tarado. Cocota é expressão dos anos 70. Mesmo assim esse velhote, já passado o seu tempo, ainda insiste na sacanagem. Sinceramente, não sei é motivo de admiração ou riso.

como escrevo anderlaine simbolo
Anderlaine tem cara de nome de menina do subúrbio, filha de um senhor que, ao anotar um e-mail pela primeira vez (“olha, seu Gilson, é creuzinha com Z anderlaine silva arroba ig ponto com ponto beérre”), achou o nome bonito como a Creuzinha, e adequado a um bebê que, afinal de contas, seria a irmãzinha da Gislaine. Escreva como quiser, vão rir da cara dela de qualquer jeito.

como almentar o penes naturalmente de graça
Se você está perguntando como alimentar o de cujus, três refeições de xoxota ao dia. E tenho dito.

qual o nome do classico do cinema que conta a historia de uns corredores cegos?
“Batendo a cara no poste”, clássico dirigido por Jorge Luis Borges e estrelado por Stevie Wonder e Ray Charles. Foi um fracasso. Ninguém viu.

é serto o sistemas de cotas nas univercidades para estudantes de escola publica?
Considerando que você deve ser aluno de escola particular, para estar tão preocupado com isso, eu mudo neste instante de opinião e passo a achar que não. O nível da concorrência, pelo visto, é muito baixo.

e meu rinoceronte morreu de amor…
Se apaixonou por um cone de trânsito, coitado, e passou um dia e uma noite parado no meio da rua, e foi atropelado por um caminhão do Greenpeace.

eu hoje acordei com vontade de fuder
Volte para a cama que isso passa.

morreu de amor
Foi um caso triste e belo, porque não se morre mais de amor neste mundo cínico e endurecido. E dois anos depois a viúva casou de novo, e é feliz até hoje, e esqueceu de levar flores ao seu túmulo no último dia de Finados.

o rafael e feio?
É, mas a culpa não é dele.

Defendendo Dunga

Assisti ao final da convocação a seleção brasileira de futebol para a Copa da África do Sul, e à coletiva posterior.

A primeira impressão que tive foi a da qualidade impressionantemente baixa do jornalismo esportivo perpetrado neste país. As perguntas eram feitas no seguinte tom: “Você tem sua opinião, Dunga, e ninguém é obrigado a concordar, mas…” e “Graças a Deus você não era técnico da seleção em 58, porque senão Pelé…”. Nível baixo demais, de confronto, feito por gente que deveria ter vergonha de pronunciar a palavra “profissional”.

Logo depois foi a vez das mesas redondas nos canais esportivos. Normalmente, mesas redondas são cenários de bobagens ditas com ar de autoridade e ânimos exaltados, mas a animosidade contra Dunga, as críticas exacerbadas, tudo isso passou a impressão de que a escalação foi uma surpresa absoluta. Naquele momento, Dunga parecia ser o arauto do futebol-arte que, de repente, tinha traído seus ideais e abdicado do futebol brilhante que o Brasil pode jogar em função de uma covardia repentina, de uma mudança súbita para um futebol sem surpresas e feito para, antes de tudo, defender. O sujeito que, depois de três anos e meio fazendo de sua seleção algo de dar inveja a Telê Santana, jogou fora os seus jogadores para catar cabeças-de-bagre retranqueiros.

Eram os mesmos jornalistas que vinham elogiando o sujeito, ainda que com um muxoxo, porque ele vinha ganhando as competições que disputava.

A única opinião sensata foi dada pelo Juca Kfouri. Segundo ele, Dunga montou a seleção que se esperaria dele, definida em função de um objetivo bem específico: ganhar a Copa do Mundo. Não era a seleção que o Kfouri convocaria, mas era uma seleção respeitável e, acima de tudo, competitiva.

Dunga tem sido perseguido pela imprensa desde sempre. Em 1990 foi tomado para Cristo de uma seleção que não era sua culpa, em 1994 o ridicularizavam quase que por reflexo condicionado– e sequer conseguiam reconhecer que ele não apenas desempenhou bem o seu papel naquela copa, como até mesmo surpreendeu com lançamentos excelentes para Romário.

O mais engraçado é que, do jeito que esses jornalistas sérios e competentes falam, ficou parecendo que essa é a primeira seleção “de resultados” que se monta no Brasil. Que até a véspera da convocação este país era o palco de seleções que jogavam como em 1982, ou ainda melhor. A se acreditar nos jornalistas brasileiros, as seleções de Lazaroni, Parreira, Zagallo e Scolari foram prodígios do toque de bola solto e do ataque inconsequente. Fiquei com a impressão de que a minha memória me traía, e nenhum deles convocou seleções medianas; umas melhores, outras piores. Eu achava que desde 1982 não via uma seleção que realmente enchesse os olhos, apenas eventualmente seleções que claramente tinham chances de ganhar, como a de 1994; eu estava enganado, porque esses jornalistas me disseram.

Afinal de contas, esperavam o quê? Ganso, Robinho e Neymar no ataque? Quem ainda esperava isso em maio de 2010 acompanhou ainda menos que eu o futebol brasileiro nos últimos quatro anos. Dunga convocou o que se podia esperar que ele iria convocar. O Milton Ribeiro, por exemplo, acertou virtualmente todos os convocados. Aqui e ali algumas surpresas realmente estranhas, como Grafite e Kleberson. Mas nada que não pudesse ser previsto.

Ao que parece — e aqui falo sem muita certeza porque não acompanhei — esses anos de preparação de Dunga foram, ao menos, mais sérios que as eliminatórias disputadas por Luxemburgo e Scolari — Léo Costa, Tinga, lembra? E ao que me dizem foi uma seleção que venceu tudo o que disputou. No mínimo, Dunga é digno de admiração por não ter ouvido o cacarejar da imprensa esportiva, que se deleita em pedir os times que atendem a suas idiossincrasias ou interesses e crucifica qualquer um que não ganhe a Copa– e não faz uma conta entre esses dois aspectos, beleza e competitividade, porque isso não lhes interessa.

Eu, pelo menos, lembro ainda das críticas que Telê Santana enfrentou em 1982. Jô Soares tinha um quadro humorístico em que ele implorava a Telê, de um orelhão — na época ainda se usava orelhões — que levasse um ponta-direita. Mais ainda, lembro da crucificação de Telê depois da derrota, da sua demissão e substituição primeiro por Parreira, depois por Evaristo de Macedo, e sua volta às vésperas da Copa de 86. Logo depois da derrota para a Itália ninguém apareceu com a conversa de “futebol-arte”, de como era melhor perder mas jogar bonito. Em vez disso reclamaram do burro, do idiota, do jumento do técnico.

Ontem mesmo, diante da virada do Grêmio sobre o Santos, os mesmos que esculhambaram Dunga já falavam que o time de Ganso, Robinho e Neymar é lindo no ataque mas, ao precisar se defender, se perde.

Se alguém quer minha opinião, acho essa seleção de Dunga medíocre no sentido clássico da palavra, mediana. Ao mesmo tempo, é como disse o Juca Kfouri: uma seleção competitiva, escolhida para tentar ganhar a Copa do Mundo. Não questiono, de modo geral, as suas escolhas. É um estilo de jogo e pronto, e nem sequer é inédito entre as seleções brasileiras. Acho apenas, como o jornalista Paulo Vinícius Coelho, que ele errou no banco de reservas, que poderia ter sido mais criativo ali, até porque em algum momento pode vir a ser necessário uma mudança de estilo de jogo. Um jogador excepcional como Ganso teria lugar em qualquer seleção, com qualquer idade. Finalmente, Zidane provou ao Brasil — duas vezes seguidas — que um meio-campo criativo é capaz de destruir qualquer esquema tático, mas nenhum técnico brasilerio parece ter aprendido a lição ainda.

O que mais irrita é saber que, se qualquer um dos sábios que esculhambou Dunga fosse técnico profissional e tivesse que convocar uma seleção para uma Copa do Mundo, provavelmente faria a mesma escolha: um time que aposta no futebol de resultados porque o verdadeiro objetivo para a CBF é vencer, ainda que jogando feio. É para isso que ele é contratado. Infelizmente, não acho que vá conseguir. O Brasil vai chegar classificado ao terceiro jogo, contra Portugal. Dificilmente será desclassificado nas oitavas; o mais provável é que chegue às semi-finais. No entanto, o Brasil não vai ganhar essa Copa, porque algo no mapa astrológico da FIFA me diz isso, e porque a festa brasileira está reservada para daqui a quatro anos.

(Obviamente, torço para estar errado.)

Eu, pessoalmente, prefiro ver o futebol de 82, ou mesmo o que o Santos tem jogado. Mas também gosto de comemorar uma vitória de Copa do Mundo, e para quem viu a sua primeira com uma seleção como a de 1994, qualquer coisa já é lucro. Se puder ter os dois ao mesmo tempo, ótimo. Se não puder, a esta altura da vida, me contento com qualquer um dos dois.

A maior parte das pessoas, no entanto, prefere vencer. Os jornalistas também, apesar do seu discurso hipócrita — e se viram hipocrisia e forçação de barra nos apelos ao “comprometimento” e ao “patriotismo” de Dunga, eu vejo também na sua grita incansável, pronta a detonar qualquer técnico que não vença, jogando feio ou bonito.

Easy Riders, Raging Bulls

Eu tinha acabado de começar a ler American Radical: The Life and Times of I. F. Stone, livro até agora bastante interessante, mas o Bia me encheu tanto o saco que fui comprar

“Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood”, de Peter Biskind, cujo título original é o que encima este post.

O livro, velho de 12 anos mas só recentemente lançado aqui, é uma história de parte da geração dos anos 70, encabeçada por cineastas como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese. Conta a ascensão desse grupo e do seu estilo de fazer filmes, e a sua superação pelas mãos dos que Biskind aponta como os mais medíocres dessa geração, George Lucas e Steven Spielberg.

Por convenção, os anos 70 foram os tempos do “cinema autoral” em Hollywood, quando o studio system entrou em colapso criativo e esgotamento de marketing, e cineastas mais ou menos influenciados pelo cinema europeu deram as cartas. Foi um período curto, enterrado quando multidões de idiotas fizeram fila para assistir ao primeiro “Guerra nas Estrelas”.

O assunto poderia dar origem a uma grande investigação sobre a evolução do cinema naqueles tempos. No entanto, “Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock ‘n’ Roll Salvou Hollywood” está mais para um programa sensacionalista da E! Television do que para uma coletânea de artigos de Robert Warshow. Talvez isso se explique pela própria origem de Biskind: ele era editor da finada Premiere americana, que nunca foi exatamente uma Cahiers du Cinèma. Página após página, nos vemos às voltas com escândalos, com sexo, com a megalomania de gente que, embalada por excesso de dinheiro, poder e drogas, se achava genial e se comportava de acordo.

Isso faz do livro leitura instigante, é verdade. É difícil, se você gosta de cinema, conseguir largá-lo. Mas ao mesmo tempo essa abordagem o diminui. Para um livro que pretende afirmar a idéia de que aquele foi um período único na história do cinema americano, ele começa mal, porque é um exemplo claro e acabado do tipo de cultura dominante na indústria cultural de hoje.

Escândalos de qualquer tipo não eram uma novidade em Hollywood. Da garrafa de coca-cola enfiada na vagina de uma figurante numa festa de Chico Bóia ao assassinato de Johnny Stompanato pela filha de sua namorada Lana Turner — passando por Gloria Grahame encontrada na cama com o filho de 13 anos de seu marido, Nicholas Ray —, Hollywood sempre foi pródiga em escândalos, nem sempre controlados pela sua máquina de relações públicas. Um ambiente machista, selvagem, competitivo e canalha. Qualquer mulher em Hollywood sempre soube que o meio mais fácil de subir ali não era lutando e mostrando o seu talento, e sim deitando e abrindo as pernas (a propósito, como bem sabem tantas estrelinhas da TV Globo, não é muito diferente no Brasil). No entanto, Biskind quer fazer parecer que aquela geração dos anos 60/70 inventou tudo isso. Que era mais selvagem, mais louca, mais inventiva.

Biskind fala de um tempo “mágico” em que diretores conquistaram o poder e derrotaram os produtores. É uma ilusão: os produtores sempre estiveram ali, e mesmo entre essa geração que proclama que ia tomar o poder, eles sempre foram parte fundamental e imprescindível do processo de criação no cinema. Cinema é indústria, e indústria requer dinheiro.

O mais importante, no entanto, é que o que Biskind tenta fazer passar por uma explosão criativa sem precedentes é apenas um interregno na história de Hollywood.

Biskind falha em perceber que, em primeiro lugar, o movimento de renovação de Hollywood não começa com “Sem Destino” — filme que, à parte sua importância histórica, tem muito poucos méritos. As mudanças que se processaram em Hollywood foram um processo razoavelmente lento, do qual o próprio Coppola fez parte com seu You’re a Big Boy Now, e do qual se pode ver traços estéticos já em filmes como “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”. Ao longo da segunda metade dos anos 60 — e com o caminho timidamente aberto pelas comédias sexuais da primeira —, o cinema em Hollywood foi se adaptando aos novos tempos, e deixando para trás os faroestes e os grandes dramalhões que foram sua espinha dorsal nos anos 50, como “A Caldeira do Diabo” ou “Tudo o que o Céu Permite”. Pode-se acusar Hollywood de quase tudo, menos de burrice, e ela já tinha reconhecido o surgimento de uma geração de consumidores com novos critérios estéticos e filosóficos. Biskind louva o surgimento da produtora BBS, mas esquece de colocá-la em seu contexto histórico: a BBS surgiu anos depois de proposta semelhante e muito mais radical, a Apple dos Beatles e seu “comunismo ocidental” — iniciativa que àquela época já tinha ido para o buraco por absoluta inviabilidade de sua proposta.

Outro dos problemas do livro está na hipérbole. Biskind escolheu um grupo de cineastas, com alguns laços em comum, e tentou transformá-los na alma de Hollywood, a razão de ser do próprio cinema. Isso ajuda a explicar as trajetórias desses indivíduos, mas não ajuda a explicar a evolução do cinema nesse período. Ao excluir gente como Woody Allen, Stanley Kubrick e Paul Mazursky, por exemplo, Biskind faz parecer que foi o seu pequeno grupo de cineastas que fez todo o cinema realmente importante em Hollywood. Biskind os exclui porque sua mera existência faz cair a sua teoria de um pequeno grupo de desajustados que fizeram uma revolução. Seu herói Bert Schneider, por exemplo: era pouco mais que um arrivista balzaquiano, mas aos olhos de Biskind acaba adquirindo ares de um David O. Selznick.

Talvez por isso Biskind não consiga elaborar uma gênese para sua “Nova Hollywood”. Não entende direito, por exemplo, a dimensão real da influência francesa sobre aqueles realizadores — embora perceba que, quando os americanos tentavam fazer um filme “europeu”. o resultado era quase sempre canhestro. Não consegue entender, realmente, as relações entre aquela geração, o seu tempo, a consolidação da televisão como meio de entretenimento de massa e a influência do cinema europeu, principalmente o francês. Ele sabe que está lá, mas não sabe explicar.

Definitivamente, ele não compreende o papel da televisão na formação de um novo padrão temático e formal em Hollywood. Certo, aponta que em determinado momento Hollywood aprendeu a usar a TV a seu favor, revolucionando o seu esquema de divulgação e possibilitando o surgimento da era dos blockbusters — embora não elabore esse ponto suficientemente. Em algum momento dos anos 70, o cinema americano finalmente descobriu a fórmula para garantir audiência e a sua permanência. Percebeu que havia possibilidade de melhorar a estratégia de distribuição de novos filmes, fazendo lançamentos maciços em vez de construir a distribuição aos poucos — sistema que funcionava quando os estúdios ainda eram donos dos cinemas —, e que a TV poderia funcionar como aliada através de comerciais.

A questão é que isso é pouco mais do que Hollywood sempre fez: se adaptar aos novos tempos.

Ainda pior, Biskind não consegue perceber que talvez haja mais por trás desse processo: que ao oferecer ao público médio dramaturgia abundante, barata e de acordo com os padrões hollywoodianos de antigamente, a TV forçou o cinema a buscar novos caminhos. O cinema pretensamente autoral dessa geração foi um primeiro passo, mas o caminho definitivo só seria achado mesmo quando o cinema descobriu a mina de ouro dos blockbusters. E uma nova estética, que ele acertadamente define e lamenta.

Correndo justamente para o outro lado, em um estilo típico da indústria da fofoca, Biskind cria seus próprios deuses para depois tentar destruir seus altares. Tem um prazer quase mórbido em fazer a crônica da decadência de seus heróis e mostrar como os medíocres Spielberg e George Lucas tomaram o posto de grandes estrelas de Hollywood. Mas mesmo nesse momento, mesmo com todos os elementos à mão, ele não consegue fazer uma análise correta e abrangente do significado histórico de tudo aquilo cujas peripécias ele acabou de narrar.

O livro tem alguns heróis, além de Bert Schneider. Warren Beatty — sobre quem Biskind escreveu uma biografia respeitosa há pouco tempo — é um deles, e seu papel na criação dessa “Nova Hollywood” é justamente ressaltado, embora até o ponto do exagero: Biskind baba por Shampoo, dando-lhe uma importância que o filme não merece. Por outro lado, além de apresentar alguns personagens como vilões exagerados, desmistifica mas ridiculariza além do necessário Pauline Kael — uma crítica muito acima da média mas que não estava acima das vaidades típicas do pior jornalismo (e talvez isso explique a sua implicância com Billy Wilder, por exemplo).

Mas é preciso lembrar que a maioria dos protagonistas do livro se perdeu pela vida. Robert Evans é uma massa amorfa e bizarra de cirurgias plásticas que fazem as de Michael Jackson parecerem obras-primas. Coppola faz filmes ruins nos intervalos do gerenciamento de sua vinícola. Scorsese, que até o início dos anos 90 ainda tinha o que dizer, perdeu tudo o que tinha em “Cassino”, foi brutalizado pelas “Gangues de Nova York” e hoje seu trabalho mais significativo é o engajamento na preservação de filmes antigos. Michael Cimino, que faz uma ponta no livro com o seu maravilhoso “O Franco-Atirador” (e com o malfadado “O Portal do Paraíso”), é um hoje um transexual praticamente banido do cinema.

Para quem se pretendia grandes revolucionários criativos, sua chama se queimou rápido demais.

O livro termina sem oferecer respostas suficientes e sem conseguir justificar a sua assertiva. Para quem gosta de fofocas — como saber que Margot Kidder dava para qualquer um, que Coppola não podia ver uma assistente na sua frente, e principalmente a história deprimente do mais medíocre de seus heróis, Peter Bogdanovich —, é um prato cheio. Mas se você quer entender a história do cinema, ou entender melhor o que faz de um filme algo realmente bom, é provavelmente melhor ler uma coletânea de artigos e resenhas do Andrew Sarris.

No fim das contas o livro acaba se tornando um exemplar fiel daquilo que a tal geração rock ‘n’ roll mais odiava: um típico blockbuster, feito para entreter, nem que para isso apele para a baixaria e o sensacionalismo. Talvez não pudesse ser diferente.

Sobre o Bolsa Família

O Bolsa Família se transformou em uma das principais pedras de toque do governo Lula por uma razão: ele funciona, como nenhum outro antes dele.

Maior programa de transferência de renda do mundo, o Bolsa Família estabeleceu uma quebra de paradigma importante no modelo de assistência social. Até a era FHC, assistência social era basicamente dar um dinheirinho a famílias em situação de miséria e esperar que o pai não gastasse tudo em cachaça. Com o Bolsa Família, o governo Lula estabeleceu diferenciais importantes que transformaram o programa em uma alavanca não apenas para o alívio da situação de desespero de milhões de famílias brasileiras, mas em um instrumento de desenvolvimento social.

Os números são os seguintes: há 19.653.677 famílias no Cadastro Único, que mapeia as famílias pobres e servem de base para a definição das políticas sociais do governo. Dessas, 15.729.878 famílias têm perfil para serem atendidas pelo Bolsa Família — ou seja, estão abaixo da linha de pobreza. Finalmente, desse universo, 12.494.008 são atendidas pelo programa.

Não é só isso. O PSDB/DEM, expressando o tipo de pensamento mais canhestro da direita brasileira, alega que o Bolsa Família incentiva a “vagabundagem”; não é incomum ver idiotas de classe média ou alta dizendo em tom jocoso que as pessoas não vão mais trabalhar, vão apenas fazer filhos para receber o benefício — é um desrespeito ao povo brasileiro dizer algo do tipo, levando-se em conta que o Bolsa Família é uma renda complementar e não é suficiente para sustentar completamente uma família.

Felizmente os números desmentem esse tipo de imbecilidade: de acordo com o IBGE, 77% das famílias atendidas pelo BF trabalham formal ou informalmente (entre os não beneficiados, o número cai para 73%). Mais ainda, 99,5% dos beneficiados que tinham algum tipo de ocupação não deixou de trabalhar porque passou a receber o Bolsa Família. Na verdade, o programa acaba incentivando o empreendedorismo, ao dar mais possibilidades aos beneficiados de gerar mais renda.

O Bolsa Família é dado às famílias, não a indivíduos. Às mães, preferencialmente, por serem elas as cabeças da maior parte das famílias pobres e porque, quando há um chefe masculino, ele não é exatamente confiável. Curiosamente, isso acaba modificando bastante as relações de gênero justamente entre as camadas mais baixas da sociedade. Além disso, o Bolsa Família não tem prazo de validade. É concedido enquanto as famílias precisem delas, e suspenso definitivamente apenas quando sua faixa de renda muda. Ou seja: quando melhoram de vida.

O principal diferencial do Bolsa Família e os programas assistenciais anteriores está em um fator simples, mas decisivo: a condicionalidade. Para receber o benefício, cada família precisa cumprir algumas condições básicas. São condições simples, como manter os filhos na escola, seguir o calendário de saúde — vacinação, pré-natal, etc –, e participar dos programas de capacitação profissional e geração de renda. Ou seja: em vez da esmola que o PSDB dava a uns meninos por aí, o Bolsa Família é um processo amplo e consequente de inclusão social.

Uma das vertentes do discurso do PSDB/DEM de demolição do Bolsa Família é o de que falta uma porta de saída. Falam isso por ignorância ou por má fé. Porque o próprio mecanismo do Bolsa Família é, por si só, uma porta de saída. Assistencialismo barato como o praticado pelo PSDB/DEM é dar o dinheiro e fim de papo. Em vez disso, para poder receber o Bolsa Família cada família beneficiária precisa cumprir uma série de condicionalidades, além da óbvia que é estar comendo o pão que o diabo amassou com o rabo. O Bolsa Família obriga as pessoas a estudar, a cuidar da saúde. Isso é a porta de acesso à cidadania. E de saída da miséria.

Mais objetivamente, eles esquecem que, além dos cursos de qualificação e geração de renda diversos, o governo Lula lançou, ano passado, o mais específico Plano de Qualificação Profissional para Beneficiários do Bolsa Família, uma série de cursos profissionalizantes que buscam aumentar o nível de empregabilidade dos beneficiários. Os primeiros cursos se dirigem à construção civil, setor da economia que tem absorvido mais mão de obra em grande parte devido às obras do PAC.

Finalmente, o Bolsa Família movimenta a economia. Por causa da renda complementar proporcionada por ela, as pessoas compram em suas comunidades — para horror do PSDB/DEM, que se irrita ao ver que as pessoas votaram em Lula e vão votar em Dilma porque depois de muito tempo passaram a realizar esse ato tão insignificante do ponto de vista macroeconômico chamado “comer”. Comprando, elas fortalecem o comércio, que se anima a vender a prazo porque sabe que vai receber no dia certo. O Bolsa Família acaba gerando mais empregos; para usar uma expressão cara aos tucanos, cria um “ciclo virtuoso”.

Ou seja: é um programa completo dentro de suas atribuições, que vai muito além do meramente “assistencialista”, como gostariam os tucanos olhando com saudade para o seu Bolsa Escola — que para outros é apenas a prova de sua incompetência na área social.

Diante disso, o discurso do PSDB/DEM tem sido, no mínimo, esquizofrênico. Há os que atacam o programa dizendo que ele não presta, sem nunca citar números. E há aqueles que tentam reivindicar sua paternidade creditando todo e qualquer programa social do governo Lula a Fernando Henrique. O Bolsa Família, então, seria apenas o Bolsa Escola com outro nome.

A única coisa que realmente foi feita durante o governo FHC foi o início da formação do Cadastro Único, em 2001. Só isso, mais nada. A não ser, claro, que se tente creditar ao Bolsa Escola, o programa assistencial de Fernando Henrique, a origem do Bolsa Família.

O problema é que comparar os dois é, para usar a única palavra adequada, uma palhaçada.

O Bolsa Escola tucano era dado a crianças que freqüentassem a escola, ponto, e não cobrava nenhuma condição além da frequência escolar. O benefício era suspenso quando ele completasse 14 anos, independente de sua situação.

Resultado: não resolvia o problema, porque não havia um sistema de promoção social. Pior ainda, muitas vezes até agravava a situação, porque assim que o menino completava 14 anos e o benefício era cancelado a renda de famílias inteiras diminuía repentinamente. Isso, sim, era esmola. O Bolsa Escola fazia parte da mesma tradição paternalista que deu ao país o vale leite e o vale gás, e que possibilitou as imensas filas em frentes às sedes estaduais da antiga LBA.

Enquanto isso, do Bolsa Família uma família só sai se deixar de cumprir as condicionalidades — quando, aí sim, o programa passaria a ser esmola, porque seria dinheiro apenas dado, sem compromisso de melhoria social — ou se seu nível renda aumentar e ela se erguer acima da linha de pobreza — em outros termos, quando ela passa a não precisar mais do auxílio do governo. É isso, essa consistência e consequência, que faz do Bolsa Família um projeto diferente e tão bem sucedido.

Desde a criação do programa, 4,1 milhões de famílias foram desligadas do programa, porque seu nível de renda aumentou.

4,1 milhões de famílias que saíram da miséria. E eles são só uma parte dos 23 milhões de pessoas que, ao longo do governo Lula, saíram da linha de pobreza absoluta.

Apenas para efeito de comparação, durante todo o governo de Fernando Henrique Cardoso apenas 2 milhões de pessoas trilharam o mesmo caminho. Talvez não pudesse ser diferente: a cada crise econômica — e eles conseguiram quebrar o Brasil três vezes –, a primeira coisa que o governo FHC fazia era cortar os investimentos sociais, porque afinal de contas tinha o tal do superávit primário para manter. Também para efeito de comparação, é só lembrar que na crise de 2008, que a boa governança brasileira transformou em marola, o governo brasileiro na verdade aumentou os investimentos nessa área.

O PSDB/DEM sabe disso, embora não alardeie por aí porque faz mal à sua imagem. É por isso que quando os tucanos falam que o Bolsa Família aprofunda a miséria, é porque partem do exemplo do projeto pífio que conseguiram realizar. Se baseiam na própria incompetência para julgar a competência dos outros. O Bolsa Escola é só o que eles sabem fazer, e só o que conhecem. E não concebem que alguém possa fazer algo melhor.

De volta ao futuro

Nos próximos dias, este blog vai recauchutar alguns posts de quatro anos atrás.

As razões são simples.

Um dos trolls de estimação de blog, vendo o que ninguém vê e achando que Serra realmente tem alguma chance de ganhar esta eleição que, ainda nem começada, o mostra em queda constante nas pesquisas, lembrou que a alternância de poder é necessariamente algo benéfico. O Jean disse que acha que a Petrobras nunca esteve na mira da privatização. E quase todo mundo parece achar que Bolsa Escola e Bolsa Família são a mesma coisa.

Pode parecer loucura, mas é como se o PSDB/DEM tivesse ficado congelado no tempo. Uma espécie de Austin Powers político, eles ainda não compreenderam que os parâmetros para que se possa discutir avanço mudaram. O PSDB/DEM continua sem conseguir apresentar uma alternativa real, diferente da que apresentaram em 2002 e 2006. Eles têm na cabeça o mesmo modelo que implementaram no país e continuam a implementar em São Paulo.

O mais grave na situação do PSDB/DEM não é sequer o fato de que eles não souberam como trazer o país ao atual patamar de desenvolvimento: é o fato de que eles não sabem o que fazer com o Brasil atual.

O que parece difícil que eles entendam é que alternância de poder é boa se ela não representa retrocesso. A volta do PSDB/DEM ao poder significa exatamente isso: uma volta indesejável a uma fase do país que, 8 anos depois, já devia ter sido esquecida, porque foi superada. Eles ainda não conseguiram responder às perguntas básicas: para que vocês querem chegar à presidência da República? Qual o projeto de governo de vocês? O que vocês têm a oferecer que seja melhor do que o governo Lula tem feito e a Dilma pretende fazer nos próximos anos?

Sem apresentar uma alternativa concreta, o discurso de alternância do PSDB/DEM é pouco mais que “por favor, me dê o poder de volta”.

Os posts serão republicados com algumas variações porque o nível de argumentação do PSDB/DEM não é apenas baixo: é velho, também.

E afinal, o que foi mesmo que o PSDB/DEM fez até agora?

O sistema de saúde nacional é municipalizado. No entanto, o Governo de Sergipe (é, aquele que eu ajudei a eleger, para quem ainda se lembra) está construindo 102 clínicas de saúde da família em 74 dos 75 municípios sergipanos, com exceção da capital. Além de construir as clínicas, o governo também repassa recursos para a sua manutenção.

Fez isso porque tem consciência de que as prefeituras desses municípios não têm condições de construir unidades de saúde com esse nível de qualidade.

Se o governo de Sergipe fosse do PSDB/DEM, e não do PT, o discurso no entanto provavelmente seria outro. O governo criticaria os municípios por não oferecerem saúde de qualidade aos seus moradores. Ou, talvez, beneficiasse apenas os municípios de seus aliados políticos. O PSDB/DEM — como bem soube a Prefeitura de Aracaju nos anos FHC — nunca foi um grande entusiasta da ideia de republicanismo, ao menos fora do seu discurso.

Se a história do William incomoda a algumas pessoas, como o Vinícius, é em parte porque eles se recusam a admitir a questão central que ela ilustra: o governo de São Paulo, que hoje se pretende tão esperto e tão preocupado com o social, e que passou os últimos 8 anos atacando uma política social que inegavelmente deu mais que certo, não apresentou absolutamente nada no Governo de São Paulo que pudesse minimamente soar como alternativa.

Para quem chama o Bolsa Família de Bolsa Esmola — e só idiotas, verdadeiros idiotas, comparam o Bolsa Escola ao Bolsa Família; há um resumo sucinto das diferenças entre os dois em um dos posts linkados abaixo, mas não parece que alguém tenha se dado ao trabalho de ler — o mínimo que se poderia esperar é que apresentassem algo que pudesse fazer diferença.

O probema é que, mesmo tendo, uma estrutura de poder consolidada ao longo de 15 anos no governo de São Paulo, o PSDB/DEM não se mostrou capaz de realizar ou mesmo formular uma alternativa concreta.

Além disso, não soube trabalhar de maneira complementar às iniciativas do Governo Federal. Não que seja algo dificílimo de se fazer — tanto que o Governo de Sergipe faz. E Sergipe é o menor Estado da Federação, com recursos parcos e uma história associada às oligarquias e ao coronelismo. Fez isso em 3 anos, ao mesmo tempo em que destruía uma estrutura de Estado viciada e corrupta, fortalecida ao longo de mais de 40 anos.

Se o Governo de Sergipe pode fazer isso, o Governo de São Paulo também poderia fazer.

Mas não fez.

É por isso PSDB/DEM não tem estatura moral para criticar ou propor melhorias — coisa que, aliás, não faz — à política social do governo do PT. Eles declaram aos quatro cantos que vão cobrar competência de Dilma? Deviam, antes, se preocupar em mostrar competência eles mesmos, mostrar o que fizeram em São Paulo, por exemplo. Porque eles são oposição apenas em termos. Controlam há 15 anos o maior Estado da federação, e o segundo maior orçamento. Tiveram tempo e dinheiro suficientes para implementar mudanças significativas na forma como se comporta o Estado em relação a questões fundamentais.

E isso suscita outro ponto.

Todos nós podemos apontar grandes diferenças entre o governo Lula e o governo FHC. Na política social, na política externa, no incentivo à economia. São diferenças tão grandes que Lula acaba de ser eleito o líder político mais influente do mundo, o que me deixa preocupado com a sanidade mental de FHC.

Agora eu gostaria que algum desses defensores (e por favor, não estou cobrando isso de leitores que deixam comentários sem parecer ter lido o post; não seria justo exigir tanto assim dos bichinhos) apontasse diferenças significativas entre a era PSDB/DEM em São Paulo e a era Quércia/Fleury.

Mas, já me antecipando, deixa eu fazer uma pergunta: então são esses que se consideram capazes de substituir um dos governos mais bem sucedidos da história do país? São esses que, incapazes de apresentar alternativas concretas quando têm a chance, se consideram mais capazes de governar um país que pela primeira vez em muitas décadas encontrou uma maneira de combinar desenvolvimento econômico, respeito externo e promoção social?

A palavra é de vocês.

***

Dos comentários ao último post, um deles me fez rir muito: o do Roberto Berlim, praticamente afirmando que foi Íris Rezende que ensinou o PT a fazer política social.

Mas pensando bem, combina com o pensamento alucinado PSDB/DEM: afinal, eles acham que criaram todos os fundamentos econômicos; nada mais coerente que se achem também donos de todas as políticas sociais, aquelas que até hoje eles não conseguiram compreender.

Porque José Serra não conhece William

José Serra não conhece William.

Talvez devesse. Na tarde do último domingo William estava no aeroporto de Guarulhos, apesar da chuva forte que caía. Ofereceu seus serviços a uma moça que fumava na porta: dois reais para engraxar seus sapatos. Não havia necessidade, mas a moça aceitou.

William fazia seu trabalho calado, aquele silêncio humilde que às vezes a gente vê por aí e cria empatia imediata. Mas a moça puxou conversa. Ele contou que tem 10 anos, e mora ali mesmo em Guarulhos, em Bom Sucesso. Tem quatro irmãos e uma mãe; nenhuma referência a um pai. Perguntado se estudava ele disse que sim, pela manhã. Perguntado se gostava de estudar, ele abriu um sorriso e disse que sim, que gostava “demais”. Mas à tarde e à noite ele tem que ir ao aeroporto, para ajudar a mãe. Não é fácil, às vezes o expulsam de lá. Mas ele volta mesmo assim, porque precisa. Agora, William e sua família querem comprar uma bomba para puxar água do poço em sua casa.

Quando acabou de engraxar os sapatos, a moça estendeu 10 reais para William. Ele arregalou os olhos: “Pra mim, senhora?” “É. Mas só se você prometer que vai continuar estudando”. Ele abriu um último sorriso, “Prometo, senhora”, e foi embora.

José Serra não conhece William, mas talvez devesse, porque ele pretende ser presidente da República e há centenas de milhares de crianças exatamente na mesma situação daquele garoto, trabalhando em canaviais, carvoarias, semáforos ou com uma caixa de engraxate nas costas, muitas vezes em um limbo cinzento em que trabalho e caridade se confundem e se tornam indistinguíveis.

Se o conhecesse, Serra talvez conseguisse entender o que significa para milhões de brasileiros o Bolsa Família e a grande rede de proteção social desenvolvida por Lula.

Para crianças como William, o governo Lula representou uma chance sem precedentes de acesso ao exercício da cidadania. Mas o PSDB/DEM jamais conseguiu compreender ou aceitar o seu significado. Essa incompreensão se transformou, nos últimos anos, no seu principal cavalo de batalha na oposição ao governo — uma oposição destrutiva e prejudicial ao país.

Até há pouco, Serra e o PSDB/DEM se concentravam em tentar desconstruir o Bolsa Família e os programas assistenciais do Governo Federal, chamando-o de “Bolsa Esmola”. Acostumados a um projeto de governo que privilegia os mais ricos de maneira insana, sem compreender a natureza do país, o PSDB e o DEM demonstraram, durante anos, total incapacidade de entender um modelo de Estado diferente e mais igualitário.

No entanto, a política social do Governo Lula ajudou a lhe render aprovação popular sem precedentes. E agora, com as eleições se aproximando, o PSDB finge deixar de se indignar com o fato de as pessoas ficarem felizes porque agora podem comer, se torna uma espécie de esquizofrênico político e passa a elogiar o programa.

É uma mudança e tanto. Despido da possibilidade de continuar reencarnando o pior da antiga UDN, em parte pelo fracasso memorável da sua estratégia em 2006, e em parte graças aos escândalos gravíssimos de corrupção que assolaram os dois partidos nos últimos meses — destruindo de passagem o que tinha se tornado o eixo de um discurso vazio e histérico –, o PSDB/DEM agora se vê obrigado a fazer o que nunca fez: reconhecer a realidade e elogiar os avanços do governo Lula. Lembrando o velho e bom Brizola, estão tendo que engolir o sapo barbudo.

Embora arriscada, essa é uma estratégia eleitoral compreensível. Nos próximos meses o PSDB/DEM, que finalmente parece ter resolvido a sua diocotomia em relação à política social de Lula — uma hora dizia que era criação sua, na outra dizia que não prestava –, e tentando fazer com que seu candidato Serra perca a imagem de anti-Lula, vai tentar lembrar o Bolsa Escola, por exemplo, um dos programas assistenciais desastrados criados por Fernando Henrique Cardoso.

(Alem de ser difícil conseguir isso ao mesmo tempo em que tenta descolar sua imagem do ex-presidente, há outro problema à frente deles. Serra já começou a tentar aparecer como alguém que vai aprimorar a obra de Lula. Obviamente, nada impede que o próprio Lula diga: “Olha, eles dizem que eu fiz um bom trabalho? Pois eu, que fiz esse bom trabalho, estou dizendo que eles não conseguirão dar prosseguimento a ele, e sua história prova isso. Quem pode me suceder é a Dilma.” Mas esse é o tipo de coisa que só se poderá saber como vai acontecer durante o desenrolar a campanha eleitoral.)

O mais interessante é que eles vão partir de uma base correta. Uma parte dos programas específicos desenvolvidos no governo Lula foi realmente criada durante o governo anterior, como o PETI — embora tenha sido o Governo Lula que, ao mudar o foco de toda a política social, tenha dado a eles a dimensão que hoje têm. Esse é o trunfo do PSDBN/DEM, embora falho. Porque não é o fato de ter programas sociais, que desde quase sempre governos fizeram isso: Getúlio com a sua LBA, Sarney com seu vale-leite e vale-gás. A diferença é a abordagem e forma de entendimento do papel da assistência social. Por exemplo, em momentos de crise — eles conseguiram quebrar o país três vezes, afinal –, o PSDB/DEM apontava os programas sociais como os primeiros alvos de corte de verbas, porque para eles assistência social nunca foi muito diferente de esmola. Isso eles vão esconder.

E é nesse contexto que entra William.

Apesar do que Serra e o PSDB/DEM vieram dizendo ao longo desses anos, o problema da política social do governo Lula é o fato de que ela ainda não consegue beneficiar todos os que precisam, nem oferecer uma renda maior para os já beneficiados. Para Estados como Alagoas ou Piauí, por exemplo, o dinheiro da União através do SUAS é normalmente o único recurso significativo a que têm acesso para a área social. Ainda é pouco.

Mas São Paulo tem o segundo maior orçamento do país. E ainda assim, meninos como William estão engraxando sapatos no aeroporto de Guarulhos.

Talvez o problema de crianças como William fosse minimizado se o PSDB, no poder em São Paulo há tantos e tantos anos, tivesse feito sua parte, em vez de replicar no governo estadual o que fizeram no governo federal. Se Serra é tão diferente de FHC, como pretende agora, porque o seu governo em São Paulo é tão parecido com o do ex-presidente? Essa divergência entre o atual discurso tucano e o que se pode observar na prática quando eles têm o governo na mão tem raízes fortes. Diz respeito à visão de país do PSDB/DEM.

Agora, por exemplo, Serra diz que vai continuar o Bolsa Família. Mas mesmo que seja bem intencionado, mesmo que tenha admitido o seu erro recorrente e permanente dos últimos 8 anos, ou que mentiu ao povo brasileiro porque precisava fazer oposição, o que Serra pretende manter não é o Bolsa Família, porque a sua história e a sua tradição não permitem que ele o entenda. O que Serra, com boa vontade, pode ter em vista é o seu Bolsa Esmola, porque é assim que Serra e o PSDB vêm a assistência social. Por isso, seu desempenho diante do governo de São Paulo deve ser lembrado. O Estado de São Paulo tinha a obrigação de garantir a crianças como William assistência e apoio. Mas não fez isso, e esse menino, como milhares de outros meninos paulistas, se vê surpreso e feliz quando recebe 10 reais na porta do aeroporto.

Curso Rafael Galvão para sacanear comunistas

Este post tem uma missão nobre: iluminar um pouco a indigência direitista no debate social. É um esforço mínimo, claro, dentro das possibilidades de um blogueiro que prefere falar de sacanagem a falar de política. Mas bem intencionado, ainda assim.

Sua razão de ser são alguns dos comentários ao post sobre os canalhas da ditadura militar. Gente que, não contente em defender o indefensável, apela para um argumento raso de desqualificação pessoal: como alguém que defende Stálin pode reclamar de uma ditadura?

Não parecem ter entendido a parte em que se diz “de sacanagem”. ‘Stalinistas” é como trotsquistas barbudinhos do PT, saudosos da picareta no cocoruto de um exilado no México, se referem aos “verdadeiros leninistas” que militaram no glorioso Partido Comunista do Brasil. Não quer dizer que eles ainda defendam Stálin incondicionalmente.

Reconhecer e abjurar os crimes de Stálin contra o seu povo não significa voltar as costas aos grandes avanços sociais naqueles 30 anos. Quem fez isso foi o PPS — e olha só no que deu. Esse tipo de abordagem não é apenas inane, mas enganosa e burra.

A utilização desse argumento simplório incomoda por ser notícia velha e batida. Os crimes de Stálin são utilizado por todo mané de direita para justificar crimes cometidos por suas próprias ditaduras.

É preciso ser completamente idiota para fazer isso. É como justificar os erros de Bush apelando para Hitler. O que me impressiona é o seguinte: ainda que eu fosse um defensor incondicional de Stálin e de seus expurgos, o que isso teria a ver com o caráter malsão da ditadura militar no Brasil? Os fatos mudariam em função da opinião de um pobre blogueiro sem eira nem beira? Torturadores deixariam de ter torturado centenas de brasileiros porque A acredita que Stálin era gente boa? O golpe deixou de levar o Brasil para um longuíssimo período de trevas porque B consegue justificar os expurgos stalinistas?

Conduzir qualquer discussão para esse lado é confissão cabal de idiotice, que me perdoem aqueles que tentaram. Os expurgos stalinistas podem ser compreendidos e discutidos dentro do contexto russo, embora jamais justificados. Pessoalmente, acho que Stálin tem outros problemas também; se a direita fosse mais inteligente e um pouco menos infensa a argumentos fáceis demais poderia apelar a eles e, pelo menos, começar um debate razoável. A “traição” aos comunistas alemães em 1927 (sem certeza da data), por exemplo, na minha opinião foi um fator importante na viabilização do nazismo e condenou a revolução russa. Isso é imperdoável.

Diante de uma situação dessas começo a achar que é meu dever colaborar para o desenvolvimento cultural desse pessoal. A indigência intelectual da direita cansa. Eu fico cansado de ver esse mesmo discurso dos expurgos de Stálin, porque é ineficaz: ninguém mais justifica os erros de Stálin. É difícil para eles ganhar um debate porque eles têm argumentos pobres demais, velhos demais, desgastados demais.

Por isso este blogueiro, com a doçura que mamãe me deu, vou lhes fazer um favor. Está declarada aberta a “Oficina Rafael Galvão de Como Sacanear Comunistas”.

Para começar, me parece exemplo fino de puerilidade e ignorância qualquer bobo de direita apelar para Stálin contra um militante ou ex-militante do PCdoB. Puerilidade e ignorância, porque muito mais grave que ter apoiado Stálin — algo de que nenhum comunista se arrepende, geralmente porque sabe um pouquinho de história — foi ter acreditado que Enver Hoxha era gente boa. Essa, sim, não tem desculpa. A maioria dos comunistas do mundo repudiou Stálin logo após o XX Congresso do PCUS; mas Enver Hoxha continuou sendo admirado pelo PCdoB até bem depois de sua morte.

Quer bater em um militante do PCdoB? Larga um Enver Hoxha nas fuças dele. Dói. Machuca. Magoa. O problema é que 90% dos bobos de direita que acenam com os expurgos stalinistas não fazem idéia de quem diabos foi Hoxha.

Mas isso ainda é muito pouco. Não combina com a direita elitista deste país, que se pretende tão sofisticada e europeia (embora eu ache que ela está mais é para Miami, mesmo). São vocês que, na falta de argumentos concretos, gozam o “analfabetismo” de Lula, não são? São vocês os esnobes que gostam de alardear superioridade cultural, não são?

No reino das discussões bizantinas, se você puder dar uma luz nova a um debate antigo — ou seja, concordando com todo mundo mas de uma maneira ligeiramente diferente — você fará sucesso.

E isso a gente faz assim, ó: quando alguém quiser justificar as atrocidades da ditadura militar mencionando o nome Stálin, e todo mundo estiver fazendo aquela pose típica de intelectual em mesa de bar, você faz a de quem comeu merda e não gostou (a outra pose típica), olha em volta fingindo que é inteligente e larga:

— Jdanov.

E as pessoas em volta vão perguntar: cumé?

— Jdanov. O grande crime de Stálin foi Jdanov.

Pronto. Você acrescentou algo ao debate. 9 entre 10 pessoas na mesa não farão a mínima ideia de quem foi Jdanov. E aí você tem a sua chance.

A essa altura eu deveria sugerir que você, meu caro mané de direita que apela para os crimes de Stálin para tentar desqualificar críticas à ditadura, fosse procurar uma enciclopédia, mas como estou imbuído do senso messiânico de melhorar o seu parco repertório, vai aqui uma explicação sucinta do que estou falando.

Uma das noções mais deletérias instituídas durante a luta pelo socialismo foi o realismo socialista — a ideia de que a obra de arte deve apontar, necessariamente, a solução socialista. Na verdade, o realismo socialista não é algo intrinsecamente nocivo: é apenas uma escola artística, como milhares de outras. É tão válida quanto o naturalismo ou o romantismo ou o barroco, e deu grandes obras como “A Mãe” de Górki ou, aqui no Brasil, “Capitães de Areia” de Jorge, o Amado.

O problema começa quando o Estado passa a defender essa escola como a única admissível e utiliza seus meios de coerção para garantir isso.

Uma revolução se dá em vários campos, e o cultural é um deles. O combate a ela também, e foi por isso que o ocidente promoveu mediocridades como Soljenitsyn. Em um dos tantos desvios do ideário leninista, Stálin resolveu que seria necessário fazer da cultura um campo de combate praticamente militar.

Se o ambiente político russo era propício ao autoritarismo assassino que se tornou uma das marcas de Stálin, por outro lado a cena cultural russa, na virada do século XX, era virtualmente tão intensa quando a francesa. Não é preciso retroceder no tempo em direção a Puchkin ou Gogol, ou mesmo a Dostoiévski ou Tchekov. Naquele momento, a Rússia borbulhava em ideias diferentes, brilhantes e conflitantes.

Um exemplo do que se faria já nos tempos da Revolução, e um dos meus preferidos da virada do século:

À nossa volta floresciam campos vermelhos de papoulas, a brisa da tarde brincava sobre campos de centeio amarelecido e, no horizonte, erguia-se alto o virginal trigo mourisco, como a muralha de um mosteiro longínquo. O plácido Volin ziguezagueava, afastava-se de nós, sinuoso, e perdia-se no bosque de faias, envolvido numa névoa cor de pérola e entre colinas floridas. Depois serpeava lentamente entre plantações de lúpulo. Um sol alaranjado descia no horizonte, parecendo uma cabeça decepada; uma luz suave filtrava-se entre as nuvens, os estandartes do poente ondeavam sobre nossas cabeças. No frescor da tarde era forte o cheiro do sangue dos cavalos mortos na véspera.

Esse é o segundo parágrafo de “O Caminho do Sbruch”, de Isaac Bábel (“Cruzando o rio Zbrucz” na tradução de Cecília Prado, mas eu prefiro esta, de Roniwalter Jatobá). Foi esse ambiente vivo e vibrante que Stálin destruiu ao instituir a política cultural que seria conhecida como Jdanovismo. Ao permitir, grosso modo, que apenas as obras realistas socialistas laudatórias ao regime fossem reconhecidas, Stálin fez com que as artes russas agonizassem e morressem, virtualmente todas elas. Privilegiando a mediocridade apenas porque ela condizia com a sua visão autoritária de mundo, o Jdanovismo destruiu a cultura russa. Um país que tinha dado ao mundo gênios em virtualmente todas as áreas, mas especialmente a literatura, de repente se calou porque a única voz permitida e incentivada era aquela que louvasse o socialismo e o Grande Guia dos Povos.

A União Soviética se recuperou dos expurgos stalinistas — na verdade, saiu deles como uma das duas únicas superpotências do mundo. No entanto, jamais conseguiria se recuperar do Jdanovismo.

É possível apenas imaginar quantos Dostoiévskis e Tolstóis deixaram de aparecer porque o Jdanovismo não permitia visões distintas do mundo; Babel, pelo menos, foi executado por Beria em 1941. E eu consigo pensar em poucos crimes tão grandes — e tão admiravelmente adequados ao discurso elitista da direita — como esse, o de destruir a cultura de um povo.

No fim das contas, é o seguinte: ninguém em sã consciência justifica hoje os expurgos stalinistas. Apelar para eles denota burrice e ignorância, e não apenas porque os crimes de Stálin não justificam os crimes da ditadura militar no Brasil, mas porque há argumentos melhores para tentar essa besteira. Este blog, que pode ser canalha e chauvinista mas tem lá seus parcos conhecimentos de história, cumpre o seu papel de bom samaritano e tenta ajudar as antas de direita a calibrar melhor seus discursos retardados oferecendo alguns subsídios básicos para o seu crescimento espiritual.

Em vez de me xingar, me agradeçam. Se chamei vocês de burros e ignorantes é porque vocês são — mas também porque quero fazer com que vocês melhorem. E voltem na próxima — porque eu e vocês temos certeza de que vai haver próxima — com um discurso melhorzinho.

Espero ter ajudado. E lembrem-se: da próxima vez tentem apelar para a desqualificação pessoal através de Enver Hoxha e Jdanov, em vez dos expurgos stalinistas. O debate fica mais interessante, tipo assim, esteticamente highbrow. Olha que chique.

A permanência das coisas

Comício com Luiz Carlos Prestes em Aracaju, durante a campanha eleitoral de 1945.

Prestes faz o seu discurso, e aos poucos as pessoas vão indo embora. (Apesar disso, Iêdo Fiúza foi o candidato mais votado na cidade.)

Para tentar lembrar ao pessoal as vantagens óbvias do socialismo sobre o capitalismo, Prestes faz uma última tentativa:

“E tem mais, camaradas! No socialismo, quem não trabalha não come!”

E então o comício esvaziou de vez.

Só para lembrar que as coisas não parecem ter mudado muito de lá para cá, e as pessoas parecem continuar querendo comer sem trabalhar. Pelo menos quando o empregador é o Estado.

É preciso ser muito bobo para confundir a idéia de socialismo com a noção de que o Estado deve ser uma vaca de tetas infinitas. “De cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo sua necessidade”, um velho adágio leninista, não parece reverberar profundamente na cabeça dessas pessoas.

28 anos depois

Até ontem, fazia quase quatro anos que eu não via um jogo da seleção brasileira de futebol. O último tinha sido Brasil e França durante a Copa de 2006. Não senti falta.

Mas ontem a ESPN exibiu o jogo Brasil x Itália, de 5 de julho de 1982, no estádio Sarriá, em Barcelona.

Fazia 28 anos que eu não assistia àquele jogo.

E de repente me vi gritando como se o jogo fosse o de uma final atual de Copa do Mundo.

Me vi xingando Serginho cada vez que ele pegava na bola e fazia alguma besteira.

Me indignei de novo ao ver a camisa rasgada de Zico no pênalti que o juiz israelense não deu.

Me irritei com Cerezzo nas duas bobagens que ele fez e que acabaram resultando em gols.

Tive a mesma sensação de desagravo que tive há 28 anos, ao ver Zico caminhando com a bola em direção a Gentile, mostrando quem afinal tinha o respeito da bola.

E me emocionei novamente ao ver as veias saltadas de Falcão na comemoração do segundo gol do Brasil. Aquela foi uma das belas imagens da copa, a mais bela para mim, e a Placar da semana seguinte estampou essa foto.

É preciso um certo grau de loucura para fazer isso, torcer novamente por um jogo tão antigo e do qual você sabe o resultado. A loucura é ainda maior porque eu sequer tenho esse amor todo ao futebol, posso passar anos sem ver um jogo, isso não me faz falta, não mais. Além disso, são 28 anos, tempo suficiente para fazer com que tudo isso tivesse se tornado uma lembrança amorfa e insípida.

Mas aquele maldito Brasil x Itália de 5 de julho de 1982 não é apenas um jogo de futebol, nunca será. E agora, depois de perceber como fui capaz de fazer papel de idiota, eu tenho a certeza de que jamais vou conseguir ver aquele jogo como veria novamente qualquer outro. Ainda fico angustiado por não entender como o Brasil continuou deixando Paolo Rossi livre, em vez de fazer com ele o que Gentile tinha feito com Zico — sem bater tanto, claro. O ódio ao camisa 20 da Itália continua; tambem a Serginho que perdia gols feitos; a Cerezzo que apesar de craque errou feio como Clodoaldo em 70, mas que não conseguiu se recuperar e ainda errou mais uma vez; ao juiz filho da puta que não deu um pênalti óbvio demais. E a cada bola chutada para o gol me peguei torcendo para que ela entrasse, que talvez ainda houvesse uma chance de mudar a história, que aquilo estava acontecendo novamnete naquele momento e tínhamos finalmente a nossa chance de redenção.

Mas a bola nunca entrou, e o Brasil perdeu de novo para a Itália por 3 a 2, três gols de Paolo Rossi

Aquela é a seleção dos meus sonhos, a melhor seleção cujos jogos eu vi. Não vi os de 1958 nem de 1962, não posso falar deles. Mas vi todos os jogos do Brasil na Copa de 1970, e apesar de reconhecer o talento absurdo daquele time — um time com Pelé, Tostão, Gerson, Rivelino e Jairzinho? Pelo amor de Deus –, eu não vejo no seu futebol tanta beleza de conjunto, tanta perfeição quanto pude ver na seleção de 1982. Aquele time tinha o mesmo carinho pela bola que a gente vê na Copa de 1970, mas era ainda melhor porque o futebol tinha evoluído, tinha ficado mais rápido, e porque o time inteiro jogava com uma harmonia que eu nunca mais veria. Diziam e dizem que aquele time jogava por música, e é verdade. Que time lindo Telê montou; e quem não viu aquela seleção jogar não sabe o que é futebol, e nunca saberá, não importa quantos campeonatos brasileiros, italianos ou espanhóis assista.

Tem gente que diz que se o Brasil tivesse ganhado aquele jogo a história do futebol seria diferente, o jogo não teria ficado tão feio. Eu tenho minhas dúvidas: a evolução do futebol independe de qual seleção ganhou tal Copa. O futebol seria o que é hoje independente de uma vitória brasileira. O Brasil ganhou em 1958, 1962 e 1970 e nem por isso o futebol europeu mundial virou uma beleza de se ver.

Mas a minha história seria diferente se o Brasil tivesse vencido aquele jogo e aquela copa. E eu certamente não ficaria, em 2010, gritando feito um idiota diante de um jogo que aconteceu há 28 anos.