Réquiem para uma música que morreu

Passei diante de um bar dia desses e de lá dentro ouvi uma banda tocando uma canção do Legião Urbana.

Nada demais. Ou melhor, nada demais se aquela não fosse uma canção com 35 anos de idade.

Essa é a maior prova de que a música pop morreu. Esse é o seu enterro, uma banda tocando “Geração Coca-Cola” em 2020, e aqueles garotos balançando as carcaças ao som de uma canção talvez mais velha que seus pais são a sua second line.

Penso nisso sempre que vejo a meninada ouvindo Beatles como se fosse a última sensação da semana que vem.

Alguns anos atrás, eu estava na fila do show de Paul McCartney em Fortaleza quando olhei em volta e percebi que havia centenas de meninas de 15, 17 anos esperando a abertura dos portões.

Uma garota que tinha feito alguma amizade com minha filha na fila, provavelmente impressionada porque tínhamos adentrado os portões da casa de McCartney em St. John’s Wood alguns dias antes, comentou: “Poxa, eu queria ter um pai assim.”

Ela só não apanhou ali porque eu estava mais preocupado em mijar numa garrafa de água mineral no meio da multidão, e as meninas cumpriam o digno papel de barreirinha.

Porque pouco antes, olhando para a multidão de adolescentes ansiosas para ver um ancião tocar as mesmas músicas que vem tocando há 60 anos, eu só conseguia me perguntar: onde vocês estavam 30 anos atrás? Onde vocês estavam quando eu tinha que me sujeitar a blocos de carnaval em busca da única coisa que me interessava mais que Beatles e Balzac?

Saibam vocês que carnaval é coisa tão ruim e medonha que as pessoas têm que encher a cara para suportar.

Onde vocês estavam quando eu tinha que beber cachaça barata para suportar o batuque irritante e eletrônico daquela música que vinha da terra que me havia parido, enquanto meus olhos se tornavam mais míopes ante a visão tenebrosa das pessoas dançando o fricote e a dança da galinha? Onde vocês estavam quando eu me esgueirava pelo Bar do Bruno, por biroscas inconfessáveis, e calado e com um sorriso bovino ouvia Joana, José Augusto, Roupa Nova, Rosana?

Era uma pergunta retórica, apenas. Eu sabia a resposta. Elas estavam ouvindo a música do seu tempo.

Até então eu me dava por satisfeito por ter chegado aos tempos atuais em idade provecta e não precisar ouvir nem fingir tolerar as barbaridades que hoje passam por música popular. Mas depois daquele momento, quando vejo essa meninada ouvindo essa música tão velha, por melhor que seja, é inevitável pensar em como gostaria que tivessem ouvido quando eu era também adolescente, e lido as coisas que eu lia, e me preservado de descer tão abaixo da minha própria dignidade. Mas para além da minha vida mesquinha e precária, há algo mais grave que isso.

Eu era adolescente e gostava de música de velho, a verdade é essa. Por causa dos Beatles descobri Chuck Berry e Little Richard, e o blues de Chicago, e o jazz de Charlie Parker — na verdade o caminho contrário ao que devia seguir, mas isso é outra história. Em 1985 Beatles tinham acabado havia apenas 15 anos, mas já eram coisa do passado e fora de moda. Já tinham sido até mais, na verdade, mas a morte de Lennon tinha lembrado as pessoas de sua existência e aos poucos seu nome vinha sendo rememorado; além disso, em 1983 houve uma certa comemoração pelos 20 anos de seu primeiro disco — ou era 84 pelas duas décadas de chegada à América, eu não lembro, memória de velho é uma droga.

E era assim que tinha que ser. Porque os Beatles acabaram em 1970 mas a música pop continuou evoluindo. Hard rock, rock progressivo, heavy metal, o punk e a new wave — e do outro lado dos trilhos o funk e o soul, até mesmo a discothèque — e finalmente o rap e o hip-hop, talvez a única coisa realmente forte, verdadeira, que conseguiu enfrentar os anos 90 e 2000, mas que também já se esgotou a ponto de chamarem Kanye West de gênio.

Se você era jovem nos anos 70 e 80, as rádios e as lojas de discos lhe ofereciam a cada dia algo novo, algo que, bom ou ruim, dava um passo à frente em relação à música que você ouvia ontem. No final dos anos 70 e durante a maior parte dos 80, a maior banda da história era uma lembrança e uma referência. Não havia por que lamentar o seu fim, nem mesmo tentar fazer parecer atual o que naquele contexto tinha cumprido seu papel histórico, por mais importante que fosse, e agora era apenas mais uma banda do passado, entre tantas outras e tantos ritmos diferentes. A linguagem que os Beatles tinham criado havia se estabelecido definitivamente, e partir dali milhares de músicos em todo o mundo continuaram a criar algo novo, sem parar.

Algo aconteceu nos anos 90, no entanto: a música pop se esgotou e a internet chegou ao comum dos mortais.

É só olhar para trás e ver que, no campo da música popular, o melhor que aquela década e as seguintes produziram, e continuam produzindo, representava antes de tudo um diálogo com o que veio antes. Oasis nunca passou de sub-Beatles requentado para os anos 90, alimentando-se de tudo o que tinha acontecido naqueles 25 anos. Nirvana é uma apropriação muito própria do punk, e o último suspiro de uma linguagem que tinha esgotado suas possibilidades. O mesmo vale para a MPB, com a diferença de que aqui eram os nomes de sempre tentando fazer o que sempre fizeram enquanto competiam com a revolução do axé music, o pastiche de terceira que é a música sertaneja e a chegada do funk carioca ao resto do país — ou, o que se tornaria praticamente a norma nessa música de “elite”, meninos requentando o que já era velho antes deles nascerem.

E essa é a parte boa. A parte ruim é muito pior do que os mais horripilantes pesadelos de Thomas Edison. À medida que a tecnologia tornou a produção musical acessível a qualquer um, e depois que a internet quebrou o monopólio de distribuição de produtos culturais, abriu-se uma caixa de Pandora que, a cada dia, não cansa de lançar horrores a uma humanidade que não tem mais na música a relação de definição de identidade e comunhão que teve em décadas anteriores. Não é apenas a produção computadorizada, homogeneizante e desumanizadora. Acontece que, bem ou mal, a estrutura de produção e distribuição de produtos culturais fazia uma triagem mínima — havia, afinal, um lado bom na indústria musical. E assim como, tendo nas redes sociais a ferramenta necessária para ignorar a mediação da mídia, o povo elegeu Bolsonaro, ao poder produzir e distribuir música sem intermediários ele gerou essas atrocidades que hoje passam por música e que fazem o mainstream musical de hoje: um mundo que adora Anitta.

Mas os resultados vão muito além da estética.

Durante algumas décadas do século XX, a música unificou e canalizou as ideias de gerações, tornou-se um elo de ligação entre pessoas das mais variadas origens e destinos. Isso acabou, fragmentando-se em produtos direcionados para nichos e que se prestam essencialmente como combustível para pequenos transes hedonistas e efêmeros.

É por isso que aqueles garotos ouvindo Legião Urbana me incomodaram tanto. É muito triste quando uma geração inteira se resigna a aceitar como referencial a música de meio século atrás, porque ficou mais fácil convencê-la disso. Alguém consegue imaginar a juventude dos anos 60 ensaiando uma mudança profunda de costumes e percepções enquanto ouvia a música feita não 30, mas 15 anos antes — ouvindo Frank Sinatra e Glenn Miller? Um doidinho em Hashbury balançando a carcaça em meio a uma miríade de cores de LSD e ao som de Al Jolson?

Eu não. Talvez seja mais uma das tantas deficiências minhas. Não importa. O que sei é que sinto um desânimo profundo ao ver relançamentos de discos dos Beatles entre os mais vendidos. Não significam uma vitória da boa música. Significam, ao contrário, a sua derrota.

Get Back

Em algum momento deste ano, provavelmente setembro, a Apple Corps. lançará um documentário feito a partir das dezenas de horas de negativos do filme que nasceu para a televisão como Get Back e acabou nos cinemas como Let it Be. Pelo menos por enquanto, se chama The Beatles: Get Back.

Devo ter escrito mais sobre o Let it Be neste blog do que sobre qualquer outro aspecto dos Beatles.

Resumindo o que já escrevi: Let it Be é um dos filmes mais chatos da história. O diretor Michael Lindsay-Hogg não tinha o talento nem a experiência necessários para conseguir tirar algo realmente bom de uma banda em franco processo de desintegração. O filme original já foi restaurado há muito tempo, mas uma série de questões, principalmente pessoais, impediram o seu relançamento. O disco que acompanhou o filme só não é o pior dos Beatles porque tem algumas de suas melhores canções, mas é mal produzido e em nenhum momento consegue realizar nem a visão original, crua, básica, nem atender ao padrão cafona e superproduzido de Phil Spector, que foi chamado para consertar as coisas. O álbum Let it Be… Naked, lançado em 2003 como uma tentativa de McCartney dar a última palavra para restaurar a “visão original” do disco, não fez nada para melhorar a situação, sendo provavelmente o pior dos caça-níqueis lançados a partir de 1994.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção no filme é que a história que ele contava, no fundo, era uma história otimista, de superação pela música. Fosse outro o desenlace da história e ele mostraria como uma banda em crise se reuniria nos estúdios de Twickenham, onde o frio das almas era ainda maior que o do estúdio, ganharia nova vida ao se mudarem para os estúdios da Apple, e terminaria na apoteose do show no telhado, onde o futuro se mostraria quente e ensolarado porque, para aqueles quatro sujeitos, a música nos salvará a todos.

Mas a banda acabou ainda antes do lançamento do filme, e Let it Be se tornou um epitáfio melancólico e mal feito, indigno do que tinha sido a maior e mais influente banda de rock de todos os tempos.

O tempo passou e nos últimos anos os Beatles e suas viúvas, sentindo o bafo da indesejada das gentes cada vez mais quente em suas nucas, vêm se empenhando em consolidar e deixar para a posteridade sua versão de sua própria história. A série Anthology nos anos 90, retomada de um projeto iniciado por McCartney ainda antes do fim da banda, foi o primeiro passo. Eight Days a Week, o documentário medíocre dirigido por Ron Howard e lançado em 2016, foi mais um tijolo nessa construção, e o mais radical: fingiu que Pete Best não existiu, deu aos Beatles uma importância histórica maior do que a que realmente têm, e o resultado foi quase um conto de fadas, que jogou para baixo do tapete tudo o que havia de ruim na carreira dos Beatles até aquele momento.

De certo modo, é um esforço compreensível, embora se possa questionar sua honestidade, justamente uma das maiores qualidades da banda.

Faltava decidir o que fazer com o Let it Be. Meio século de distância, tempo mais que suficiente para apaziguar mágoas, apagar muitas das más lembranças e fortalecer as boas, e a necessidade de fazer a caixa registradora tilintar garantiram a retomada do projeto. Não é nenhuma surpresa, claro: todos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, o Let it Be seria relançado.

Sempre achei que a Apple deveria entregar os rolos para Martin Scorsese e deixá-lo recontar a história. Scorsese, que acima de tudo ama rock and roll, saberia reeditar aquele material e lhe dar uma narrativa coerente e o drama necessário para torná-lo interessante.

Mas as coisas não saíram bem assim. Em vez de simplesmente relançar o Let it Be, resolveram fazer um novo filme. No lugar de Scorses, a Apple preferiu Peter Jackson, provavelmente porque terá mais controle sobre o produto final. A julgar por They Shall Not Grow Old, seu belo documentário sobre a I Guerra Mundial, Jackson pode fazer um bom trabalho, algo que transcenda o interesse apenas aos fãs. Mas a essa altura é bom não fazer apostas. A possibilidade de sair algo chapa branca e quase irreal é muito, muito grande.

É quase certo que o novo filme mostrará, em sua quase totalidade, rostos cordiais sorrindo enquanto fazem música. Os estúdios de Twikenham se transformarão em um ambiente cálido, cheio de ternura entre quatro irmãos que se amam e amam a música que fazem. Eu não duvidaria que, no final, saiam todos voando do telhado da Apple em direção ao céu, como em “Milagre em Milão”.

Por um lado, isso não é tão ruim quanto parece ser. Eles podem estar tentando adocicar a história dos Beatles, mas é inegável que ela foi prejudicada pelo fato de John Lennon ter sido o seu principal narrador. Como lembrou Ian MacDonald, Lennon se comportava quase sempre como o pecador arrependido, olhando para trás com vergonha ou, no mínimo, iconoclastia. Em entrevistas como a da Rolling Stone em 1970, Lennon destilou ódio e ressentimento contra a banda e principalmente McCartney, inclusive às vezes mentindo descaradamente (o que ele admitiria em suas últimas entrevistas). Lennon dizia sandices como a parceria ter acabado em 1964 (refletindo a mágoa com o fim dela, no fundo), ou que o melhor trabalho da banda foi realizado no início, tocando ao vivo, e sequer fora gravado (refletindo, por sua vez, a ascensão de McCartney como motor dos Beatles). Apenas o carisma descomunal de Lennon justifica que tanta gente tenha acreditado no que eram mentiras óbvias.

Depois da morte do ex-parceiro, McCartney passaria a vida tentando contrapor essa narrativa, ao limite da cretinice. Primeiro reafirmando o seu papel na banda, reivindicando parte da glória que ele acha que lhe foi injustamente tirada e tentando se livrar de duas décadas de ataques quase sempre injustos da crítica. Depois, mais velho e mais seguro, consolidando a versão de uma banda que, acima de tudo, se amava profundamente.

Como todo mundo, não faço ideia do que será esse documentário. Será uma remontagem do Let it Be? Um documentário com narração em off? Terá a participação dos remanescentes como a série Anthology? Permitirão que Yoko Ono tenha voz, o que não fizeram até agora? Ninguém sabe.

Sei apenas o que eu faria: um documentário sobre a feitura do filme, em duas partes de duas horas. Com narração em off e sem a participação dos quase octogenários ex-beatles. Tentar acompanhar de maneira linear os acontecimentos daquele mês — os conflitos, as tentativas de fazer música, a saída de George, a volta aos estúdios da Apple, as discussões sobre o passado e o futuro da banda, os preparativos para o show no telhado — certamente daria o que falta em densidade narrativa. E certamente tentaria equilibrar os maus momentos (como este, que dificilmente será mostrado) com os bons.

***

A parte musical promete ser mais interessante.

É certo que vão relançar o Let it Be remasterizado. Eu não gosto das remasterizações recentes da banda, acho que carregam demais nos graves, mas esse disco é talvez o único que merecia um trabalho realmente profundo. O Let it Be sempre soou estranho, abafado, e a remasterização de 2009 não conseguiu resolver esse problema. Só acho que poderiam relançá-lo com a capa da edição americana, dupla, com a maçã vermelha no selo, e com o livro que originalmente o acompanhava.

Mas essa é a chance de lançar também o Get Back original, com a capa que recriava a do Please Please Me e que simbolizava não apenas a evolução da banda, mas também o fim de seu ciclo.

E, principalmente, eu mergulharia nas centenas de gravações feitas naquele janeiro de 1969.

Há uma infinidade de gravações fantásticas, embora talvez pouco comerciais. Por exemplo, Get Haus (Get Back em algo que parece alemão); Get Back numa versão mais lenta e pesada (conhecida com Get Back Under Water); Get Back, I’ve Got a Feeling e I Lost My Little Girl cantadas por John e Maxwell’s Silver Hammer trucidada por ele, que desprezava a canção; uma demo de Gimme Some Truth (que tem participação de McCartney na letra); Eddie You Dog; Almost Grown; You Win Again; Madman a-Coming; e I Want You e I’m so Tired cantadas por Paul. Versões interessantíssimas de Two of Us, I’ve Got a Feeling, Oh! Darling em rimo latino, Suzy Parker, Bad Finger Boogie, Honey Hush, Gone, Gone, Gone, Twenty Flight Rock High Heeled Sneekers, Watching Rainbows, bobagens como On a Sunny Island, ultrajes como Negro in Reserve e When You’re Drunk You Think of Me e What’s the Use in Getting Sober?, obviamente Commonwealth e No Pakistanis, Get Off (que daria em Dig It), Tennessee, Friendship (por irônica que possa parecer), Midnight Special. E, claro, fecharia com a versão de Love Me Do com Billy Preston nos teclados. Full circle, diriam eles.

Mas sou capaz de apostar que muito pouco disso verá a luz do dia, oficialmente. Eles devem fazer o que vêm fazendo: um bocado de outtakes medíocres das canções já lançadas. Por sorte, tudo isso está disponível em discos piratas, facilmente encontráveis na internet, e cada vez mais se espalha pelo YouTube.

De resto, let it be.

Yoko Ono

Uns anos atrás, um comentário a uma foto de Yoko no Instagram me chamou a atenção.

Alguém teve a pachorra de deixar ali uma série de ofensas à velha dama, acusando-a de ter acabado os Beatles e enveredando pelo racismo puro. Podia ser apenas mais um lembrete do fato triste de que as redes sociais desvelaram a imbecilidade global antes contida em cada pessoa ou pequeno grupo; mas era muito mais que isso. Imediatamente pensei que, se Lennon estivesse vivo, talvez tivesse que cantar novamente para ela dois versos de I’m Losing You, do seu último disco: “But hell, that was way back when / Well, do you still have to carry that cross?

É impressionante que alguém, mesmo meio século depois, ainda tenha que conviver com isso, com esse ódio impessoal que, ainda que fosse justificado, deveria ter arrefecido com o tempo. Não interessa que tenham se passado 50 anos desde que a queridinha das gentes acabou, em meio a uma briga excessivamente pública. As pessoas ainda odeiam Yoko Ono porque a elegeram para a desgraçada que acabou com os Beatles.

E não foi.

Em 1968, a banda estava em crise por várias razões, a menos importante das quais não era a musical. A chegada de Yoko pode ter ajudado a catalisar algumas das tensões já presentes, pode ter sido mais um fator para o seu fim; mas ela não tinha como terminar algo do qual não era parte. Os Beatles estavam acabando porque seus fundadores tinham se tornado adultos; porque cinco anos de pressões inimagináveis cobravam sua conta; porque sua situação financeira era caótica; porque suas concepções musicais se tornavam divergentes ou, no mínimo, mais individuais; porque Lennon, com alguma razão, e Harrison, sem nenhuma, achavam que a banda os limitava; porque a mudança no centro de gravidade da banda de Lennon para McCartney deu início a uma nova dinâmica de poder e influência dentro do grupo.

Nesse aspecto, a injustiça com Yoko é ainda maior. Naqueles momentos em que Paul McCartney consegue disfarçar bem o seu desconforto, lembra uma coisa importante: ele acha que Yoko salvou a vida de Lennon.

Há muito tempo me pergunto se, fosse outro o destino e Lennon tivesse conhecido Yoko em outra fase de sua vida, sua fascinação pela mulher e pela artista teria sido a mesma. Lennon em 1967 era um sujeito absolutamente perdido. Os Beatles tinham deixado de excursionar, o que para outra banda teria significado seu fim imediato, e ele passava seus dias em um torpor que misturava apatia e consumo exagerado de LSD. Isso é perfeitamente visível na sua produção no período. A contribuição solo de Lennon ao Sgt. Pepper’s é pífia, quase coadjuvante — o que é, aliás, a razão do seu eterno despeito em relação ao álbum. Descontando Strawberry Fields Forever, uma canção genial mas que também deve muito ao trabalho feito no estúdio, suas duas melhores canções no álbum, Lucy in the Sky with Diamonds e A Day in the Life, são parcerias ainda que desiguais com McCartney. Tente imaginar A Day in the Life, especificamente, sem a segunda parte cantada por Paul, sem o “I’d love to turn you on”, e sem as ideias orquestrais que poderiam ser creditadas, no mínimo, à participação coletiva da banda e de George Martin: seria só mais uma excelente canção simples como Watching the Wheels, composta em Weybridge por um eremita com surtos esporádicos de inspiração, um sujeito que passava o dia viajando diante de uma televisão com o som desligado, frustrado com aquilo em que sua vida parecia ter se resumido: um casamento fracassado, um filho com o qual jamais teria alguma intimidade e uma banda em que o poder real se consolidava a cada dia nas mãos de seu melhor amigo, maior parceiro e maior rival.

Não dá para saber se outro Lennon, livre das drogas e um pouco mais seguro de si em relação ao seu papel na banda e no mundo, teria reagido da mesma forma ao ir à exposição de Yoko na Indica Gallery em novembro de 1966, se enxergaria nela a “mulher-dragão” que lhe daria a proteção e o estímulo de que ele precisava com desespero.

Yoko supriu em Lennon a necessidade de alguém que fosse ao mesmo tempo mãe, amante e parceira. Ela conseguia ocupar, sozinha, o espaço de Julia, Mimi e McCartney, e um pouquinho mais. Em Yoko, Lennon encontrou alguém que podia respeitar intelectualmente e na qual podia se apoiar sem medo. De certa forma, era uma McCartney que ele podia levar para cama.

Infelizmente, isso ajudou a desarticular toda a estrutura de funcionamento dos Beatles, em um momento particularmente difícil. Enquanto as mulheres dos Beatles se adequavam ao que tinha se estabelecido como uma divisão natural do trabalho e seus espaços nas vidas de cada um, Yoko instigava e forçava a si mesma dentro de um ambiente que lhe era hostil.

Não era algo inocente. Yoko não era burra e era extremamente ambiciosa. Talvez as coisas não sejam tão frias e objetivas como podem parecer, mas Lennon e os Beatles eram claramente a sua grande chance na vida: ela percebia que ali estava, no mínimo, uma oportunidade única de dar visibilidade ao seu trabalho, e eu não duvidaria que, em algum momento de delírio, ela tenha acalentado ao menos secretamente o sonho de se tornar parte da banda. Pelo menos em um momento inicial, Yoko tentou aproveitar a proximidade dos Beatles para fazer deslanchar sua carreira, quase como um parasita daquele tipo que mata o hospedeiro. McCartney reclamaria que, durante as filmagens do que viria a ser o Let it Be, ela sempre dava um jeito de ficar diante das câmeras, muitas vezes fazendo o seu próprio trabalho. Mais tarde, o que ela permitiu (e provavelmente incentivou) que Lennon fizesse com seu filho mais velho, Julian, foi desumano (curiosamente, tanto o filho dela, Sean, quanto Julian são músicos. E a ironia é que Julian é infinitamente mais talentoso que Sean; vale a pena escutar sua discografia). Nisso qualquer fã dos Beatles tem razão: sua presença era desagregadora.

Mas ela só podia fazer o que Lennon permitia. Foi Lennon quem levou sua cama para os estúdios quando ela sofreu um aborto; quem insistiu para que ela aparecesse no Let it Be e nas fotos de publicidade do conjunto; foi ele quem de repente tentou impor uma mulher estranha a uma banda singularmente coesa, o “monstro de quatro cabeças” como definiu Mick Jagger.

Acho que inconscientemente Lennon acreditou que isso poderia redefinir a estrutura de poder dentro da banda. O resultado foi o contrário: a manobra de Lennon acendeu o pavio para a implosão dos Beatles. E sob vários aspectos, essa foi a pior coisa que poderia acontecer a Yoko.

Dentro do seu campo, da sua linguagem, Yoko era uma artista capaz, até onde minha ignorância e desdém por esse tipo de arte me permitem avaliar. Entendo ainda menos de arte de vanguarda do que de mecânica de aviões — mas pelo menos gosto de aviões. Ainda assim, acho Cut Piece um negócio interessante. E por inaudíveis que sejam seus discos de esgoelamento, o fato é que ela tinha uma ideia do que queria dizer, um conceito claro do que era arte, e é até possível ouvir ecos da música que ela fazia nos discos do B-52’s. Finalmente, quem quer que tente escutar sem preconceitos o Some Time in New York City, de 1972 — e conseguir abstrair sua voz irritante—, vai perceber que as canções de Yoko estão, no mínimo, no mesmo nível das de Lennon.

Lennon reconhecia e respeitava, talvez até mais que o justo, o talento e a capacidade de sua nova parceira. Juntos, os dois embarcaram em uma bad trip típica dos anos 60, com bed ins, surtos de messianismo odara, uma exposição de suas vidas sem precedentes na cultura de massas e a tentativa de fazer de suas vidas uma obra de arte, tudo condizente com a concepção artística de Yoko e que John, sempre em busca de algo para preencher o seu vazio, abraçou incondicionalmente.

Fãs podem reclamar, mas o Lennon que entrou para a história foi exatamente esse recriado por Yoko Ono, um Lennon sem humor, que se levava a sério demais e que acabaria se tornando ícone de uma paz que, em sua vida privada, ele jamais seria capaz de alcançar.

O mais irônico é que, enquanto as pessoas culpam Yoko pelo fim dos Beatles, em vez disso deveriam agradecê-la por algo que é realmente responsabilidade sua: impedir a reunião da banda. Em 1974, solto em Los Angeles, longe de Yoko, Lennon considerou a possibilidade de voltar a compor com McCartney. Se isso ocorresse, uma volta dos Beatles seria possível, embora talvez sem George Harrison. Mas antes ele reatou o casamento com Yoko (ironicamente por intermédio de McCartney), e é impossível saber o que resultaria dessa reunião hipotética. Do ponto de vista das composições, é provável que o nível subisse bastante. A competição e colaboração entre os dois certamente traria bons frutos. E é possível que a própria realização das canções melhorasse bastante. Só não dá para deixar de lembrar que o tempo dos Beatles havia passado e que o mais provável é que essa reunião apenas quebrasse a mística da banda.

Foi nesse momento que se consolidou definitivamente a lenda do johnandyoko, do casal 20 do rock, do rock star feliz em casa fazendo pão e cuidando do bebê enquanto a mulher ia para a rua garantir sua fortuna, ou pelo menos assim diz a lenda.

Nunca foi bem assim. Naqueles seus últimos anos, Lennon voltou à apatia em que se encontrava quando conheceu Yoko. Mas ele tinha se tornado dependente dela, em sua eterna busca pela mãe que o tinha rejeitado. Yoko não tinha esses problemas, e quando percebeu que o casamento estava condenado, tratou de arranjar um amante, Sam Havadtoy, rapaz novo que logo depois da morte de Lennon ela passou até mesmo a vestir com as roupas do defunto, num relacionamento muito mais duradouro que o seu com Lennon.

E então veio o dia 8 de dezembro de 1980, a partir do qual Yoko Ono se tornaria a curadora da memória de John Lennon e a mais feroz guardiã do seu legado.

Ela até podia frequentar outras camas, mas nisso ela foi extremamente fiel ao falecido. Uma constante na vida de Lennon foi o seu esforço em passar uma imagem idealizada e edulcorada de si mesmo. O rebelde, o artista corporificado, o revolucionário da classe operária, o homem que vivia uma história de amor perfeita. Yoko cumpriu o seu desejo. A imagem quase santificada de Lennon, do gênio que mudou o mundo com uma mensagem de paz e amor e se tornou o grande mártir do rock and roll, que ela passa ainda hoje às portas da morte, não condiz com que o se sabe sobre ele; mas é uma imagem vitoriosa e, acima de tudo, leal, seja lá por quais razões for.

E ela fez tudo isso às custas, de certa forma, de seu próprio sacrifício. Seu envolvimento com os Beatles tirou, para sempre, a sua individualidade — e paradoxalmente teve o efeito contrário do que ela parecia querer naqueles primeiros anos. Ela jamais será lembrada por outra coisa que não John Lennon. A exposição e a riqueza que Lennon lhe possibilitou garantiram que ela continuasse produzindo, mas a avaliação dessa produção será sempre contaminada por sua história com os quatro rapazes de Liverpool.

A aura inexplicável que beatifica os Beatles, que desculpa e justifica todas as suas ações e os torna imunes a virtualmente toda crítica, é a mesma que demoniza todos aqueles que cruzaram seus caminhos, como Allen Klein. É a mesma que faz pessoas dizerem, ainda hoje, desaforos em seus posts no Instagram. Yoko, inocente ou não, é mais uma vítima dessa aura. No fim das contas, o preço que ela pagou foi bem alto.

O tempora, o mores

No dia 4 de novembro de 1963, a apresentação dos Beatles diante da família real inglesa no Royal Variety Performance entrou para a história por uma frase dita por Lennon antes de introduzir Twist and Shout: “Para o próximo número, gostaríamos de pedir a sua ajuda. As pessoas nos lugares mais baratos, batam palmas. Ao resto de vocês, basta chacoalhar as joias”.

A frase entrou para a mitologia do rock and roll. Todo mundo conhece.

Mas isso foi há quase sessenta anos. Os tempora passaram e os mores mudaram muito.

Hoje a frase de Lennon seria vista como uma brincadeirinha de roqueiros inconsequentes e superficiais que apenas querem aparecer, que afinal de contas a família real não merece muito respeito desde Charles e Diana, e sua repercussão se daria apenas em pequenas bolhas na internet. Os tempora não perdoam.

Não é nada que mereça muita atenção, no fundo. Falar sobre isso é apenas repetir as platitudes que recheiam virtualmente tudo o que se fala sobre essas coisas na internet. Mas dia desses, revendo a apresentação, um detalhe me chamou a atenção. E esse detalhe diz mais sobre estes tempos estranhos que vivemos que a boutade pseudo-operária de Lennon.

Na introdução a uma canção anterior, a maneira como McCartney apresentou Till There Was You hoje seria amaldiçoada, e geraria protestos ainda mais fortes.

Durante esse mais de meio século ela passou despercebida, porque naquele tempo foi vista apenas como uma piadinha boba e trivial, e a importância política e simbólica da frase de Lennon era muito maior naquele contexto.

Mas, repito, os tempora mudaram. Mas é o tipo de piada que hoje não é mais permitida, porque as sensibilidades mudaram.

E então é possível entender o escândalo que nasceria quando lá foi McCartney para o microfone dizer que a próxima canção “é do musical The Music Man e também foi gravada pelo nosso grupo americano preferido, Sophie Tucker.”

Ah, se isso fosse hoje. O mundo das redes cairia. E aí, aí nem a cara de menino doce criado por vó de Paul o salvaria da ira justa do mundo.

As críticas mais suaves falariam da sua gordofobia ou da sua gerontofobia e da sua indelicadeza.

Milhares de pessoas iriam teorizar sobre isso em posts lacradores. Bolsominions, moristas, olavistas e outras variedades de simplórios acusariam os Beatles de comunistas, abortistas, satanistas, beneficiários canalhas da Lei Rouanet.

Negros reclamariam que não se sentiram representados e que os Beatles representavam a branquitude de uma classe opressora há 300 anos e que não percebe seus privilégios.

LBGTs, ou seja qual for a sigla atualmente utilizada, diriam que a atitude dos Beatles era francamente homófoba.

Feministas fariam passeatas chacoalhando não banha nem peitos gelatinosamente balouçantes — a não ser que fossem as maluquinhas do FEMEN, que disfarçam peitos belos sob ataques de histeria neonazista —, mas cartazes pitados ‘a mão: “Gordo é o seu preconceito, Paul”.

Pessoas com deficiência diriam que aquilo não mascararia a atitude canalha e ofensiva dos Beatles, especialmente Lennon, diante do que chamavam derrogatoriamente de aleijados.

Sophie Tucker, por sua vez, ganharia os jornais se dizendo muito abalada. Contaria a história de dias de sofrimento, a luta contra a depressão que essa frase a fez empreender. A velha gorda podre de rica falaria do seu sofrimento. Talvez processasse os Beatles e destinaria o dinheiro para o Retiro dos Artistas.

E quando tudo estivesse prestes a amainar, quando outro escândalo de igual importância surgisse, apareceria alguém para dizer que, ao chamar Tucker de gorda, McCartney estava ofendendo os vegetarianos; para isso, um raciocínio tortuoso que me vejo absolutamente incapaz de formular seria construído.

Talvez McCartney tentasse se desculpar. Diria que Tucker era um grupo pela dimensão do seu talento, não por ocupar duas poltronas no avião. Diria que não foi sua intenção magoar ninguém — nunca é.

E em duas semanas, claro, tudo isso desapareceria.

Ninguém lembraria mais, com exceção daqueles mais rancorosos que, a cada menção sobre os Beatles, tiraria esse evento de sua gaveta mental e escreveria um texto lacrador no Facebook — ou, pior, aquelas sequências odiosas de tweets, mais ou menos como hoje lembram que dona Elizabeth Bishop um dia elogiou o regime militar de 1964.

Depois disso, os Beatles gravariam Revolver e Sgt. Pepper’s, mas ninguém ouviria. Sua música desapareceria, ficaria restrita a alguns guetos, até ser resgatada como influência por uma banda cool dos anos 2030. Talvez até seguissem a sina abjeta do Ultraje a Rigor, ser o Caçulinha do Danilo Gentili — e certamente John Lennon teria que antecipar a sua frase sobre os Beatles serem mais famosos que Jesus, para ver se conseguiam ainda algum espaço na mídia. Mas ele não teria sucesso, e os Beatles entrariam para história como uma nota de rodapé.

Fases

Eu nem ligo muito quando vejo o pessoal falar que a segunda fase dos Beatles é que é boa, que o resto é bobagem. Pessoalmente, considero a tal primeira fase muito mais revolucionária que a segunda, como já escrevi aqui, mas entendo que as pessoas pensem diferente. Entendo inclusive que algumas pessoas pensem que a Terra é plana. O único problema é que elas estão completamente, uterinamente erradas.

Primeiro porque essa divisão é equivocada. Não há apenas duas fases dos Beatles. Essa ideia foi sedimentada por aquelas coletâneas lançadas alguns poucos anos depois do fim da banda, The Beatles 1962-66 e The Beatles 1967-1970, também conhecidos como os álbuns Vermelho e Azul. Mas a obra dos Beatles é uma evolução constante, do primeiro compacto ao Abbey Road, e foi assim que foi vista em seu tempo. Para efeito de classificação, entretanto — essas imbecilidades em que a academia é mestra —, é possível no máximo fazer uma divisão porca em três fases, mais ou menos. Essa classificação foi feita pela primeira vez por Joe Brennan, se não me engano.

A primeira fase, caracterizada pela abordagem mais básica, estruturada sobre as possibilidades de uma banda com duas guitarras, baixo e bateria, e adequada à necessidade de ser reproduzida ao vivo, iria até o Help!; a segunda, que compreende as fases “de transição” e a “psicodélica”, extremamente experimental, poderia ter como marcos inicial e final o Rubber Soul e o Magical Mystery Tour (incluindo aí o Yellow Submarine, lançado depois mas composto por sobras de 1967); finalmente, uma terceira e última fase, inaugurada com o “Álbum Branco”, que um materialista dialético — fora de moda em tempos de pós-verdade, mas me perdoem por não conseguir deixar de ser um velho comunista — poderia chamar de síntese.

Essa divisão, no entanto, não sobrevive a uma investigação mínima de cada canção.

Olha She Came in Through the Bathroom Window. É uma das faixas do último e mais perfeito álbum dos Beatles, o Abbey Road. Agora compara a danada com uma canção menos conhecida chamada It’s Only Love, do Help!. It’s Only Love tem um problema a mais: para muita gente é uma canção ruim, porque Lennon disse que não a suportava e a palavra de Lennon deveria ser lei.

John Lennon foi para o inferno não pelas barbaridades que cometeu ao longo da vida, mas porque o seu revisionismo magoado e despeitado no início dos anos 70 induziu milhões de pessoas em todo o mundo a uma visão deturpada e errônea da obra da banda que ele fundou, mas não soube levar adiante. Um de seus grandes pecados foi macular algumas canções com opiniões bizarras que um fã que o conhece bem até entende, explica e desculpa, mas que para o resto do mundo serviu apenas para gerar preconceitos infundados. Não custa lembrar: Lennon é o sujeito que disse que o melhor trabalho dos Beatles é aquele hoje disponível nos Live at BBC I e II.

De modo geral, Lennon tinha muito orgulho dos Beatles. Mas por razões que dizem respeito unicamente à sua evolução intelectual e espiritual e à influência muitas vezes nefasta de Yoko Ono, chegou à conclusão de que It’s Only Love, entre umas poucas outras, era uma canção muito ruim, que o envergonhava. É possível que se referisse especificamente a algumas soluções líricas pouco brilhantes, a algumas rimas pouco elaboradas. Lennon via uma canção, prioritariamente, do ponto de vista da letra. A sorte é que não é assim que as pessoas enxergam a música: por exemplo, em nenhum momento os Beatles se aproximado da sofisticação e brilhantismo literários de Bob Dylan em sua melhor fase, os seis discos absolutamente geniais entre The Freewhelin’ Bob Dylan e Blonde on Blonde. E no entanto os Beatles eram tão maiores que Dylan.

O que interessa é que para uma parte significativa das pessoas It’s Only Love é ruim, ponto, foi John quem disse. E se um pai renega seu próprio filho, boa bisca ele não deve ser.

Por causa disso, quase por definição She Came in Through the Bathroom Window é muito superior a It’s Only Love.

É claro que Bathroom Window traz qualidades a mais, que vêm principalmente da evolução sem precedentes da música pop e da própria banda nesses curtíssimos anos; os músicos são mais experientes, mais hábeis, mais inventivos: não dá para comparar, por exemplo, o baixo de McCartney nas duas canções. Mas qualquer doido que toque as duas canções num violão entenderá o óbvio: melodicamente, It’s Only Love é muito superior. Nela, a progressão de acordes, além de mais rica, é por vezes surpreendente — é mais ou menos como se Lennon tivesse compreendido com perfeição o ideal platônico por trás daquele F que Buddy Hollly tirou da manga para encaixar em Peggy Sue. A estrutura de She Came in Through, por sua vez, é muito mais simples, A D, A D, A Dm, A Dm, G7 C, G7 C A, e uma pessoa mais malvada poderia dizer que é a mesma base de Lady Madonna, descontado um Bm aqui, um G ali, um F acolá.

Alguém pode argumentar que liricamente a canção do Abbey Road é mais sofisticada. E é aí que a desgraçada da porca torce o rabo.

Por que é mais sofisticada? Porque fala de algo que nos parece mais chique, porque fala de coisas que a gente não entende direito? “Ela entrou pela janela do banheiro protegida por uma colher de prata”. “Ela trabalhava em quinze boates por dia; e embora achasse que eu sabia a resposta, bem, eu sabia mas não podia contar”. E o melhor dos melhores: “O domingo telefona para a segunda, a terça telefona para mim”.

O uso excessivo de maconha por Paul McCartney é demasiado conhecido e deveria servir para explicar essa letra. De qualquer forma, se você sabe o que ele queria dizer com isso, por favor me dê um alô.

Enquanto isso, It’s Only Love fala de algo que milhões de adolescentes reconheceram como verdadeiro imediatamente. Why am I so shy when I’m beside you?, Lennon perguntava, e aquela matilha de garotos incapazes de chegar junto da garota pela qual, juravam naquele momento, morreriam de amor mais cedo ou mais tarde compreendia isso perfeitamente bem. Entendia também a resposta dada pelo próprio Lennon um pouco adiante: “É só amor, e isso é tudo; por que eu deveria me sentir desse jeito? É só amor, e isso é tudo; mas é tão difícil amar você”.

It’s Only Love é um exemplo muito melhor da conexão estabelecida entre os Beatles e a multidão de seres humanos que se reconheciam em sua letra ao mesmo tempo em que descobriam, através de suas melodias, novas possibilidades musicais. Essa conexão foi única em toda a história. Não se repetirá jamais. E It’s Only Love a exemplifica adequadamente.

Get Back and Let it Be

Eu já escrevi sobre isso aqui, em mais de um momento, mas não custa escrever de novo.

Basicamente, o filme Let it Be pode ser visto como a crônica de uma banda superando suas dificuldades através da força redentora da música.

A primeira parte do filme foi filmada nos estúdios Twickenham, em Londres, a partir de 2 de janeiro de 1969. Frio de assustar pinguim num espaço enorme e vazio com um bocado de gente estranha em volta: fazer música assim, principalmente sem se darem o tempo necessário para superar as sessões conturbadas do “Álbum Branco”, era impossível, como apontou George Harrison. O resultado é um clima estranho, hostil até. Vemos uma banda que está claramente se desintegrando, em que a intolerância mútua não para de aumentar. A presença tóxica de Yoko Ono não ajuda em nada; o vício de John Lennon em heroína, tampouco. Paul McCartney tenta fazer a banda funcionar tomando a frente, o que para os outros soa apenas como uma tentativa de controlá-los e fazer deles sua banda de apoio, uma impressão que talvez não fosse totalmente disparatada.

Quando Harrison finalmente saiu da banda, depois de uma discussão com Lennon, uma de suas condições para voltar era a de que saíssem de Twickenham e fossem para o estúdio da Apple. O estúdio montado por um picareta chamado Alexis Mardas não valia nada, mas ali era sua casa — mais que isso, era um estúdio de gravação, o seu ambiente natural. Foi a decisão mais acertada que poderiam tomar. Os ânimos melhoraram instantaneamente, e certamente para isso contribuiu também a presença de Billy Preston, obrigando-os a se comportar com civilidade. Essa melhora é facilmente perceptível no filme, mas também nas gravações não incluídas no produto final.

Finalmente vem o concerto no telhado da Apple, no penúltimo dia de gravação. Foi outra das condições de Harrison, que não queria fazer o grande show ao vivo que McCartney propôs (pensaram até em Pompéia, antecipando o Pink Floyd em alguns anos). Apesar do frio desolador, a intimidade entre os quatro, o entrosamento musical único, a cumplicidade histórica entre Lennon e McCartney e, paradoxalmente, as semanas desgraçadas que passaram ensaiando fazem daqueles poucos minutos quase um revival da velha banda que havia conquistado e ajudado a mudar o mundo. Naquele momento não existem os problemas financeiros, as diferenças de visão artística e musical, a queda de braço entre McCartney e os Eastman e os outros Beatles ao lado de Allen Klein. O que existe é a música, exatamente o que fez deles a maior, a melhor e a mais influente banda de toda a história.

Se s Beatles tivessem continuado, o Let it Be seria visto assim: a história de uma banda em crise que graças à música supera os seus problemas; essa é a sua estrutura básica. Mas não foi bem isso que aconteceu, e o resultado é um filme que, sendo lançado com um ano de atraso, um mês após o anúncio da separação, soa unicamente como um epitáfio, um pós-escrito, e não dos melhores. Não é mais o crescendo musical e pessoal, a apoteose alegre, os olhares cúmplices entre Lennon e McCartney que sobressaem: é a irritação, a má vontade, o descaso, é Harrison dizendo que tocará como McCartney quer, ou não tocará se ele preferir assim.

Mas não é só isso. O fato é que, além do interesse histórico e musical, o Let it Be é um filme muito ruim.

Eu assisti a ele — ou melhor, vi que estava passando na televisão e aturei alguns momentos — no dia 14 de dezembro de 1980, quando a TV Aratu o exibiu numa tarde quente de domingo, certamente motivada pelo assassinato de Lennon uma semana antes. O pouco que lembro consegue evocar apenas uma palavra em mim: tortura. Mas tarde, já fã da banda, assisti várias e várias vezes. Continuo achando muito, muito ruim.

Os Beatles cometeram um erro gravíssimo ao entregar uma tarefa que se revelaria hercúlea a Michael Lindsay-Hogg. Verdade seja dita, seria muito difícil para qualquer um ter que lidar com uma banda em crise mas perfeitamente consciente do seu tamanho e do seu poder, e certamente com um profundo senso de unidade quando confrontada com qualquer pessoa de fora — o que incluía Brian Epstein e George Martin. Mas além de tudo isso, ele não tinha a experiência necessária, e provavelmente nem o talento.

Lindsay-Hogg não soube editar um filme que fosse coerente e inteligente. Ele parece ter tentado costurar uma narrativa linear, mas realmente não sabia o que estava fazendo. O resultado é abaixo do medíocre. Há uma infinidade de conversas registradas que fariam do filme algo surpreendente, sólido, valioso (recomendo uma visita ao A Moral To This Song, que faz um trabalho belíssimo transcrevendo esses diálogos); mesmo obedecendo aos limites estabelecidos pela banda seria possível fazer um grande filme — se ele soubesse como fazer.

Let it Be já foi restaurado digitalmente há muito tempo, mas os Beatles sempre relutaram em relançá-lo. O filme conseguiu a proeza de desagradar a todos, e ainda hoje deve ser um dos pontos de conflito entre os remanescentes e os herdeiros dos já defuntos. Mas o tempo passa, o dinheiro da venda de discos que possibilitou a George Harrison e John Lennon viverem nababescamente sem fazer nada não existe mais, e o Let it Be pode descolar alguns caraminguás tão necessários nestes tempos difíceis.

A oportunidade virá em 2020, quando ele completará 50 anos. No entanto, eu já disse aqui e repito: eu jamais relançaria o Let it Be. Em vez disso, entregaria as 90 horas de material bruto para Martin Scorsese e deixaria que ele fizesse um novo filme, como quisesse, utilizando o que se sabe ser uma experiência e talento muito, muito superiores aos de Lindsay-Hogg e com o benefício de meio século de distância. Acho que ele faria isso até de graça.

Eu daria ao resultado o título original do filme: Get Back.

Mas isso é impossível. Basta ver o que fizeram com Eight Days a Week, dois anos atrás: entregaram o trabalho a um diretor medíocre como Ron Howard, porque eles já consolidaram a sua história e não querem alterá-la, e precisam apenas de um artesão obediente que organize uma narrativa de acordo com as versões que querem deixar para a posteridade.

***

Musicalmente o cenário é melhor, com mais possibilidades, mas também com mais chances de dar tudo errado.

Agora que a Apple Corps. finalmente se rendeu ao modelo utilizado por McCartney há anos para continuar a vender material antigo — remixar um disco velho, incluir outtakes, demos e eventualmente canções inéditas, jogar no balaio livretos e souvenirs e vender tudo isso por dez vezes o preço de um disco comum —, dificilmente deixará de aproveitar as próximas oportunidades para reembalar seus cacarecos e vendê-los a fãs que comprariam qualquer coisa com a chancela dos Beatles. É desonesto: todo esse material é simplesmente inferior, que jamais deveria ver a luz do dia ou, ao menos, ser oficializado. Mas as pessoas querem ser enganadas, como prova Jair Bolsonaro.

Eu posso apostar que as primeiras gravações retiradas das sessões do Let it Be serão lançadas em agosto do ano que vem, numa eventual edição comemorativa do cinquentenário do Abbey Road. Podemos esperar uma nova mixagem, discos e mais discos de outtakes e etc. Várias dessas gravações serão retiradas das sessões de janeiro de 69, quando boa parte delas foi ensaiada. Há cerca de 90 horas de gravações do Let it Be — que, para quem tem pressa e paciência, podem ser encontradas na internet, na série A-B Road, da Purple Chick.

Mas é em 2020 que virá chance de os Beatles finalmente resolverem as questões que envolvem o Let it Be e que estão mal resolvidas há meio século, Curiosamente, essa seria a única remixagem que eu gostaria de ouvir. Realmente não liguei para as do Sgt. Pepper’s e do “Álbum Branco” (as do “Álbum Branco”, por sinal, me pareceram ter retirado um pouco do som distinto do álbum, encaixando-melhor no padrão George Martin dos outros discos dos Beatles, o que não é bom), mas sempre achei o som do Let it Be estranho, abafado. Uma remixagem vai lhe fazer bem.

Mas a principal questão é: e o resto? Que vai haver uma edição comemorativa do Let it Be eu não tenho dúvidas. O problema é saber como ela vai ser, porque ela poderia ser realmente boa, rica, nova.

Eu tenho a minha ideia de uma edição comemorativa. Para começar, eu relançaria o Get Back, a segunda mixagem de Glyn Johns, com a capa original. (Falo “relançar” porque o álbum chegou a ser distribuído para algumas rádios, mas foi quase imediatamente recolhido.) No entanto, acho difícil. É mais fácil relançarem o livro que acompanhava a primeira prensagem do Let it Be, excluído logo depois porque encarecia muito o disco.

Em vez de incluir o amontoado de outtakes que costumam incluir, eles poderiam fazer um álbum apenas com gravações realmente inéditas da banda. Certo, duvido que eles lancem pequenas pérolas como Negro in Reserve, When You’re Drunk You Think of Me ou What’s the Use of Getting Sober, mas ali há material suficiente para encher três ou quatro discos com qualidade.

Mas tudo isso são apenas desejos. O histórico da Apple nesse sentido é muito ruim, e eles sempre passam a impressão de estarem sempre segurando material, para garantir que possam lançar algo “novo” daqui a alguns anos. A mim isso não importa mais. Quase todo esse material está na internet. Ninguém precisa mais da Apple. Let it be.

Beatles, raspando o fundo do tacho

Durante décadas, o legado dos Beatles foi mantido com uma pureza que nenhuma outra banda, na história, repetiu. Os Stones vivem raspando seus tachos em busca de algo que possam vender já desde os anos 60. Até Bob Dylan, desde os anos 80, vem revirando seus baús e transformando em algo rentável sobras de estúdio e quetais.

Os Beatles, não. Durante o quarto de século seguinte ao seu fim, o catálogo original de 13 álbuns foi mantido intacto, entronizado como a obra cristalizada de uma banda revolucionária e inigualável, um cânon pelo qual a música popular ocidental deveria se guiar. Suas músicas não eram licenciadas para comerciais. Raramente apareciam em filmes (eu só consigo lembrar de Shampoo). A integridade de sua obra nunca foi ameaçada.

O que a gente não sabia é que isso talvez se devesse menos a um purismo excessivo do que ao fato de, durante aqueles primeiros 25 anos, o emaranhado de processos e contra-processos em que os Beatles se meteram impediam o mínimo acordo para a rentabilização do seu catálogo. Além disso, ainda vigorava a era do LP: as vendas lhes davam dinheiro suficiente para que pudessem manter a compostura.

Resolvidas as questões judiciais, no início dos anos 90, a Apple se viu livre para colocar caça-níqueis em cada loja de discos do mundo e faturar com o que, até então, tinha sido o playground dos piratas. Os primeiros lançamentos foram excelentes: o Live at BBC e os Anthologies trouxeram gravações importantes, de grande qualidade. Mas o se seguiu foi apenas uma sucessão de bobagens desnecessárias. O Let it Be…Naked decepcionou quem quer que conhecesse a história de suas gravações. On Air, Hollywood Bowl — não sei se sou só eu, mas a cada novo lançamento dos Beatles eu venho torcendo o nariz e criando uma resistência que só faz crescer.

E agora que eles aprenderam a lição de Paul McCartney, a coisa parece ter saído de controle.

Enquanto a Apple se perguntava se liberava ou não suas canções para o iTunes, Paul McCartney veio tratando seu material solo de maneira diferente, até agressiva. Quando lançou seu catálogo em CD, nos anos 90, tentou agregar valor a eles incluindo os compactos contemporâneos, dando um panorama histórico mais abrangente e muitas vezes fortalecendo o próprio disco. (E mesmo assim eu não gosto. Um LP é uma obra fechada. Se o Ram se tornou um pequeno clássico ou se Wild Life é até hoje esculhambado, é pelas canções que traziam quando foram lançados, não pelas correções feitas depois. Isso é trapacear.)

Nos anos 2010, às voltas com a necessidade de reembalar um material tantas vezes relançado, McCartney resolveu dar um passo adiante. Agregou a seus discos outtakes, demos, livrinhos, o escambau: seus relançamentos são pacotes caros, feitos para fãs dispostos a pagar por arrotos engarrafados, e que vão muito além da única razão de ser de um LP: a música.

Ano passado a Apple parece ter aprendido essa lição e cruzou o Rubicão. Lançou um Sgt. Pepper’s cheio de badulaques desnecessários. A impressão que um velho fã chato como eu tem é a de que conspurcaram algo sagrado, como se tivessem passado batom e maquiagem pesada numa criança e enfiado a coitada em lingerie vermelha. Mas o resultado parece ter sido satisfatório para os cofres da Apple, porque agora anunciaram uma nova versão do “Álbum Branco”, cheio de penduricalhos para aumentar seu valor de mercado.

A versão deluxe, aquela a que todos vamos dar preferência na hora de baixar ilegal e gratuitamente nas redes da vida, traz um volume enorme de material.

São seis discos, ao todo, além das fotos e pôster originais e um livreto. Os dois primeiros CDs são o velho e bom “Álbum Branco”, agora remasterizado — pela segunda vez em menos de dez anos. O terceiro disco traz as famosíssimas “Esher demos” (voltando da Índia e precisando gravar um novo disco, os Beatles se reuniram na casa de George, Kinfauns, em Esher, e gravaram versões de demonstração das suas novas canções para escolher o repertório do disco, cujas sessões seriam caóticas e serviriam como marco, um tanto arbitrário, do início do fim da banda). Os três discos restantes, intitulados Sessions, trazem sobras de estúdio. Takes alternativos, jams, ensaios. Algumas das faixas aparentemente já foram lançadas oficialmente, como Step Inside Love/Los Paranoias, no Anthology III. O resto parece ser basicamente o que vimos na edição comemorativa do cinquentenário do Sgt. Pepper’s, ano passado: material ruim que uma pessoa honesta jamais revelaria para o mundo.

Isto aqui não é uma resenha porque parece estranho resenhar sobras de estúdio e demos, ainda mais antes de serem lançadas. E porque a grande maioria desse material está disponível, há muitos anos, nas redes. From Kinfauns to Chaos é um entre tantos álbuns feitos apenas como as demos de Esher, e boa parte das sobras de estúdio incluídas nos outros discos também circula fartamente na internet. Quem tiver curiosidade procure pela versão deluxe do “Álbum Branco” lançado pela Purple Chick.

Definitivamente, esses não são os discos que eu gostaria de comprar. Principalmente porque, fora desse esquema de recauchutagem, há uma imensidão de faixas realmente inéditas oficialmente que dariam novos álbuns interessantes. Eu compraria um Decca Tapes oficial, mesmo tendo o pirata há mais de 30 anos; compraria, se fosse lançado como um álbum isolado, as demos de Esher. Compraria um disco com curiosidades como versões de Maxwell’s Silver Hammer, I Lost My Little Girl, I’ve Got a Feeling e Get Back cantadas por Lennon, Something por Paul e por John, Get Back em algo que parece alemão ou cantada por George. No entanto, aparentemente isso não seria suficiente para fazer alguém comprar esses discos. Por isso a versão desnecessária de Sgt. Pepper’s do ano passado, e agora esse “Álbum Branco” gordo, pesado.

***

Mas essa nova orientação de lançamentos pode vir a trazer uma coisa boa para os fãs.

Em 2020, o Let it Be completará 50 anos. É a chance de lançar o filme restaurado nos cinemas (embora eu goste mais da sugestão que já dei aqui: entregar o material bruto para Martin Scorsese e deixar que ele faça algo decente daquela mixórdia), e as versões de Glyn Johns para o Get Back original. Eu entraria em qualquer fila para comprar esse LP, talvez um álbum duplo com as duas mixagens e com a capa original.

New Egypt Station

Cinco anos atrás, quando Paul McCartney lançou o álbum New, alguém no Twitter disse que ia esperar minha resenha sobre o álbum. Eu nunca me acostumei àqueles 140 caracteres e, quando fui olhar de novo, a mensagem desapareceu e eu não lembro mais quem escreveu. Por isso, caso ainda leia isso aqui, peço que me perdoe. Eu tinha uma boa razão para não responder.

O problema era que eu também estava esperando.

Assim que o álbum saiu, minha filha me perguntou se ele era bom. Respondi que não. (Na verdade eu disse que era uma bosta, mas esse não é o tipo de resposta que se deve dar a uma filha.) O fato é que minha primeira impressão de New foi horrorosa. Eu detestei o disco, sua produção, virtualmente todas as canções. Me pareceu um álbum ruim que se tentou salvar através de uma produção excessiva, e a emenda saiu pior que o soneto.

Ao longo dos meses seguintes, eu o ouvi insistentemente. Era menos uma tentativa de gostar do disco, elogiado pela crítica em geral, do que de entendê-lo. Cheguei a comprar o vinil um ano depois, achado por acaso numa Barnes & Noble qualquer enquanto eu procurava livros baratos, e que ainda está lacrado porque mp3 é suficiente para mim.

O tempo passou e, à medida que fui me acostumando às canções e aos valores de produção, passei a achá-lo quase tolerável. O disco traz boas faixas. Save Us, Early Days, On My Way To Work (mais pela evocação trazida pela letra do que pela melodia medíocre e a produção bombástica), New — talvez a única a demonstrar neste disco a capacidade sobre-humana de McCartney de criar melodias pop absoluta e enganosamente fáceis —; Turned Out não faz muito feio, embora pareça tão velha, Looking at Her tem alguma classe, e Get Me Out of Here é um bom aceno aos anos 60.

Tem também faixas ruins, em número infelizmente grande demais. Queenie Eye, apesar de alguns bons momentos, é fraca, e o seu videoclipe não vai muito além de um desfile idiota e sem significado de celebridades. Appreciate é irritante. Everybody Out There é um tipo de sub-rock de arena que McCartney gosta de cometer eventualmente (e uma letra absolutamente pedestre: “do some good before you say goodbye” vai para o seu panteão de letras cretinas, empatada com “changes in the way we treat our fellow creatures”, de Looking For Changes). Hosanna é muito chata. I Can Bet, idem. Road, ibidem. E Struggle tem um título que anuncia o esforço que você vai fazer para escutá-la até o fim.

É só fazer as contas e ver que um dos principais problemas do disco é que a maioria das faixas é ruim. Essas canções parecem excessivamente trabalhadas, resultado antes de um grande esforço para fazer algo diferente do que da inspiração absoluta e quase matemática que sempre foi a marca de McCartney. A isso se junta uma produção estapafúrdia, exagerada e modernosa, que nivela por baixo as canções e as submerge em camadas e camadas de mediocridade. O resultado é isso: um disco ruim, piorado pela decisão de soar jovem demais.

Em suma, em New McCartney tentou fazer um álbum moderno, cool. Só conseguiu nos fazer lembrar que, como diziam os Skrotinhos do Angeli, no cool dói.

Mas New trazia alguns elementos curiosos. Ali ficou definitivamente claro que a ausência da voz de Linda McCartney nos backing vocals tornava a música de Paul diferente, para quem ainda lembrava dos Wings. Além disso, confirmava definitivamente uma tendência razoavelmente recente de McCartney a escrever letras mais intimistas, mais pessoais. Nos últimos anos, suas letras parecem refletir cada vez mais uma angústia existencial e uma tentativa de entender o mundo à sua volta que não existia nos seus verdes anos. McCartney era o sujeito que encarava a composição principalmente como artesanato, o mestre para quem o que realmente importava era encaixar uma letra em uma melodia, e não o seu significado. Mas agora, bem adiantada a sua oitava década de vida, McCartney parece querer fazer as pazes com a sua existência, e às vezes deixar registrada a sua versão da sua própria história, o que acontece em canções como On My Way To Work e Early Days.

E agora ele se sai com um novo disco.

Egypt Station teve uma das campanhas de lançamento mais competentes de que tive notícia. A equipe de McCartney soube utilizar bem as mídias sociais, em todas as suas variedades, e as possibilidades que elas oferecem. Shows de surpresa, aparições em programas de TV, e finalmente a liberação homeopática de faixas ao longo dos últimos três meses. Pouco antes do lançamento do álbum, lançou no YouTube uma série de comentários sobre cada canção e transmitiu um show na Grand Central de Nova York. Conseguiu gerar, assim, uma expectativa entre os fãs que não se via há muitos anos.

Resta o disco em si, que é o que realmente importa.

Duas coisas chamam a atenção em Egypt Station, imediatamente. A primeira é o nível de degradação da voz de McCartney. Em 1969, tentando gravar Oh! Darling em infinitas tentativas, McCartney comentou que cinco anos antes teria conseguido de primeira. Sua voz seguiu mais ou menos igual até os anos 90, mas de lá para cá a coisa parece ter saído de controle, e rapidamente. Depois que as vendas de discos diminuíram e ele precisou voltar a tocar ao vivo, o processo de deterioração de sua voz se acelerou de maneira assustadora.

Isso ficou claro para mim, pela primeira vez, quando o vi cantar She’s a Woman no Rock in Rio Lisboa, em 2004. Ele já não conseguia alcançar as notas mais altas, e o resultado chegava a ser constrangedor.

Hoje, a voz de McCartney é a de um ancião que gritou muito a vida inteira e agora faz um esforço sobre-humano, até dolorido, para cantar. Se alguém prestar atenção, vai ver que ele mudou também a maneira de cantar algumas das antigas canções dos Beatles, tocando seu baixo pelo menos uma oitava acima do original. Ele fez isso, por exemplo, ao cantar A Hard Day’s Night em Nova York. Isso é ainda mais triste quando lembramos que ele só cantou o middle eight dessa canção porque Lennon não conseguia alcançar aquelas notas mais altas.

O som do baixo de McCartney é a outra curiosidade. Paul McCartney é provavelmente o baixista mais influente da história da música pop e um dos mais criativos. Durante o seu auge, seu baixo foi um Rickenbacker 4001. Mas depois que voltou a fazer turnês, McCartney voltou ao velho Hofner 500/1, o “beatle bass”, certamente por evocar o velho beatle Paul e porque o Hofner é extremamente leve e confortável, algo essencial para velhos que insistem em fazer shows de duas horas e meia. Com isso, sua música perdeu o peso e o punch que o Rickenbacker lhe oferecia. Além disso, o nível de compressão a que McCartney o submete durante as gravações torna o seu som, bem particular, absolutamente comum. Mais importante, no entanto, é que McCartney adotou definitivamente uma abordagem burocrática e fácil ao instrumento, muitas vezes até repetititva. Vão longe os tempos em que ele mostrava ao mundo que o baixo podia ir muito além da marcação da canção. O baixo de McCartney hoje é elegante como sempre, correto, mas é medíocre e deixa saudades do tempo em que se aventurava de maneiras inimaginadas.

Mas isso são bobagens, meu bem, bobagens. Egypt Station é o melhor álbum de Paul McCartney desde Chaos and Creation in the Backyard, de 2005.

O disco abre com I Don’t Know, uma bela balada, típica de McCartney. Tem classe e a elegância harmônica que sempre foi sua marca, e uma letra decente. É uma excelente canção, digna da lenda do seu autor.

Come On To Me é um ótimo rock, de uma vitalidade contagiante. Poderia ser gravada por qualquer dessas bandas pop que andam por aí. Mas aqui já se começa a ver o excesso de computadores. De qualquer forma, é uma das boas canções do álbum e expressa uma vitalidade muito agradável.

Happy With You é uma bela cançãozinha, aparentemente dedicada à sua mulher, em que ele canta que “eu era um bêbado, e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus” — ou melhor, Nancy Shevell. É o velho McCartney, e agradável de reencontrar.

Who Cares é uma boa canção, um daqueles rocks simples que fazem você bater o pé no chão e mexer os ombros discretamente. Poderia talvez ser melhor com sua velha e boa banda de apoio, sem muitas firulas. Mas ao oferecer uma reflexão sobre bullying e trolls de internet, mostra que Macca ao menos tenta entender o mundo em que vive e oferecer a ele um posicionamento.

Em contrapartida, Fuh You é embaraçosa. Um pouco pela letra: “I just wanna fuh you” não é coisa que mesmo um velho safado como McCartney cante em público. Certo, é legal essa ideia de a terceira idade ter uma vida sexual ativ — ei, vovô, sua dentadura caiu! Mas o principal problema da faixa é o tratamento pop radiofônico que ela recebeu. Computador demais, adulação demais ao gosto jovem atual. McCartney tem tamanho suficiente — quem tem esse tamanho fora ele? — para dispensar esse rastejar. É como se McCartney tivesse se rendido a Phil Spector.

Evocativa de Chaos and Creation in the Backyard, seu melhor álbum nas últimas décadas, Confidante é uma canção de gratidão, como parecem ser muitas baladas de McCartney nos últimos tempos. Mas aqui essa gratidão é ao seu violão. Não é a melhor canção do álbum, mas é digna.

Eu pensava que McCartney já tinha desistidos dessas tentativas de hino-hippie-odara-vamos-ver-o-sol-nascer-no-Vale-do-Amanhecer, como People Want Peace. O discurso político de McCartney sempre foi frouxo, fácil — medíocre, na melhor das hipóteses. É uma das canções fracas do disco. Alguns detalhes da melodia empolgam, mas são só detalhes, que não chegama redimir a canção.

Hand in Hand é uma canção belamente construída, com referências claras à música medieval inglesa, que ele já não consegue cantar. Típica de sua produção mais recente, é uma prova de talento e de domínio de sua arte.

Dominoes, por sua vez, é uma grande canção, que traz a marca de McCartney ao mesmo tempo em que desvenda caminhos melódicos. É uma daquelas canções que fazem valer a pena comprar um disco.

Back in Brazil é uma canção curiosa. De certo modo, parece que suas referências são pré-samba canção: para mim, que sou velho e ouço coisas mais velhas que eu, tem detalhes que parecem tirados do filme “Alô Amigos” ou de “A Dama de Shanghai”; mas me parece que uma certa moderna música brasileira tem esses grooves de que a canção se apropria. Diz McCartney que compôs essa canção no Brasil depois de ouvir o Bonde do Rolê. Ele devia ter vergonha de falar essas coisas. Ao mesmo tempo, essa atitude é absolutamente louvável, e enriquece a música.

Do it Now parece sobra de New, em seu tom menor e no jeito de que foi construída com esforço e sofrimento diante das teclas de um piano. Não tenho mais nada a dizer sobre ela.

Caesar Rock é uma dessas canções que atualmente se fazem num estúdio, feita no Pro Tools. Mas tem qualidades. Aqui a voz desgastada de McCartney empresta uma verdade cuja ausência era um dos problemas quando ele podia cantar o que queria. Lembra bastante a música solo de Mick Jagger.

Despite Repeated Warnings nos lembra novamente que McCartney não é o melhor sujeito do mundo para nos falar de política. Ele é rico demais para isso. No entanto é uma boa faixa, melodicamente mais complexa que a maior parte da música feita hoje. Seu grande problema é que é longa demais. Tem 6’57”. Só para lembrar, meio século atrás McCartney compôs uma canção com metragem semelhante. Se chamava Hey Jude.

O disco fecha com um típico medley de McCartney, Hunt You Down/Naked/C-Link. O riff inicial de Hunt You Down parece resgatado dos anos 80, mais precisamente de uma banda chamada The Clash, e não sabe se vai ou se fica. Isso não impede qua a canção seja agradável e forte. Naked, especialmente, é uma excelente canção. O verso “I’ve been naked for so long, now” adquire um sentido pungente quando lembramos que há quase 60 anos a vida de McCartney, um dos formadores da cultura ocidental, se dá debaixo dos holofotes. E C-Link parece estar aí como um lembrete de McCartney: “Eu sei que você sabe que eu sou o maior baixista do mundo, mas quero te lembrar que sou um grande guitarrista”.

No fim das contas, Egypt Station é um belo álbum. Um ótimo disco de McCartney, e poderia ser um disco memorável de cada uma dessas bandas pop modernas, o álbum que evitaria que elas pululem por aí durante uns meses e depois sumam definitivamente.

E o que mais me impressiona é que eu insisto em chamar esse negócio, que baixei da internet e só existe como zeros e uns, de “disco”. Eu estou velho. Mas ao contrário de McCartney, eu não quero ser novo.

Os melhores álbuns dos Beatles, pela ordem

Parei para pensar que nunca fiz uma lista ordenando os discos dos Beatles por ordem de preferência. Talvez porque isso não signifique muito para mim; ouvi esses discos por tanto tempo que é quase impossível fazer um ranking. Mas eu gosto de listas.

Em primeiro lugar é bom lembrar que mesmo o pior álbum dos Beatles é melhor que 99,7% dos discos já lançados neste vale de lágrimas e de música ruim. Nenhuma outra banda conseguiu lançar tantos discos seguidos com tamanha qualidade, de maneira tão consistente.

Mais que isso, ninguém mais conseguiu fazer tantas gravações que, mesmo com o passar dos anos, não perdem sua atualidade. É talvez a sua principal qualidade, e o que reafirma a cada dia sua genialidade. Num livro meio estranho lançado recentemente, Their Lives: Great Writers on Great Beatles Songs, Chuck Klosterman definiu com perfeição o que os faz grandes:

The Beatles’ songbook is a neutral charge. It’s a self-reflexive reality. Every other guitar band of the past sixty years has made a kind of rock: blues-rock or prog rock or folk rock or acid rock or punk rock or grunge rock or art rock or [pick a modifier] rock. But not the Beatles. The Beatles made “Beatles Music,” which became the working definition of “rock music,” which became the working definition of “popular music.” Black Sabbath worked within a genre; Blue Cheer worked within a subgenre. The Beatles had no such parameters. They could do whatever they wanted, and whatever they did became normative. If the Beatles had prominently employed the accordion on Revolver, we’d all be able to walk into any local Guitar Center and stare at a wall display of accordions, most of which could be plugged into Marshall amplifiers. Anything the Beatles did immediately became something that could be plausibly attempted by other artists. The Beatles “invented” heavy metal to the same degree they “invented” the notion of a pop band breaking up in public: they weren’t the first people to have the idea, but they were the first materialization of that idea in a context that collectively mattered. “Helter Skelter” ratified metal. Had Mötley Crüe covered “Smoke on the Water” or “Children of the Grave,” the unspoken message would have been “We like metal, so we play metal music.” By covering the Beatles, the unspoken message was “We like music. Metal is just the way we play it.”

Foi dentro desse contexto que fiz essa listinha boba. Ela não inclui alguns dos maiores clássicos da banda, já que os Beatles costumavam reservar suas melhores canções para os compactos, posteriormente reunidos no Past Masters. Se ele pudesse ser incluído seria um dos melhores, sem dúvida. Mas coletânea e disco póstumo não valem.

Yellow Submarine
Talvez seja injustiça colocar este disco aqui, porque na prática ele não é um álbum, é um EP. É praticamente uma obra de George Martin, que assina todo o lado B com a trilha orquestral do desenho animado; das seis músicas dos Beatles que compõem o lado A, apenas quatro são inéditas — duas delas escritas por George Harrison, e não particularmente inspiradas. Mas a verdade é que gosto de todas essas canções, especialmente Hey Bulldog, e até já ouvi o lado B algumas vezes.

Beatles For Sale
Final de 1964. A banda está exausta devido a uma rotina absolutamente estafante, e a obrigação de lançar um novo disco antes do Natal aqui se revela um fardo quase pesado demais, fazendo-a começar a se repetir. Até Beatles For Sale, cada álbum representou um passo adiante em relação ao anterior, retratando uma evolução constante e sem paralelos — ainda mais diante da pressão mercadológica para que eles fizessem mais do mesmo (pressão a que os Beach Boys, por exemplo, não sobreviveram). Mas aparentemente tudo tem limite, e Beatles For Sale é uma interrupção abrupta nesse processo, ou ao menos uma pausa para descanso; não é à toa que este é o disco mais “acústico” dos Beatles. O resultado é uma volta a covers tocadas nas longas noites em Hamburgo, a canções velhas que sempre tinham sido preteridas, como I’ll Follow The Sun, e algumas músicas novas que dificilmente poderiam ser qualificadas como obras-primas. Este é o disco de uma banda competente, talentosa, mas aparentemente estagnada. Relativamente pouca coisa se destaca aqui.

Let it Be
O amontoado de jóias nesse álbum não obscurece o fato de que todo ele soa estranho, como algo destinado a ser grandioso mas que ficou no meio do caminho: não é nem o projeto original, interessante em princípio, nem um disco tradicional de estúdio. Para piorar, o som é estranho, abafado, resultado dos estúdios vagabundos onde foi gravado. Em qualquer outro momento, um disco que enfileirasse Let it Be, Get Back, Across the Universe e The Long and Winding Road seria uma obra-prima, e é só por isso que ele não está em posição mais baixa. Mas o que os Beatles entregaram depois de passar a régua na banda é um disco decepcionante, se analisado no conjunto. Se eles tivessem se reunido para refazer esse álbum com seriedade, o resultado seria um disco perfeito. Mas em vez disso eles acabaram, e Let it Be é apenas Terry Malloy dizendo a você: “I coulda’ been someone! I coulda’ been a contender!” Mais sobre ele aqui.

Please Please Me
Fosse outra a banda e talvez esse disco fosse considerado um clássico absoluto. Basta olhar em volta e ver quantas lançaram um disco de estreia excelente e nunca mais conseguiram repetir o feito, sofrendo para lançar os seguintes. A partir da contagem de abertura, Please Please Me é um disco forte, personalíssimo, executado por uma banda absolutamente coesa que consegue capturar a energia dos pós-adolescentes que seus integrantes ainda eram e, se se contar a canção que lhe dá título (que já tinha sido lançada antes), revolucionário. De uma força impressionante, e com um som muito próprio, Please Please Me é excelente para o seu tempo e seu lugar, sendo fundamental para definir a música que viria a seguir. Mas aí você olha o que os Beatles fizeram depois, pede desculpas e manda o disco achar seu lugar na ordem cósmica das coisas.

With The Beatles
Depois do Please Please Me fizeram este, por exemplo. Para muita gente pode soar uma escolha estranha, colocar este álbum acima dos anteriores. Mas With the Beatles é um disco excelente de rock, coeso, de uma banda mais à vontade no estúdio e buscando horizontes novos enquanto mostram tudo o que aprenderam até ali. É fácil desconsiderar este álbum por ser relativamente fraco em grandes canções originais, embora tenha All My Loving, mas a verdade é que o conjunto, mais que as canções individuais, faz deste um grande disco de rock and roll, executado por “a great little rock band”, como se orgulhava John Lennon.

A Hard Day’s Night
A consolidação absoluta da beatlemania e do “beatle sound”, é o único disco composto apenas por canções de Lennon & McCartney. Aqui está cristalizado o som dos Beatles, de maneira definitiva — até o álbum seguinte, pelo menos. Em que pesem uma ou outra canção mais fraca, aqui e ali, sua essência é de uma consistência e qualidade impressionantes. A Hard Day’s Night representa também a ascensão definitiva de Paul McCartney à linha de frente como compositor. A partir daqui, ele ofereceria regularmente composições solo de qualidade absoluta, consolidando definitivamente sua posição de poder dentro da banda e possibilitando os avanços que se veriam nos anos seguintes. Alguém já disse que os Beatles não chegariam ao topo se não fosse por John Lennon, mas não se manteriam nem avançariam se não fosse por McCartney. É uma avaliação válida.

Help!
Um álbum que em alguns momentos é brilhante, com alguns clássicos eternos (Yesterday, que seria naturalmente um single, foi lançada apenas aqui porque McCartney não queria algo que parecesse um compacto solo) mas com uma quantidade alta, para os padrões da banda, de canções medianas — fillers, como eles as chamavam. Musicalmente, e se avaliado no conjunto, Help! não oferece em número suficiente os avanços musicais a que os Beatles acostumaram o mundo em cada um de seus três primeiros discos; em vez disso, aqui eles aparecem como uma banda satisfeita em apresentar suas canções, algumas extremamente inovadoras, como Ticket to Ride, dentro de uma fórmula já consagrada.

Magical Mystery Tour
Se fossem apenas os EPs originais talvez ele ficasse numa posição mais baixa. Mas a versão americana (em que a Capitol colocou os EPs originais no lado A e os compactos lançados mais recentemente no lado B, como Penny Lane, All You Need is Love e Strawberry Fields Forever) era mais sólida, e a partir de 1976 foi institucionalizado mundialmente como o disco oficial. Não foi à toa. Normalmente os americanos destroçavam os discos dos Beatles, tirando deles significado e mesmo sua unidade. Mas até um relógio quebrado está certo duas vezes ao dia, e aqui a Capitol conseguiu fazer um álbum maravilhoso, superior ao original inglês. Pode não ser o disco pensado pela banda, mas o que Harrison disse sobre Ringo (algo como “Ringo sempre foi o quarto beatle, ele só não tinha entrado no filme ainda”) vale para este disco.

Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
“O melhor disco de todos os tempos”, de importância inquestionável. É um disco absoluto. E mesmo 50 anos depois, mesmo depois de tanta água sob a ponte, defende confortavelmente e com brio sua posição. Mas como disse Ringo Starr, outros discos tinham canções melhores, o que cria um paradoxo curioso: o melhor disco pop da história não é necessariamente o melhor disco dos Beatles. De qualquer forma, o Sgt. Pepper’s mostra a importância do substituto do finado Paul McCartney (dead, man, miss him, miss him) no salto quântico dado pela banda.

Revolver
Para muita gente é o melhor disco dos Beatles. É um álbum revolucionário, sim. Mas na minha lista ele não fica lá na frente por algumas razões. O engenheiro de som dos primeiros discos dos Beatles tinha ido embora, e um garoto novinho tinha assumido os botões na sala de controle: Geoff Emerick, na minha opinião, ainda não tinha o domínio técnico necessário para dar a essas gravações a qualidade que elas precisavam, e algumas canções soam como se pudessem ter sido mais bem mixadas, melhor produzidas. Ou talvez tudo aquilo fosse novo demais para que se soubesse como lidar adequadamente com aquilo — o que, definitivamente, aprenderam no álbum seguinte. Fico imaginando o velho Norman Smith diante desse material. Finalmente, um dos títulos que foram considerados para o álbum me parece mais adequado, resumindo o que estava sendo revelado ao mundo: Abracadabra.

The Beatles
Muita gente não gosta desse álbum. Em parte porque é extremamente variado, em parte porque Lennon, como faria várias vezes, convenceu o mundo de que este disco era “John e banda, Paul e banda” (o que é uma bobagem infelizmente repetida ad nauseam: este disco é claramente dos Beatles, por mais que os estilos individuais de John e Paul como compositores venham se afirmando cada vez mais claramente). George Martin, que não produziu o álbum inteiro, morreria dizendo que teria sido melhor se eles tivessem feito um álbum simples. E é aqui que eu discordo dele. É justamente por isso que este é um dos melhores discos de todos os tempos. É vibrante, multifacetado, forte; uma cornucópia de estilos, de vitalidade, de brilhantismo e de maturidade. Você pode achar Wild Honey Pie e Can You Take Me Back? fracas — mas dentro do álbum elas adquirem um novo contexto, reforçam a sensação de uma surpresa depois da outra. Até Revolution #9 faz algum sentido.

Rubber Soul
Esqueçam o Revolver: para mim é aqui que está a verdadeira segunda revolução. Antes de mais nada, esta é a prova definitiva da fertilidade absurda da banda: o Help! tinha sido lançado em 6 de agosto, Rubber Soul foi lançado em 3 de dezembro, menos de quatro meses depois. Havia um abismo entre eles; em Rubber Soul, a banda praticamente realiza uma revolução — melódica e harmônica, claro, mas mais notavelmente ainda em termos líricos. Os Beatles de Rubber Soul já não são os mop tops do ié ié ié, suas letras vão além de She Loves You. Ao mesmo tempo, eles conservam muito daquela banda forjada nas horas infindáveis de Hamburgo, um certo frescor que a sofisticação e ambição dos discos posteriores enterraria. Talvez seja o melhor disco pop do anos 60. É magnífico, com uma sonoridade redonda, canções brilhantes e uma alegria que raramente se veria depois, em qualquer banda. Muita gente diz que é um disco de transição; imagino quantas bandas não gostariam de poder ficar trancadas nessa transição para sempre.

Abbey Road
Essa é uma das tantas razões pelas quais os Beatles já em sua época eram saudados como algo sobrenatural. Qual outra banda se despediu do mundo com a sua obra-prima? Porque este disco é perfeito. É a síntese da trajetória de uma banda que sintetizou a música de um tempo e apontou os caminhos que ela seguiria. Um diamante perfeitamente lapidado. De certa forma, ele tem algo em comum com o Kind of Blue de Miles Davis: a compressão em algumas dezenas de minutos de toda a história da música pop.

I hope we passed the audition.

The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years

Estou impressionado com o fato de The Beatles: Eight Days a Week – The Touring Years, de Ron Howard, estar sendo considerado por jornais no mundo inteiro — inclusive alguns que respeito como o Guardian — como um dos bons filmes do ano. Devem ter visto um filme que eu não vi.

Para quem acompanha a história dos últimos 25 anos de lançamentos em vídeo da Apple Corps., Eight Days a Week não traz novidades além de algumas imagens inéditas, incluindo uma versão porcamente colorizada do primeiro show nos EUA, em Washington. É a versão sanitizada e embelezada que os Beatles decidiram deixar para a posteridade, um filme superficial que apenas reconta pela milésima vez a versão oficial.

É uma oportunidade desperdiçada. Com um pouco mais de rigor Eight Days a Week poderia fazer uma análise da evolução — ou retrocesso — da banda na estrada. Poderia lembrar, por exemplo, que em 1966 as pessoas já não lotavam completamente os grandes estádios que uma banda que não mais fazia sequer questão de tocar certo encarava com enfado e às vezes medo.

Em vez disso Eight Days a Week tenta cumprir o seu papel na mitificação absoluta banda, enfatizando, por exemplo, a sua recusa em tocar para audiências racialmente segregadas. É talvez o único ponto positivo do filme, ao lembrar que, ao contrário do silêncio de praxe que eram obrigados a fazer sobre questões polêmicas, como a guerra do Vietnã, os Beatles se pronunciaram ativamente contra a segregação nos EUA. Obviamente, tudo é tão inflado que chega a passar a impressão de que a segregação só acabou porque os Beatles queriam.

Um documentário decente sobre esse período jamais poderia deixar de dar ao menos um vislumbre do lado sombrio, pouco recomendável das turnês. Das autoridades locais que eram obrigados a bajular, as pequenas humilhações a que precisavam se submeter. Ou, principalmente, das orgias de sexo e drogas que tinham lugar nas excursões, e a que Lennon se referiu em sua fase iconoclasta como uma cena de “Satyricon”. Dos “pedágios sexuais” que tietes pagavam a roadies e managers para terem uma chance de dormir com os seus ídolos — naquele momento, para aquelas pessoas, eles eram os reis do mundo, mais famosos que Jesus Cristo, e a fé requer sacrifícios. Faltam até mesmo anedotas clássicas, como George Harrison na Mansão Playboy levando duas coelhinhas para o quarto — o rapaz tinha bom apetite.

O filme sequer menciona Jimmy Nichol, o baterista que substituiu Ringo, doente, em alguns shows na Austrália. A essa altura, acreditando piamente na versão que vieram construindo ao longo dos últimos 45 anos, Ringo sequer deve se lembrar do medo que sentiu ante a possibilidade de ser substituído definitivamente, como Pete Best antes dele. A julgar pelo filme, esse medo nunca existiu porque ninguém jamais ouviu falar de Pete Best.

Esse é o problema mais grave desse conto de fadas póstumo: a tentativa de obliteração total da presença de Pete Best, seu primeiro baterista, da história da banda.

We love Preludin!

Pete Best foi defenestrado em agosto de 1962, quando George Martin, depois do primeiro teste na Parlophone, avisou que iria usar um baterista de estúdio nas gravações. A história diria que a banda tomou essa decisão porque Best não combinava com aquele monstro de três cabeças que, naquele momento, eram John, Paul e George; porque Ringo era melhor baterista; e porque havia algum tempo que queriam tê-lo na banda.

Tudo isso é verdade; mas não foi o fator determinante. Os Beatles chutaram Pete — sem sequer terem a decência de falar isso a ele: confiaram a tarefa a Brian Epstein — porque entenderam que naquele momento ele estava atrapalhando o seu caminho para gravar um disco. Botaram o coitado para fora para poder entrar no mercado fonográfico, e dificilmente o teriam expulso se não houvesse aparecido a oportunidade e a justificativa. Lennon e McCartney não podiam vender a mãe porque elas já tinham morrido; venderam Pete Best.

Mean and moody.

Ao negar a Pete Best seu papel na história dos Beatles e ignorar a sua existência, ou admitir esse ponto ético tão baixo, Eight Days a Week falseia a história dos Beatles. Porque Best era quem estava nas baquetas quando os Beatles definiram sua formação definitiva (bateria, um baixista canhoto e dois guitarristas) e desenvolveram o seu estilo, tocando oito horas por dia em Hamburgo. Foi ele quem passou por todo o processo de aprendizado ao lado de John, Paul e George (e de Stu Sutcliffe, também deixado de lado pelo filme). Não interessa o que digam agora: Best era tão beatle como Lennon ou McCartney, para todos os efeitos. Foi em protesto contra a sua saída que os fãs no Cavern deram a George o olho roxo que ele ostentou envergonhadamente na gravação de Love Me Do.

As pessoas vivem perguntando quem é o quinto beatle. A resposta é simples: Ringo. O quarto foi Best.

Pete Best foi um dos primeiros cadáveres que os Beatles deixaram ao longo da estrada em sua caminhada muitas vezes implacável em busca do sucesso; depois viria Mal Evans, e Brian Epstein morreu pressentindo que seria mais um deles.

***

Agora eu sou assim...

Acompanha o filme uma nova edição do Live at the Hollywood Bowl. O disco lançado à revelia da banda em 1977 (para enfrentar o lançamento, pela Lingasong, do The Beatles Live! at the Star-Club in Hamburg, Germany; 1962), tinha 13 faixas com canções gravadas em três shows diferentes, em 1964 e 1965, e uma capa elegante e simples. A reedição, naturalmente remasterizada, traz quatro faixas bônus, é apresentada mais ou menos como a trilha do novo filme e traz uma nova capa, a mais medíocre de toda a história da banda.

Apesar da remasterização ser excelente e o disco soar muito melhor agora, é um lançamento insuficiente em 2016. Dá para entender a escolha feita por George Martin em 1977, diante das limitações técnicas do material à sua disposição. Mas um relançamento do Hollywood Bowl, para fazer sentido hoje, poderia incluir os três shows na íntegra; até mesmo o de 29 de agosto, em que houve graves problemas com os microfones. Se você quiser ouvi-los, procure por The Beatles – The Complete Hollywood Bowl Concerts nas redes da vida.

Se preferir ver os meninos em ação, no YouTube alguém fez o impossível: juntou fontes diversas e criou um filme do show inteiro.

...Mas eu era assim.

Mas solução ainda melhor seria fazer um novo disco, uma trilha real e adequada para acompanhar o filme. Algo mais abrangente, que cobrisse toda a trajetória dos Beatles em shows ao vivo.

O disco que eu faria seria simples. Começaria com uma gravação de Baby Let’s Play House, feita no dia em que Lennon conheceu McCartney. Algumas gravações de 1960 na casa de McCartney, como Hello Little Girl e I’ll Follow the Sun. Passaria para uma seleção de canções gravadas no Cavern em 1962: Kansas City, Catswalk, One After 909 e uma preferida minha, um ensaio de I Saw Her Standing There com John na gaita. Algumas faixas do Star Club, cujas gravações agora pertencem a eles. Depois, o show no London Palladium que marcou o início da Beatlemania. Daí para gravações do primeiro show nos EUA, e uma série de canções das tantas e tantas turnês de 1964 e 1965 — de preferência aquelas que nunca tenham aparecido em disco oficial, como If I Fell; incluiria, claro, Lennon insultando a audiência, como em Atlanta. Em seguida, algumas gravações dos shows no Budokan, no Japão, e canções do Candlestick Park, o último show da última turnê dos Beatles. Incluiria então as versões de Revolution e Hey Jude apresentadas na TV inglesa, e terminaria com os takes não usados do show no telhado.

Na verdade qualquer um pode montar esse disco, ou um mais adequado às suas próprias preferências. Todo esse material está disponível na internet. É o que faz esses lançamentos da Apple menos frustrantes. Por mais inepta que seja a maneira como estão lidando com o material disponível — por exemplo, adiando ao máximo o lançamento da versão restaurada do filme Let it Be, ou deixando de seguir a minha sugestão e dar o material bruto para o Scorsese fazer outro filme —, a internet nos redime.