O triste fim do futebol brasileiro

A quase derrota do Brasil ante o Paraguai anteontem foi melancólica. Talvez mais melancólica para mim, que lembro de um Brasil e Paraguai em 1979 como um dos primeiros jogos da Seleção Brasileira a que assisti.

Mais melancólica, no entanto, foi a certeza de que o futebol brasileiro acabou.

Não é pelo 7 a 1, nem pelo futebol feio ao mesmo tempo que ineficaz que se tornou a marca de um time que um dia “jogou por música”. Esses são apenas sintomas tardios. O futebol brasileiro vive já há muito tempo uma lenta agonia, cujo fim parece ser a redundância irreversível do antes considerado o melhor futebol do mundo.

As pessoas buscam causas aqui e ali. Criticam a corrupção endêmica na CBF, a velhice tática dos técnicos, a mudança estrutural do próprio futebol. Claro que todas essas mazelas contribuem, e muito, para deteriorar essa situação. Mas nada disso é razão suficiente.

A CBF em 1982 não era mais honesta que em 2016 — a única diferença era de escala. As concepções táticas atuais dos técnicos não são tão diferentes das de suas contrapartes europeias. E embora tenhamos hoje a impressão desconfortável de que somos um cachorro velho que não aprende os novos truques que os outros cachorros aprenderam, quem acha que o futebol mudou a ponto de se tornar realmente diferente deveria assistir ao documentário “Isto é Pelé”. Nele o ex-namorado da Xuxa menciona, em 1974, como o futebol tinha mudado desde 1958: mais rápido, menos espaços, mais aplicação tática — exatamente o mesmo diagnóstico que se faz agora.

Se eu fosse procurar uma culpada para servir de bode expiatório seria a Lei Pelé. E é no mínimo irônico que uma lei que deu dignidade ao ofício de jogador, e que leva o nome do símbolo da melhor fase do ludopédio pátrio, esteja destruindo o futebol brasileiro.

Não é que ela seja intrinsecamente má. Quando se lembra que Garricha deixou de ganhar um aumento porque um dos cartolas do Botafogo não admitia que um jogador ganhasse mais que um engenheiro como ele, não há como se opor à lei. Mas seus efeitos colaterais foram perversos.

Ao tirar dos clubes o controle sobre os destinos dos jogadores, a Lei Pelé tornou inviável a criação de grandes times como os do passado. Não é apenas o fato de que clubes não investem mais em jogadores porque sabem que na temporada seguinte eles estarão em outro time; é porque não têm mais condições de garantir que um time permaneça o mesmo por mais de um ano, e se perdem no labirinto complexo de negociações e renegociações em que cada um leva uma fatia do dinheiro, às expensas do time. Um time como o Flamengo do início dos anos 80 não é mais possível.

E sem grandes times, estáveis, não há grande Seleção Brasileira.

Até os primeiros anos depois do início da debandada geral dos jogadores brasileiros para a Europa, cada escrete canarinho era baseada nos melhores times de sua época. Em 1982, por exemplo, eram o Flamengo e o São Paulo; em 1962 e 1970, o Botafogo e o Santos.

Eram jogadores acostumados a jogar juntos. Conheciam seus companheiros de time, sabiam o que podiam esperar de cada um deles. E também eram acostumados a jogar uns contra os outros, o que fazia com que também conhecessem seus estilos, suas características. Com bastante tempo de preparação e aclimatação na velha e boa Toca da Raposa, era relativamente fácil formar um time entrosado e eficiente.

Era isso que fazia o Brasil o dono do melhor futebol. Não era o número de Copas conquistadas: era a certeza de que se teria, mesmo na derrota, um futebol com personalidade e um mínimo de qualidade. Eram os tempos em que o pior Brasil era infinitamente superior ao melhor Paraguai.

Em 1990 a Seleção tinha se tornado uma versão esportiva da Legião Estrangeira; e apenas Careca e Alemão jogavam juntos, no Napoli. Já naquele ano dava para perceber a diferença de qualidade em relação às Copas anteriores. Mas ainda havia um tempo relativamente grande de concentração, e embora claramente decadente a coisa ainda se sustentava porque, bem ou mal, os jogadores eram formados no Brasil. Iam para a Europa tarde, normalmente depois de consagrados na Seleção.

A Lei Pelé, acompanhando a evolução do mercado, pegou esse estado de coisas e o tornou insustentável. Indo cada vez mais cedo para o exterior — há dezenas, centenas de jogadores brasileiros mundo afora que sequer chegaram a jogar profissionalmente no Brasil —, eles simplesmente não conhecem uns aos outros. Convocados, trazem estilos de jogo diferentes entre si, baseados no modelo europeu. Alie a isso o tempo cada vez mais exíguo de preparação, e então pode-se compreender o 7 a 1. É impossível montar um time realmente bom dessa forma. O resultado é a dependência enorme do talento individual de cada um — que, por sua vez, precisa do suporte do grupo para se realizar. Como esse tal de grupo mal existe, o resultado é um jogo como o de anteontem.

A tragédia estava anunciada há muito tempo.

Talvez haja uma possibilidade de recuperação. Se não pode nem deve revogar a Lei Pelé, a CBF poderia determinar que apenas jogadores que atuem no Brasil sejam convocados. Talvez isso pudesse forçar ao menos um adiamento da emigração; na pior das hipóteses, pode-se perder em talento, mas ganha-se em entrosamento e na redefinição de um estilo próprio, adequado aos novos tempos.

Pode até parecer uma solução radical, e talvez nem seja suficiente. Mas qualquer coisa é melhor que o modelo atual.

Infelizmente, essa solução não vai ser tomada. De qualquer forma, o problema real está nos mecanismos do mercado, e contra eles não há remédio. E por isso é possível sair pelo meio da rua bradando em desespero que o futebol brasileiro acabou, que o futuro lhe reserva apenas sua cada vez mais rápida decadência à irrelevância.

Quem nasceu entre o final dos anos 60 e início dos 70 cresceu sob a égide do tricampeonato, ainda ouvindo os ecos de um tempo em que Pelé e Garrincha assombravam o mundo. Mesmo passando 24 anos sem ganhar uma Copa, sabíamos que só nos revoltávamos com isso porque acreditávamos que estávamos muito acima do resto do futebol mundial; uma Copa era um direito natural do melhor futebol do mundo. Tínhamos consciência de quem éramos, e essa consciência nos definia.

Não nos define mais.

Um certo lamento feminino

O Hermenauta me manda um texto da Ruth Manus, publicado há algum tempo no Estadão, em que ela lamenta a triste sorte das mulheres hoje em dia, sonhando com um homem inexistente que descreva assim a mulher dos seus sonhos:

Ela tem que trabalhar e estudar muito, ter uma caixa de e-mails sempre lotada. Os pés devem ter calos e bolhas porque ela anda muito com sapatos de salto, pra lá e pra cá.

Ela deve ser independente e fazer o que ela bem entende com o próprio salário: comprar uma bolsa cara, doar para um projeto social, fazer uma viagem sozinha pelo leste europeu. Precisa dirigir bem e entender de imposto de renda.

Cozinhar? Não precisa! Tem um certo charme em errar até no arroz. Não precisa ser sarada, porque não dá tempo de fazer tudo o que ela faz e malhar.

Mas acima de tudo: ela tem que ser segura de si e não querer depender de mim, nem de ninguém.

A colunista olha em volta e não encontra esse homem. A culpa é, em última análise, da sociedade, esse ente indefinível que cria homens que fogem de mulheres independentes. Reclama que não ouviu esse discurso de nenhum homem. “Nem mesmo parte dele. Vai ver que é por isso que estou solteira aqui, na luta.”

Vamos desconsiderar o primeiro parágrafo que só serve para ambientar a situação, a besteira que é alguém sonhar com uma mulher assim. Como seria uma besteira uma mulher sonhar com um homem que trabalhe 16 horas por dia, que viva respondendo a emails ou telefonemas de trabalho extemporâneos e que tenha que fazer serão — com ou sem a secretária — dia sim, dia não. Se é para sonhar, vamos sonhar direito.

Vamos desconsiderar também o fato de que a última sentença parece indicar que tudo isso é apenas um grande e elaborado lamento por não ter um homem para chamar de seu. O fato é que eu poderia fazer esse discurso, se isso a confortasse. Casado algumas vezes, olho para trás e vejo que nenhuma de minhas mulheres se encaixa no perfil que ela acha que os homens querem. Cozinho melhor que elas; todas tiveram trajetória acadêmica melhor que a minha; a maior parte teve, sim, subordinados em algum momento da vida. Mas isso não é sobre elas, é sobre a inexistência de homens que admitam mulheres que não dependam deles. Talvez por isso, por comparar a minha própria trajetória com a da moça descrita no texto, fiquei me perguntando de que mundo fala a colunista.

Pistas vêm mais adiante. Ela fala da educação que recebeu, dos cursos, do incentivo entusiasmado dos pais para que ela desenvolvesse seu potencial e garantisse independência. Indica também uma mulher bem-sucedida. A combinação específica de salto alto e overload de e-mails (mais adiante ela menciona subordinados) indica uma mulher que certamente não é nem vendedora nem operadora de telemarketing.

O primeiro problema do texto está aí. Ela descreve o mundo quase idílico da classe média — a velha, não a nova. É o mundo daqueles cujos pais lhes possibilitaram (geralmente com pai e mãe trabalhando em tempo integral) acesso a oportunidades variadas em sua formação. Fala daquela parte abençoada da sociedade cujas necessidades básicas, e boa parte de suas aspirações, já são atendidas — justamente porque uma geração anterior de mulheres se sacrificou para garanti-las. O mundo sofisticado daqueles que, em vez de um feriadão na Praia do Forte ou até mesmo quatro noites em Paris pela CVC, almeja uma viagem para o Leste Europeu.

Talvez se ela olhasse para o mundo das comerciárias, das funcionárias públicas, das professoras, visse um mundo levemente diferente. E talvez ela aventasse a possibilidade que esse mundo de homens querendo dondocas dependentes e ignorantes aconteça apenas nas vidas dos super-ricos; nas dos mortais reles, coitados, isso é impossível.

Nesse mundo, as pessoas não apenas precisam trabalhar: elas esperam que as outras trabalhem, também. E nesse mundo, ao que parece a maior parte das mulheres não está preocupada com os problemas que parecem afligir a personagem do texto da Ruth Manus; ou porque já têm o seu merecido quinhão ou porque simplesmente têm mais o que fazer.

Claro que há homens como os que povoam os pesadelos da Ruth Manus. Há piores, na verdade. Esses bichos costumam vir em todos os tipos e cores. Há moços antigos assim e moços modernos, rapazes que querem filhos e rapazes que não os querem, senhores que se pudessem prenderiam a mulher em casa e senhores que dividem a mulher graciosamente com outros, cavalheiros que ajudam em casa e cavalheiros que se especializam na doce arte da gigolagem.

Mas há muito tempo o homem que se vê como provedor único da casa, senhor absoluto da família e da mulher mantida em rédeas curtas, deixou de ser a norma, ou mesmo parte significativa. Não porque eles quisessem ou deixassem de querer, que isso é irrelevante: mas porque a necessidade os obrigou.

A entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho a partir da II Guerra alterou, aos poucos mas para sempre, as configurações familiares no mundo inteiro. E assim como a classe média passou a se condoer da situação das empregadas domésticas a partir do momento em que não precisou mais delas — ou, mais acuradamente, não pôde mais mantê-las —, a grande maioria das famílias passou a tomar como garantido o fato de que todos precisam trabalhar para garantir padrões de vida mais ou menos adequados às suas aspirações.

A colunista parece ver seus problemas como resultado do machismo inculcado nos homens desde sempre. Mas certamente não é nessa esfera que está o grande problema causado pelo machismo, pela maneira como a sociedade educou seus varões, e nem vamos falar aqui de outros ainda mais graves, como agressões, disparidades salariais, essas coisas. Aquele tipo de problema é mais facilmente visto nas famílias com filhos, em que normalmente a mulher acaba sobrecarregada. Mas não é disso que o artigo trata.

De vez em quando se vê por aí textos em que mulheres tentam fazer passar suas carências e preocupações idiossincráticas por feminismo, ou ao menos pelo diagnóstico de um problema universal feminino. Esse é um deles. Tenho a impressão de que se essa moça fizesse uma pesquisa rápida e procurasse ver com quem os homens que poderiam interessá-la estão (aqueles comprometidos e satisfeitos com isso, claro), teria uma surpresa desagradável. O mais provável é que os encontrasse com mulheres que incorporassem, ao menos em parte, os predicados descritos no início do texto.

Relações interpessoais são sempre complicadas. E os anos que passam me fazem desconfiar cada vez mais que grande parte desses problemas se devem a desencontros. Mas nesse caso específico, a Manus personifica as reclamações não de homens, mas das mulheres que acham que a vida lhes passou uma rasteira e não lhes deu de presente um conto de fadas moderno. Não parece haver muitos homens por aí lamentando que as mulheres se emanciparam e por isso eles estão solteiros, apesar do MBA em Harvard que ostentam no currículo, apenas porque não encontram mais amélias submissas como antigamente. E é isso que faz desse texto pouco mais que o lamento de uma moça bem sucedida de classe média reclamando que a educação primorosa que teve não lhe serviu para o que era mais importante: arranjar um marido.

Pourquoi je suis Charlie

O que mais tem me impressionado nas reações de parte do pessoal que comenta nas redes sociais e nos meios de comunicação sobre a chacina da redação da Charlie Hebdo por fanáticos fundamentalistas islâmicos não é a má fé e a ignorância visíveis em boa parte delas. É, principalmente, a prontidão com que esta sociedade está disposta a relativizar e mesmo abdicar de um direito básico da civilização ocidental: o direito de expressão.

A ignorância presente nessas reações pôde ser vista quando milhares de pessoas que jamais ouviram falar antes da Charlie Hebdo tomaram posições imediatamente. Sem conhecer sua história, definiram por ouvir dizer que a Charlie era racista, etc., etc. Em um exemplo de um traço curioso da humanidade, amplificado pelo imediatismo das redes sociais, as pessoas parecem sentir que precisam tomar posições radicais e se pronunciar sobre qualquer coisa, mesmo que não tenham base nenhuma para isso.

Para isso tentam buscar as ferramentas que validem suas crenças. E é aí que está a má-fé: está, por exemplo, no destaque exclusivo das capas ofensivas ao Islã publicadas pela revista para fazê-la parecer anti-islâmica — ou, quando muito, de capas que ofendam outros valores caros a você ou ao seu grupo. Descartam então as capas que satirizaram e muitas vezes ofenderam Sarkozy, Hollande, judeus e cristãos, e assim têm a prova cabal de que sim, aqueles racistas miseráveis mereceram — se não a chacina, ao menos a reação indignada dos assassinos que se dizem inspirados no Islã, mais ou menos como certo pessoal relativiza a culpa do estupro dizendo que a moça não deveria usar aquele decote tão perdulário. “Ah, ele não respeita o Profeta. Vamos matar os cães infiéis!” Pessoalmente, não vejo muita diferença disso para “Ah, ele não respeita Lula. Vamos matá-lo!”

Chegaram a divulgar uma charge retratando a ministra francesa Christiane Taubira como uma macaca como prova do racismo da Charlie. A charge, na verdade, foi feita pela Minute, publicação de extrema-direita francesa. As pessoas que falsificaram a informação ou divulgaram-na, no entanto, não estão preocupadas com isso: precisam apenas de evidências, verdadeiras ou não, que embasem suas posições equivocadas.

Frei Leonardo Boff publicou dois artigos sobre o assunto. O primeiro foi repleto de platitudes como “não apoio a chacina” e “não vamos culpar todos os muçulmanos”; platitudes porque nenhum ser humano decente apoiou a chacina, e porque a condenação dos assassinos e a separação entre muçulmanos e terroristas foi feita por todos os líderes mundiais, principalmente pelas lideranças islâmicas. Rupert Murdoch foi contra a corrente, é verdade; mas Murdoch não conta porque é escória.

O segundo, em que republicou um artigo primeiro atribuído ao padre Antonio Piber, e posteriormente ao jornalista Rafo Saldanha, é diferente.

Num texto canalha, que acusa a Charlie de perseguir muçulmanos sem explicar o contexto em que o confronto se acirrou (em 2006 a revista republicou as charges do jornal Jyllands-Posten ridicularizando Maomé [charges que este blog republicou na época], como uma atitude de solidariedade e defesa do direito de expressão diante das ameaças que o jornal dinamarquês sofreu por causa delas; por isso passou a também receber ameaças que chegaram a um atentado em 2011 e culminaram na chacina da semana passada), ele classifica as charges do Charlie como “criminosas”. O adjetivo não é inesperado de um representante da velha e boa Igreja Católica Apostólica Romana: a tradição nos lembra que qualquer coisa desabonadora que se diga sobre ela é considerada criminosa.

Ele diz ainda que a Charlie Hebdo é covarde; o atentado de 2011 e a chacina da semana passada deveriam servir para que ele entendesse que, certos ou não, o que não faltou aos cartunistas da revista foi coragem. Se não bastam, o ataque ao Hamburger Morgenpost e principalmente os massacres hediondos que o Boko Haram vem conduzindo na Nigéria, e que só este ano mataram mais de 2 mil pessoas, deveriam ao menos explicar que muçulmanos são, sim, minoria na Europa, mas o alcance daquela minoria de fanáticos que se dizem inspirados por eles pode ser gigantesco. Enfrentá-los é indício de coragem, acima de tudo. Coragem que não tiveram, por exemplo, os meios de comunicação que borraram as capas da Charlie em suas reportagens sobre a chacina.

É triste que um homem que foi calado pela Igreja Católica hoje se resigne a amplificar seu ideário reacionário disfarçado de respeito ao diverso.

O trecho que mais incomoda, no entanto, e que é o que tem a ver com este post, é esse:

“O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?”

Essa eu posso responder, e nem preciso mencionar os problemas que, além da lógica e da decência, o sujeito tem com a ortografia: porque quando o cristianismo não era banalizado destruiu cietualmente todas as culturas ocidentais. Porque perseguiu, calou e assassinou milhões de pessoas, de Justiniano massacrando 30 mil pessoas no Hipódromo e fechando a Academia de Platão, passando pelos pogroms russos e pelo Holocausto, pelo massacre de Sabra e Chatila e chegando às explosões periódicas de clínicas de aborto nos EUA — sem esquecer, claro, de São Tomás de Torquemada e sua Santa Inquisição. É preciso porque, em nome de sua fé, o cristianismo extinguiu civilizações inteiras no Novo Mundo e persegue, até hoje, os adeptos das religiões africanas e brasileiras.

Charb disse, uma vez, que o Islã não era sagrado para ele, que ele não lhe devia respeito. Ele estava certo. Então vamos todos acabar com as nossas imagens de Deus barbudinho na nuvem porque o judaísmo não permite representações do Bambambam? Não podemos dizer que Jesus é filho do Boto porque os cristãos se ofenderão? Se Maomé, Jesus ou Jeová são sagrados para eles, ótimo: eles que respeitem e estabeleçam as regras rígidas que quiserem para os seus fiéis. Mas não se pode exigir que os outros sigam os mesmos padrões.

Paradoxalmente, em um mundo cada vez mais multicultural, é apenas o direito à irreverência em relação às outras religiões que garante o direito ao exercício da sua. O contrário é o totalitarismo que vimos durante o auge do domínio católico e vemos hoje no mundo islâmico.

Por isso, uma das maiores conquistas das sociedades ocidentais foi garantir o direito de expressão. O direito a falar o que você pensa, sem medo de ser morto por isso. Esse direito dá a você a responsabilidade pelo que fala, e só a você. À sociedade, reserva os mecanismos sociais para tornar o seu discurso irrelevante. (O Sergio Leo deu o link para um artigo instigante de David Brooks no New York Times sobre o tema: “I am not Charlie Hebdo”.)

É o exercício desse direito que possibilita, por exemplo, que neo-nazistas saiam hoje em passeatas pelas ruas. Sempre conhecemos a ideologia nazista, e pelo menos há 70 anos já sabemos do que são capazes. Cabe à sociedade combater suas ideias: mas não é calando-os que vamos conseguir isso. É justamente permitir que eles marchem com suas suásticas ridículas e suas ideias canalhas que nos faz melhores que eles.

Acima de tudo, e essa é a verdadeira questão, é muito fácil defender o direito de expressão daqueles que não incomodam, daqueles que só expressam aquilo que já ouvi chamar de “as ideias certas”. Isso não é defesa de um direito, é a defesa pura e simples de um interesse individual: é aquilo que você mesmo defenderia. Não há nenhum mérito nisso. Você defende a si mesmo.

É muito fácil, por exemplo, defender a liberdade de expressão usando uma tirinha mediocremente chata como aquela do Armandinho. Bons sentimentos não são alvo de pressão, não são vítimas de censura. Todo mundo gosta do bonitinho ou do conformista. Ninguém censurou, por exemplo, os elogios à ditadura militar brasileira ou ao regime de Pinochet. No mundo desses fundamentalistas fanáticos, ninguém mata alguém por dizer Allāhu Akbar.

Difícil é defender o direito do outro falar aquilo que nos desagrada. Como disse um biógrafo de Voltaire, numa frase erroneamente atribuída ao seu biografado, “estou em desacordo com cada uma de suas palavras, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”. Esse é o verdadeiro desafio.

É bizarra a ideia de que alguém admita viver em um mundo em que há temas em que não pode falar — não porque não ache que deva, mas porque não permitem. É por isso que o verdadeiro desafio sempre esteve em garantir à Charlie o direito de fazer humor como quer. Agressivo, sim. Ofensivo, se necessário. É nisso que consiste o direito de expressão, e em mais nada. E é triste ver que parte da sociedade brasileira falhou diante desse desafio.

Normalmente eu não diria que sou Charlie. Porque não vejo graça em muitas de suas piadas — para mim pecado maior que a eventual ofensa — e, sim, considero algumas delas ofensivas e desnecessárias para o meu gosto. Mas hoje ser Charlie quer dizer, acima de tudo, respeitar e defender o seu direito de publicá-las. Diz respeito a tomar uma posição clara em relação ao direito de expressão, reafirmá-lo como um direito universal inalienável. Hoje, relativizar a morte dos cartunistas da Charlie, culpá-los pelo seu destino, é dar alguma razão àqueles que os mataram, é dizer sim a esse tipo de violência.

E por isso eu sou, sim, Charlie.

Abercrombie, Fitch e os idiotas

Uma campanha diferente foi deflagrada semana passada no Brasil, seguindo os moldes de campanha semelhante nos Estados Unidos. É uma resposta à declaração de Mike Jeffries, dono da marca Abercrombie & Fitch, de que não faz roupas para gordos porque quer apenas gente descolada e invejável usando seu produto.

Para mostrar o quão inadequadas as pessoas consideraram essas declarações, grupos nos EUA e aqui resolveram doar roupas da marca para mendigos, em protesto à discriminação e ao preconceito de Jeffries.

Essa campanha é uma das coisas mais idiotas e hipócritas que vi em muito tempo, e é prova cabal da imbecilidade generalizada neste início de século.

Seu problema central é que a Abercrombie & Fitch tem o direito de focar seu produto no target que quiser. Se não quer vender para gordos, problema dela. Mas ela só faz isso — abdicar de um nicho em crescimento rápido e constante — porque funciona, porque é assim que o rebanho age: ele está disposto a pagar um ágio bem razoável por uma simples imagem, e nada mais que isso.

O erro do dono da Abercrombie não foi ser canalha — até porque não fazer roupa para gordos não é canalhice, é opção de mercado, assim como não é canalhice da Chanel não fazer roupas para pobres. Seu erro foi explicar a lógica do que faz. Numa sociedade cada vez mais hipócrita, que transforma uma alucinada como a Angelina Jolie em heroína, você pode fazer o que quiser, desde que não assuma publicamente.

A Abercrombie & Fitch não é uma grife de preços excessivamente exorbitantes. Segundo dizem, suas camisas custam em torno de 80 reais. São caras para o que realmente valem, mas não são inacessíveis (parece ser, por exemplo, a marca preferida do bom Nissim Ourfali — que é magro). É uma roupa para a classe média metida a besta. Mas isso é o beabá da propaganda: posicione bem o seu produto, faça-o parecer melhor do que é, e eles virão até você.

O posicionamento da Abercrombie & Fitch é válido do ponto de vista do mercado. Funciona porque entende o comportamento da humanidade. Mas as mesmas pessoas que compram, ou gostariam de comprar, suas roupas por serem pretensamente elitistas não admitem que ela assuma sua postura, porque isso as forçaria a admitir que esses também são os seus valores.

Em vez de protestar, as pessoas deviam era procurar entender o que faz a marca se posicionar dessa forma, esnobando a legião de gordinhos que atravancam as filas do McDonald’s, e entender o que as faz desejar uma camiseta comum com uns retalhos costurados em cima. Mas é difícil que façam, porque não iam gostar muito das conclusões. Assim como Mike Jeffries, elas também querem roupas que não sirvam em gordos e que façam delas, automaticamente, pessoas mais “cool” do que jamais conseguiriam ser sem ajuda. É por isso que tem coisas na vida que a gente simplesmente não deve falar: este é um século que recompensa a hipocrisia e pune a honestidade.

Mas é a campanha em si, nascida nos EUA, que me incomoda — ao resto já estou me acostumando, anos exposto ao Facebook me acostumaram a esse macaquear impostor. Me incomoda não apenas porque esse pessoal não passa muito de um bando de idiotas fúteis que se mobiliza para brigar com uma marca direcionada a gente que se pretende bonita, magra e rica e, portanto, ignorada pela grande maioria da humanidade. Mas porque a própria ação é ainda mais elitista que a Abercrombie & Fitch.

O foco aqui não é o bem-estar desse pessoal que está no extremo oposto do público-alvo da marca: é só protestar contra o posicionamento assumido por ela, diminuindo seu valor ao associá-la a mendigos. O recado é simples: “Vocês não são ‘cool’ porque mendigos vestem suas camisas. Mendigos, ora. E isso me faz mais ‘cool’ que vocês”

Pelo preço que se compra uma camisa da Abercrombie & Fitch o sujeito que está fazendo essa campanha poderia comprar alguns cobertores para proteger os mendigos paulistanos no frio que se aproxima. Era isso que o faria melhor que o Mike Jefrries, não um protesto que humilha seres humanos destituídos, utilizando-os apenas para desvalorizar uma marca de roupas.

Isso é o mais triste nesse protesto: esses assim chamados militantes, com sua “ira justa” de classe média estultificada, dão mais valor à marca que à dignidade das pessoas. Mas quem está preocupado com eles? Mendigos não são tão importantes quanto uma marca que não gosta de gordos, nem quanto a mídia gratuita que se pode conseguir às suas custas. Mas pelo menos agora eles dormem na rua vestindo uma camisa da Abercrombie & Fitch.

O século XXI

O século XXI é isso: o arroz simples que você comeu a vida inteira, que milhões de brasileiros e brasileiras cozinham todos os dias sem sequer pensar no assunto, que sempre foi a parte mais fácil do almoço, agora se chama pilaf e tem história, tem um contexto, e se sofisticou para continuar sendo, no fundo, o arroz simples que você comeu a vida inteira.

As espetaculares oportunidades aracnídeas desperdiçadas

Só o Homem-Aranha para me tirar da minha aposentadoria como frequentador de cinemas.

Acho que todo mundo que escreve sobre filmes de super-heróis deveria lembrar de uma coisa antes: eles estão aí já há quase um século, e fazem parte do imaginário das pessoas de maneiras mais profundas do que se imagina. Personagens como Bruce Wayne, Peter Parker ou Mary Jane Watson são mais familiares à maioria da humanidade do que nomes como Bazarov, De Rubempré, Vronski ou Murdstone. No entanto, se ninguém em sã consciência respeitaria um filme em que o sr. Pickwick se tornasse parte de algo como a Liga Extraordinária, ou que transformasse Julien Sorel em um super-herói atlético, as pessoas parecem aceitar candidamente as barbaridades que se faz com as histórias dos super-heróis.

Resumindo a história original em algumas linhas: o secundarista Peter Parker é uma dessas vítimas preferenciais de bullying que é picado por uma aranha radioativa e, em vez de câncer, desenvolve superpoderes. Ao deixar escapar um bandido que posteriormente mata seu tio, ele descobre que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Passa a atuar como um vigilante uniformizado, combatendo principalmente supervilões como o Abutre e Duende Verde enquanto tira fotos de si mesmo para um jornal chamado Clarim Diário, onde tem um rápido namoro com Betty Brant. Parker entra na universidade e conhece Gwen Stacy, que virá a ser sua namorada, e também Mary Jane Watson e Harry Osborn, seu futuro melhor amigo. Harry é filho do Duende Verde, que causa a morte de Gwen Stacy e morre em seguida. Parker então começa a namorar Mary Jane, com quem se casará mais tardes, até que os editores percebam a grande cagada que é casar um herói e desfaçam tudo.

Basicamente, essa foi a história do Aranha durante 50 anos. O que faz produtores de cinema quererem mudá-la é um mistério para mim. Não apenas por causa do seu tempo de serviço; mas porque esse é um excelente argumento, que pode ser desenvolvido de maneiras fascinantes.

Por exemplo, eu faria uma trilogia diferente (alguém um dia pode me explicar por que Hollywood desenvolveu essa tara em trilogias? Eu não consigo achar explicações razoáveis). Filme 1: Conhecemos Peter Parker, o babaca. Vítima eterna dos colegas, desprezado pelas meninas — com exceção de Liz Allan, o que ele não percebe. Parker é picado por uma aranha, tenta ganhar a vida como um Hulk Hogan genérico, mas deixa escapar o bandido que mata seu tio. Para purgar seu pecado vira herói, e aparece então seu primeiro grande inimigo, o Abutre (na verdade o primeiro vilão do Aranha foi o Camaleão, mas ele não daria um personagem adequado ao cinema). Parker começa a tirar fotos de si mesmo para ajudar a sustentar a casa, que vende para o Clarim Diário, onde conhece não apenas J. J. Jameson — cujo filho salva e, por isso, ganha sua inimizade eterna –, mas também Betty Brant, com quem passa a ter uma relação complicada, estabelecendo um pequeno triângulo confuso com Liz Allan. O filme termina com o Aranha derrotando o Abutre, mas perdendo suas mulheres. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 2: Parker entra na faculdade. Conhece Gwen Stacy e Harry Osborn, e também Mary Jane Watson. Muita tensão sexual entre Parker e Stacy, mal resolvida. Aparece um novo vilão, o dr. Octopus. Tia May adoece, Parker se vira para tratá-la, a vida se torna um inferno. Jameson consegue fazer com que o Aranha seja procurado pela polícia. Parker finalmente começa a namorar Gwen Stacy, mas logo depois seu pai (que já tinha deduzido a identidade secreta de Parker) morre ao salvar uma criança durante uma luta entre o Aranha e o Octopus. Ele pede para que Parker cuide de Gwen, mas ela agora tem horror ao Aranha, complicando a vida do nosso herói. Ah, sim: no final o Aranha derrota o Octopus, mas eis que surge um tal de Duende Verde. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 3: esse seria o filme “montanha russa”, o clímax em que a base delineada no filme anterior teria como cobertura uma ação assustadora. Agora o Duende Verde se torna um grande problema para o Aranha, que mora com Harry Osborn. O namoro com Gwen fica cada vez mais complicado. Parker enfrenta novos vilões (à escolha do freguês: pode ser o Kraven, pode ser o Rei do Crime ou o Electro, mas eu recomendaria muito o Escorpião). Depois de derrotá-los, eis que reaparece o Duende e mata Gwen Stacy. Ele morre num confronto com o Aranha, que termina o filme de maneira bem filosófica no Empire State. Sabe como é: o Aranha sempre se ferra no final.

Digam o que quiserem: eu gosto mais da minha trilogia do que dos filmes do Aranha feitos até agora. O engraçado é que esses filmes não mudam nada em relação à história tradicional dos personagens; são basicamente os dez primeiros anos das revistas do Aranha condensados em seis horas. Infelizmente, essa nova trilogia só existe na minha cabeça, e o que eu queria comentar mesmo era esse filme novo do Aranha.

Não é possível assistir a “O Espetacular Homem-Aranha” sem compará-lo à trilogia de Sam Raimi. Junto com os dois primeiros Supermen, de 1978 e 1980, o “Homem-Aranha 2” é o melhor filme de super-heróis já feito, e mesmo os defeitos que tinha foram herdados do filme inicial: erraram ao colocar Mary Jane na história desde o começo — e ainda por cima escolheram a Mary Jane errada. A decisão de utilizar uma teia orgânica gerou um comentário excelente do Henrique Plácido aqui neste blog: “Se é pra ser anatomicamente correto, ele tinha que soltar teia do cu”. Robbie Robertson era interpretado pelo ator errado, assim como ambos os Osborns, e o uniforme do Duende Verde parecia contrabandeado de um episódio dos Power Rangers. Mas o resto foi excelente. De J. J. Jameson à tia May, o elenco era perfeitamente adequado — Alfred Molina como o Dr. Octopus é inesquecível. Além disso, o filme mostrava o máximo possível de respeito ao uniforme original, em um tempo em que virtualmente nenhum uniforme é deixado intacto — olha o Batman aí, que depois de 7 filmes ainda não aprendeu a fazer seu uniforme.

Nessa comparação é fácil perceber que “O Espetacular Homem-Aranha” acaba sendo um filme contraditório. De um lado, umas poucas melhorias bem vindas; do outro, um amontoado de boas oportunidades perdidas, com boas ideias sendo jogadas fora por um roteiro que, se não é ruim, não amarra todas as pontas.

A principal melhoria está nos efeitos especiais. 10 anos fazem muita diferença, e hoje eles estão próximos à perfeição. O resultado é fluido, realístico. O elenco é surpreendentemente bom, e Andrew Garfield é uma excelente surpresa, apesar da estranheza inicial causada por sua carinha enjoada de menino punk punheteiro viciado em Rivotril, adequado ao público de “Crepúsculo”. Seu desempenho impressiona porque, ao contrário que agora andam dizendo, Tobey McGuire foi um excelente Peter Parker. Mais otário até do que o Parker original, McGuire resgatava o seu espírito, aquele dos estertores extemporâneos da década de 50 — o sujeito que enquanto vencia grandes vilões não conseguia colocar a mão embaixo do sutiã da namorada. No entanto também passava uma certa passividade; Garfield transmite melhor a angústia e as contradições da adolescência e de um personagem dividido, dando nova vida ao personagem e iluminando facetas que andavam meio esquecidas.

Martin Sheen está adequado ao papel do tio Ben, embora um ator menos famoso fosse mais recomendável. Mas nem a pau que a Noviça Voadora pode ser a tia de Parker: Sally Field como tia May é uma escolha tão ruim quanto Kirsten Dunst para Mary Jane, talvez pior. Quanto ao capitão Stacy, o fato é que durante anos, desde que se começou a falar em um filme do Aranha, aí por 1990, eu tinha meus favoritos para o papel. Primeiro Ralph Bellamy, então ainda vivo; depois James Cromwell com sua altivez patrícia, ainda hoje minha opção preferencial para o papel. Mas Dennis Leary não faz feio como o personagem. Rhys Ifans, um excelente ator, está bem como o dr. Curt Connors. O único problema é que destruíram o personagem, ao tirar dele a mulher e o filho, o que possibilitava conflitos entre o reptiliano e o humano que davam grandeza e importância ao Lagarto.

Levar Parker de volta para a escola secundária foi uma escolha acertada, porque possibilita uma série de conflitos bem adequados ao público-alvo. No entanto é mal aproveitada, e o resultado é que tudo é excessivamente superficial. Parker sempre foi mais importante que o Aranha, e se compreendessem melhor isso poderiam evitar absurdos como a transformação de Flash Thompson em amiguinho do peito sem nenhuma explicação. Esse é o tipo de coisa que dá para fazer rapidamente: nas revistas, por exemplo, Parker e Harry Osborn vencem a antipatia inicial e se tornam amigos em exatamente cinco quadros. Se o filme não consegue fazer algo semelhante, é por pura incompetência.

O uniforme sofreu uma modernização desnecessária e, o pior, inadequada. E isso vai ser sempre incompreensível para mim. Eu entendo que algumas modificações — em nome principalmente das características técnicas do meio — às vezes são necessárias; daí porque as linhas de teia no uniforme do Aranha de Raimi mudaram de cor e ganharam relevo. Mas Batman: Dead End provou há muito tempo que é possível, sim, fazer um filme de ação respeitando o uniforme dos personagens. Isso talvez não incomode a maioria dos espectadores: mas incomoda aqueles que, como eu, estão às voltas com o personagem há tempo demais.

O grande equívoco de “O Espetacular Homem-Aranha”, no entanto, é a maneira como trataram Gwen Stacy.

Gwen é um personagem que morreu há 40 anos, no que é uma das melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Sua ignorância a respeito da outra identidade do namorado gerou situações dramáticas interessantes que carregaram as histórias do Aranha durante alguns anos. No entanto, no filme ela não apenas conhece a identidade secreta o Homem-Aranha, como ainda o ajuda. No fim das contas, o filme a trata como os quadrinhos trataram Mary Jane depois de casada. É um desperdício enorme, quase vergonhoso, porque as possibilidades dramáticas, especialmente quando se faz um filme voltado para o público adolescente, são enormes. Dizem que isso foi feito para aproximar o filme de uma série alternativa do Aranha, a “Ultimate”. Pois é. Deve ser.

No fim das contas, o novo filme do Aranha fica apenas um pouco abaixo do primeiro filme, lançado dez anos atrás, com erros e acertos diferentes e perdendo a vantagem da novidade. Um filme razoável, com erros e acertos, nada mais que isso. Como aliás é uma boa história em quadrinhos.

Post para a Lucia Malla

O tubarão cabeça-chata é comum em todo o Brasil, em especial na costa nordestina, e mais especificamente no Ceará. Mede até 3 metros e meio e sua dieta é composta principalmente de surfistas pernambucanos. É considerada uma espécie alegre e amigável, e tem mania de contar piadas. Se ameaçado, costuma reagir com um “arre égua, macho!”.

Sobre esse pessoal que só gosta de matinho

Eu não gosto de militantes vegetarianos. Me dão preguiça, sempre deram. Mas de uns tempos para cá começam a incomodar.

A minha preguiça era principalmente estética, e obviamente não se aplica apenas aos militantes. Eu realmente não consigo compreender o que leva uma pessoa em sã consciência a abjurar o sabor do sangue que escorre de uma picanha mal passada, ou aquele fenômeno da natureza comparável à aurora boreal: aquilo que chamam de marmorização da carne de vitela. O bichinho, coitado, vai morrer de qualquer jeito, mais cedo ou mais tarde; que seja para vir parar na minha barriga. Eu sinceramente acho a vida dos vegetarianos mais pobre, e tenho pena deles por isso. É como se faltasse algo — uma costela, por exemplo. Vegetarianismo, para mim, não é consciência: é deformação de caráter.

Mas os militantes, aqueles que fazem de sua vida uma pregação constante, estão passando a me irritar. Talvez porque adquiriram mais e mais visibilidade; talvez porque, como acontece com virtualmente todo movimento, à medida que esse negócio de comer só mato vai se espalhando como metástase e tendo suas ideias mais aceitas, vai desenvolvendo também um certo tipo de proselitismo fundamentalista, uma certeza puritana de que só eles estão certos e que é dever sagrado de cada um levar a Boa Nova aos gentios, salvar o mundo dos meus pecados.

É basicamente a mesma certeza bovina de evangélicos e antitabagistas, sonhando com um mundo chato, sem sabor. A diferença está na aceitação e, principalmente, na composição social. Porque eu, pelo menos, não conheço vegetariano pobre: são sempre de classe média ou ricos. Não é à toa que esse negócio é mais forte na Europa, especialmente na sede do antigo Império Britânico. Vegetarianismo e suas variações são perversões de sociedade rica e autocomplacente, que acha que alimentos nascem em sacos de papel alumínio e que supermercados são chocadeiras de ovos orgânicos. Pobre — e aqui incluo a nova classe C — não pode se dar a esse luxo; precisa antes passar ao nível de comer aquilo que os vegetarianos, de barriga cheia, desprezam. Imagine o sujeito que mora no sertão do Piauí se dando ao desfrute de dispensar um bife de alcatra. Seria linchado pelos seus conterrâneos, e com razão.

Essas coisas — e as roupas feitas de fibras naturais, cultivadas no estilo príncipe Charles, em que se fala carinhosa e às vezes até libidinosamente com as plantas — são coisas de rico porque, se não fosse tudo isso a que esse pessoal hoje pode se dar ao luxo de virar as costas, a galinha de granja, a soja transgênica, mesmo os agrotóxicos que possibilitaram os aumentos constantes de safras e de áreas cultivadas, ao mesmo tempo em que barateavam os preços, a profecia de Malthus se teria cumprido já há algum tempo.

Que Deus abençoe as granjas e os frangos criados nelas. Antes delas, o Barão de Itararé dizia que quando pobre comia frango, um dos dois estava doente. Ou seja: foi esse frango criado em condições aparentemente desumanas, repleto de hormônios para que possa ser abatido o quanto antes, que possibilitou a inversão desse estado deletério das coisas. Sem isso, sem esse ganho de escala, frango continuaria sendo iguaria para poucos.

Talvez seja verdade o que dizem, que esses frangos fazem mal à saúde em longo prazo. Mas, se fazem, eu sou capaz de apostar que os pobres que hoje comem seu franguinho ensopado vão morrer mais felizes daqui a uns 30 anos do que aqueles que só tinham farinha e, eventualmente, jabá de jumento para comer e morreriam depois de amanhã.

Os militantes europeus que protestavam contra a soja transgênica no Brasil (num momento em que virtualmente todos os grandes produtores brasileiros já tinham aderido a ela, a propósito, e o processo já era irreversível) não ligam em subsidiar a sua agricultura cara e ineficiente em detrimento da agricultura dos países do terceiro mundo. São aqueles que podem dar mais de 25 euros num quilo de filé mignon (é o Allan quem me faz o favor de informar, e a ele sou eternamente grato; também me diz que a carne italiana não tem lá muito gosto, e minha admiração pela bota diminui um pouquinho). São os pobres coitados que, com paladar embotado e sustentados pela certeza messiânica de estarem sendo superiores à humanidade animalesca, já não sabem a diferença entre acém e filé mignon.

Dentre as perversões desse pessoal, uma em especial é curiosa: uma tendência tatibitate ao antropomorfismo, agregando emoções e qualidades humanas a animais, e tentando nos fazer crer que somos todos iguais, nós e os bichinhos. Vi há algum tempo uma dessas imagens de Facebook em que havia dois gráficos: uma com um desenho de um homem acima dos outros animais, outra com o homem no mesmo nível e uma pergunta, algo tipo “Dá para entender agora”?

É essa arrogância que é irritante (a única arrogância que toleramos é a nossa, afinal). Porque não é que a gente não entenda a maneira como eles pensam. A gente entende. Só que acha uma grande imbecilidade. É muito triste ter que dizer a um adulto que não, nós não somos iguais aos outros animais desde o momento em que amarramos uma lasca de sílex a um pedaço de pau, e passamos a transformar o mundo em que vivemos, em vez de apenas nos adaptarmos. Não é só uma questão de desejo. Ou melhor: somos diferentes desde a hora em que aprendemos a fazer fogo e cozinhamos a carne de um bichinho fofinho como um mamute para que ela ficasse mais macia.

Essa “superioridade” nos obriga a concessões, claro. Não se trata aqui de continuar a defender aquele modelo de consumo que viabilizou a evolução econômica do mundo e levou mais qualidade de vida para cada vez mais pessoas. O processo civilizatório custou caro ao planeta, claro; mas a questão não é voltar as costas a tudo isso, é saber como garantir essas conquistas. É saber se o mundo pode pagar de maneira permanente esses custos, e garantir as condições para isso.

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Há algumas semanas vi uma coisa no Facebook que me deixou meio bobo, meio descrente: o germe de uma campanha em prol da construção de um hospital veterinário público. É a classe média, velha e nova, sentindo o peso da ração e das vacinas no orçamento familiar. (Não duvido que daqui a pouco venham a pedir que as farmácias populares deem ração de graça.)

A saúde pública tem problemas muito graves: de gestão, de profissionais e de dinheiro. Vem melhorando nos últimos anos, universalizando-se aos poucos; mas só um gestor irresponsável e canalha teria a pachorra de dizer que ela funciona a contento. No entanto um grupo de gente doida acha que a situação dos cachorrinhos de madame e dos gatos que pouco a pouco vão se tornando os animais de estimação preferenciais de um mundo fragmentado, substituindo aos poucos as relações humanas, deve merecer a mesma atenção.

Eu gostaria de acreditar que esse pessoal que pede a um Estado problemático — que não consegue garantir saúde para todos os seus cidadãos — dinheiro para um hospital veterinário público jamais foi aos corredores de um pronto-socorro público de grande porte. Mas já há algum tempo acho que não faz diferença. Que é uma questão simples: é gente mais preocupada com os bichos bonitinhos que criam do que com pobres malcheirosos gemendo numa maca, no corredor de um hospital.

O que me assustou foi a tentativa de mobilização, a ideia imbecil de pressionar o Estado para que ele cuide dos seus poodles e yorkshires. É paradoxal que justamente essa capacidade de raciocínio, essa consciência de nossa existência e de nossa finitude que nos faz humanos traga dentro de si justamente o germe de sua autodestruição. É para isso que esse pessoal quer lutar? Por sorte o conceito de luta deles é diferente, consiste em dar likes em fotos no Facebook. Eu teria medo desse pessoal realmente organizado, porque algo neles me lembra o “Planeta dos Macacos”, com seus arremedos de civilização.