Pequena, bem pequena discografia de Ringo Starr

Sentimental Journey (1970)
Primeiro disco solo de Ringo, e elemento involuntário no rompimento dos Beatles, Sentimental Journey foi feito para uma audiência especial: a mãe de Ringo. São as músicas de que ela gostava e com as quais ele cresceu. Foi gravado no período em que a banda achava que estava acabando mas ainda não tinha certeza; Ringo, então, mandou a família escolher seu repertório. Ringo sabe quem é, sabe de suas limitações. O disco inteiro tem um ar de paródia, não se leva a sério demais, e é isso que faz dele uma boa curiosidade. Alguns dos arranjos são bem interessantes, mas pertencem ao seu tempo e não saem de lá nem debaixo de porrada.

Beaucoups of Blues (1971)
Uma joia obscura, Beaucoups of Blues é um disco de country music. É nesse gênero que Ringo claramente se sente mais à vontade como cantor, e para acompanhá-lo chamou um elenco estupendo: D. J. Fontana, The Jordanaires, Jerry Reed — e Scotty Moore foi o engenheiro de som. O resultado é um disco redondo, sincero, de uma qualidade absolutamente surpreendente. Ringo poderia ter se reinventado aqui como cantor country num ambiente de rock and roll, mas aparentemente jamais se levou tão a sério assim. Talvez seja o disco mais subestimado entre as tantas dezenas de discos de ex-beatles.

Ringo (1973)
Até aqui, pode-se dizer que Ringo continuava um beatle ensaiando escapadas solo, mais ou menos como Lennon gravando com Yoko em 1968. É como se seus discos solo corressem em uma raia que não a da sua ex-banda, discos que os Beatles jamais gravariam. Um de standards, outro de country. Em Ringo, no entanto, ele parece admitir que o sonho acabou, e adentra de vez o mainstream. Conta com um auxílio realmente luxuoso: todos os ex-colegas de banda contribuíram com canções e participações no disco. Ringo é considerado universalmente o melhor disco de Starr, mas desconfio que isso só acontece porque este é um disco de rock tradicional — e provavelmente porque tem John, Paul e George dando uma ajudinha. Por isso costumam desprezar o excelente Beaucoups of Blues.

Ringo Rama (2003)
Quando ninguém mais esperava nada de Ringo eis que ele se sai com um disco surpreendente. Ringo Rama é decente, dentro das limitações de Ringo, com algumas boas canções, uma atmosfera geral moderna e forte. Não é uma obra prima, obviamente, mas se sobressai de forma muito evidente na discografia de Ringo. Aqui se encontra, também alguns exemplos tardios do grande baterista que é Ringo, em faixas como Instant Amnesia. É um excelente disco tardio, de um artista que não costuma fazer excelentes discos.

O resto
Ringo tem mais um bocado de álbuns. São uns 20 ao todo, sem contar coletâneas e álbuns ao vivo. Nos últimos tempos ele se acomodou em um estilo bem característico: rock simplório, sempre derivado, que estaria à vontade em uma FM tipo easy listening dos anos 80, com letras que muitas vezes mencionam o seu passado beatle. Obviamente uns são melhores que outros, como o bom Goodnight Vienna, de 1974, que poderia muito bem estar nesta lista; e alguns são vergonhosos, como Ringo the Fourth, de 1977, ou Bad Boy, de 1978. Eventualmente uma ou outra coisa pode ser pinçada, como You Can’t Fight Lightning, faixa-bônus no relançamento do Stop and Smell the Roses (1982), que poderia ter sido gravada por Lou Reed. A maioria dos álbuns tem composições de seus ex-colegas de banda, e eles muitas vezes participam generosamente de várias faixas, mas nem isso os salva. Ouça por sua conta e risco.

And, in the end

Eu preciso confessar que os lançamentos recentes da empresa que se chama Beatles me enchem de tédio. Longe da empolgação inicial trazida pelo Live at the BBC e os discos do Anthology, o que se vê nos últimos 20 anos é indigno do legado da banda. Do engodo que foi o Let it Be… Naked, passando pelos cafés requentados da remasterização de 2009, o segundo Live at the BBC e o razoável Hollywood Bowl à raspagem de tacho que são as edições comemorativas, cada lançamento merece basicamente um bocejo e um tsc, tsc.

Quando o Álbum Branco foi remixado, em 2018, fiz um comentário aqui. Mas a verdade é que esses discos me interessam muito pouco. A essa altura da vida, a perspectiva de ouvir versões sempre inferiores de canções que já conheço de cor há décadas — isso quando não conheço as próprias versões, circulando há décadas no mercado pirata — não abre meu apetite.

Por isso, ouvi os discos de maneira muito superficial — confesso inclusive que na época não cheguei a ouvir muitas das faixas inteiras. Para que eu iria ouvir de novo as demos de Esher? Nessa brincadeira, acabei deixando passar alguns detalhes importantes.

Duas das faixas são realmente boas. Los Paranoias, que já tinha sido incluída em parte no Anthology III, aqui está em sua forma completa. É uma bela jam, talvez o mais próximo que McCartney chegou do jazz enquanto era um beatle. Mas é importante não tanto pelo seu valor intrínseco, mas porque acaba mostrando que talvez George Martin não fosse a pessoa indicada para fazer a curadoria do projeto Anthology, nos anos 90. Martin raciocinava como “o produtor dos Beatles”. Estava mais que disposto a jogar fora o que não se encaixava em um padrão de qualidade bastante alto e muito claro para ele. E nesse tipo de caça-níquel, às vezes o que se quer ouvir é justamente o contrário.

A outra é a faixa que abre o quarto disco, o take 18 de Revolution 1. É uma gravação maravilhosa. Ela consegue encapsular tudo o que Lennon queria dizer em Revolution e em Revolution #9, com a genialidade, coragem, experimentação, capacidade de síntese de uma época e senso comercial que tornaram os Beatles a maior banda da história. Se em vez de incluir essas duas faixas no disco ele tivesse finalizado e colocado só esse take 18, tinha passado o recado e feito um álbum muito melhor. Revolution #9 é uma maluquice de Yoko Ono contrabandeada num disco dos Beatles. Essa nova versão é Beatles puro, ao menos em um determinado contexto histórico.

Mas o principal aspecto que deixei passar é que Giles Martin, ao remixar o álbum, cometeu um crime de lesa-majestade.

A produção do Álbum Branco foi caótica. Geoff Emerick cansou e deu no pé, e isso alterou significativamente o padrão de gravação das músicas. Depois George Martin, de saco cheio, tirou férias e parte do disco foi efetivamente produzida por Chris Thomas.

O resultado é que o Álbum Branco sempre soou diferente. Mais agudo, mais metálico, mais agressivo. É uma prova da diferença que faz um engenheiro de som.

Giles Martin, no entanto, suavizou esse som. Tornou-o mais grave, mais de acordo com o padrão George Martin que voltaríamos a ver, em toda a sua glória, no Abbey Road. O resultado é uma fraude histórica. É desonesto.

Mas independente desses detalhes, minha opinião sobre esses lançamentos continua a mesma. São redundantes. Não comprei nenhum, nem pretendo comprar. Eles já são ricos demais para se importar se apenas baixo as .flacs.

Isso muda com a nova edição do Let it Be. Essa eu quero.

A caixa que anunciam agora é, em parte, o que se esperava, para o bem e para o mal. Traz o disco original remixado (o que deve ser algo bom, porque ele sempre soou mal, abafado, embora eu não saiba se é possível melhorar muito); um EP redundante; o Get Back com a capa original; e uns disquinhos com jams, outtakes e ensaios.

Os discos de adicionais são o mais decepcionante, porque o material disponível é tão absurdamente grande e variado que qualquer um poderia fazer algo melhor do que a sequência medíocre de outtakes que decidiram incluir. Com uma capa ainda mais apalermada que a do Let it Be original, traz uma seleção inexplicável em sua falta de imaginação ou mesmo alegria.

Pelo que vejo, o melhor da caixa é o Get Back. Não pelo disco em si, que não era melhor que o Let it Be final. Mas por finalmente trazer à luz o LP que chegou a ser distribuído para algumas rádios, com a capa em que eles recriavam o Please Please Me sete anos depois. Eu sempre achei que essa deveria ter sido a capa do Let it Be. Pelo significado, pela sensação de que ali se encerrava aquela história, e porque é uma ideia fantástica, mais típica dos anos 60 que minissaia e LSD.

É ele, só ele, a razão eu querer esse lançamento, depois de anos pouco me lixando. Eu faria diferente, claro. Minha caixa traria o Let it Be com a capa dupla da edição americana original e o livro que acompanhava a primeira tiragem, retirado logo em seguida porque aumentava muito o preço. Traria dois Get Back, com os dois mixes de Johns e as capas diferentes, para evitar a confusão que fizeram. E um álbum triplo com o que houvesse de melhor nos outtakes e jams da gravação do filme.

E é aqui que está a grande diferença. O álbum que está chegando às lojas traz basicamente outtakes do que já conhecemos. Sem ouvi-las não dá para saber quais são, mas aparentemente traz, de realmente interessante, apenas um ensaio de Gimme Some Truth, provavelmente uma das versões do dia 3 de janeiro, que mostra McCartney ajudando Lennon a compor a letra da canção. (E espero que a versão de Oh! Darling, que estaria mais à vontade no Abbey Road, seja uma do dia 31, que eu chamo de “bossa nova”).

E no entanto, os 30 dias de sessões têm tantas pequenas maravilhas que é quase impossível entender por que são ignoradas. Eu já falei aqui quais incluiria. Mas há muito mais que isso. Quem quiser conhecer, e tiver paciência, é só procurar nas redes P2P da vida por uma série de discos chamada A/B Road.

Ela só não tem o Get Back com aquela capa.

Mas há um outro motivo para eu achar que essa caixa tem algo diferente dos outros lançamentos.

Ringo Starr e Paul McCartney têm, respectivamente, 81 e 79 anos. Não seria agourar dizer que têm muito mais tempo para trás do que para a frente. A aventura dos Beatles representou um pedaço pequeno de suas vidas, mas foi decididamente o mais importante e o que deixou, durante 25 anos, uma série de problemas com que tiveram que lidar. Ao longo das últimas décadas, eles conseguiram resolver tudo isso: supervisionaram a transição para o digital, fizeram dinheiro como nunca tinham feito antes, e se empenharam em contar a sua versão da história. Faltava apenas o fechamento.

O Let it Be, junto com o filme Get Back, é o ponto final de todo esse esforço. É o último capítulo, a resolução afinal do seu momento mais conturbado, o mais contencioso, e certamente o mais doloroso. É como se Paul e Ringo pudessem dizer, finalmente, que o ciclo se fechou. A partir de agora, tudo o que a Apple Corps soltar é apenas para ganhar dinheiro, como foram as remasterizações dos últimos anos; decisões empresariais, basicamente, que não têm ligação orgânica ou emocional com a maior banda da história. O Let it Be/Get Back é certamente o último trabalho real dos Beatles. Agora eles podem descansar em paz.

Paul McCartney: discografia

Uns tantos anos atrás, escrevi aqui uma pequena introdução à discografia de Paul McCartney, dando minha opinião sobre cada um dos discos lançados até então. (Vi agora que faz mais de dez anos. O tempo passa, e daqui da janela eu dou uma de Carolina.)

Não é uma boa lista. Não é apenas exageradamente superficial, que isso não era problema: é que toda ela foi feita de memória. Não ouvi os discos novamente para confirmar a opinião que tinha formado às vezes há um quarto de século. E havia alguns que eu não escutava havia, literalmente, décadas.

Há algum tempo, no entanto, andei ouvindo esses discos de novo com uma atenção que já não dispensava havia muito tempo, em ordem cronológica, inclusive os de que eu não gostava. E percebi que estava errado em relação a vários deles. Nada como o tempo para lhe fazer criar juízo e perceber sua estupidez; e assim lá vamos nós de novo, dessa vez com um pouquinho mais de seriedade.

A lista original se restringia aos LPs originais. Nos anos 90, ao relançá-los em CD, McCartney adicionou a eles os compactos lançados na mesma época. Na época, ignorei essas novas versões porque elas acabavam deturpando os discos originais, tornando-os invariavelmente mais fortes.

Mas nos anos 2010 McCartney descobriu uma mina de ouro: valorizar novos relançamentos com o acréscimo de um bocado de material inédito.

A Archive Collection traz uma variedade de versões do mesmo álbum para todos os bolsos, com faixas inéditas, sobras de estúdio e demos, em edições de luxo com fotos, textos, qualquer coisa que possa agregar valor e fazer os fãs comprarem novamente o que já têm, e que chegam a custar centenas de dólares. Isso muda as coisas porque a quantidade de material musical incluído costuma ser impossível de ignorar — ao mesmo tempo que é preciso evitar que isso tire a perspectiva do disco original. Assim, embora eu continue essencialmente comentando os álbuns originais, porque me recuso a tirá-los do seu contexto, é preciso fazer uma menção em separado a esse novo material, quando existente.

Por outro lado, a lista continua ignorando os álbuns ao vivo, que ultimamente se multiplicaram também em vídeo, já que a debâcle da indústria fonográfica forçou artistas como McCartney a botarem o pé na estrada com mais frequência para garantir o caviar das crianças.

Ignora também as obras eruditas. Não porque são boas ou ruins, mas porque não tenho capacidade de julgá-las adequadamente; sempre desejei que o Milton Ribeiro fizesse um favor às gentes resenhando os danados. Os três discos de The Fireman tampouco foram incluídos, mais ou menos pelas mesmas razões. O primeiro é bem razoável, o segundo é meio chato, o terceiro tem alguns pontos altos; mas não é uma linguagem que eu entenda. Twin Freaks eu mal ouvi. E o Liverpool Sound Collage é apenas Revolution 9 refeito trinta anos depois.

McCartney
O primeiro disco de Paul McCartney é antes de tudo uma reação à música dos Beatles e uma afirmação pessoal diante dos ex-parceiros. Com Paul tocando e produzindo tudo, o álbum vira as costas aos valores de excelência na produção típicos dos Beatles e investe em uma abordagem artesanal, caseira, refletindo em parte a mesma filosofia do projeto Get Back/Let it Be, mas também o cansaço de McCartney com o mundo que o cercava e uma busca por conforto e alegria no seu ofício. Conscientemente, ele tenta se afastar do som da banda, se livrar da influência e participação dos outros no que sentia ser a sua obra, ao mesmo tempo em que tenta resgatar uma simplicidade e uma individualidade que temia perdidas.

O resultado é irregular. De certa forma, sintetiza tudo o que se poderia esperar da carreira de McCartney a partir dali. Um compositor capaz de encher meio álbum com composições de categoria absoluta (Maybe I’m Amazed, Every Night e Junk são dignas de qualquer álbum dos Beatles, e That Would Be Something parece saída do “Álbum Branco”) mas que muitas vezes apostaria em uma visão bem particular que falha em alçar voo, como em Teddy Boy; um músico autossuficiente que muitas vezes deixa claro que se beneficiaria muitíssimo da colaboração de seus colegas de banda (nas mãos dos Beatles That Would Be Something ou Oo You poderiam ser algo muito melhor); e finalmente, um artista que, ao longo de toda a sua carreira, cederia repetidamente à tentação de lançar material mal acabado, canções que com um pouco mais de esforço e critério poderiam resultar em clássicos.

Também joga luz sobre uma atitude generalizada da crítica em relação a McCartney. Uma canção que chama a atenção é Man, We Was Lonely. É praticamente uma antecipação do que Lennon faria no fim daquele ano com Isolation. Ambas falam das pressões, da orfandade sentida a partir do fim da banda, do consolo e segurança encontrados em suas parceiras. E no entanto, no disco de Lennon isso era uma prova do seu talento confessional; no de McCartney, até pelo tom otimista, é considerado apenas uma bobagem. Era um presságio: a crítica seria injusta com Paul McCartney durante muito tempo.

O passar do tempo e a chegada da internet elevaram a reputação deste disco, mas McCartney continua sendo o que era em seu lançamento: um disco irregular, mas principalmente contraditório. Por um lado preguiçoso, relaxado, autoindulgente, o trabalho de um autor consagrado que pode se dar ao luxo de emplacar a sua visão artística, mesmo quando turva. Por outro, além de trazer algumas grandes canções — o objetivo de qualquer álbum —, mostra que McCartney ainda era o artista com lampejos de genialidade musical que encantou o mundo.

A versão da Archive Collection é das que menos traz material inédito, e provavelmente as mais fracas. De interessante, um outtake razoável de Maybe I’m Amazed e a legendária Suicide, composta para Frank Sinatra.

Ram
Desprezado em seu lançamento e depois alçado à reputação de um dos melhores discos de um ex-beatle, Ram é um grande avanço em relação ao seu predecessor. Agora McCartney se queria levar a sério e foi atrás de outros músicos, como Denny Seiwell e Dave Spinoza. De uma riqueza musical que surpreende até quem já conhecia a capacidade de McCartney de criar grandes melodias, Ram finalmente mostra o seu talento real e virtualmente todos os seus pontos fortes.

Não é nos rocks que o disco se destaca — embora excelentes, há sempre algo de leve demais em Eat at Home ou Smile Away. É na sensibilidade entrevista nos números mais lentos, na extrema inventividade que às vezes mal pode ser contida em uma só canção, que Ram se revela um clássico.

Os Lennon acharam que o disco era todo uma estocada neles. Segundo McCartney era só a primeira faixa, Too Many People Too many people preaching practices / Don’t let them tell you what you wanna be. Mas é impossível ouvir 3 Legs (My dog he got three legs / but he can’t run) e não pensar nos seus ex-amigos. Em resposta, John e Yoko escreveram How Do You Sleep?, um ataque fortíssimo abaixo da linha da cintura (The only thing you’ve done was “Yesterday” / But since you’ve gone you’re just “Another Day”); e Lennon chegou a considerar aparecer na capa do álbum Imagine segurando um porco, como resposta à capa deste disco.

Ram é creditado a Paul e Linda McCartney. Na época, a renda dos discos solo ia para um fundo comum e era dividido igualmente entre os quatro. Embora naquele momento, por incrível que pareça, McCartney não fosse o campeão de vendas do grupo (mérito que, por causa do All Things Must Pass, pertencia a George Harrison), ele achou esse arranjo injusto e deu crédito à mulher para ficar, desde o início, com 50% da renda. Os outros beatles não gostaram de mais essa sacanagem.

A versão da Archive Collection traz três discos adicionais. Um é a versão mono do álbum, redundante. São os outros dois que trazem algo realmente interessante. Thrillington, a versão orquestral e apócrifa do álbum que McCartney lançou alguns anos depois e que agora inclui aqui, é surpreendente. Alguns arranjos são excelentes, eventualmente lançando uma nova luz sobre algumas das faixas do LP original, e me arrependo de não ter querido ouvi-lo antes. O outro traz os compactos, outtakes, gravações caseiras e canções inéditas de sempre. Algumas são excelentes, como A Love For You, canção que inexplicavelmente permaneceu inédita durante tempo demais: eu consigo ouvi-la fazendo sucesso nas rádios no fim dos anos 70.

Wild Life
A falta que McCartney sentia dos Beatles era tanta que ele não resistiu e formou um novo grupo. Mas agora nas suas condições: ele era o dono da bola e isso estava claro desde o início. Os resultados não demoraram a surgir, obviamente, e o primeiro álbum do Wings, lançado pouco mais de seis meses depois de Ram, é uma unanimidade: o elogio mais comum que se faz a ele é “medíocre”

Isso é injusto. Pelo menos metade dele é bem boa, das respostas a Lennon — delicada em Some People Never Know, angustiada em Dear Friend — à belíssima balada Tomorrow, passando por um cover brilhante de Love is Strange, que não lembra em quase nada a versão original de Mickey & Sylvia, e o blues que dá título ao álbum, no mínimo curioso. Mesmo o resto deixa antever coisas melhores. I Am You Singer, por exemplo, cresceria muito com um arranjo mais consistente, e Mumbo, com sua letra que não é letra e que acaba lembrando Charlie Chaplin em “Tempos Modernos”, é um rock que ilustra bem a capacidade de McCartney de não se levar a sério demais. Wild Life merece ser mais bem avaliado. Infelizmente foi lançado pouco depois do Imagine de Lennon, uma obra-prima, o que piorou ainda mais a sua imagem. De modo geral, é um álbum que se fosse mais bem produzido, com mais cuidado, poderia ser muito melhor. No fim das contas, é um disco digno ainda que um pouco estranho.

A versão da Archive Collection traz pouca coisa interessante. O melhor é African Yeah Yeah, algo que parece ser uma jam, “incluída por brincadeira. Paul pede desculpas”. No entanto, é curiosa pelo seu frescor e descompromisso, e por mostrar a influência de Linda — fã absoluta de reggae — na banda.

Red Rose Speedway
Este álbum é a razão para eu reescrever esta discografia. Quando o ouvi pela primeira vez, detestei. Meloso, piegas, chato e depressivo: eu o vi como um lamento dirigido a Lennon — basta prestar atenção à letra de Little Lamb Dragonfly para ter essa impressão. Umas poucas audições posteriores não mudaram essa avaliação, e nos últimos trinta anos não me dei sequer ao desfrute de ouvi-lo inteiro.

Eu estava enganado. Red Rose Speedway é um bom disco. Não é brilhante, mas não é ruim — ou pelo menos não tão ruim quanto acreditei por décadas.

Red Rose Speedway, ao menos, traz um um número suficiente de boas canções. Apesar da crítica torcer o nariz, My Love é, sim, uma das grandes canções de amor da história, com uma melodia lindíssima, uma letra que passa o seu recado com perfeição e um solo de guitarra irrepreensível. E canções como One More Kiss e o medley final são puro McCartney. É um disco que pertence ao seu tempo e que traz muito claro o DNA de seu autor, o que possibilitou que envelhecesse com alguma graça. Longe da perfeição, está mais longe ainda de ser a tragédia que sempre julguei ser.

A versão da Archive Collection traz algumas excelentes canções inéditas, como Tragedy, que enriquecem muito o álbum.

Band on the Run
Um disco exuberante, vigoroso, cheio de alegria musical — Band on the Run é o melhor de McCartney até aquele momento, a obra que lhe devolveu o respeito da crítica, e para muita gente o melhor álbum de toda a sua carreira solo, que já ultrapassa meio século. Das notas iniciais da canção-título à sua retomada no final do disco, o que temos é uma obra completa, coesa, bem pensada e executada com brilhantismo. Band on the Run é um dos grandes discos de rock dos anos 70.

A última versão lançada, da Archive Collection, traz acréscimos medíocres. Mais interessante, pero no mucho, é a comemorativa do aniversário de 25 anos. A verdade, no entanto, é que o disco original continua sendo suficiente.

Venus and Mars
Embora não esteja no mesmo nível do Band on the Run, Venus and Mars é um sucessor digno. É possível defini-lo como um álbum que exemplifica com quase perfeição o mainstream do rock na metade dos anos 70 — e não à toa, junto com o Led Zeppelin os Wings foram a banda de maior sucesso comercial daquela década.

Venus and Mars é um disco coeso, suficientemente denso, com um grande apelo pop sem que isso signifique a perda de qualidade roqueira.

No entanto, tem um aspecto curioso: ao contrário de discos inferiores, elevados por dois ou três clássicos em cada, Venus and Mars é um álbum em que o que mais impressiona é o conjunto, a abundância de boas canções e a qualidade média. Talvez seja o melhor “álbum dos Wings”, ou seja, um disco com participação mais efetiva da banda, que tinha encontrado finalmente sua melhor formação. Não houve muitos discos melhores que esse em 1975.

A Archive Collection não acrescenta muito ao que já tínhamos, além dos compactos contemporâneos. Apenas Soily, um belo rock.

Wings at the Speed of Sound
O papel histórico do Speed of Sound é, essencialmente, interromper a fieira de bons discos dos Wings. Só isso.

Depois de uma sequência brilhante, McCartney resolveu aprofundar a fórmula consagrada em Venus and Mars, mas agora sendo mais democrático e cedendo mais espaço para seus companheiros de banda. O resultado é de uma mediocridade espantosa, apesar de duas ou três grandes canções. A maior parte delas é pobre, e a elas falta aquela qualidade inexplicável que torna as grandes canções de McCartney obras atemporais. Pior: em um ano em que a cena musical inglesa via o surgimento de bandas como o Sex Pistols e o Clash, McCartney se sai com esse disco. Não tinha como dar certo.

A Archive Collection, entre outras bobaginhas como Bonzo Bonham na bateria de Beware My Love, traz Must Do Something cantada por Paul, provavelmente porque não havia nada de melhor para desenterrar. A versão original, com Joe English nos vocais, é melhor.

London Town
Que belo disco, esse London Town. Parcialmente gravado em um barco, o Wanderlust, viu o fim da melhor formação dos Wings, com a saída de Joe English e Jimmy McCullough. Mas aqui não fizeram muita falta. London Town reflete a atmosfera relaxada das circunstâncias de sua gravação, bem como o fato de que a banda tinha se solidificado como uma das mais bem sucedidas dos seu tempo. E tudo isso enquanto o punk comia solto lá fora. Assim como no álbum anterior, McCartney ignora o que se faz de novo. Mas ao contrário daquele, é capaz de expor sua visão da música de maneira sólida, coerente e elegante.

Este álbum traz canções magníficas, pop de primeira qualidade. É um um disco que orgulha o seu autor.

Back to the Egg
Este é, sem nenhuma dúvida, o álbum mais subestimado de McCartney. Lançado em 1979, nos estertores do movimento punk na Inglaterra, é vigoroso e variado, suas guitarras sujas dando um ar moderno e roqueiro a uma abundância de boas melodias. Back to the Egg estreava uma nova formação dos Wings, que infelizmente não sobreviveria à prisão de McCartney no Japão alguns meses depois. A média de qualidade das canções individuais é relativamente baixa, embora três ou quatro  sobressaiam, como Getting Closer, Arrow Through Me ou Baby’s Request: a graça do disco está nos arranjos, essencialmente, e na unidade que ele consegue ter. Back to the Egg é álbum para ouvir inteiro, a cada vez.

McCartney II
O Wings estava para acabar e McCartney se trancou em casa com sintetizadores e sequenciadores. O resultado foi o que é, ao menos oficialmente, seu segundo disco solo, nomeado adequadamente.

Nos últimos anos, McCartney II tem sido reavaliado e alçado à condição de grande disco experimental, ousado, etc. Deve ser o resultado da música ruim que se ouve hoje: as pessoas perderam o critério.

Há duas maneiras de abordar esse disco. Uma é colocando-o na tradição do seu primeiro álbum solo: o artista divertindo-se sozinho, fazendo o que lhe dá na telha simplesmente porque conquistou o direito de fazer isso. O outro é fazer de McCartney II um álbum conscientemente experimental, uma obra avant garde.

Infelizmente, este álbum ficou no meio do caminho e não é nem uma coisa, nem outra. É um disco estranho, irregular e insuficiente sob qualquer ângulo que se olhe. Ele inteiro soa amador, mal produzido; sempre de olho na viabilidade comercial do álbum, McCartney tentou compensou a experimentação em faixas como Frozen Jap ou Temporary Secretary com canções claramente destinadas a tocar no rádio, como Waterfalls. E canções como One of These Days mostram que essa experimentação era muito mais intuitiva, quase aleatória, do que proposital. McCartney II era o que tinha para hoje.

Além disso, a maior parte das canções era ruim, ou ao menos displicente. Pouco antes de morrer B. B. King regravou On the Way (para mim, um quase plágio de uma antiga canção de Elvis) e mostrou aonde se poderia ir com parte do material original. Mas a quantidade de músicas ruins — apesar de Coming Up, Waterfalls e One of These Days — não é apenas considerável: são canções muito, muito ruins. Bogey Music , por exemplo, é assustadora.

A versão da Archive Collection ressalta os problemas do álbum original. Embora enriqueça muito o disco, evidencia que boa parte do material deixado de fora poderia ter ajudado a compor um disco instigante, dentro desse propósito experimental. Com um pouco mais de esforço, foco e coragem, McCartney poderia ter feito um disco ao mesmo tempo à frente do seu tempo e contemporâneo. Mas essa, pelo visto, nunca foi a ideia. O resultado é que McCartney II parece o meme do John Travolta confuso.

Tug of War
Depois de um ano em que, pela primeira vez desde 1961, não lançou nada novo, McCartney aparece com um disco em que parecia reagir a um mundo sem John Lennon.

Tug of War é um álbum variado, rico, um dos excelentes de McCartney. Traz uma de suas mais belas canções, Wanderlust (só McCartney para transformar uma canção que se podia chamar de “Baculejo em Alto-Mar” nessa pequena obra-prima), mas todo o disco é de qualidade superior, com força e qualidade. Liricamente, McCartney parece ter tentado ousar um pouco mais, olhar o mundo ao redor, com comentários sociais como Tug of War e mesmo The Pound is Sinking, além da sensibilidade entrevista em Somebody Who Cares, em que ele retoma um velho tema caro ao seu coração, a solidão. E Ebony and Ivory, um dos dois duetos com Stevie Wonder, é uma bela canção, mas tocou tanto que quem estava vivo naquela época tem arrepios aos primeiros acordes.

A versão da Archive Collection é medíocre, trazendo basicamente as demos das canções.

Pipes of Peace
Eu não tenho condições de julgar adequadamente este disco por uma razão muito simples: foi o primeiro que comprei na vida. Ouvi Pipes of Peace até quase furar; conheço cada canção de uma maneira como jamais conhecerei as mais recentes de McCartney. Junte a isso o detalhe de ter passado décadas sem ouvi-lo; reencontrá-lo, portanto, traz lembranças que vão muito além do seu valor estritamente musical e turvam qualquer capacidade de julgamento.

Isto posto, Pipes of Peace é  feito quase exclusivamente com sobras do Tug of War, e algumas faixas denotam o esforço de dar às duas obras alguma unidade conceitual. Algumas boas melodias, algumas boas baladas, mas não passa disso: um disco de sobras. A produção de George Martin é elegante, com algumas boas ideias aqui e acolá, e ajuda a deixá-lo um pouco menos datado do que poderia ser; mas nem mesmo ele consegue fazer com que esse disco supere totalmente as limitações estéticas do ano em que foi lançado, nem o fato de que foi feito a partir de material que, naquele momento ao menos, não tinha conseguido emplacar no Tug of War e, portanto, era de segunda categoria.

Mas ele não é tão ruim quanto dizem por aí. Colocado em perspectiva, é um álbum que em boa parte das faixas traz a força melódica de um compositor que, mesmo em seus piores momentos, é um gênio. Pipes of Peace, no fim das contas, sofre pela presença de duas ou três faixas realmente muito ruins, o que acaba obscurecendo algumas grandes canções, como a faixa-título, Say, Say, Say ou So Bad.

A edição do Archive Collection não pode fazer muito por este álbum, porque onde achar sobras de um disco de sobras?

Give My Regards to Broad Street
Este disco é um equívoco, e isso é o melhor que se pode dizer dele. Trilha sonora do filme patético que McCartney escreveu e estrelou, podia no máximo almejar a ser uma espécie de Yellow Submarine de McCartney — ao menos nos seus sonhos mais delirantes. Give My Regards é um disco malfadado. Algumas canções inéditas, várias regravações, inclusive de alguns de seus maiores clássicos com os Beatles. Infelizmente, nenhuma das regravações é boa: as de Yesterday, Here, There and Everywhere e For No One são pedestres e mancham a história de McCartney, e as versões de canções dos Wings e do próprio Paul são dispensáveis.

Mas nada chama tanto a atenção quanto The Long and Winding Road. McCartney tinha passado quase 15 anos resmungando que Phil Spector destruíra a simplicidade de sua canção. E aí, quando a regrava, é num arranjo ainda mais pesado, com direito aos saxofones horripilantes dos anos 80 e o escambau, uma versão vergonhosa que só a diminui. Ringo Starr, que participa do álbum e do filme, se recusou a tocar novamente nas canções dos Beatles, mostrando um juízo que faltou a McCartney.

Mas o disco não é uma tragédia absoluta. As três canções novas são excelentes. No Values e Not Such a Bad Boy são rocks dignos desse nome, com letras irônicas que não fazem feio; e No More Lonely Nights, o último mega-hit da carreira de McCartney, é uma belíssima balada, enriquecida ainda pela guitarra de David Gilmour.

Para piorar a situação histórica deste disco, ele inaugurou uma prática que McCartney levaria à perfeição canalha nos anos seguintes. Cada mídia trazia uma versão diferente: LP, cassete (que incluía uma gravação de So Bad) e CD (com duas músicas a mais e versões levemente diferentes de outras). Além da sacanagem óbvia com o fã, nenhuma versão faz do disco algo melhor.

Press to Play
Talvez este seja um disco injustiçado. Talvez não.

Ao ser lançado, Press to Play foi recebido com palmas pela maioria da crítica — a brasileira foi, na época, praticamente unânime em elogios. Elogiavam a nova parceria com Eric Stewart, o esforço claro em modernizar o som do velho e bom Macca com o uso abundante de eletrônica.

Mas o tempo passou, e fazendo valer a máxima de que os discos de Paul McCartney são biodegradáveis para a crítica, Press to Play passou a ser considerado um dos piores da sua carreira.

Nem tanto ao céu, nem tanto à Terra. No esforço consciente e evidente de atualização do som de McCartney, Press to Play, abusando de sintetizadores e outras eletrônicas várias, passa do ponto para tentar alcançar esse objetivo. Aqui se vê muitas influências de artistas contemporâneos, e embora tenha algumas boas canções, como However Absurd, Stranglehold e Only Love Remains (e ninguém mais poderia compor Press, por exemplo, uma canção menor que ainda hoje é uma delícia de ouvir), se ressente da falta de unidade e de força criativa, de modo geral. Há muitas canções ruins, fracas. Mas Press to Play talvez pudesse ganhar uma nota maior do que lhe é concedida atualmente.

Snova V CCCP
Em meados dos anos 80, provavelmente sentindo falta da segurança e conforto que só uma banda de rock pode dar, McCartney realizou algumas jam sessions com artistas convidados, sem um propósito inicial muito claro. Entre eles estava Johnny Marr, dos Smiths. O repertório era a música que todos eles tinham em comum: clássicos do rock ‘n’ roll. A partir dessas jams McCartney resolveu compilar um disco que seria lançado apenas na União Soviética em 1988, como uma espécie de “pirata especial”, e finalmente no resto do mundo em 1991. O resultado é irregular. Algumas das versões são muito boas, como Crackin’ Up; outras, como Kansas City, são inferiores ao que ele mesmo já tinha gravado. O disco é um esforço digno, mas a produção simplória tira muito da força que ele poderia ter. É um rock educado, limpo.

O disco ainda não tem uma versão da Archive Collection, o que é uma pena, porque dessas sessões sobraram uma meia dúzia de covers que prometem muito.

Flowers in the Dirt
Em 1989, este disco foi saudado como o retorno de McCartney à boa forma. E com razão. Flowers in the Dirt traz uma exuberância e uma força que faltavam em seus últimos lançamentos. Ao formar uma nova parceria com Elvis Costello, McCartney recobrou uma dimensão lírica que tinha perdido, mas também uma abordagem musical mais instigante.

Este álbum marca o começo de uma nova era para McCartney, 20 anos depois de John Lennon abandonar os Beatles. Ele tiraria o mofo do seu baixo Hofner e se consolidaria como algo mais que um simples músico, mais até que um gênio. McCartney aceitava que, já há alguns anos sem um número 1 nas paradas, seu período à frente de uma revolução havia passado. A música tinha seguido em frente e não precisava mais dele. A partir dali, McCartney se consolidou como algo mais que um ser humano: uma lenda viva, correndo o mundo em turnês infindáveis diante de plateias de adoradores absolutos— entre os quais me incluí, extático, algumas vezes —, em que ele finalmente fazia as pazes com seu passado e passava a viver dele, sem abdicar, no entanto, de uma busca criativa eterna e indefinível que o faz lançar bons discos aos 78 anos.

A versão da Archive Collection traz, basicamente, as demos da parceria entre McCartney e Costello. É muito pouco.

Off the Ground
Depois de um disco muito elogiado, uma turnê que entrou para o Guinness e enquanto se preparava para uma nova excursão, McCartney entrou no estúdio novamente com sua banda.

Podia ter passado sem essa parada. Off the Ground, na falta de adjetivo mais adequado, é um disco frouxo.

Alguns versos de algumas canções são constrangedores; quando McCartney fala na “way we treat our fellow creatures”, um calafrio sobe pela espinha. Algumas canções estão abaixo do medíocre, como Biker Like an Icon.

Mas este álbum não é uma tragédia total. Traz algumas boas canções, como Hope of Deliverance e as duas canções restantes da parceria com Elvis Costello. Mistress and Maid é uma obra-prima, delicada e angustiada ao mesmo tempo.

O problema é que o disco inteiro parece incompleto, mal cozido. Embora não seja ruim, uma canção como Peace in the Neighbourhood nos faz pensar na tragédia que assola os roqueiros felizes. C’Mon People é grandiloquente e chata demais. E é impossível ouvir Cosmically Conscious sem pensar que McCartney teve 25 anos para transformar essa canção em algo decente, e não fez isso.

Na Alemanha e na Holanda, no entanto, McCartney lançou um disco diferente: Off the Ground: The Complete Works, com um CD a mais que incluía faixas inéditas e gravações do MTV Unplugged.

Algumas dessas faixas fazem pensar que, se McCartney fizesse uma escolha mais criteriosa para o seu álbum original, acrescentando canções como Long Leather Coat e retirando desgraças como Get Out of My Way, teria nas mãos um disco muito melhor. Mas vá entender como funciona a cabeça do sujeito.

Flaming Pie
Uma confissão: ao ouvir este disco pela primeira vez, depois de oito anos sem um bom disco de McCartney e quatro sem nenhum, eu fiquei emocionado.

O disco foi gravado depois que McCartney imergiu nas gravações dos Beatles para o projeto Anthology, e em meio a um período difícil na vida de McCartney: a morte de Maureen Starkey e a luta de Linda McCartney e George Harrison contra o câncer. Talvez esse turbilhão emocional e essa reconexão com o passado tenham ajudado a fazer de Flaming Pie o que ele é: uma obra prima, digna do maior gênio da música popular do século XX. Das lembranças das noites com Lennon em The Song We Were Singing ao consolo aos filhos de Ringo em Little Willow, do recado ao filho problemático em Young Boy à beleza delicada de Calico Skies, este disco traz McCartney em grande forma, como não se via há havia muito tempo.

A edição da Archive Collection é uma das melhores da série. Traz uma infinidade de demos, programas de rádio e canções inéditas que o tornam quase um Anthology.

Run Devil Run
Com a morte de Linda, McCartney parece ter ido buscar consolo no que sempre norteou sua vida: a música que ouvia quando adolescente.

Ele já tinha gravado um disco de covers, com resultados medíocres. Mas desta vez o resultado compensou, com sobra. Como era o costume dos Beatles, em vez de clássicos regravados milhões de vezes McCartney deu preferência a canções menos conhecidas. Juntou uma banda de respeito, com David Gilmour na guitarra e Ian Paice na bateria. O resultado é o melhor disco de covers de rock and roll gravado por um ex-beatle, com o peso e a urgência que faltaram a Snova V CCCP e a seriedade que Lennon não quis em Rock and Roll, acrescido de três canções inéditas — que não estão certamente entre seus grandes clássicos, mas não fazem feio num álbum de rock. Run Devil Run é um dos bons discos de Paul McCartney, e nos lembra que, quando quer, ele é um grande artista de covers.

Driving Rain
Esse é outro disco muito subestimado. Muita gente o acha inferior a Flaming Pie. Não é. Talvez essa impressão derive da faixa-título, que abre o disco e que não é o momento mais inspirado da carreira de McCartney.

O fato é que Driving Rain é um excelente disco, forte, coeso com algumas grandes canções e uma abordagem geral sólida e competente.

De certa forma, é um disco que marca um processo de evolução lírica de MCCartney, cuja carreira solo sempre mostrou um esforço deliberado para fugir do autobiográfico. Agora, de repente, algumas canções são um claramente pessoais, como From a Lover to a Friend, um recado à finada Linda, e Lonely Road, uma das melhores interpretações de sua carreira. E Rinse the Raindrops nos faz lembrar que McCartney ainda é um dos melhores baixistas da história.

Driving Rain marca também, de maneira um pouco mais clara, o processo de deterioração da voz de McCartney. É um processo que vinha de décadas — McCartney já reclamava disso em 1969. Mas pouco antes da gravação deste disco, numa discussão com Heather Mills, Paul perdeu a voz por alguns dias. Quando voltou, já não era a mesma. A rotina posterior de shows acelerou ainda mais o desgaste.

Chaos and Creation in the Backyard
Escrevi sobre este disco aqui. Quinze anos depois, não tenho nada a acrescentar ou a retirar.

 

 

 

 


Memory Almost Full
Também escrevi aqui. Nada a acrescentar, também. A não ser o fato de que essa continua sendo a pior capa de um disco de McCartney em seus mais de 50 anos de carreira.

 

 

 

Kisses on the Bottom
Quando este disco foi lançado eu não tinha muitas coisas boas para dizer sobre ele. Acho que nunca falei tão mal de um disco de McCartney. Nove anos depois, minha opinião é um pouco mais complexa — mas só um pouco. Como imaginei, é o tipo de disco que, depois de vencido o estranhamento, e a partir do momento em que você aceita as limitações da voz destroçada de McCartney e o mais-do-mesmo elegante dos arranjos, o que fica é, como já dava para antever, um disco agradável, quase digno, feito para tocar em BG. O tempo lhe fez bem, ao contrário do acontece com a maioria dos discos de McCartney.

New
Demorou cinco anos para que eu conseguisse ter uma opinião sobre esse disco. Minha primeira impressão foi: é uma droga. Só há pouco tempo fui entender o que aquilo significava. O problema de New está na produção. O esforço de McCartney em estabelecer um diálogo com as novas gerações resultou em uma grande bagunça. Produtores demais, eletrônica demais, tudo isso em detrimento da canção. Ao contrário de Nigel Godrich, que enriqueceu a música de McCartney em Chaos and Creation, aqui os produtores transformaram as canções em coadjuvantes. Para piorar, boa parte delas não tem a qualidade necessária para lhes  erguer acima da produção. Aquela característica de McCartney que fazia suas canções parecerem fáceis, lógicas, quase “como não pensei nisso antes?” deu lugar a algo parece um esforço de artesanato evidente, mas não muito convicto de si próprio. Ainda é muito superior à média atual, nesse aspecto; mas já não é o mesmo McCartney de antigamente.

Egypt Station
Comentário aqui.

 

 

 

 

 


McCartney III
Comentário aqui.

O fim da estrada

A Apple Corps. divulgou ontem uma pequena montagem de cenas do documentário que Peter Jackson está fazendo com o material que deu origem ao filme Let it Be.

É empolgante. É uma colagem alegre e quase inimaginável para quem conhece o filme original. Ao que tudo indica, Jackson deu preferência às sessões gravadas no estúdio da Apple — para voltar à banda, George Harrison exigiu que saíssem do estúdio de cinema da Twickenham, onde começaram as gravações do filme —, notoriamente mais alegres. Pelo visto, ele vai cumprir a tarefa de recontar o fim dos Beatles de acordo com o prisma que a Apple quer que passe à história.

Não é algo menor. O filme de Jackson é provavelmente o último esforço de Paul McCartney e Ringo Starr, e em menor medida de Yoko Ono, de controlar a maneira como a sua história é contada. Eles têm idades que variam dos 78 aos 87 anos. É fácil perceber a importância emocional que isso tem para eles. O filme está fora de circulação há décadas. E só para que se tenha ideia, o trecho de menos de 5 minutos impressiona também como um desfile de amigos mortos. John, George, Linda McCartney, Maureen Starkey, George Martin, Mal Evans, Billy Preston: estão todos lá, e todos já se foram. Este filme deve ser a última nota de envolvimento pessoal e emocional da empresa chamada Beatles. Depois dele, tudo de novo que viermos a ver dos Beatles será somente mais tentativa de ganhar dinheiro.

The Beatles: Get Back pode ser finalmente a peça que vai encerrar um ciclo fundamental nas vidas dos dois sobreviventes, amarrar as pontas soltas numa história que, pela sua dimensão cultural e histórica, parecia ter sido apenas interrompida. A palavra final e positiva sobre a trajetória da banda.

Seja como for, qualquer coisa que Peter Jackson soltar vai colocar em evidência o trabalho porco realizado pelo diretor de Let it Be, Michael Lindsay-Hogg. Quer dizer então que ele tinha tudo isso à disposição, mas tudo o que conseguiu foi aquela hora e meia de chatice depressiva?

Eu e milhares de fãs falamos mal de Let it Be há décadas. Mas ver essas cenas tão antagônicas ao material lançado em 1970, em vez de confirmar minha opinião, me fez pensar que talvez eu estivesse um pouco errado ao sempre ter condenado o trabalho do pobre rapaz, porque embora a maneira como editou o filme seja imperdoável em sua incapacidade de construir uma narrativa melhor, ele acabou sendo criticado por algo de que, afinal, tem um pouco menos de culpa do que se acredita.

Imagine-se na pele de Michael Lindsay-Hogg nos primeiros dias de 1969. Você não tem nem a experiência nem o talento necessários para fazer um documentário do porte de um Let it Be; até agora, tudo o que você fez foram uns clipezinhos para a TV, e depois disso não voltaria a fazer nada digno de nota. Você é a pessoa errada na hora errada.

Durante as gravações, você se vê envolvido em toda a crise que estava levando a maior banda do mundo ao final. Acompanha as tensões, talvez seja forçado a tomar lado inúmeras vezes. Quando as gravações chegam ao fim, já faz tempo que você perdeu a objetividade necessária para avaliar corretamente o que tinha acontecido naquele mês trágico.

O material que você tem à disposição é enorme, mas foi colhido sem um roteiro prévio para lhe guiar, e principalmente sem uma ideia clara de como construir um filme a partir daí. Tem de tudo: discussões, brincadeiras, a presença lúgubre de Yoko Ono em um número excessivo de cenas. Você não sabe como organizar tudo isso e construir o drama necessário a uma narrativa. Também tem música, muita música, mas você não entende o que deve e não deve ser aproveitado, e por isso vai se concentrar no que lhe pediram: um documentário com as músicas de um disco que talvez saia um dia. Vendo o tamanho do buraco em que se meteu, você está tentando fazer algo com aquilo quando chega a notícia de que Paul anunciou o fim da banda.

Você devolve a pergunta a Lênin: que fazer?

O que a gente pode perceber vendo o material de Peter Jackson é que, em primeiro lugar, Lindsay-Hogg cometeu o erro grave de dar ao baixo astral visível em Twickenham a aparência de normalidade, e isso é indesculpável. A verdade é que a maior parte do mal estar da banda se devia ao fato de estar em um lugar estranho, desconfortável, gelado, que não fazia nada para mitigar uma crise que não parava de crescer. Não era um reflexo do cotidiano real. Mas há outro aspecto: ele deve ter percebido que, se tivesse feito um documentário que enfatizasse os momentos alegres das sessões, seria universalmente ridicularizado e acusado de falsear a história. Linday-Hogg fez um filme póstumo, e por isso o condenou.

Tudo isso me leva a pensar que há a possibilidade de Jackson construir uma narrativa tão falsa quanto a do Let it Be, uma imagem em negativo do filme original: onde aquele era apenas baixo astral, tensão e brigas, este pode vir a ser exclusivamente alegria, descontração e harmonia. É muito simples fazer isso: basta cortar todas as cenas de tensão, basta esquecer que eles quebraram o pau a ponto de George deixar a banda, ou não explicar por que George chamou Billy Preston para aquelas sessões, não mostrar por que decidiram se apresentar no telhado da Apple em vez de um anfiteatro romano.

Se isso acontecer, este filme será um epitáfio menor do que poderia ser. Uma narrativa equilibrada, que desse aos bons e maus momentos seu peso real dentro daquele mês, e mostrasse as contradições e a variedade de sentimentos conflitantes seria melhor. Não é possível entender o Let it Be sem ter em mente que, mesmo quando estavam se divertindo, a crise estava lá; e mesmo quando brigavam, uma ligação mais forte que o normal ligava aqueles quatro sujeitos. É essa complexidade que deve ser mostrada no filme.

Eu torço para que o filme de Peter Jackson dê a Paul e a Ringo a paz que, no outono da vida, eles parecem precisar. Jackson pode vir a redimi-los, finalmente. The Beatles: Get Back pode ser o final da longa e sinuosa estrada. É o bastante.

McCartney III

Sempre que Paul McCartney lança um disco, é inevitável que as pessoas se façam uma pergunta: será que é o último? Aos 78 anos, ele lançou hoje McCartney III, em que, como nos álbuns com títulos semelhantes lançados em 1970 e 1980, toca todos os instrumentos.

Se for o último, McCartney pode bater as botas tranquilo: é o melhor álbum do velho sir em um bom tempo. Melhor certamente que New, de 2013, e na minha opinião melhor que o Egypt Station, de dois anos atrás. E é melhor principalmente por uma razão simples: a simplicidade.

Os últimos discos de McCartney parecem assolados pela praga da superprodução. Esse sempre foi um defeito seu, é verdade. Mas nos anos 2010 ele parece ter sido elevado à vigésima sétima potência. Em New, em que a maioria das canções é pouco inspirada, McCartney tentava obter uma sonoridade moderna que lhe soa estranha. Em Egypt Station, um número maior de boas canções às vezes patinava na necessidade de ser moderno, no excesso de sons. Daí porque a simplicidade de McCartney III é tão bem vinda.

Talvez isso se deva ao fato de que o disco, não planejado, é um produto das circunstâncias, daquilo que Macca aqui chama de rockdown, num trocadalho do carilho que quase se pode tolerar. A consciência da pandemia, a angústia existencial que tomou conta da humanidade, os dilemas que todos têm que enfrentar no conflito entre ganhar a vida e não morrer, tudo se reflete no álbum.

Como seus antecessores, McCartney III não foge à sonoridade da música pop inglesa atual. Talvez nem pudesse. Mas desta vez Paul parece estar no controle, o que parece lhe permitir adotar a abordagem mais simples em muitos anos e ressaltar a qualidade (ou não) de cada canção. Em seus melhores momentos, traz canções curtas que funcionam muito bem. Em seus piores, traz o velho McCartney que não sabe a hora de parar.

A crítica tem saudado o experimentalismo do disco. É possível ver isso em algumas canções, mas é exagero. Talvez mais acertado seja chamar o disco de simples, contido, e muito bom.

Faixa por faixa:

Long Tailed Winter Bird é um instrumental construído sobre um riff de violão com traços indianos que deriva para um típico groove “mccartneyano”, e serve admiravelmente como introdução ao disco. É provavelmente a música que define o clima do disco como “experimental”, e é surpreendentemente boa. Traz ecos também do primeiro disco do Fireman.

Find My Way é uma bela canção pop que poderia ter sido composta nos anos 80. Simples, direta, agradável como pouca coisa que McCartney fez nos últimos anos. Dela McCartney tirou o primeiro clip.

Pretty Boys fala sobre a relação de fotógrafos e seus fotografados, aparentemente sobre suas sessões como beatle; se você não sabe disso, no entanto, provavelmente achará que é sobre michês. Como provavelmente a pessoa mais fotografada na história da humanidade, McCartney parece ter uma relação ambígua em relação a isso, e o seu lado negativo está explícito aqui. É uma balada que lembra muito as que ele vem soltando ultimamente, mas a instrumentação mais esparsa, contida, ajuda a lhe dar uma beleza que muitas vezes falta em suas similares.

Women and Wives é uma balada em que McCartney abusa de acordes que se tornaram comuns nos seus últimos discos e um piano que parece saído de Chaos and Creation in the Backyard para filosofar sobre o sentido do casamento, suando um moralismo familiar que eventualmente marca sua obra e, eventualmente, o aproxima de George Harrison.

Lavatory Lil é um ataque de McCartney a alguém que lhe sacaneou — e é impossível não achar que ela é dirigida à sua ex-mulher, a perneta que lhe passou uma rasteira memorável. Lembrando muito um blues inglês dos anos 60, é uma das melhores canções do disco, com uma das letras mais diretas e bem construídas. Uma espécie de Poison Ivy com mais veneno, mais raiva e um bom riff copiado de John Lee Hooker. É a melhor canção do disco, a mais espontânea, a mais vibrante, e que serve para lembrar que McCartney, quando quer, é um grande roqueiro à moda antiga.

Deep Deep Feeling é aparentemente uma tentativa de traduzir a angústia de viver sob o lockdown. Deve ser por isso que dura intermináveis oito minutos. Se você olhar por este prisma, a canção cresce e adquire um significado maior. Se não, vai achá-la apenas excessiva, longa demais, com bons elementos aqui e ali. Uma canção que poderia ser boa se fosse editada com cuidado, mas que ainda soa melhor do que soaria se fosse tocada apenas no violão. É também a mais claramente experimental.

Slidin’ seria melhor se fosse uma homenagem à heroína, mas parece ser sobre paraquedismo — ou sobre um urubu, ou uma muriçoca, sei lá. Bom rock, talvez um pouco excessivo — não à toa tem a participação de Greg Kurstin na produção —, mas longe ser uma das piores canções do disco.

The Kiss of Venus vem num tom em que McCartney não pode mais cantar, mas ele insiste. Não muito inspirada, traz uma letra barroca que, diz o autor, é filosófica e profunda. Na verdade é um monte de bobagem enfileirada para parecer fazer algum sentido. Truque velho, que às vezes funciona, mas não aqui.

Seize the Day é uma boa canção, evocando um pouco da criatividade melódica de McCartney. Em alguns momentos ela ameaça crescer e desabrochar, mas para logo com essa frescura e volta a ser a musiquinha menor que é.

Deep Down é talvez a música mais chata do álbum. Basicamente um trecho artificialmente estendido muito além do razoável em estúdio, uma espécie de jam session do eu sozinho. Muita gente, no entanto, vê nela o ponto alto do disco. Tem gente para tudo nesse mundo.

Winter Bird/When Winter Comes é a música perfeita para encerrar o disco: uma típica balada ao violão de McCartney, um lembrete de que nesse estilo ele sempre foi insuperável. Gravada há mais de 30 anos, numa sessão em que George Martin estava presente, ela traz um McCartney com uma voz muito mais jovem, mas já um cinquentão relembrando dos tempos em que saiu dos Beatles e morava numa fazenda na Escócia.

O resultado é isso: o melhor disco de McCartney nesta década.

Que um homem de quase 80 anos consiga fazer um disco como esse é um milagre inexplicável. Independente de sua qualidade, McCartney III já cumpre um papel importante, agregar mais um elemento à lenda de Paul McCartney, definitivamente o maior nome da música popular de todos os tempos. É esse aspecto maior que a vida, o fato de ser um tijolo não importa se grande ou pequeno numa obra monumental, que é visto antes de qualquer outra coisa em um novo disco de McCartney. Não poderia ser diferente.

Sobre música datada

Serge pergunta:

Qualquer sucesso dos Beatles parece uma música que poderia ter sido composta ontem, ou seja, não é datada, enquanto quando ouvimos os sucessos do Elvis, é sempre bom, mas parece coisa do passado. As da década de setenta, paradoxalmente, estão ainda mais datadas que as da década de cinquenta. A que voce acha que se deve isso?

A resposta é simples, e está contida no post anterior.

Porque os Beatles codificaram essa linguagem musical, como Napoleão fez com o Código Civil francês.

Não acho que isso se deva unicamente à sua qualidade intrínseca. Independente dela, essa codificação se deve principalmente a uma convenção, à conjunção perfeita entre os astros. O mundo decidiu, em algum momento, que os Beatles eram o padrão musical a ser seguido, o marco inicial da música que se faria depois.

Eles pegaram aquela música gestada em campos de algodão e acrescentaram a ela a tradição de séculos da música popular europeia, de Bach (que está na base da progressão de acordes de Blackbird, por exemplo) ao vaudeville inglês. Esse talvez seja o seu grande diferencial musical.

Toda a música pop ocidental deriva daí. Talvez não haja comparação possível, por exemplo, entre o Led Zeppelin e os Beatles. Mas o que o Zep, ou qualquer outra banda, fazia tinha no horizonte a música que os Beatles estavam fazendo ou fizeram antes. Podia ser vista como um ponto de partida, um ponto a ser evitado, ou alvo de um esforço deliberado para ignorar, podia ser qualquer coisa: mas era impossível não reconhecer a sombra massiva dos quatro cabeludos de Liverpool.

É a mesma razão pela qual as músicas de Elvis the Pelvis soam menos datadas hoje do que as de Elvis the Putz. Em 1956, Elvis definiu o padrão comercial daquela música que vinha sendo gestada por uma infinidade de artistas, ao miscigenar definitivamente o rhythm and blues e o country and western. Os Beatles não existiriam, literal ou figurativamente, sem Elvis. Em 1972, Elvis já não tinha nenhuma relevância musical havia mais de uma década, e sua música não trazia absolutamente nada de novo. Claro que no período que se seguiu à sua volta da Alemanha Elvis apresentou algumas belas canções, como Suspicious Minds — mas agora havia uma diferença crucial, ele tinha deixado marcar o passo da caminhada, e todas elas, sem nenhuma exceção, vinham a reboque do som que que se fazia na época.

É também a razão pela qual o Kind of Blue, de Miles Davis, parece ter sido lançado ontem (e o Bitches Brew, não).

No caso dos Fab Four, há outros elementos. Em primeiro lugar, os Beatles tinham uma dupla de compositores excepcional. Não apenas pela genialidade musical, mas pela sua dedicação e habilidade como artesãos.

Lennon e McCartney tinham ojeriza ao clichê musical. Estavam sempre em busca de algo novo, diferente. E mesmo quando usavam sequências conhecidas de acordes, algo difícil de evitar dentro da linguagem musical do rock, faziam isso sob uma melodia que trazia algo de permanente e inovador.

A primazia da canção ajudava. Diferente de outras bandas, em que as canções costumam se ajustar ou ser reflexo claro das características de seus integrantes, nos Beatles acontecia o contrário. Eles davam a cada canção o que ela precisava — Yesterday não precisa de nada mais que violão e um quarteto de cordas? Vão ali tomar um chá, John, George e Ringo. Cada canção era maior que a banda.

Sempre defendi que a música dos Beatles é revolucionária desde o início. Mas outras bandas inovadoras se acomodaram com o primeiro impacto, com o seu próprio jeito de fazer música, e nunca passaram disso — provavelmente porque isso era tudo o que tinham, e não é pouco. Ao contrário, os Beatles estavam constantemente tentando evoluir, ir além do que já tinham conseguido. No fundo, eles competiam com eles mesmos.

E é bom não esquecer que a maior banda de todos os tempos era, antes de tudo, um grande conjunto. Eram todos grandes instrumentistas, sem exceção. Alcançaram um nível de interação e harmonia musical entre seus membros sem paralelo em sua geração. Ficava mais fácil fazer da contribuição de cada membro algo individual, claro, mas também em perfeita harmonia com as outras.

Se alguém parar para ouvir Don’t Bother Me, a primeira composição de George Harrison a ser gravada pela banda, vai perceber isso claramente. A estrutura da canção obedece a um padrão simples, descendo de Bm a Em. Mas é no refrão que ela registra o tempo exato de sua composição: não pode haver nada mais Swinging London do que a sequência de Em e A tocada na guitarra — não, é mentira, aquele C e Em de Goldfinger é ainda mais típico. E no entanto, a maneira como a banda toca a música (principalmente o baixo fantástico de McCartney) dá a ela uma dimensão que, sendo outros a tocarem-na, ela jamais poderia alcançar. Os ex-beatles, sem exceção, se ressentiriam da ausência dessa interação durante todas as suas carreiras solo.

A produção também é outro fator importante. Os Beatles tiveram a sorte de cair nas mãos de um grande produtor (e de um excelente engenheiro de som, Norman Smith) que entendia com perfeição o seu papel e as ideias do grupo, e isso ajudou a fazer com que suas gravações soassem diferentes e melhores do que suas contemporâneas.

Mas tudo isso é uma tentativa de explicar o inexplicável. A resposta a essa pergunta é, na verdade, a resposta de um bilhão de dólares. E quem souber, nunca mais vai bater um prego numa estopa para ninguém. Basta pegar quatro cabeludos e montar uma banda.

Réquiem para uma música que morreu

Passei diante de um bar dia desses e de lá dentro ouvi uma banda tocando uma canção do Legião Urbana.

Nada demais. Ou melhor, nada demais se aquela não fosse uma canção com 35 anos de idade.

Essa é a maior prova de que a música pop morreu. Esse é o seu enterro, uma banda tocando “Geração Coca-Cola” em 2020, e aqueles garotos balançando as carcaças ao som de uma canção talvez mais velha que seus pais são a sua second line.

Penso nisso sempre que vejo a meninada ouvindo Beatles como se fosse a última sensação da semana que vem.

Alguns anos atrás, eu estava na fila do show de Paul McCartney em Fortaleza quando olhei em volta e percebi que havia centenas de meninas de 15, 17 anos esperando a abertura dos portões.

Uma garota que tinha feito alguma amizade com minha filha na fila, provavelmente impressionada porque tínhamos adentrado os portões da casa de McCartney em St. John’s Wood alguns dias antes, comentou: “Poxa, eu queria ter um pai assim.”

Ela só não apanhou ali porque eu estava mais preocupado em mijar numa garrafa de água mineral no meio da multidão, e as meninas cumpriam o digno papel de barreirinha.

Porque pouco antes, olhando para a multidão de adolescentes ansiosas para ver um ancião tocar as mesmas músicas que vem tocando há 60 anos, eu só conseguia me perguntar: onde vocês estavam 30 anos atrás? Onde vocês estavam quando eu tinha que me sujeitar a blocos de carnaval em busca da única coisa que me interessava mais que Beatles e Balzac?

Saibam vocês que carnaval é coisa tão ruim e medonha que as pessoas têm que encher a cara para suportar.

Onde vocês estavam quando eu tinha que beber cachaça barata para suportar o batuque irritante e eletrônico daquela música que vinha da terra que me havia parido, enquanto meus olhos se tornavam mais míopes ante a visão tenebrosa das pessoas dançando o fricote e a dança da galinha? Onde vocês estavam quando eu me esgueirava pelo Bar do Bruno, por biroscas inconfessáveis, e calado e com um sorriso bovino ouvia Joana, José Augusto, Roupa Nova, Rosana?

Era uma pergunta retórica, apenas. Eu sabia a resposta. Elas estavam ouvindo a música do seu tempo.

Até então eu me dava por satisfeito por ter chegado aos tempos atuais em idade provecta e não precisar ouvir nem fingir tolerar as barbaridades que hoje passam por música popular. Mas depois daquele momento, quando vejo essa meninada ouvindo essa música tão velha, por melhor que seja, é inevitável pensar em como gostaria que tivessem ouvido quando eu era também adolescente, e lido as coisas que eu lia, e me preservado de descer tão abaixo da minha própria dignidade. Mas para além da minha vida mesquinha e precária, há algo mais grave que isso.

Eu era adolescente e gostava de música de velho, a verdade é essa. Por causa dos Beatles descobri Chuck Berry e Little Richard, e o blues de Chicago, e o jazz de Charlie Parker — na verdade o caminho contrário ao que devia seguir, mas isso é outra história. Em 1985 Beatles tinham acabado havia apenas 15 anos, mas já eram coisa do passado e fora de moda. Já tinham sido até mais, na verdade, mas a morte de Lennon tinha lembrado as pessoas de sua existência e aos poucos seu nome vinha sendo rememorado; além disso, em 1983 houve uma certa comemoração pelos 20 anos de seu primeiro disco — ou era 84 pelas duas décadas de chegada à América, eu não lembro, memória de velho é uma droga.

E era assim que tinha que ser. Porque os Beatles acabaram em 1970 mas a música pop continuou evoluindo. Hard rock, rock progressivo, heavy metal, o punk e a new wave — e do outro lado dos trilhos o funk e o soul, até mesmo a discothèque — e finalmente o rap e o hip-hop, talvez a única coisa realmente forte, verdadeira, que conseguiu enfrentar os anos 90 e 2000, mas que também já se esgotou a ponto de chamarem Kanye West de gênio.

Se você era jovem nos anos 70 e 80, as rádios e as lojas de discos lhe ofereciam a cada dia algo novo, algo que, bom ou ruim, dava um passo à frente em relação à música que você ouvia ontem. No final dos anos 70 e durante a maior parte dos 80, a maior banda da história era uma lembrança e uma referência. Não havia por que lamentar o seu fim, nem mesmo tentar fazer parecer atual o que naquele contexto tinha cumprido seu papel histórico, por mais importante que fosse, e agora era apenas mais uma banda do passado, entre tantas outras e tantos ritmos diferentes. A linguagem que os Beatles tinham criado havia se estabelecido definitivamente, e partir dali milhares de músicos em todo o mundo continuaram a criar algo novo, sem parar.

Algo aconteceu nos anos 90, no entanto: a música pop se esgotou e a internet chegou ao comum dos mortais.

É só olhar para trás e ver que, no campo da música popular, o melhor que aquela década e as seguintes produziram, e continuam produzindo, representava antes de tudo um diálogo com o que veio antes. Oasis nunca passou de sub-Beatles requentado para os anos 90, alimentando-se de tudo o que tinha acontecido naqueles 25 anos. Nirvana é uma apropriação muito própria do punk, e o último suspiro de uma linguagem que tinha esgotado suas possibilidades. O mesmo vale para a MPB, com a diferença de que aqui eram os nomes de sempre tentando fazer o que sempre fizeram enquanto competiam com a revolução do axé music, o pastiche de terceira que é a música sertaneja e a chegada do funk carioca ao resto do país — ou, o que se tornaria praticamente a norma nessa música de “elite”, meninos requentando o que já era velho antes deles nascerem.

E essa é a parte boa. A parte ruim é muito pior do que os mais horripilantes pesadelos de Thomas Edison. À medida que a tecnologia tornou a produção musical acessível a qualquer um, e depois que a internet quebrou o monopólio de distribuição de produtos culturais, abriu-se uma caixa de Pandora que, a cada dia, não cansa de lançar horrores a uma humanidade que não tem mais na música a relação de definição de identidade e comunhão que teve em décadas anteriores. Não é apenas a produção computadorizada, homogeneizante e desumanizadora. Acontece que, bem ou mal, a estrutura de produção e distribuição de produtos culturais fazia uma triagem mínima — havia, afinal, um lado bom na indústria musical. E assim como, tendo nas redes sociais a ferramenta necessária para ignorar a mediação da mídia, o povo elegeu Bolsonaro, ao poder produzir e distribuir música sem intermediários ele gerou essas atrocidades que hoje passam por música e que fazem o mainstream musical de hoje: um mundo que adora Anitta.

Mas os resultados vão muito além da estética.

Durante algumas décadas do século XX, a música unificou e canalizou as ideias de gerações, tornou-se um elo de ligação entre pessoas das mais variadas origens e destinos. Isso acabou, fragmentando-se em produtos direcionados para nichos e que se prestam essencialmente como combustível para pequenos transes hedonistas e efêmeros.

É por isso que aqueles garotos ouvindo Legião Urbana me incomodaram tanto. É muito triste quando uma geração inteira se resigna a aceitar como referencial a música de meio século atrás, porque ficou mais fácil convencê-la disso. Alguém consegue imaginar a juventude dos anos 60 ensaiando uma mudança profunda de costumes e percepções enquanto ouvia a música feita não 30, mas 15 anos antes — ouvindo Frank Sinatra e Glenn Miller? Um doidinho em Hashbury balançando a carcaça em meio a uma miríade de cores de LSD e ao som de Al Jolson?

Eu não. Talvez seja mais uma das tantas deficiências minhas. Não importa. O que sei é que sinto um desânimo profundo ao ver relançamentos de discos dos Beatles entre os mais vendidos. Não significam uma vitória da boa música. Significam, ao contrário, a sua derrota.

Get Back

Em algum momento deste ano, provavelmente setembro, a Apple Corps. lançará um documentário feito a partir das dezenas de horas de negativos do filme que nasceu para a televisão como Get Back e acabou nos cinemas como Let it Be. Pelo menos por enquanto, se chama The Beatles: Get Back.

Devo ter escrito mais sobre o Let it Be neste blog do que sobre qualquer outro aspecto dos Beatles.

Resumindo o que já escrevi: Let it Be é um dos filmes mais chatos da história. O diretor Michael Lindsay-Hogg não tinha o talento nem a experiência necessários para conseguir tirar algo realmente bom de uma banda em franco processo de desintegração. O filme original já foi restaurado há muito tempo, mas uma série de questões, principalmente pessoais, impediram o seu relançamento. O disco que acompanhou o filme só não é o pior dos Beatles porque tem algumas de suas melhores canções, mas é mal produzido e em nenhum momento consegue realizar nem a visão original, crua, básica, nem atender ao padrão cafona e superproduzido de Phil Spector, que foi chamado para consertar as coisas. O álbum Let it Be… Naked, lançado em 2003 como uma tentativa de McCartney dar a última palavra para restaurar a “visão original” do disco, não fez nada para melhorar a situação, sendo provavelmente o pior dos caça-níqueis lançados a partir de 1994.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção no filme é que a história que ele contava, no fundo, era uma história otimista, de superação pela música. Fosse outro o desenlace da história e ele mostraria como uma banda em crise se reuniria nos estúdios de Twickenham, onde o frio das almas era ainda maior que o do estúdio, ganharia nova vida ao se mudarem para os estúdios da Apple, e terminaria na apoteose do show no telhado, onde o futuro se mostraria quente e ensolarado porque, para aqueles quatro sujeitos, a música nos salvará a todos.

Mas a banda acabou ainda antes do lançamento do filme, e Let it Be se tornou um epitáfio melancólico e mal feito, indigno do que tinha sido a maior e mais influente banda de rock de todos os tempos.

O tempo passou e nos últimos anos os Beatles e suas viúvas, sentindo o bafo da indesejada das gentes cada vez mais quente em suas nucas, vêm se empenhando em consolidar e deixar para a posteridade sua versão de sua própria história. A série Anthology nos anos 90, retomada de um projeto iniciado por McCartney ainda antes do fim da banda, foi o primeiro passo. Eight Days a Week, o documentário medíocre dirigido por Ron Howard e lançado em 2016, foi mais um tijolo nessa construção, e o mais radical: fingiu que Pete Best não existiu, deu aos Beatles uma importância histórica maior do que a que realmente têm, e o resultado foi quase um conto de fadas, que jogou para baixo do tapete tudo o que havia de ruim na carreira dos Beatles até aquele momento.

De certo modo, é um esforço compreensível, embora se possa questionar sua honestidade, justamente uma das maiores qualidades da banda.

Faltava decidir o que fazer com o Let it Be. Meio século de distância, tempo mais que suficiente para apaziguar mágoas, apagar muitas das más lembranças e fortalecer as boas, e a necessidade de fazer a caixa registradora tilintar garantiram a retomada do projeto. Não é nenhuma surpresa, claro: todos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, o Let it Be seria relançado.

Sempre achei que a Apple deveria entregar os rolos para Martin Scorsese e deixá-lo recontar a história. Scorsese, que acima de tudo ama rock and roll, saberia reeditar aquele material e lhe dar uma narrativa coerente e o drama necessário para torná-lo interessante.

Mas as coisas não saíram bem assim. Em vez de simplesmente relançar o Let it Be, resolveram fazer um novo filme. No lugar de Scorses, a Apple preferiu Peter Jackson, provavelmente porque terá mais controle sobre o produto final. A julgar por They Shall Not Grow Old, seu belo documentário sobre a I Guerra Mundial, Jackson pode fazer um bom trabalho, algo que transcenda o interesse apenas aos fãs. Mas a essa altura é bom não fazer apostas. A possibilidade de sair algo chapa branca e quase irreal é muito, muito grande.

É quase certo que o novo filme mostrará, em sua quase totalidade, rostos cordiais sorrindo enquanto fazem música. Os estúdios de Twikenham se transformarão em um ambiente cálido, cheio de ternura entre quatro irmãos que se amam e amam a música que fazem. Eu não duvidaria que, no final, saiam todos voando do telhado da Apple em direção ao céu, como em “Milagre em Milão”.

Por um lado, isso não é tão ruim quanto parece ser. Eles podem estar tentando adocicar a história dos Beatles, mas é inegável que ela foi prejudicada pelo fato de John Lennon ter sido o seu principal narrador. Como lembrou Ian MacDonald, Lennon se comportava quase sempre como o pecador arrependido, olhando para trás com vergonha ou, no mínimo, iconoclastia. Em entrevistas como a da Rolling Stone em 1970, Lennon destilou ódio e ressentimento contra a banda e principalmente McCartney, inclusive às vezes mentindo descaradamente (o que ele admitiria em suas últimas entrevistas). Lennon dizia sandices como a parceria ter acabado em 1964 (refletindo a mágoa com o fim dela, no fundo), ou que o melhor trabalho da banda foi realizado no início, tocando ao vivo, e sequer fora gravado (refletindo, por sua vez, a ascensão de McCartney como motor dos Beatles). Apenas o carisma descomunal de Lennon justifica que tanta gente tenha acreditado no que eram mentiras óbvias.

Depois da morte do ex-parceiro, McCartney passaria a vida tentando contrapor essa narrativa, ao limite da cretinice. Primeiro reafirmando o seu papel na banda, reivindicando parte da glória que ele acha que lhe foi injustamente tirada e tentando se livrar de duas décadas de ataques quase sempre injustos da crítica. Depois, mais velho e mais seguro, consolidando a versão de uma banda que, acima de tudo, se amava profundamente.

Como todo mundo, não faço ideia do que será esse documentário. Será uma remontagem do Let it Be? Um documentário com narração em off? Terá a participação dos remanescentes como a série Anthology? Permitirão que Yoko Ono tenha voz, o que não fizeram até agora? Ninguém sabe.

Sei apenas o que eu faria: um documentário sobre a feitura do filme, em duas partes de duas horas. Com narração em off e sem a participação dos quase octogenários ex-beatles. Tentar acompanhar de maneira linear os acontecimentos daquele mês — os conflitos, as tentativas de fazer música, a saída de George, a volta aos estúdios da Apple, as discussões sobre o passado e o futuro da banda, os preparativos para o show no telhado — certamente daria o que falta em densidade narrativa. E certamente tentaria equilibrar os maus momentos (como este, que dificilmente será mostrado) com os bons.

***

A parte musical promete ser mais interessante.

É certo que vão relançar o Let it Be remasterizado. Eu não gosto das remasterizações recentes da banda, acho que carregam demais nos graves, mas esse disco é talvez o único que merecia um trabalho realmente profundo. O Let it Be sempre soou estranho, abafado, e a remasterização de 2009 não conseguiu resolver esse problema. Só acho que poderiam relançá-lo com a capa da edição americana, dupla, com a maçã vermelha no selo, e com o livro que originalmente o acompanhava.

Mas essa é a chance de lançar também o Get Back original, com a capa que recriava a do Please Please Me e que simbolizava não apenas a evolução da banda, mas também o fim de seu ciclo.

E, principalmente, eu mergulharia nas centenas de gravações feitas naquele janeiro de 1969.

Há uma infinidade de gravações fantásticas, embora talvez pouco comerciais. Por exemplo, Get Haus (Get Back em algo que parece alemão); Get Back numa versão mais lenta e pesada (conhecida com Get Back Under Water); Get Back, I’ve Got a Feeling e I Lost My Little Girl cantadas por John e Maxwell’s Silver Hammer trucidada por ele, que desprezava a canção; uma demo de Gimme Some Truth (que tem participação de McCartney na letra); Eddie You Dog; Almost Grown; You Win Again; Madman a-Coming; e I Want You e I’m so Tired cantadas por Paul. Versões interessantíssimas de Two of Us, I’ve Got a Feeling, Oh! Darling em rimo latino, Suzy Parker, Bad Finger Boogie, Honey Hush, Gone, Gone, Gone, Twenty Flight Rock High Heeled Sneekers, Watching Rainbows, bobagens como On a Sunny Island, ultrajes como Negro in Reserve e When You’re Drunk You Think of Me e What’s the Use in Getting Sober?, obviamente Commonwealth e No Pakistanis, Get Off (que daria em Dig It), Tennessee, Friendship (por irônica que possa parecer), Midnight Special. E, claro, fecharia com a versão de Love Me Do com Billy Preston nos teclados. Full circle, diriam eles.

Mas sou capaz de apostar que muito pouco disso verá a luz do dia, oficialmente. Eles devem fazer o que vêm fazendo: um bocado de outtakes medíocres das canções já lançadas. Por sorte, tudo isso está disponível em discos piratas, facilmente encontráveis na internet, e cada vez mais se espalha pelo YouTube.

De resto, let it be.

Yoko Ono

Uns anos atrás, um comentário a uma foto de Yoko no Instagram me chamou a atenção.

Alguém teve a pachorra de deixar ali uma série de ofensas à velha dama, acusando-a de ter acabado os Beatles e enveredando pelo racismo puro. Podia ser apenas mais um lembrete do fato triste de que as redes sociais desvelaram a imbecilidade global antes contida em cada pessoa ou pequeno grupo; mas era muito mais que isso. Imediatamente pensei que, se Lennon estivesse vivo, talvez tivesse que cantar novamente para ela dois versos de I’m Losing You, do seu último disco: “But hell, that was way back when / Well, do you still have to carry that cross?

É impressionante que alguém, mesmo meio século depois, ainda tenha que conviver com isso, com esse ódio impessoal que, ainda que fosse justificado, deveria ter arrefecido com o tempo. Não interessa que tenham se passado 50 anos desde que a queridinha das gentes acabou, em meio a uma briga excessivamente pública. As pessoas ainda odeiam Yoko Ono porque a elegeram para a desgraçada que acabou com os Beatles.

E não foi.

Em 1968, a banda estava em crise por várias razões, a menos importante das quais não era a musical. A chegada de Yoko pode ter ajudado a catalisar algumas das tensões já presentes, pode ter sido mais um fator para o seu fim; mas ela não tinha como terminar algo do qual não era parte. Os Beatles estavam acabando porque seus fundadores tinham se tornado adultos; porque cinco anos de pressões inimagináveis cobravam sua conta; porque sua situação financeira era caótica; porque suas concepções musicais se tornavam divergentes ou, no mínimo, mais individuais; porque Lennon, com alguma razão, e Harrison, sem nenhuma, achavam que a banda os limitava; porque a mudança no centro de gravidade da banda de Lennon para McCartney deu início a uma nova dinâmica de poder e influência dentro do grupo.

Nesse aspecto, a injustiça com Yoko é ainda maior. Naqueles momentos em que Paul McCartney consegue disfarçar bem o seu desconforto, lembra uma coisa importante: ele acha que Yoko salvou a vida de Lennon.

Há muito tempo me pergunto se, fosse outro o destino e Lennon tivesse conhecido Yoko em outra fase de sua vida, sua fascinação pela mulher e pela artista teria sido a mesma. Lennon em 1967 era um sujeito absolutamente perdido. Os Beatles tinham deixado de excursionar, o que para outra banda teria significado seu fim imediato, e ele passava seus dias em um torpor que misturava apatia e consumo exagerado de LSD. Isso é perfeitamente visível na sua produção no período. A contribuição solo de Lennon ao Sgt. Pepper’s é pífia, quase coadjuvante — o que é, aliás, a razão do seu eterno despeito em relação ao álbum. Descontando Strawberry Fields Forever, uma canção genial mas que também deve muito ao trabalho feito no estúdio, suas duas melhores canções no álbum, Lucy in the Sky with Diamonds e A Day in the Life, são parcerias ainda que desiguais com McCartney. Tente imaginar A Day in the Life, especificamente, sem a segunda parte cantada por Paul, sem o “I’d love to turn you on”, e sem as ideias orquestrais que poderiam ser creditadas, no mínimo, à participação coletiva da banda e de George Martin: seria só mais uma excelente canção simples como Watching the Wheels, composta em Weybridge por um eremita com surtos esporádicos de inspiração, um sujeito que passava o dia viajando diante de uma televisão com o som desligado, frustrado com aquilo em que sua vida parecia ter se resumido: um casamento fracassado, um filho com o qual jamais teria alguma intimidade e uma banda em que o poder real se consolidava a cada dia nas mãos de seu melhor amigo, maior parceiro e maior rival.

Não dá para saber se outro Lennon, livre das drogas e um pouco mais seguro de si em relação ao seu papel na banda e no mundo, teria reagido da mesma forma ao ir à exposição de Yoko na Indica Gallery em novembro de 1966, se enxergaria nela a “mulher-dragão” que lhe daria a proteção e o estímulo de que ele precisava com desespero.

Yoko supriu em Lennon a necessidade de alguém que fosse ao mesmo tempo mãe, amante e parceira. Ela conseguia ocupar, sozinha, o espaço de Julia, Mimi e McCartney, e um pouquinho mais. Em Yoko, Lennon encontrou alguém que podia respeitar intelectualmente e na qual podia se apoiar sem medo. De certa forma, era uma McCartney que ele podia levar para cama.

Infelizmente, isso ajudou a desarticular toda a estrutura de funcionamento dos Beatles, em um momento particularmente difícil. Enquanto as mulheres dos Beatles se adequavam ao que tinha se estabelecido como uma divisão natural do trabalho e seus espaços nas vidas de cada um, Yoko instigava e forçava a si mesma dentro de um ambiente que lhe era hostil.

Não era algo inocente. Yoko não era burra e era extremamente ambiciosa. Talvez as coisas não sejam tão frias e objetivas como podem parecer, mas Lennon e os Beatles eram claramente a sua grande chance na vida: ela percebia que ali estava, no mínimo, uma oportunidade única de dar visibilidade ao seu trabalho, e eu não duvidaria que, em algum momento de delírio, ela tenha acalentado ao menos secretamente o sonho de se tornar parte da banda. Pelo menos em um momento inicial, Yoko tentou aproveitar a proximidade dos Beatles para fazer deslanchar sua carreira, quase como um parasita daquele tipo que mata o hospedeiro. McCartney reclamaria que, durante as filmagens do que viria a ser o Let it Be, ela sempre dava um jeito de ficar diante das câmeras, muitas vezes fazendo o seu próprio trabalho. Mais tarde, o que ela permitiu (e provavelmente incentivou) que Lennon fizesse com seu filho mais velho, Julian, foi desumano (curiosamente, tanto o filho dela, Sean, quanto Julian são músicos. E a ironia é que Julian é infinitamente mais talentoso que Sean; vale a pena escutar sua discografia). Nisso qualquer fã dos Beatles tem razão: sua presença era desagregadora.

Mas ela só podia fazer o que Lennon permitia. Foi Lennon quem levou sua cama para os estúdios quando ela sofreu um aborto; quem insistiu para que ela aparecesse no Let it Be e nas fotos de publicidade do conjunto; foi ele quem de repente tentou impor uma mulher estranha a uma banda singularmente coesa, o “monstro de quatro cabeças” como definiu Mick Jagger.

Acho que inconscientemente Lennon acreditou que isso poderia redefinir a estrutura de poder dentro da banda. O resultado foi o contrário: a manobra de Lennon acendeu o pavio para a implosão dos Beatles. E sob vários aspectos, essa foi a pior coisa que poderia acontecer a Yoko.

Dentro do seu campo, da sua linguagem, Yoko era uma artista capaz, até onde minha ignorância e desdém por esse tipo de arte me permitem avaliar. Entendo ainda menos de arte de vanguarda do que de mecânica de aviões — mas pelo menos gosto de aviões. Ainda assim, acho Cut Piece um negócio interessante. E por inaudíveis que sejam seus discos de esgoelamento, o fato é que ela tinha uma ideia do que queria dizer, um conceito claro do que era arte, e é até possível ouvir ecos da música que ela fazia nos discos do B-52’s. Finalmente, quem quer que tente escutar sem preconceitos o Some Time in New York City, de 1972 — e conseguir abstrair sua voz irritante—, vai perceber que as canções de Yoko estão, no mínimo, no mesmo nível das de Lennon.

Lennon reconhecia e respeitava, talvez até mais que o justo, o talento e a capacidade de sua nova parceira. Juntos, os dois embarcaram em uma bad trip típica dos anos 60, com bed ins, surtos de messianismo odara, uma exposição de suas vidas sem precedentes na cultura de massas e a tentativa de fazer de suas vidas uma obra de arte, tudo condizente com a concepção artística de Yoko e que John, sempre em busca de algo para preencher o seu vazio, abraçou incondicionalmente.

Fãs podem reclamar, mas o Lennon que entrou para a história foi exatamente esse recriado por Yoko Ono, um Lennon sem humor, que se levava a sério demais e que acabaria se tornando ícone de uma paz que, em sua vida privada, ele jamais seria capaz de alcançar.

O mais irônico é que, enquanto as pessoas culpam Yoko pelo fim dos Beatles, em vez disso deveriam agradecê-la por algo que é realmente responsabilidade sua: impedir a reunião da banda. Em 1974, solto em Los Angeles, longe de Yoko, Lennon considerou a possibilidade de voltar a compor com McCartney. Se isso ocorresse, uma volta dos Beatles seria possível, embora talvez sem George Harrison. Mas antes ele reatou o casamento com Yoko (ironicamente por intermédio de McCartney), e é impossível saber o que resultaria dessa reunião hipotética. Do ponto de vista das composições, é provável que o nível subisse bastante. A competição e colaboração entre os dois certamente traria bons frutos. E é possível que a própria realização das canções melhorasse bastante. Só não dá para deixar de lembrar que o tempo dos Beatles havia passado e que o mais provável é que essa reunião apenas quebrasse a mística da banda.

Foi nesse momento que se consolidou definitivamente a lenda do johnandyoko, do casal 20 do rock, do rock star feliz em casa fazendo pão e cuidando do bebê enquanto a mulher ia para a rua garantir sua fortuna, ou pelo menos assim diz a lenda.

Nunca foi bem assim. Naqueles seus últimos anos, Lennon voltou à apatia em que se encontrava quando conheceu Yoko. Mas ele tinha se tornado dependente dela, em sua eterna busca pela mãe que o tinha rejeitado. Yoko não tinha esses problemas, e quando percebeu que o casamento estava condenado, tratou de arranjar um amante, Sam Havadtoy, rapaz novo que logo depois da morte de Lennon ela passou até mesmo a vestir com as roupas do defunto, num relacionamento muito mais duradouro que o seu com Lennon.

E então veio o dia 8 de dezembro de 1980, a partir do qual Yoko Ono se tornaria a curadora da memória de John Lennon e a mais feroz guardiã do seu legado.

Ela até podia frequentar outras camas, mas nisso ela foi extremamente fiel ao falecido. Uma constante na vida de Lennon foi o seu esforço em passar uma imagem idealizada e edulcorada de si mesmo. O rebelde, o artista corporificado, o revolucionário da classe operária, o homem que vivia uma história de amor perfeita. Yoko cumpriu o seu desejo. A imagem quase santificada de Lennon, do gênio que mudou o mundo com uma mensagem de paz e amor e se tornou o grande mártir do rock and roll, que ela passa ainda hoje às portas da morte, não condiz com que o se sabe sobre ele; mas é uma imagem vitoriosa e, acima de tudo, leal, seja lá por quais razões for.

E ela fez tudo isso às custas, de certa forma, de seu próprio sacrifício. Seu envolvimento com os Beatles tirou, para sempre, a sua individualidade — e paradoxalmente teve o efeito contrário do que ela parecia querer naqueles primeiros anos. Ela jamais será lembrada por outra coisa que não John Lennon. A exposição e a riqueza que Lennon lhe possibilitou garantiram que ela continuasse produzindo, mas a avaliação dessa produção será sempre contaminada por sua história com os quatro rapazes de Liverpool.

A aura inexplicável que beatifica os Beatles, que desculpa e justifica todas as suas ações e os torna imunes a virtualmente toda crítica, é a mesma que demoniza todos aqueles que cruzaram seus caminhos, como Allen Klein. É a mesma que faz pessoas dizerem, ainda hoje, desaforos em seus posts no Instagram. Yoko, inocente ou não, é mais uma vítima dessa aura. No fim das contas, o preço que ela pagou foi bem alto.

O tempora, o mores

No dia 4 de novembro de 1963, a apresentação dos Beatles diante da família real inglesa no Royal Variety Performance entrou para a história por uma frase dita por Lennon antes de introduzir Twist and Shout: “Para o próximo número, gostaríamos de pedir a sua ajuda. As pessoas nos lugares mais baratos, batam palmas. Ao resto de vocês, basta chacoalhar as joias”.

A frase entrou para a mitologia do rock and roll. Todo mundo conhece.

Mas isso foi há quase sessenta anos. Os tempora passaram e os mores mudaram muito.

Hoje a frase de Lennon seria vista como uma brincadeirinha de roqueiros inconsequentes e superficiais que apenas querem aparecer, que afinal de contas a família real não merece muito respeito desde Charles e Diana, e sua repercussão se daria apenas em pequenas bolhas na internet. Os tempora não perdoam.

Não é nada que mereça muita atenção, no fundo. Falar sobre isso é apenas repetir as platitudes que recheiam virtualmente tudo o que se fala sobre essas coisas na internet. Mas dia desses, revendo a apresentação, um detalhe me chamou a atenção. E esse detalhe diz mais sobre estes tempos estranhos que vivemos que a boutade pseudo-operária de Lennon.

Na introdução a uma canção anterior, a maneira como McCartney apresentou Till There Was You hoje seria amaldiçoada, e geraria protestos ainda mais fortes.

Durante esse mais de meio século ela passou despercebida, porque naquele tempo foi vista apenas como uma piadinha boba e trivial, e a importância política e simbólica da frase de Lennon era muito maior naquele contexto.

Mas, repito, os tempora mudaram. Mas é o tipo de piada que hoje não é mais permitida, porque as sensibilidades mudaram.

E então é possível entender o escândalo que nasceria quando lá foi McCartney para o microfone dizer que a próxima canção “é do musical The Music Man e também foi gravada pelo nosso grupo americano preferido, Sophie Tucker.”

Ah, se isso fosse hoje. O mundo das redes cairia. E aí, aí nem a cara de menino doce criado por vó de Paul o salvaria da ira justa do mundo.

As críticas mais suaves falariam da sua gordofobia ou da sua gerontofobia e da sua indelicadeza.

Milhares de pessoas iriam teorizar sobre isso em posts lacradores. Bolsominions, moristas, olavistas e outras variedades de simplórios acusariam os Beatles de comunistas, abortistas, satanistas, beneficiários canalhas da Lei Rouanet.

Negros reclamariam que não se sentiram representados e que os Beatles representavam a branquitude de uma classe opressora há 300 anos e que não percebe seus privilégios.

LBGTs, ou seja qual for a sigla atualmente utilizada, diriam que a atitude dos Beatles era francamente homófoba.

Feministas fariam passeatas chacoalhando não banha nem peitos gelatinosamente balouçantes — a não ser que fossem as maluquinhas do FEMEN, que disfarçam peitos belos sob ataques de histeria neonazista —, mas cartazes pitados ‘a mão: “Gordo é o seu preconceito, Paul”.

Pessoas com deficiência diriam que aquilo não mascararia a atitude canalha e ofensiva dos Beatles, especialmente Lennon, diante do que chamavam derrogatoriamente de aleijados.

Sophie Tucker, por sua vez, ganharia os jornais se dizendo muito abalada. Contaria a história de dias de sofrimento, a luta contra a depressão que essa frase a fez empreender. A velha gorda podre de rica falaria do seu sofrimento. Talvez processasse os Beatles e destinaria o dinheiro para o Retiro dos Artistas.

E quando tudo estivesse prestes a amainar, quando outro escândalo de igual importância surgisse, apareceria alguém para dizer que, ao chamar Tucker de gorda, McCartney estava ofendendo os vegetarianos; para isso, um raciocínio tortuoso que me vejo absolutamente incapaz de formular seria construído.

Talvez McCartney tentasse se desculpar. Diria que Tucker era um grupo pela dimensão do seu talento, não por ocupar duas poltronas no avião. Diria que não foi sua intenção magoar ninguém — nunca é.

E em duas semanas, claro, tudo isso desapareceria.

Ninguém lembraria mais, com exceção daqueles mais rancorosos que, a cada menção sobre os Beatles, tiraria esse evento de sua gaveta mental e escreveria um texto lacrador no Facebook — ou, pior, aquelas sequências odiosas de tweets, mais ou menos como hoje lembram que dona Elizabeth Bishop um dia elogiou o regime militar de 1964.

Depois disso, os Beatles gravariam Revolver e Sgt. Pepper’s, mas ninguém ouviria. Sua música desapareceria, ficaria restrita a alguns guetos, até ser resgatada como influência por uma banda cool dos anos 2030. Talvez até seguissem a sina abjeta do Ultraje a Rigor, ser o Caçulinha do Danilo Gentili — e certamente John Lennon teria que antecipar a sua frase sobre os Beatles serem mais famosos que Jesus, para ver se conseguiam ainda algum espaço na mídia. Mas ele não teria sucesso, e os Beatles entrariam para história como uma nota de rodapé.