De como deixei de gostar de futebol

Como virtualmente todo brasileiro, eu gostava de futebol. Não gosto mais. Às vezes, no meio de uma conversa qualquer, perguntam por qual time eu torço, e me vejo forçado a responder que não torço por nenhum: sou flamenguista, é diferente. É sina, e das ruins.

Torcer por um time tem a ver com comunidade, com identidade de grupo, com tradições ancestrais e algum grau de atavismo — o mesmo atavismo que faz de mim flamenguista, embora seja bem provável que o fato de eu ter visto aquele time de 1981 ser campeão da Libertadores e do mundo ajude um pouco. Eu não sei se essas condições ainda existem ou são possíveis em um mundo em que o futebol se transformou, acima de tudo, em um negócio multimilionário. Tenho a impressão cada vez mais forte de que as pessoas não torcem mais por clubes, torcem por marcas — daí tanta gente torcendo pelos grandes times ricos da Europa. E para mim torcer pelo Barcelona ou pelo Manchester United, como essa meninada de hoje anda torcendo, é tão sem sentido quanto torcer pela Nike contra a Adidas, quanto colocar aquela maçãzinha ridícula no carro para dizer que tem um iPhone.

Para completar o quadro, para mim esse é um jogo cada vez mais feio. Ou pelo menos, cada vez mais sem graça. A evolução física e o aparentemente esgotamento tático do futebol fizeram do esporte bretão algo previsível, corrido demais. O jeito europeu de ver o futebol se impôs. Entre um menino alto e forte e um franzino mas habilidoso, é no forte que os times e empresários vão investir hoje, porque força física é cada vez mais importante. É como se escolhessem Dunga em vez de Zico, sempre.

Devo estar completamente errado em entender as coisas desse jeito, claro. Quem vê, quem ainda gosta genuinamente disso a que chamam futebol, fala maravilhas dos campeonatos tipo Champions League e quetais, tece elogios ao futebol moderno, fala em siglas estranhas como R9 e CR7, siglas que tenho dificuldade em decifrar. Eles devem ter razão e eu certamente estou errado, não vou nem tentar me justificar.

Porque não me importo mais. Cresci em um mundo que via no futebol brasileiro o epítome de um esporte transformado em arte, porque ele tinha redefinido possibilidades e estabelecido padrões ideais; uma época em que se podia dizer que o futebol fora inventado na Inglaterra e recriado no Brasil.

Cresci e aprendi a gostar de futebol vendo o Flamengo da virada dos anos 80. Aquilo para mim definiu o que era futebol: era o drible, a jogada imprevista, a surpresa, o carinho e o respeito à bola, e um conjunto se movendo harmoniosamente em busca de um objetivo. Eu vi Leandro jogar; e no entanto preciso me resignar a viver em um mundo que acha Cafu um craque. É difícil viver assim.

Lembro de um jogo de Edmundo no Palmeiras, aí pelo início dos anos 90. Ele tinha algum problema com um jogador do Corinthians, acho que Viola, e decidiu resolver ali. Deu-lhe um daqueles dribles humilhantes,  e em vez de seguir a jogada voltou para driblá-lo outra vez. E faria isso pelo resto do jogo, se àquela altura o resto do Corinthians não tivesse partido para cima dele. Há também a jogada clássica de Denílson na copa de 2002, dezenas de turcos grossos correndo atrás dele.

Garrincha não poderia jogar daquela forma hoje, porque a evolução tática do futebol não permite mais. Seria, como foi, um grande jogador: mas não teria a chance de enfileirar joões porque não se utiliza mais a marcação homem a homem. E se Garrincha não pode jogar eu não quero mais brincar. A bola não é minha e eu não posso parar o jogo, mas posso ir pra casa emburrado. É o que eu faço, deixando de gostar de futebol.

E por gostar cada vez menos, a cada minuto saltam à vista mais e mais detalhes irritantes. Eu, por exemplo, estou certo de que o futebol começou a morrer na Copa de 82, quando juízes deixaram de usar  o preto obrigatório; deu seus últimos suspiros quando os jogadores passaram a usar chuteiras de outra cor que não a preta; e teve seu cadáver vilipendiado no dia em que uma cretina criou uma camisa amarela e azul para o Flamengo.

Mais importante, para mim o futebol morre mais um pouco quando vejo jogadores receberem uma falta qualquer e rolarem infinitamente no chão como se tivessem quebrado suas pernas, como se a tíbia estivesse perfurando seu pulmão. Não é apenas Neymar; ele é apenas o exemplo mais patético. O que me salva é ver jogos antigos no YouTube; assim ainda posso ver Zico receber faltas duras, cair e levantar, como todos os outros jogadores daquele tempo. Mas hoje isso parece desonroso. Catimba é recurso para ser usado com parcimônia, se usado. Era milonga argentina que apenas ilustrava a nossa superioridade. Futebol não é isso. Não pode ser isso.

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Quando nasci, o país tinha orgulho de abrigar o maior estádio do mundo, aquele que fica a uma bala perdida da Mangueira e que foi projetado por ninguém menos que Rafael Galvão. Mas à medida que o tempo foi passando o Maracanã foi encolhendo. E num claro crime de vilipêndio de cadáver, sua última reforma o transformou na antítese do futebol brasileiro. Hoje, ali não cabem 80 mil pessoas, mas não é esse o problema. O problema é que, desses 80 mil tristes, nenhum deles estará na geral, porque geral é coisa que não existe nesse estádio europeu. O novo Maracanã, como tantos outros, é estádio para rico, e por isso desonra toda a tradição do futebol brasileiro. A verdade é que não existe, não pode existir futebol sem o geraldino, assistindo ao jogo em pé, sem camisa, sem dentes, com um radinho de pilha no ouvido e o coração na mão.

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Quase 60 anos depois, minha mãe ainda fala da raiva que tinha do Botafogo, do que era ir para o Maracanã ver o Flamengo perder, invariavelmente, para um dos melhores times que o país já viu. Descobri há pouco tempo que Zico compartilha essa raiva. Os dois são da mesma geração e iam para o Maracanã ver Garrincha humilhar o Flamengo.

Leandro, o maior lateral direito que vi jogar e um dos jogadores mais subestimados da história, tem outra raiva. Para ele, o importante mesmo é o Fla-Flu. Leandro faz parte de outra geração, a que viu a “Máquina” tricolor.

Eu faço parte de outra geração, cerca de 10 anos mais nova que Leandro. Cresci sem ver rival de verdade para o Flamengo no Rio de Janeiro, embora um ou outro time tenha tido uma boa fase (o Fluminense campeão brasileiro, ou o Vasco vice-campeão mundial). Eu posso me dar ao luxo de não ter raiva de time nenhum.

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A comparação de Pelé com Maradona sempre foi absurda para mim. Pelé, se precisasse, jogava até no gol. Era brilhante em absolutamente todos os fundamentos do futebol. E, se for necessário, as fotos ao lado mostram que não, Maradona não é maior que Pelé, em nenhum aspecto.

Também por isso, sempre achei que a pergunta que se pode fazer é se Zico era melhor que Maradona.

Se perguntam a Zico, ele responde que o melhor era Maradona, e explica por quê: Maradona podia ser menos completo, mas naquilo que fazia brilhava como ninguém. No entanto, no YouTube há alguns técnicos falando que preferem Zico, como Tite e Muricy Ramalho. Se eu fosse um técnico, também preferiria Zico a Maradona no meu time.

Maradona era genial, mas para mim tinha duas grandes limitações. Primeiro, era mais fácil ele fazer gol com a mão que com a perna esquerda. Mas o seu pior defeito, para mim, é que ele era fominha. Era um jogador genial, provavelmente o melhor que a Argentina já teve. Assim como Garrincha, ganhou uma copa para seu país. Mas ele jogava para si mesmo. Olhe o seu histórico e você vai ver que ele tinha mais títulos individuais (melhor jogador disso ou daquilo) do que títulos pra seus clubes ou seleção. É justamente o contrário de Zico, um meia que inclusive tem mais gols que Maradona.

Mas isso é coisa de 30 anos atrás. Agora tentam comparar Messi com Pelé. Por favor.

Messi é brilhante, mas não se compara sequer a Maradona. Messi é brilhante, e me lembra muito Zico jogando, mas os tempos são outros. Infelizmente, são tempos em que as pessoas parecem ter perdido os referenciais.

Minha geração não viu Pelé jogar. A lembrança mais antiga que tenho dele é, justamente, seu último jogo, encerrando a carreira no Cosmos. Mas eu sabia ler e, aparentemente, tinha bons referenciais e pontos de partida para julgamentos. Daí porque um flamenguista com vergonha na cara jamais diria que Júnior foi o melhor lateral esquerdo da história, como vejo hoje as pessoas falando de Marcelo.

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Nos últimos 20 anos, desde que vi os jogos do Brasil na Copa de 1970, eu alardeei uma certeza: a seleção de 82 foi a melhor de todos os tempos. Para mim, 82 combinava o carinho com a bola e um quase perfeito entrosamento coletivo com o jogo mais rápido que os novos tempos estavam trazendo. Fiquei sabendo há pouco tempo que João Saldanha também achava algo semelhante: que a seleção de 82 era melhor que a de 70.

Quero aproveitar o espaço para corrigir essa opinião: eu estava errado. Perdoe a minha ignorância, mas eu realmente estava errado.

A melhor seleção de todos os tempos, uma seleção que nunca será igualada porque os tempos não permitem mais, foi a de 1958.

Há algum tempo descobri no YouTube o jogo completo, que eu nunca tinha visto. E o que vi me impressionou. Eu conhecia, claro, os gols, a imagem de Didi voltando para o meio de campo com a bola debaixo do braço depois do primeiro gol da França, os gols belos, a perfeição de Pelé. Mas isso são detalhes, apenas. Se formos julgar alguém por detalhes, por trechos apenas, “melhores momentos”, até Piá pode ser um grande jogador.

Não retiro nada do que já disse sobre cada seleção posterior. A de 70 era genial e dispensa quaisquer defesas. A de 82 era impressionante e o futebol que jogava era absolutamente belo, jamais repetido por uma seleção nacional.

Mas em seu contexto histórico, em 1958, o desnível entre o Brasil e todas as outras seleções do mundo era intransponível.

As seleções de 70 e de 82 apresentaram ao mundo um futebol melhor, mais belo que os outros.  A de 58 apresentou ao mundo algo totalmente diferente. Apresentou uma maneira de jogar que ensinava o que era realmente bom àquele mundo deslumbrado com a Hungria de quatro anos antes. Pelé, Garrincha e Didi ensinaram ao mundo um novo esporte.

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Taffarel, Leandro, Domingos da Guia, Luís Pereira, Nilton Santos; Clodoaldo, Falcão, Zico, Pelé; Garrincha, Romário.

No banco, Gilmar, Djalma Santos, Oscar, Aldair, Roberto Carlos; Didi, Gerson, Zizinho, Ronaldinho Gaúcho; Ronaldo, Reinaldo.

E fim de papo, que eu não gosto mais desse negócio.

Os livros da moda

Você já notou que acabaram aqueles “livros da moda”?

Eu tenho uma lista deles. “Rumo à Estação Finlândia”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “1968: O Ano que Não Terminou”, “Minha Razão de Viver”, “Notícias do Planalto”, “Chatô: O Rei do Brasil”, “Estrela Solitária”. Livros que eram resenhados nas principais revistas nacionais, como a Veja, e que tornavam obrigatórios nas estantes das pessoas — tão mais obrigatórios quanto mais simples eram as estantes.

A fragmentação da mídia, a ascensão das redes sociais acabaram com eles. Dependendo do digital influencer, o livro que a namorada de um deles escreveu com pensamentos que ela julga inteligentes pode ter a mesma exposição que um hipotético inédito recém-descoberto de Balzac.

E com isso acaba também uma ponte, um ponto em comum entre as pessoas, uma razão para iniciar uma conversa com alguém, “Você leu o último do Fulano?”

É um mundo estranho, esse. Eu não gosto dele.

Ser turista em Salvador

De vez em quando dá umas vontades esquisitas, e dia desses deu uma mais esquisita ainda, a de ser turista na Bahia. De pegar um grupo de gente e sair me oferecendo a todo vendedor de souvenirs e badulaques e informações meia-boca, donzela fácil para os tantos e tantos cafetões da baianidade.

O mais perto que cheguei disso foi há muito tempo. Adolescente, passava pelo Pelourinho e via os grupos de turistas ouvindo atentamente um guia repetindo as informações que tinha decorado. Então eu parava por perto, como quem não quer nada, e ouvia o que eles tinham a dizer. “Aqui era a Faculdade de Medicina”, essas coisas, apontando as estátuas daquele prédio bonito que minha avó tinha me dito ser apenas o Nina Rodrigues.

Engraçado que nunca vi esses grupos na Avenida Sete, nunca vi ninguém dizendo àquela gente branca avermelhada que a Igreja de São Pedro não ficava na Piedade, ficava no Relógio, e que a Igreja do Rosário teve quase toda a sua nave demolida mas ainda está lá, pequenininha e mutilada; tragédias que aconteceram na mesma época, quando as ruas do Rosário e de São Pedro deram lugar à avenida que deveria ter feito de Salvador uma cidade moderna, quase haussmaniana.

Mas não posso negar que aprendi com eles, e é por isso que tem horas que eu queria ser turista, para ouvir atento e embasbacado as informações básicas sobre uma cidade que, por mais que eu queira, nunca vou conhecer direito.

Não seria fácil. Há uns dois meses, vermelho-turista porque depois de quase 40 anos me abandonei novamente ao sol e à água morna de uma piscininha de pedras no Farol de Itapuã, diante da revoada de vendedores que se aproximavam de mim, adestrados para reconhecer em cada bobo avermelhado o seu ganha-pão, eu reagia instintivamente com irritação e enfado. “Eu sou baiano, rapaz”, frase mágica de eficiência taylorista; mas isso me parecia tão mentiroso, porque faz tempo que deixei de ser baiano.

O que importa é que o negócio funcionava e eles me deixavam em paz, porque não há tempo a perder nesse negócio de engrupir turista.

Mas há algumas semanas parei para olhar a dança de turistas e gaviões, e percebi que há algo ali que eu nunca pude saber o que é, a disposição para entrar naquela zona cinzenta, crepuscular, onde a diferença entre ser servido e ser esfolado quase não pode ser percebida. Foi do que senti falta, porque há nisso uma certa inocência, uma certa joie de vivre e um certo abandono tipo deixe-a-vida-me-levar que a minha empáfia arrogante não me deixa sentir.

Foi logo depois da festa de Santa Bárbara, o palco ainda estava montado no largo do Pelourinho. Parei para acender um cigarro e olhar para o vaivém das pessoas, encostado num umbral de porta como um malandro de Jorge Amado. Um grupo — ou vários, eu não sei — se deslumbrava diante da atenção obsequiosa e simpática daqueles baianos tão gentis. Pintando o corpo com uma tinta branca, fazendo tererê no cabelo, garantindo o pão de cada dia a partir da vontade dos turistas de se sentirem baianos e gastar um dinheiro que não gastariam em suas próprias cidades, eles se desdobravam para conquistar a sua simpatia gringa, sabedores atávicos da verdade que na cidade de Tomé de Souza simpatia é quase amor — ah, Sheslayne, você sabe disso —, e amor é dinheiro no bolso.

Na verdade eu olhava mesmo era as gringas branquinhas, esperando sua vez de serem pintadas como a Timbalada e depenadas como Barnabé teria sido. Devem ter aprendido, naquele filme em que o Lázaro Ramos pinta os peitos belos daquela moça, que para entrar no espírito das mais verdadeiras tradições da Bahia é preciso pintar o couro de branco, era assim que os baianos se vestiam quando iam comprar pão na padaria da esquina: pintavam os braços e as pernas e a cara como um aborígene australiano e saíam rebolando a dança da galinha, “Moça, me dá uma vara de milho”.

Uma mulher no final da casa dos 30 olhava a carteira semiaberta e respondia indignada a um sujeito: “Mais vinte? Mas eu não tenho mais dinheiro!”, e eu pensando que essa vítima já tinha pago caro por algo que não valia nada ou muito pouco, mas era esperta a ponto de entender o seu próprio limite. Nessa hora minha vontade de ser turista na cidade da Bahia arrefeceu um pouco, e lembrei das razões pelas quais nunca quis ser.

Mas então eu o vi.

Era um arremedo de pai de santo — ou, se o leitor tiver o coração pleno da generosidade que falta a este pobre ex-baiano, uma versão estilizada e alegórica —, o sujeito vestido de branco-presepeiro e um turbante que talvez fosse uma versão Goya Lopes do velho pano da costa, empunhando um punhado de galhos de arruda e um vidrinho de água de cheiro, tudo isso abrilhantado por óculos escuros aparentemente herdados de Elton John. Pai de santo “for English to see”, dava passes e, quem sabe, dizia alguma coisa que talvez soasse como iorubá — ou punjabi, ou suaíli, ou língua do P, tanto faz, ninguém ia entender mesmo.

Comentei com minha mãe que ia passar perto dele, esperar ele me abordar e responder algo que, pelo menos a mim, faria rir. Mas eu vacilei, e por alguma razão ele não veio atrás de mim, foi atrás da senhora minha mãe.

Que, mãe amorosa e desvelada que é, jamais deixaria o seu filho dileto na mão. Ela olhou com simpatia e comiseração pia para ele e respondeu o que eu ia responder:

“Ô, meu filho, eu sou evangélica…”

Ele sorriu um sorriso amarelo e falso e saiu virando os olhos com uma profunda expressão de enfado, talvez pensando que “Esses filhos da puta desses crentes ainda vão me matar de fome.” E saiu em busca de outra presa a quem pudesse oferecer a chance de experimentar uma verdadeira experiência baiana, e ter os seus caminhos abertos ali, no meio do Pelourinho, com a garantia de dinheiro e de amor, a pessoa amada de volta em três dias, o corpo finalmente fechado para a inveja dos outros.

Ao contrário dele, continuei a subir o Pelourinho rindo. Infelizmente, com o esprit d’escalier que sempre fez a minha desgraça, foi só ali pelo Terreiro que percebi que tinha feito tudo errado, ou melhor, que não tinha feito tudo certo, tinha feito um trabalho incompleto. Porque eu — eu, minha mãe, tanto faz, você não leu “As Aventuras de Tibicuera”? — não devia ter dito apenas que que era crente. Devia ter olhado para ele, com o rosto bem sério, talvez estupefato, talvez os olhos arregalados com aquele brilho insano dos que viram a luz extática de Deus e se espantam diante dessas artes de Satanás, e então perguntar:

“O senhor teria alguns minutos para ouvir a palavra de Jesus Cristo? São só 20 reais, para ajudar a divulgar a obra do Senhor.”

Jesus

É fim de ano e a época em que proliferam textos sobre Jesus Cristo, de todos os tipos. El País publicou um artigo de Juan Arias sobre o Jesus histórico, meu “abominável homem das neves” preferido.

É um texto razoável, embora não muito elaborado, e eu assinaria embaixo de muito do que ele escreve. Mas também tem algo que me deixa incomodado. E não é ele dizer repetidas vezes que, para a Igreja, Jesus nasceu no dia 24 de dezembro.

De modo geral, o que realmente me incomoda nessas avaliações são as convicções absolutas, e Arias é pródigo nelas.

Para mim, a única certeza justificável em se tratando de Jesus é a dos crentes, que veem nos Evangelhos a verdade absoluta. Não deveria ser a de nenhum historiador. A maneira mais sensata de enfrentar a questão do Jesus histórico é, em primeiro lugar, dando-lhe a devida importância: é um assunto fascinante, que interessa muito a mim e a muita gente, mas é irrelevante. Fosse quem fosse Jesus, o que realmente importa é o que Seus seguidores — principalmente Paulo de Tarso — fizeram d’Ele.

Em segundo lugar, é preciso usar uma combinação de bom senso e respeito histórico. A humanidade não mudou tanto de lá para cá: mudaram os costumes, mudaram as circunstâncias, mas a essência humana continua a mesma. É a mesma desde Homero, aliás, e certamente desde muito antes. Por outro lado, os padrões éticos e mesmo parte dos lógicos que utilizamos hoje foram definidos pelo cristianismo; não apenas em concílios e conclaves, mas principalmente no dia a dia, na tentativa abnegada e bem-intencionada de aplicação de seus preceitos à vida cotidiana. É preciso abdicar deles, tentar entender a lógica do seu tempo, mas também não custa muito entender que há um limite para as diferenças. O cristianismo não apenas modificou o mundo, mas se adaptou a ele; e não foi à toa que escolheu o 25 de dezembro, dia do Sol Invictus e solstício de inverno celebrado pelos romanos, como data do nascimento do Senhor, além de modificar a própria natureza do messias aguardado pelos judeus, na base do “não foi bem isso eu queria dizer”.

Para historiadores, devido à total ausência de registros fora da literatura canônica e apócrifa, e levando em conta a força da tradição oral que os precedeu na criação e transformação da narrativa que se tornaria prevalente, absolutamente nada deveria ser tomado por certo. Nem mesmo a existência de Jesus. Eu acho improvável que Ele não tenha existido, ou que não tenha sido crucificado — o que mais podia fazer as pessoas pegarem um símbolo de humilhação como a cruz e fazer dele um ideal de vida, mais ou menos como gays americanos assumiram uma denominação derrogatória como queer e seguiram em frente com ela? —, assim como acho improvável que Ele fosse exatamente como dizem as Escrituras; mas uma coisa é achar, outra é jogar essa certeza nas fuças alheias, dizendo cabalmente que “nada mais falso”, ou “Na verdade, aos 30 anos Jesus se mostra capaz de discutir com os doutores da lei, conhecia os textos sagrados do judaísmo, várias culturas como a grega ou a dos gnósticos, e outras religiões como o budismo”.

A partir da primeira vírgula desse último trecho, sinto discordar, é tudo ilação. Arias diz que Jesus conhecia bem a cultura grega. Baseado em quê? Meu conhecimento dos Evangelhos é pífio, e talvez por isso não lembre de nenhuma referência do De Cujus a Ésquilo, Aristófanes ou Aristóteles. Se Arias supõe todo esse conhecimento a partir dos raciocínios de Jesus expostos naqueles versículos, ou mesmo em outros textos apócrifos, não apenas subestima a cultura hebraica e inconscientemente tenta impor um eurocentrismo que anda meio fora de moda, mas ignora as contribuições dadas seguidamente por milhares de seguidores ao recontar Sua história. Quanto às discussões com os doutores da lei, Arias comete o erro gravíssimo de tomar os Evangelhos como verdade histórica sem questioná-los.

Um dos eventos que mais me fascinam nos Evangelhos, e que me faz duvidar em princípio de cada fato narrado neles que não tenha sido comprovado historicamente, é o massacre dos recém-nascidos promovido por Herodes. Ele só existe nas Escrituras e nenhum historiador respeitado acredita que tenha possivelmente ocorrido. E no entanto, em apenas algumas décadas milhões de pessoas acreditavam piamente que Herodes tinha passado os bebezinhos no fio da espada. Isso mostra a força dos Evangelhos, sua capacidade de criar pós-verdades, mostra um pouco da lógica por trás do raciocínio que levou milhares de gentios, todos os anos, a se converterem. Por si só já seria um recado importante para historiadores.

É por isso que não sei se dá para negar com absoluta certeza que Jesus era analfabeto, como faz Arias. Todo o ministério de Jesus foi feito de maneira precária, sem recorrer à escrita, como provavelmente era a regra naquele tempo e naquele lugar. É mais lógico supor que Ele fosse analfabeto, mesmo. Mas há espaço para discussão.

Por um lado, não é absurdo acreditar que Ele tinha um domínio teológico acima da média, o suficiente para garantir o respeito de Seus seguidores (embora o público não fosse lá dos mais exigentes), e isso em tese pressupõe um nível de estudo difícil de ser conseguido apenas por via oral — embora eu ache que isso seja perfeitamente possível, ainda mais naqueles tempos; é só imaginar a dimensão do conhecimento revolucionário criado a partir dos diálogos com Sócrates, posto no papel muito tempo depois.

Ao mesmo tempo não há nenhuma referência a algum escrito d’Ele, e isso é incômodo.

É improvável que um evangelizador alfabetizado e com a posição e as responsabilidades sociais de Jesus dentro do seu círculo não tivesse escrito cartas, como Paulo faria algumas décadas depois, ou deixasse algum documento escrito. Eram uma ferramenta importante para a realização da sua missão, e às vezes até mesmo uma providência necessária e corriqueira. Imagine-se um seguidor de Jesus que tem uma carta de próprio punho do Senhor em suas mãos. Você certamente a guardaria com sua vida, como guardaram as epístolas de Paulo. É claro que nenhum documento semelhante precisaria ter sobrevivido, porque aqueles tempos não eram exatamente um passeio nos campos elísios; no entanto, forçosamente haveria alguma referência a ele, em algum lugar, mesmo que num apócrifo, da mesma forma que as palavras de Sócrates sobreviveram através de Platão e Xenofonte. Inventaram uma infância para Jesus, uma filiação divina, um parentesco com o que provavelmente era o mais importante pregador de seu tempo, João Batista, e até mesmo um milagre bem batuta de transformar água em vinho — mas não inventaram uma carta escrita por Ele, e isso é significativo.

Também acho que não há por que afirmar que Jesus era casado só porque, a princípio, todo judeu era casado. Independentemente do fato de sempre existirem exceções, a vida de pregador errante escolhida pelo filho de José (“Meu uma ova!”, grita José) tornava o casamento uma escolha muito difícil, até improvável. Os apóstolos não eram casados (aliás, se não me engano Pedro era, mas disse à patroa que ia comprar mirra e nunca mais voltou). É possível que estivessem seguindo o exemplo de Jesus, ou simplesmente se virando dentro do que era possível, como Ele fez. Não havia uma conversa de abandonar tudo e seguir Seus passos? E a vida difícil que escolheram em nome de sua fé não era exatamente de encher os olhos de pais em busca de um marido para suas filhas.

Além disso, me irrita profundamente a certeza de que Ele era casado com Madalena. Se eu não soubesse que a tese era anterior, diria que quem afirma isso levou “O Código da Vinci” a sério demais. Aqui parece haver a contaminação de uma hipótese histórica pelas convicções de outra era. Assim, Jesus não apenas devia ser casado, mas (numa variação matrimonial e feminista da santidade de Maria) ela era uma senhora douta e importante e houve uma campanha posterior para denegri-la, movida pela conhecida misoginia da Igreja.

Por favor, das duas, uma: ou a gente adequa a vida singular de Jesus aos padrões de Sua época, e Ele então seria casado, mas muito provavelmente com uma mulher comum, que ficava cuidando da casa e lamentando o maluco com quem tinha juntado os trapos, ou O transforma em um revolucionário dos costumes, e então Ele tanto poderia ser casado com uma mulher à frente do seu tempo quanto ser solteiro. É um silogismo estranho: Arias afirma que Jesus apareceu primeiro para Madalena porque era casado com ela, mas esse casamento é inferido porque Ele apareceu primeiro a ela.

É importante lembrar também que o cristianismo paulino que se tornou hegemônico era apenas um entre tantos cristianismos. Isso está bem representado nesse trecho de Arias:

Foi sempre esse fato a grande dor de cabeça de Tomás de Aquino, doutor da Igreja, que faleceu sem entender por que Jesus não apareceu em primeiro lugar para Pedro, que era o chefe do grupo de apóstolos, e sim para uma mulher.

É aí que está a questão. Isso era dor de cabeça para Tomás de Aquino porque ele raciocinava necessariamente dentro da lógica cristã definida pela narrativa oficial.

Para começar, ele parte da certeza de que a ressurreição aconteceu, que não foi uma possível combinação de alucinações individuais, em um momento de choque e dor, e invenções malandras posteriores. Tudo bem. Além disso, desconfio que a ideia de Pedro como “pedra fundamental” da Igreja por indicação de Jesus é uma construção posterior, consolidada paralelamente ao cristianismo paulino a partir do fortalecimento da posição política de Pedro, e tão imaginária quanto o galo que cantou três vezes. Mas abstraia tudo isso, fuja da narração canônica, e tudo pode se encaixar. Jesus apareceu primeiro a Madalena como poderia ter aparecido para Tadeu ou para o bodegueiro da esquina, por um lado. Por outro, não seria cinismo demais supor que a narrativa é verdadeira e Madalena apenas teve uma alucinação primeiro. Obviamente, o importante aqui não é a ressurreição em si, mas a lógica que levou a pessoa que escreveu isso pela primeira vez a criar essa situação específica.

Madalena é o resultado da nossa evolução social. As conquistas feministas levam algumas pessoas, mais radicais e chegadas num revisionismo, a exigirem um lugar para a mulher numa história que sempre foi eminentemente masculina, nem que para isso que seja preciso reescrever a história; são os Kruschevs do Senhor. Ao mesmo tempo, há algo de arraigadamente machista nessa certeza: costumes da época só são válidos se interessam à nossa tese.

Eu consigo imaginar um cenário muito simples para os anos que se sucederam à crucifixão de Jesus, e ele ajuda a explicar o problema de Madalena.

Jesus morre e o seu círculo de seguidores — que pode incluir seu irmão Tiago, sua mãe Maria e sua mulher Madalena — tenta dar prosseguimento ao seu trabalho. É um círculo pequeno, conservador. Eles operam dentro dos limites do judaísmo, e seu sucesso é, na melhor das hipóteses, moderado. Eles estão felizes com o seu pequeno status quo, com o respeito que aquele pequeno grupo lhes presta, com a certeza de que estão honrando a memória e fazendo a vontade de um homem amado e respeitado, e como um bônus de Natal estão construindo o seu caminho para se dar bem no Juízo Final. Mesmo dentro desse pequeno círculo a mensagem cresce, sai de controle, as pessoas que a repetem fazem seus próprios acréscimos, ajudam a criar a lenda de Jesus não mais um homem santo, mas um deus.

E então chega um sujeito de fora, sem compromisso com esse legado. Ele se chama Saulo de Tarso, não conheceu Jesus, e a imagem que faz dele é principalmente uma recriação. Saulo não é apenas judeu, mas é romano também. E o choque de concepções que se segue, assim como a disputa por poder, é vencido pela concepção paulina, cosmopolita e evangelizadora.

Mesmo dentro desse panorama, enxovalhar a reputação de uma veneranda Madalena que tinha dividido a cama e a pregação com Jesus cada vez mais Cristo seria impossível, pelas reações que geraria.

Mas nada disso importa, na verdade. O Jesus histórico não existe, nunca existiu. O verdadeiro Jesus era filho de Deus, nasceu em Belém, foi visitado por três reis magos, aos 13 anos impressionava os doutores do templo com Sua sabedoria, e aos 30 levantava os mortos e foi crucificado mas ressuscitou no Domingo de Páscoa. Foi esse Jesus que, nos últimos 1700 anos, escreveu a história do Ocidente e ajudou a definir os rumos do mundo. O resto é lenda.

Woody Allen e Harvey Weinstein

As denúncias contra Harvey Weinstein, e o movimento #metoo que se segue a elas, têm sido uma das melhores coisas que aconteceram à indústria cinematográfica em muito tempo. É um passo importante para garantir que nunca mais uma mulher precise abrir as pernas para trabalhar em Hollywood — embora não haja discurso de sororidade capaz de me convencer de que isso vai evitar que as que abrirem voluntariamente continuarão tendo uma grande vantagem sobre as outras. Diz a segunda epístola de Paulo aos coríntios que Deus ama e entrega melhores papéis a quem dá com alegria.

Mas há nisso tudo algo que me incomoda, e muito. Esse artigo publicado no New York Times resume um pouco desse incômodo. Nele, Aaron Sorkin, roteirista e diretor, e Greta Gerwig, atriz e agora diretora aclamada, falam sobre Weinstein e, para não sair do assunto do momento, sobre Woody Allen. Woody voltou à ribalta porque sua filha adotiva, Dylan Farrow, publicou recentemente um depoimento fazendo pressão no mundo artístico para condenarem Woody Allen, que teria abusado dela aos 7 anos de idade.

Quando Sorkin alega ignorância total sobre os hábitos predadores de Weinstein, ele está mentindo. Mesmo o comum dos mortais sabe das fofocas do mundo dos artistas, quanto mais insiders como ele. O que temos de mais próximo a Hollywood no Brasil é o ecossistema da Rede Globo, e até os macacos mortos de Mairiporã sabem de parte pequena do que acontece. Sabem de atrizes consagradas cujos maridos cantam taxistas (e levam murros deles); sabem do diretor que tem uma escola e garante espaço em novelas para os alunos que pagam mais que a mensalidade; sabem do galã cujo primeiro casamento terminou porque ele foi descoberto num banheiro de festa prestando um serviço sexual a outro ator; sabem do ator que há alguns anos denunciou um diretor por tê-lo levado para a cama por dois anos e não ter cumprido sua promessa de lhe arranjar um papel numa novela; sabe do galã recém-separado filmado com uma imensidão de cocaína por um dos travestis que tinha levado para casa.

Sorkin sabe como Hollywood funciona, certamente ouvia histórias sobre Weinstein, e sabe como funciona o mercado de poder e sexo na mídia. Nisso, Sorkin age como os alemães que, perdida a guerra, diziam não saber dos campos de concentração. Mas ele sabe também que, hoje, defender uma posição fora do consenso, ou falar algo que pode ser tirado do contexto e usado para estigmatizar uma pessoa, ou mesmo simplesmente abrir o flanco para ataques de militantes raivosos nas mídias sociais pode significar o fim de uma carreira.

Mais irritante é a alegação da Greta Gerwig, fazendo a madalena arrependida, de que hoje não trabalharia mais com Woody Allen. Essa declaração se junta a outra, de Mira Sorvino, que diz essencialmente a mesma coisa. A tocaia está armada para Allen há muito tempo, e agora parece ter chegado o momento de desferir o golpe de misericórdia.

As afirmações de Gerwig, assim como as de Sorvino, são no mínimo oportunistas. Em 2012, quando ela atuou em To Rome, With Love, todos os fatos relativos ao escândalo Woody Allen/Mia Farrow já eram conhecidos. Nenhum fato novo surgiu de lá para cá, além da carta de Dylan Farrow, que agora se chama Malone. Mas hoje Gerwig é uma atriz respeitada e diretora superestimada, e sua fala é conveniente e perfeitamente ajustada à matilha; em 2012 ela ainda era uma atriz iniciante diante da chance de trabalhar com uma lenda viva. O que quer dizer que entra século, sai século, e Hollywood continua a mesma.

Eu nunca duvidei, por um segundo, de qualquer acusação feita contra Weinstein. Elas não apenas tinham “cheiro de verdade”, mas correspondiam a tudo o que sabemos de Hollywood. Mas simplesmente não acredito nas denúncias de Mia Farrow contra Woody Allen.

Até onde sei, Allen nunca foi um pedófilo; no máximo, se se cometer o erro de julgar um artista pela sua obra, ele poderia ser considerado um efebófilo em conflito — algo que sequer é crime, embora cada vez mais reprovado pela sociedade. Mas isso não importa. O caso Allen-Farrow vem rendendo manchetes de jornal há quase 30 anos. Embora Allen raramente se pronuncie sobre o caso, Farrow não parece estar disposta a deixar o caso morrer. Sempre que Allen é lembrado por algo, o clã Farrow parte para o ataque e volta a jogar sua tragédia familiar ao público.

Farrow e Allen namoraram durante mais de uma década, mas nunca viveram juntos. Tiveram um filho, Satchel, e juntos adotaram outros dois, Moses e Dylan. Além disso Farrow tinha vários outros filhos, uns paridos, outros adotados, alguns com André Prévin. Segundo as próprias memórias de Farrow, publicadas antes do escândalo, Allen nunca teve muito contato com os filhos dela, especialmente com Soon-Yi Prévin, o que a fez incentivar os dois a saírem juntos — e aparentemente foi aí que se originou o romance entre o velho e a adolescente. Quando Farrow descobriu que os dois estavam tendo um caso, seguiu-se um escândalo sem precedentes, extremamente público.

Não é difícil compreender, quase justificar o comportamento inicial de Mia Farrow. Não deve ser fácil ver que o seu namorado está saindo com a sua filha. A indignação e a revolta devem ser inconcebíveis. Da mesma forma, é fácil entender a desconfiança nascida ali. O raciocínio talvez não seja psicologicamente acurado, mas é simples: se ele pegou a minha filha de 15 anos, quem garante que não vai molestar a de 7? Para Farrow, Allen já era um monstro. Ninguém poderia garantir que ele não poderia ser um monstro ainda maior.

Até aqui estamos no campo dos fatos incontestados. Mas quatro meses depois do escândalo estourar, já separado de Farrow e morando com Soon-Yi, Allen fez uma visita aos filhos. É fácil imaginar o clima naquela casa. Assim como é fácil imaginar, a julgar pelo seu comportamento desde então, como andava a cabeça de Farrow. Durante alguns minutos em que não estariam sendo vigiados, Allen teria levado Dylan para o sótão e “tocado inapropriadamente” nela. Farrow, logo depois, gravou em vídeo um depoimento de Dylan recontando o que ocorrera. A fita foi severamente editada, o que para alguns pode indicar que nos intervalos cortados Farrow estava fazendo a menina dizer o que ela queria ouvir.

A essa altura a coisa tinha saído das colunas de jornais e chegado à justiça. Namorar a filha adulta de sua namorada é canalha e eticamente reprovável, mas não é crime; abuso sexual de uma criança é. O caso foi investigado pelas polícias de Connecticut e de Nova York. Chegaram à conclusão de que Dylan não tinha sido abusada, e o juiz fez algo estranho: encerrou o caso, mas disse que tinha motivos para acreditar que Allen era culpado; encerrava apenas para não prejudicar Dylan, o que soa quase inacreditável.

Mais tarde, uma babá das crianças diria que foi pressionada por Farrow a mentir e corroborar a acusação contra Allen. Diria também que Farrow vinha há algumas semanas preparando a cena para a denúncia, insistindo de repente que ele não fosse deixado a sós com Dylan. Um dos filhos adotivos de Farrow e Allen, Moses, que na época escolheu não ver mais Allen, acabou se afastando de Mia, se reaproximado do pai e hoje fala em “lavagem cerebral”. Ele diz perceber hoje que tudo isso é essencialmente a vingança de Farrow por Allen tê-la trocado por Soon Yi.

Neste link estão alguns dos principais argumentos a favor de Allen, e valem a pena serem lidos.

Eu acredito na inocência de Allen principalmente porque, cá entre nós, é difícil aceitar que um sujeito que jamais teve histórico de pedofilia, antes ou depois, escolha justamente o momento em que toda a sua vida está perdida em um turbilhão, com todos os olhos voltados para ele em uma casa traumatizada e ainda em choque, para abusar de uma criança que até então não demonstrava nenhum dos sinais comuns a vítimas de abuso sexual. Se Allen fosse doente a esse ponto, seria de se perguntar por que nenhuma oura acusação, antes ou depois — ele adotou algumas crianças com Soon-Yi — foi feita contra ele.

Eu acho plenamente factível que a pobre Dylan possa ter criado, instigada pela mãe, falsas memórias perturbadoras sobre seu relacionamento com Allen. Cada tempo tem sua histeria particular, e talvez não coincidentemente, naquele início dos anos 90 apareceu uma série de casos de pessoas que, em sessões com terapeutas, lembravam de repente que tinham sido abusadas na infância. Grande parte dessas denúncias acabaram sendo provadas falsas; a mente das pessoas é uma coisa esquisita, complicada. Mas isso lembra como memórias podem ser implantadas, ainda mais facilmente numa criança num lar em crise, com uma mãe que, independente do que qualquer um ache dela, decidiu que iria destruir Allen pelo que ele fez (Soon Yi) e pelo que talvez acredite que ele deve ter feito (Dylan).

Há alguns anos ela insinuou que Satchel, que agora se chama Ronan e desempenhou um papel fundamental nas denúncias contra Harvey Weinstein, não era realmente filho de Allen, mas de Frank Sinatra, seu primeiro marido (curiosamente, Sinatra e Farrow se casaram quando tinham respectivamente, 50 e 21 anos). Sinatra teria 71 anos ao gerar Ronan, mas ainda que ele não tivesse feito uma vasectomia, essa história é um indício que Farrow está disposta a qualquer coisa para destruir Allen, inclusive envergonhando outras pessoas, como Barbara Sinatra.

Eu não tenho muitas dúvidas de que Farrow é uma mulher perturbada. Não pela sua história, com sua cota de fatos que fazem a delícia das colunas de fofocas, mas pela sua reação à traição de seu namorado e de sua filha, e pelo esforço em destruir Allen a partir daí. Em parte é compreensível. Estender suas suspeitas ao relacionamento dele com Dylan só é maldade para quem está de fora: é quase justificável em uma mulher magoada e revoltada.

O que não é justificável é que Farrow possa ter destruído a vida de algumas pessoas por causa de sua vingança. Isso não exime Allen, claro. Independente da verdade, uma coisa é inquestionável: Satchel/Ronan e Dylan/Malone Farrow são as grandes vítimas em tudo isso — a ponto de fazê-los mudar de nome, tentar trocar de identidade como se isso pudesse apagar os traumas do passado. A culpa inicial, claro, é de Allen, por tomar a decisão de namorar a filha de sua namorada. Mas há culpas e culpas. Eu estou convencido de que as atitudes de Farrow, insistindo em algo questionável e mantendo viva uma vendeta por longuíssimos 25 anos dentro de sua família, fizeram um mal irremediável e imensurável aos seus filhos.

É muito difícil, para qualquer pessoa que represente algo nesse meio, assumir uma defesa de Woody com base, quando menos, no fato de que a justiça decidiu não processá-lo. Allen foi tornado um monstro, e essa mancha dificilmente será retirada. Os tempos não permitem que alguém se disponha a arriscar a carreira por Woody Allen. Uns poucos atores hoje têm coragem de defendê-lo, um dos quais o velho e bom Alex Baldwin, com um histórico pouco recomendável de violência familiar.

Há hoje um clima de caça às bruxas em Hollywood, e as pessoas parecem viver com medo de falar a coisa errada, aquela pequena bobagem que vai fazer a alegria dos justiceiros de internet. Há uma necessidade de condenação pública em que o volume de convicções fáceis tomam o lugar da verdade. Ela não interessa mais: Allen foi condenado, e essa condenação só foi possível porque os tempos andam complicados.

Eu sou um otimista. Gosto de acreditar que que da confusão que se tornou a marca destes tempos vai sair uma síntese nova, melhor. Que os exageros e injustiças eventualmente perpetrados sao percalços inevitáveis no caminho para uma ordem nova e mais justa. Mas enquanto isso, está muito, muito difícil.

Triste fim de Tróia

Acabei de descobrir que Tróia não tem mais acento. Troia. Parece trolha. Os gregos de Agamenon, os atenienses, os persas, os espartanos, os macedônios de Alexandre, os romanos, todo mundo meteu a mão na desgraçada do Helesponto, todo mundo tirou sua lasquinha, como se a gloriosa Tróia de Páris fora uma prostituta bêbada em um fim de noite, pobre guardiã do Dardanelos — e agora ela é destruída mais uma vez pela reforma ortográfica do dr. Houaiss. Sina triste, a dessa cidade.

Infância

Há uma série de coisas que me irritam no Facebook; mas tem uma, em particular, que me faz pensar em como as pessoas conseguem usar qualquer coisinha de nada para se autoconferir uma nesga de grandeza imaginária e ter o direito putativo de serem arrogantes no pouquíssimo que acham que podem ser.

São aqueles posts que falam que sua infância foi melhor que a atual. “Você viveu isso ou isso? Parabéns, sua infância foi a melhor”, e daí para baixo.

Eu gosto muito da minha infância. Nostálgico jamais arrependido, gosto de lembrar dela, dos elementos que a fizeram. Sigo grupos de outros saudosistas que viveram o mesmo que eu, como Imagens Antigas de Salvador, Aracaju Como Eu Via, Imagens Antigas do Rio de Janeiro. Gosto da minha infância, repito; mas não porque ela foi melhor que as outras, de outros tempos. Gosto porque foi a minha infância, a única que tive e da qual às vezes tenho dúvidas de que saí. Gosto como alguém gosta de jenipapo.

É por isso que quando vejo alguém se vangloriando por ter andado de carrinho de rolimã, por exemplo, tenho a certeza de que o nível de estupidez mundial não dá sinais de arrefecer.

Eu andei, também. Tenho uma cicatriz no pé para provar. E que merda, isso. Sinceramente, em vez de andar de carrinho de rolimã eu queria era ter dinheiro para comprar o CP-500 que era bonitão mas que nunca tive e por isso eu tinha que me contentar em ir para a rua brincar.

Joguei bola de gude joguei bafo quase aprendi a rodar pião joguei bola e fiz gols porque eu colocava a bola onde queria quebrei braço quebrei cabeça quebrei braço de novo vi todas as unhas dos pés irem embora nas topadas mas elas sempre voltavam e Maura a empregada fazia o melhor bolo de laranja fui ao circo ver o domador de leões brinquei todas aquelas brincadeiras violentas que os meninos brincavam sofri bullying na escola e fiz bullying também porque o mundo é um grande sistema de compensações e talvez eu seja um pouco menos estressado porque briguei muito na rua e levei murro e levei chute mas bati mais do que apanhei.

O que me consola bastante.

Mas grandes merdas, tudo isso. Para começar, essa meninada faz mais sexo e mais cedo do que a minha geração, criada numa pequena província de muro baixo. E só por isso ela já é melhor (em compensação não viveu as históricas tragicômicas que eu posso contar). Mais que isso, faz sexo com menos preocupações, com menos culpa. Eu fui adolescente em uma década em que a Aids era razão de pânico absoluto.

Posso até lamentar que não leiam mais as historinhas Disney que eu lia; eles certamente não sentem a mínima falta. E se estranho a maneira cada vez mais diferente com que se relacionam, utilizando a internet e estabelecendo novos padrões, o fato é que essa é uma geração que está avançando em uma nova fronteira, instaurando uma nova normalidade. Não é pior, nem melhor. É só diferente.

Há exceções, claro. A TV aberta era realmente melhor que a atual — a variedade de atrações numa mesma programação me impressiona até hoje —, e o fato de haver poucas opções fazia com que ela tivesse um papel importante, já desaparecido, de unificação da conversa (“Bestão, você não viu mesmo SWAT ontem?”, e droga, agora eu tinha que dar uma porrada no babaca que disse isso, porque eu caía no sono às 8 da noite e não tinha tempo de ver SWAT porra nenhuma). Para quem, como eu, gostava de filmes — ainda era cedo para gostar de cinema — a programação era infinitamente melhor. Era fácil ver tantos dos grandes clássicos dos anos 50. Chaplin era exibido na Sessão da Tarde.

Mas se alguém realmente acha que a sua infância foi melhor que porque assistiu a “O Homem de Seis Milhões de Dólares”, que pena que se contente com tão pouco. A propósito, os meninos de hoje também podem ver o seriado, e na hora que quiserem, porque ele está no YouTube — enquanto na minha época a gente via quando a TVs deixavam. Eles só não veem graça nele, e eu entendo.

A meninada tem Netflix, tem torrents para assistirem o que quiserem quando quiserem, têm Spotify para ouvir a música ruim que se faz hoje — mas é a música deles, do seu tempo, como eu tinha que aturar a música ruim do meu. Sua noção de tempo para esse tipo de relação com o mundo e com a informação e o entretenimento é provavelmente o sonho de todo menino de minha época, que não tendo nada disso se contentava em subir em árvores, como macacos vinham fazendo já havia milhões de anos.

Em virtualmente todo e qualquer aspecto, a infância de hoje é melhor que a de antigamente.

E sempre que vejo algum sujeito encher a boca para falar de como brincou de carrinho de rolimã, eu penso: besta, brincou porque não tinha internet.

Das cobranças indevidas a que a vida nos submete

Eu nem lembrava disso, mas fuçando e-mails antigos descobri que uns dois anos atrás um escritório de contabilidade me mandou um e-mail cobrando um serviço qualquer.

Subject: Urgente – Honorários em Aberto!
Date: Thu, 18 Dec 2014 16:33:25 -0200
From: XXX Contabilidade Empresarial
To: Rafael Galvão
CC: fulana.galvao@hotmail.com

Prezado Sr.,

Boa tarde!

Encontra-se em aberto o valor de $ 1.156,00 referente honorários contábeis junto ao escritório.

Por gentileza entrar em contato urgente para negociação pois estamos encaminhando todos os débitos do escritório para cobrança externa junto à escritório de advocacia.

No aguardo,

Depto. Financeiro

XXX Contabilidade Empresarial Telefone: (11) XXXX.XXXX
Telefax: (11) XXXX.XXXX e-mail: xxx@xxx.com.br

Cá entre nós, cobrança é uma coisa chata. Mas ainda pior é cobrança por algo que você não comprou. Você está em casa, quieto, e de repente lá vem um sujeito esfregando uma promissória nas suas fuças. Você tenta se lembrar de quem, entre as suas dezenas de credores, teria a pachorra de lhe cobrar assim, na lata, de forma tão grosseira. Até que você entende que é só mais um caso de erro de pessoa, de gente que tem a mania estranha de mandar e-mails para gente errada.

(Eu não duvido que seja o mesmo homônimo caloteiro que tirou a tranquilidade do senhor Gusmão, embora aquele fosse carioca e esse escritório seja de São Paulo.)

Também cá entre nós, eu sei ser valente quando o meu não está na reta. É quando aparece o melhor de mim. É quando se revela a minha altivez, a minha superioridade espiritual em relação a essas coisas comezinhas do dia a dia. Quando, qual rei absoluto diante da patuleia ignara, mostro todo o meu desprezo imperial à humanidade.

Acima de tudo, é uma questão de princípios. Porque se se deixa iniquidades como essa prosperarem, daí a pouco estão lhe cobrando a dívida de Creso, pedindo explicações sobre a decapitação de Maria Stuart, vem até um mais ousado insinuar que você estava mancomunado com Judas.

Além disso, eram tempos estranhos, aqueles; nessa época eu estava reformando meu cafofo e morando temporariamente numa casa no cu do mundo mas na beira da praia. E mamãe me ensinou a ser uma pessoa educada e nunca deixar alguém falando ao vento. Por isso dei uma resposta lacônica, mas sincera; nas minhas boas intenções, eu esperava estar traduzindo em poucas palavras os sentimentos mais autênticos do tal Rafael Galvão:

Subject: Re: Urgente – Honorários em Aberto!
Date: Thu, 18 Dec 2014 19:11:16 -0300
From: Rafael Galvão
To: XXXX Contabilidade Empresarial

Fodam-se.

E por aí deviam ficar. Era resposta suficiente, e deviam seguir o meu conselho. Mas não, eles não se conformaram, insistiram na baixaria, tem gente que, sei não, parece que gosta de ver o circo pegar fogo.

Subject: Re: Re: Urgente – Honorários em Aberto!
Date: Fri, 19 Dec 2014 11:53:52 -0200
From: XXX Contabilidade Empresarial
To: advogado@aasp.org.br
CC: Rafael Galvão

Dr. Ricardo,

Bom dia!

Encaminho resposta de e-mail recebido pelo escritório para vossa ciência.

Solicito as providências cabíveis ao caso uma vez que o serviço fora prestado e não devidamente pago e além disso fomos constrangidas perante os nossos funcionários.

Att.,

Fulana de Tal
Beltrana de Taltal
Sicrana de Taltaltal
Contadoras

E a essa altura eu já estava até simpatizando com o Rafael Galvão caloteiro, vítima de cobranças de gente que sequer sabe endereçar corretamente um e-mail, de gente que faz tempestade em copo d’água por qualquer coisa, que chama advogado e o diabo por causa de um simples “foda-se”. Fiquei imaginando a moça abrindo o e-mail, arregalando os olhos, “Fulana, olha o que esse safado disse!”, e Fulana indignada dizendo “Sicrana, vamos chamar o adevogado! Liga pro dotô Ricardo!”, e Beltrana a meio caminho do banheiro, sobraçando uma Sabrina ou Júlia ou Bianca, resmungando “Ah, mas isso não fica por isso mesmo…”, e o dia passa e o escritório de contabilidade só fala em um assunto, um escritório de contabilidade em polvorosa — visão rara, a não ser que o tal escritório tenha como cliente alguma empresa da Lava Jato.

Duvido que esse seja o único foda-se que essas moças receberam na vida, porque elas têm o mau hábito de cobrar quem não lhes deve nada e essas coisas deixam as pessoas tristes. E ainda que fosse, deveria ter servido de lição.

Infelizmente os e-mails terminaram por aí. Eu estava preparado para invocar novamente os mesmos argumentos que dei ao dotô Gusmão para a minha inadimplência. Mas não sei o que foi feito do caso. É possível que tenham mandado o email para o Ricardo errado. Caso não tenham repetido o erro, espero que ele, oxalá um advogado experiente, tenha mandado essas moças se aquietarem depois de descobrir que elas tinham começado tudo, mandando e-mail para quem não deviam. Porque essa é a ironia da coisa: a vida sempre cobra o seu troco.

Cena noturna

Segunda-feira. Quase meia-noite. Estou saindo do restaurante onde fui encontrar minha amiga mais antiga e o seu namorado.

Ele nos vê parado na frente do restaurante e se aproxima.

Tem seus cinquenta e tantos anos, ele. Magro, moreno, cabelos bem grisalhos, um rosto comprido com aquele perfil eslavo, quase equino, mas com os traços de gerações de mestiçagem. Seu rosto não me é estranho e eu acho que já o vi em algum lugar.

Ele se apresenta. “Meu nome é Fulano, sou radialista… Oi, dona Beltrana! Eu não reconheci a senhora, faz tanto tempo… A senhora tá bem?”

Ele conta a sua história, explica com detalhes. Ele agora está em Tal Lugar, está com Sicrano que ganhou a prefeitura, graças a Deus, mas nessa coisa de troca de governos o pessoal não o pegou para levar de volta — pirraça, só pirraça, vocês sabem como é, e agora ele estava incomodando as pessoas para voltar pelo menos para a rodoviária, onde pegaria uma das ambulâncias que vêm para Aracaju.

A camisa gasta é Tommy Hilfiger, a calça é indeterminada, o sapato é barato. No pé esquerdo, no lugar onde o dedo mindinho grita desesperadamente para sair, há um rasgo. Ele é um homem que mesmo na miséria ainda gasta alguns minutos de sua manhã para se arrumar com o melhor que tem, para colocar a camisa por dentro da calça, a roupa limpa, a aparência de normalidade, aquele querer ser sempre melhor.

E porque ele gosta da minha amiga, eu dou dez reais a ele. Ele vai embora, feliz.

Me despeço e vou para um posto no meio do caminho, comprar uma última cerveja e um maço de cigarros, que a noite a gente sempre termina sozinho, a gente e nossos demônios. E quando paro o carro ali está ele, indo para a loja de conveniência. Ele me vê, me reconhece, me cumprimenta surpreso.

Eu saio do carro e vou comprar meus trecos. Passo por ele e recebo um cumprimento: “Oi, mestre! Me perdoe!” Eu não sei por que ele perde perdão, se pelo pedido há poucos instantes, se por eu tê-lo visto agora. Eu não tenho por que perdoá-lo.

Quando saio ali está ele, sentado empertigado, altivo, e é sempre bonito ver alguém sentrado com a coluna ereta. Ele que estava entrando na loja não entrou, agora apenas espera. Olha para o nada à sua frente com altivez e orgulho, quase esnobe. Talvez o dinheiro em seu bolso esteja queimando, pedindo para ser gasto, mas agora ele não pode. Ele vai esperar que eu vá embora para que a sua estória não seja desmontada, para que eu, o amigo da moça que ele cumprimentou com respeito, não perceba que tudo aquilo era mentira.

Ou talvez nem isso, talvez ele saiba que eu já sei, se me conhecesse saberia que eu sei.

Mas ele não me conhece. Se me conhecesse saberia que eu entenderia. E entraria para comprar sua cachaça, feliz, talvez até piscasse e sorrisse para mim, e durante algumas horas ele seria, ele também, um homem feliz, esquecido de tudo, esquecido da vida, esquecido da morte.