Pequeno rol de gostares esquecidos

Os táxis dos anos 70, fuscas sem o banco da frente, com seus taxímetros Capelinha marcando a bandeira 2 ao voltar do zoológico no fim da tarde de domingo.

Tróia renasce

Tenho sido um amante relapso, confesso. Não estava a par das últimas novidades a respeito de Tróia, minha paixão de infância, namorada fugidia e misteriosa.

As ruínas no estreito de Dardanelos que Schliemann descobriu nunca foram reconhecidas definitivamente como o reino de Príamo. Na verdade, havia várias cidades superpostas, de épocas diferentes, mas nenhuma delas tinha o tamanho suficiente para justificar a grandiosidade atribuída por Homero. Todas aquelas cidades, certamente, cairiam em algumas semanas, e nunca resistiriam a um sítio de 10 anos.

Por causa disso, o quase-consenso era o de que nunca houve uma Tróia específica, e que Homero tinha amalgamado uma série de guerras e lendas diferentes em uma só narrativa. E isso independe de Tróia ter existido ou não: a Ilíada e a Odisséia vêm de uma tradição oral de séculos, e quem conta um conto aumenta um ponto.

Maquete de TróiaPara a arqueologia, era mais simples creditar a existência da cidade à poesia e à imaginação dos gregos.

O único detalhe é que tinha que haver uma Tróia; uma cidade cujo cerco tenha sido importante e demorado o suficiente para se tornar legendário em seu próprio tempo e dar nome à saga. Não importa que ela tenha sido muito menor, que o cavalo de Tróia nunca tenha existido, que Páris, Helena, Menelau, Agamenon, Aquiles e Ulisses tenham sido apenas invenções — ou idealizações de reis de épocas diferentes. Uma grande guerra precisava ter acontecido, para só a partir daí Homero e os outros menestréis poderem embelezar a narrativa com as intervenções olímpicas e os ódios e amores dos aqueus.

Mas parece que depois de anos sendo considerado um amador que deixou sua fascinação pela lenda turvar sua capacidade de julgamento, Schliemann finalmente está sendo redimido. As últimas pesquisas em volta do sítio arquelógico que ele chamou de Tróia revelaram uma grande cidade. Além disso, encontraram vestígios de que a cidade foi submetida a um cerco, e derrotada.

No dia em que finalmente encontrarem o cavalo que Ulisses concebeu, juro que saio cantando pelas ruas de onde eu estiver. Porque ao contrário de praticamente todo o mundo, conheci Tróia antes de ouvir falar nos livros de Homero. Sua importância, para mim, não está em ser o enredo da matriz da literatura ocidental, mas no fato de existir ou não. E assim como Schliemann, eu acredito em Tróia.

A triste saga de Amâncio

No final de 96 eu era freqüentador assíduo do #sergipe, canal de IRC. Morava em Aracaju e boa parte de meus amigos estavam por lá (é engraçado: migramos do real para o virtual, na contracorrente). Meu nick era Tomahawk, nascido um ano antes na SyNC-Net, uma rede de mensagens via BBS em cujo “Abóboras” eu vivia falando besteira.

Foi quando um dos usuários, Wesley, apareceu com um pequeno script que dizia “Wesley bate em Fulano com um pato de borracha”.

Eu não gostava de scripts e comecei a implicar com aquilo. Aos poucos, a gente foi desenvolvendo uma história para esse pato de borracha, batizado de Amâncio.

A história foi ficando bastante engraçada. Demos muitas gargalhadas enquanto inventávamos absurdos para o pato. Até a hora em que enchi saco e “matei” o coitado. Duas vezes.

Acabei escrevendo a história de Amâncio. Arrumei umas fotos, escrevi a texto na linguagem mais típica de folhetim barato que pude imaginar e coloquei nas páginas no Geocities. Ficou lá por muito tempo.

Mas semana passada descobri que o site finalmente tinha sido apagado, 7 anos depois, junto com a biografia de Tomahawk. Para mim é quase como o fim de uma era.

Graças ao Internet Archive Wayback Machine consegui encontrar uma cópia. Então resolvi dar uma atualizada no HTML, tirei as midis que forneciam a trilha sonora, e coloquei a triste saga de Amâncio de novo no ar.

Provavelmente, a história tem mais graça para quem viveu aquilo. Mas talvez valha a pena, sei lá, apesar do tamanho. Se você tem tempo, vai .

De onde viemos? Para onde vamos? Lá tem BBS?

Em 1994 comprei meu primeiro modem. Uma potência que me colocava em contato com o mundo a estonteantes 2.4 Kbps (o Velox, em comparação, oferece no mínimo 256 Kbps). E um pouco depois comecei a acessar um BBS.

Um BBS era, mal comparando, uma internet em um computador só. Havia uma seção de downloads, normalmente com uma porrada de velhos programas para DOS. Mas o mais interessante, mesmo, eram os sistemas de troca de mensagens.

A BBS que eu acessava, a Cybernet, fazia parte da SyNC-Net, uma rede de trocas de mensagens que interligava vários BBS’s no país inteiro. Os pacotes de mensagens eram trocadas uma vez por dia, de madrugada.

Foi nesse sistema que descobri como era bom falar besteira com gente que não conhecia. Havia uma seção — seção, não, mas o nome me foge agora — chamado SyNC-Abobrinhas. Na época nicks eram chamados de handles, e eu resolvi usar o Tomahawk — por causa da machadinha dos iroquoises, não por causa dos mísseis.

Eu adorava aquilo. Trocava dezenas de mensagens por dia, falando os maiores absurdos. Ainda tenho umas poucas sobreviventes a dois crashs de HD:

CYBERNET – 07/08/95 20:01
From: TOMAHAWK
To: MAD DOG
Subj: God by e-mail
Area: SyNC-NET Abobrin

Mim resolve entrar em pow-wow de Mad e The.

MD>E ai grande Deus como vc esta !!!
MD>o que aocnteceu com vc que nao vejo mais mensagens suas por aqui
MD>parece que anda meio sumido pô…

Pois é, Mad. Deus anda meio sumido ultimamente. Desde que deu aquelas tabuinhas pro Moisés e mandou ele fazer aquela arca (a mesma que o Indiana Jones achou), resolveu dar um tempo. Deixou de lado até a guerra da Bósnia. No último cartão postal que me mandou, estava curtindo horrores na Praia do Forte.
Mas não se preocupe: Tomahawk, o amigo mais íntimo de Deus, está aqui pra falar com você.
Deixe o seu recado comigo. Eu garanto que assim que Deus voltar a dar notícias (se bem que ele anda de olho na Cindy Crawford, sei se vai ter tempo não…) eu passo pra Ele.
Só não vale pedir fama, saúde, dinheiro e a Babalu. A Cindy Crawford, como você pode ver, nem pensar. Deus perdoa tudo, menos quando você cobiça a mulher do próximo.
Qualquer coisa, é só falar. Ou rezar.
Por falar nisso, temos novidades: desde o dia 03/06, passamos a aceitar orações via e-mail, desde que enviadas para o endereço abaixo:

Tomahawk@paraíso.eden

Se você quiser mandar e-mail direto pra Deus, é só enviar para:

God@

Não se preocupe com o endereço. Deus está em todo lugar.

Você pode também nos contactar pelo telefone 1-900-GOD-SAVES. Apenas $1.45 o minuto. E sempre uma mensagem de esperança para você.

[]s teológicos de
Tomahawk
___
* UniQWK #1970* Vende-se tagline. Tratar (011) 1406.

O programa que eu usava para ler essas mensagens era o UniQWK. O número de série que aparece aí em cima era usado por quatro pessoas — as quatro que ratearam o registro — e muita gente achava que, afinal de contas, éramos uma pessoa só.

O UniQWK tinha uma opção de inclusão de taglines que, em pouco tempo, virou vício. Taglines eram frases incluídas aleatoriamente no final de cada mensagem. Eu tinha uma coleção enorme delas, cerca de 5000. Criei algumas, mas a maioria absoluta era roubada de outras mensagens:

Disléxicos são mais alerges.
Disléxicos de todo o mundo… Uvi-nos!
Um seminário sobre viagem no tempo será realizado duas semanas atrás.
* = Asterisco. _ = Asterisco depois de encarar o Godzilla.
A vida é uma merda, e aí você morre.
Eu não sou esquizofrênico. É esse cara do meu lado!
Eu não sou paranóico. Qual dos meus inimigos te disse isso?
Trilhões de moscas não podem estar erradas: coma bosta.
Na qualidade de leigo, qual é a sua opinião sobre sexo?
Aquela tagline é verdadeira -> <- Aquela tagline é falsa.
Gigolô: sujeito pago para fazer o que qualquer idiota faz de graça.

E por aí ia. Durante anos procurei um add-on qualquer para o Eudora que possibilitasse a inclusão de taglines. Senti falta delas quando comecei a usar e-mail.

Lá se vão quase 10 anos. O tempo passa muito rápido.

A decadência que nos espera

Eu estava em Paris, engolindo aquele continental breakfast intragável que servem por lá e que só se salva pelo café, melhor que o bebido aqui.

Foi quando entrou no restaurante do hotel uma família de americanos: pai, mãe e casal de filhos adolescentes.

Eram brancos e louros, aquele branco-louro lavado e insosso. Eram feios, típicos americanos médios; e não sei se por terem acordado naquele instante ou por uma vida de tolerância compulsória, pareciam evitar dirigir a palavra uns aos outros. A menina, de seus 14 anos, eu só pude definir como “lambisgóia”: nunca uma palavra foi tão adequada alguém.

Sentaram-se à mesa e começaram a comer. A menina pegou uma tigela e encheu de sucrilhos e leite. Até a borda.

Devem ter esquecido de lhe contar que talheres servem para levar a comida à boca, porque ela afundou a cara de cavalo na tigela e começou a comer. Segurava a colher como quem segura um facão, com firmeza, decidida a não perder a batalha contra aquela desconhecida. À essa altura eu já tinha deixado o meu café esfriar e olhava para ela sem conseguir controlar a queda progressiva de meu queixo.

Quando os sucrilhos acabaram, ela deve ter sentido uma imensa pena em desperdiçar todo aquele leite. E então levantou a tigela e, com a sem-cerimônia das pocilgas, bebeu sofregamente o leite.

A danada não deixou cair uma gota. Quando acabou limpou a boca com as costas da mão. Ela estava satisfeita. Esperei um arroto que não veio.

Pela primeira vez tive uma noção clara do que me esperava, eu vassalo de um império disfarçado e tosco. E pensei em ligar para minha mãe e reclamar que, em vez de ter me dado boas maneiras, ela devia era ter ido me parir nos Estados Unidos. Porque lá eu poderia ser um porco, mas não me incomodaria porque aos donos do mundo educação não é pedida.

A 8 mil pés acima do nível do mar

Normalmente eu entro no avião, sento na minha poltrona e esqueço do mundo. Se tem alguma coisa para ler, eu leio. Se estou sentado à janela, olho para fora. Raramente abro o computador. Raramente durmo. Raramente converso com alguém. Não tenho muito interesse e, quando meu companheiro de viagem tem, não demora muito para que sua polidez seja desestimulada pelos meus monossílabos.

Mas ainda lembro da senhora que voltou de Aracaju comigo, para o Rio.

Era sua primeira viagem de avião. Não sabia como apertar o cinto de segurança, não sabia como chamar a aeromoça, não sabia nada. Eu a ajudei com o cinto e a ensinei a reclinar a poltrona. E talvez por isso, e pelo nervosismo, ela tenha resolvido que eu seria seu confidente durante aquelas próximas horas.

Ela era de Brejão, um povoado de um interior remoto chamado Brejo Santo ou Brejo Grande, não lembro. Tinha morado cerca de 20 anos no Rio, onde deixara uma filha.

Ela estava maravilhada; nunca tinha viajado de avião porque achava que era caro demais. Agora que ela sabia que o preço era acessível, só iria viajar assim. Contou toda a história de sua vida; naquela época ela, além da pensão do INSS, descolava um troco comprando terrenos e vendendo um pouco mais caro.

Era uma mulher interessantíssima, pela vitalidade e pela simplicidade — não aquela simplicidade acanhada, mas uma mulher que estabeleceu um pacto com a vida: ela sabia exatamente como é o mundo, mas não deixava que isso lhe incomodasse.

Ela me contou até o motivo de sua viagem: ia fazer uma operação de hemorróidas. Não sei em que isso poderia me interessar, mas tive que me controlar para não rir. Não era difícil, na verdade.

Aproveitei para iniciar aquela senhora nos meandros da contravenção. Ela ficou tão encantada com o lanche a bordo — é preciso ser um neófito para se encantar com a comida vagabunda que as empresas aéreas servem hoje em dia — que queria levar tudo, talheres e pratinhos, para casa.

Normalmente eu teria horror a isso. Mas naquela hora, não seria eu a contar a ela que isso não se faz.

Olhai os lírios do campo

Sei lá por quê, mas lembrei de um colega de faculdade.

Era novembro de 1994. Tinha acabado de terminar uma campanha e voltado à universidade. Foi lá que encontrei um amigo, um grande câmera. Tiramos o fim da manhã e a tarde para beber e conversar. E então ele me chamou para ir ao restaurante de uma amiga.

Funcionava num lugar simples — aquele “simples” que a gente usa como eufemismo para pobre em dinheiro e pobre em horizontes –, restaurante e residência ao mesmo tempo.

Fiquei sabendo a história de sua vida. Abandonada pelo marido, teve que fazer das tripas coração para sustentar os filhos. Era uma história de luta e de esforço. O tipo de luta que mesmo o cínico mais empedernido tem que respeitar.

Quando ela ficou sabendo que eu fazia direito na Federal, ficou empolgada e orgulhosa. Seu filho mais velho também estudava direito lá. Era meu colega. Fiquei imaginando o seu esforço em dar a melhor educação possível ao filho.

Quando o encontrei de novo, comentei que tinha ido à casa dele e conhecido sua mãe.

E então ele ficou vermelho, se pôs na defensiva, se apressou em encerrar a conversa.

Sua mãe era uma heroína, e ele tinha vergonha dela e de sua pobreza.

Wolfiana

O que vem a seguir não é exatamente um post, e sim um comentário deixado em Prints the Chaff.

Tenho procurado minha velha e queridíssima amiga por quase 30 anos. (…)

Com meus botões eu a imaginava casada, com filhos, e talvez morando em uma bela casa, em algum lugar. Em vez disso eu tive a maior decepção de minha vida. Minha amiga estava morando como uma sem-teto nas ruas de São Francisco. (…)

Poderia acontecer a qualquer um. Nem em meus sonhos mais delirantes jamais imaginei minha amiga como uma viciada sem-teto empurrando um carrinho, segurando um cartaz pedindo dinheiro, portando HIV e tudo o que mais que vem com essa “Doença dos Sem-Teto”. Chamo assim porque é como vejo — uma doença. (…)

Só mais uma coisa: minha amiga, que agora vaga por São Francisco, estava a caminho da competição de ginástica nas Olimpíadas, e era também uma grande líder de torcida, era muito bonita, mascote da equipe de animadoras de torcidas, líder de classe e muito mais. A Doença dos Sem-Teto não discrimina.

Como dizia Tom Wolfe, você não pode voltar para casa.

Durango Kid

É só uma lembrança, muito vaga.

Durango Kid se vestia completamente de preto, usava um lenço cobrindo seu rosto, como o dos bandidos, mas era um dos mocinhos. Seu cavalo era branco.

Isso é tudo que lembro de um seriado que a TV exibia nos anos 70. Alguém lembra de algo mais que isso?