Dos arquivos

Musiquinha feita na adolescência:

Botei meu sapatinho
Na janela do quintal
Papai Noel faltou
E ferrou o meu Natal

Como é que o Papai Noel
Só esquece quem não tem
Se você for muito pobre
O sacana nunca vem.

Em Algum Lugar do Passado

Há um pequeno pecado que não costumo confessar: eu gosto de “Em Algum Lugar do Passado“, o filme com Christopher Reeve e Jane Seymour.

É, o filme é bobo. É implausível. Mas eu gosto dele, e acho que sei por quê.

Vi o filme no dia 12 de novembro de 1981. Estava esperando por ele havia meses, desde que lera a crítica na Veja — e quando se tem dez anos, um mês é tempo demais. Como praticamente todo garoto da minha idade, eu queria ser Christopher Reeve quando crescesse. E bem que tentei: pelo menos saí do cine Liceu, um ano antes, voando como o Superman, braços esticados e pulando da calçada para a rua e vice-versa, fingindo que aquilo era voar.

Quando finalmente assisti ao filme, naquela quinta-feira, a história de amor derrotado pelo tempo, mas que não esmorece, me deixou extasiado. Descobri que estava apaixonado pelo nariz de Jane Seymour — algo esquisito, já que ela tem um nariz longe de perfeito e, cá para nós, qualquer mulher tem coisa melhor para se admirar do que um nariz; ainda mais quando o admirador tem 10 anos. Estava deslumbrado com “Rapsódia Sobre Um Tema De Paganini”, de Rachmaninoff, a música-tema do filme, que procurei em vão durante anos. E continuava querendo ser Christopher Reeve.

Eu fui para a primeira sessão no Cine Tamoio, às 2 da tarde. Queria ficar para ver uma segunda, mas não tinha dinheiro para voltar para casa e me apavorava a idéia de andar sozinho à noite pela Av. Sete; preferi garantir a carona dos meus pais, que trabalhavam perto do cinema. Mas nunca consegui esquecer o filme.

O tempo passou e revi o filme umas duas ou três vezes. A cada vez eu o achava pior, mas isso não me impedia de continuar gostando dele. Acho que na primeira vez que o revi, já na década de 90, fiquei impressionado em ver como ele era hermético. Não no sentido cinematográfico, claro. Mas o círculo vicioso que ele cria é curioso. Collier só volta no tempo porque Elise se apaixonou por ele. Elise só se apaixonou por Collier porque ele voltou no tempo. E se alguém conseguir explicar como o relógio que atravessa todo o filme e serve de elo de ligação entre os amantes foi fabricado (Collier o recebe de Elise em 1972, que por sua vez o recebe de Collier em 1912) eu agradeceria.

Já cheguei a acreditar que esse filme, que me parecia ser uma bobagem romântica, é na verdade uma tragédia, daquelas tristes, que nem sempre conseguimos julgar. Collier arruina a vida de Elise, que por sua vez espera 60 anos para arruinar a dele. No fim, revendo-o o mais uma vez, fico com a mesma impressão que tive quando era criança: é só uma história de amor.

É, é bobo, eu sei. Que bom que seja bobo.

Pequena lembrança sobre uma aspirante a publicitária

Uma vez uma estagiária me pediu que recomendasse alguns livros sobre propaganda.

Pensei em dizer que em vez de livros sobre propaganda ela devia ler mais literatura, poesia, história, arte, qualquer coisa. Propaganda se alimenta feito vampiro da realidade e da vida cotidiana; quando come apenas a própria carne se torna anêmica.

Mas, coitada, ela não iria durar muito na agência e achei que talvez o conceito lhe fosse inaceitável. A juventude tem uma arrogância ignorante que me fascina e irrita, ao mesmo tempo; acho que ela, com a cultura geral incipiente que parece endêmica na juventude, iria olhar para mim e se perguntar como aquele cretino podia ganhar tão mais que ela.

(Duvido que essa menina tenha ido longe: um dia eu estava na sala da criação, cantando uma musiquinha dos Raimundos, “Selim” [“eu queria ser / a calcinha daquela menina / pra ficar bem perto da vagina / e às vezes até me molhar”, entre outros versos cândidos]. Ela ficou horrorizada. Sua expressão era a de quem não sabia o que estava fazendo naquele antro de indecências.)

Então dei a lista. Acontece que eu mesmo não sou um grande leitor de livros sobre propaganda; tenho livros melhores e mais importantes para ler, uma fila que está sempre aumentando, por mais que o atendimento seja eficiente.

Se fosse para ler apenas um livro, que fosse Ogilvy on Advertising. David Ogilvy é um dos dois grandes publicitários da história (o outro é Bill Bernbach), responsável por tudo o que está aí, inclusive o falso glamour que hoje em dia cerca a atividade. É um livro agora inexistente em português (foi lançado aqui como “A Publicidade Segundo Ogilvy”), e se ela preferisse ler na língua pátria, comprasse então “Confissões de um Publicitário”, basicamente um rascunho feito 20 anos antes.

O outro livro realmente interessante não era bem sobre publicidade: “Marketing Direto”, de Bob Stone. O resto era resto, e ela poderia escolher o que lhe conviesse: acho que indiquei “Fazer Acontecer”, do Julio Ribeiro, o livro do Alex Periscinotto, (infelizmente ainda não conhecia o interessantíssimo “E o Outro Vacilou”, em que Roger Enrico, da Pepsi, conta como conseguiu bater a Coca-Cola), “Criatividade e Propaganda”, do Duailibi e Simonsen, e “Tudo o Que Você Queria Saber Sobre Propaganda Mas Ninguém Tinha Paciência Para Explicar”.

E, claro, os anuários. Mas dei um conselho bem cínico: que ela corresse dos anuários brasileiros, como o do CCSP. Porque se é para copiar, vá direto à fonte: One Show, New York Art Director’s Annual e o D&AD Annual inglês. Copiar a cópia não leva ninguém a lugar nenhum.

Isso já faz alguns anos. Duvido que ela tenha comprado qualquer desses livros. Devia estar entalada com semiótica (provavelmente a coisa mais cretina e mais inútil que já inventaram, e Barthes certamente está pagando no caro no inferno por seu crime) e sociologia e filosofia, e esperando que um valente se dispussesse a casar com ela e tirá-la daquela vida, onde pornógrafos ficavam cantando músicas sujas diante de gordinhas inocentes.

Vaga-lumes

Quem cresceu nos anos 80 se lembra de uma coleção de paradidáticos — nomezinho feio esse — chamada coleção Vaga-Lume.

A coleção Vaga-Lume nasceu nos anos 70. Mas foi nos anos 80 que se tornou presença obrigatória nas escolas. Até hoje é utilizada, e o número de títulos cresce constantemente, numa proporção bem razoável; progressivamente as escolas abandonaram clássicos como Machado para se dedicar a esses livros, por tudo inferiores, mas (assim julgavam eles) mais adequados à realidade dos alunos.

Eu discordo; pelo que vejo por aí, não acho que esses livros tenham formado legiões de leitores. A proporção continua a mesma, no fim das contas, com a diferença que os não-leitores antigos, de antes desses “paradidáticos”, pelo menos saíam da escola sabendo o que era o básico da boa literatura nacional. Se é para não ler, que seja o melhor, e não o que, com boa vontade, se pode chamar de descartável.

Houve algum momento na história da educação nacional em que um grupo de gênios decidiu que tinham que facilitar as coisas para os alunos. Não acredito nisso. A melhor prova disso é que, há algum tempo, peguei um desses livrinhos de uma irmã. À medida que ia lendo o livro, tinha a sensação de que o conhecia de algum lugar. Só perto de terminar é que lembrei que tinha lido aquele livro na oitava série. Esqueci completamente. Mas não esqueci meu Brás Cubas, defunto autor.

Esse não é um caso isolado. Por exemplo, aprendi na escola que antes de P e B vem sempre um M; mas não aprendi a razão. (A quem interessar possa: P e B são bilabiais; a função do M é preparar a boca para esses dois fonemas.) Assim como eu, milhões de garotos saem da escola até sabendo algumas coisas, mas geralmente com um entendimento muito superficial das coisas.

A impressão que eu tenho é a de que os educadores esqueceram de uma coisa simples: é melhor ser analfabeto em Eça de Queiroz que analfabeto em sei-lá-qual-o-seu-nome.

Pequeno rol de gostares esquecidos

O som do tec-tec-tec-tlim! das máquinas de escrever. O cheiro e a textura do papel imprensa que se usava nas máquinas, antes das impressoras. O cheiro do nanquim e do ecoline permeando toda a sala.

Antigo e Novo Testamentos

E em verdade vos digo: eu gosto de ler a Bíblia. Nem tanto por questões religiosas, mas pela linguagem e pelas histórias.

Talvez por isso tenha uma preferência clara pelo Antigo Testamento em detrimento do Novo. Não entendo algumas coisas — como o tratado de putaria que é o “Cântico dos Cânticos” continuou na Bíblia cristã é um mistério para mim –, mas de modo geral é infinitas vezes melhor que qualquer livro de mistério. Tem sangue, tem traição, tem sexo, tem fé e bondade. Se há um compêndio da raça humana, um livro que resuma tudo aquilo de que o homem é capaz, é o Antigo Testamento. É tão bom ver um herói como Sansão cair por causa de sua luxúria, ou Esther triunfar em toda a sua humanidade.

Mas com o Novo Testamento a coisa complica.

Com a possível exceção de João, nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Os Evangelhos foram escritos distantes no tempo e no espaço da Palestina; e portanto são relatos de “diz-que-diz”. São de uma época em que o apostolado buscava mais e mais discípulos. Daí o excesso de milagres; era uma época em que ninguém via nenhum, como agora, mas todo mundo acreditava. Pessoalmente, considero os Evangelhos uma série ininterrupta de deturpações da verdade histórica (ou quatro grandes livros de propaganda em uma época em que não havia o CONAR para coibir eventuais exageros) — mas nem por isso, que ao meu ver é uma qualidade, ele consegue ser atraente para mim.

Gosto da forma como os cristãos adaptaram sua religião ao gosto de Roma e do Oriente Médio. Os romanos têm uma certa fé na “Deusa Mãe”? Inventemos a Anunciação e a Imaculada Conceição, e tornemos Maria algo próximo de uma deusa (“daqui a dois mil anos hereges vão dizer que é o maior caso de hímen complacente da história, ou vão decorar a testa de José com belos adornos, mas isso não é problema nosso”). Os persas são dualistas e acreditam no demônio? Então a gente pega aquele anjo escroto, Lúcifer, que entre os judeus era basicamente um instrumento de Deus para garantir o livre arbírtrio, e o transformemos em um quase deus do Mal. Ah, os romanos têm uma tradição de estatuária? Mande aquela tradição judaica às favas e façamos ícones de santos.

(Sim, eu estou exagerando, e esse foi um processo que ocorreu lentamente, muitas vezes sem a participação da elite da Igreja; mas só aconteceu porque o cristianismo adotou uma certa flexibilidade teológica que tornou essas pequenas transformações possíveis.)

Segundo Gibbon a força do cristianismo está, principalmente, na noção de vida eterna (em uma época em que se acreditava que o fim do mundo estava próximo), na pureza da fé, no comportamento irrepreensível dos cristãos. Saramago define de forma diferente: a possibilidade de arrependimento é irresistível. Saber que se me arrependo de verdade as portas do Paraíso estão abertas para mim é, no mínimo, reconfortante.

É tanta coisa a favor que é difícil saber exatamente por que não gosto do Novo Testamento. Talvez o que me incomode é que ele é incapaz de dar o justo reconhecimento ao arquiteto do cristianismo: Saulo de Tarso. Sem São Paulo, o mais provável é que o cristianismo vicejasse durante um tempo como mais uma seita mística judaica, e sumisse como tantas outras.

Foi Paulo quem deu ao cristianismo aquele senso romano de universalidade que fez a religião se espalhar pelos quatro cantos do mundo. É como se à força da fé judaica ele desse aquele imperialismo romano. A idéia de que a salvação não pertencia ao povo escolhido, mas a todos aqueles que abraçassem Jesus.

O sujeito era absolutamente genial. Se alguém deu forma ao mundo ocidental como o conhecemos hoje, ele é sério candidato ao cargo. E, no entanto, quão pouco reconhecimento lhe dão, tadinho.

Neo-luditas, computadores e máquinas de escrever

Fazendo uma limpeza geral em meus arquivos (arquivo é o nome pomposo que dou àquele monte de papel amassado e empoeirado que guardo, fora de qualquer ordem, em casa), encontrei este artigo publicado na Gazeta Mercantil de 21 de outubro de 1994.

Como todo mundo com mais de 30 anos, eu comecei em máquinas de escrever, catando milho com dois dedos de cada mão. Até hoje bato com força demais nos pobres teclados de computador por essa razão. E embora seja há muito tempo o feliz proprietário daquilo que mais se parece com uma máquina de escrever, um notebook, confesso que, assim como o autor, sinto que há algo de insubstituível numa boa máquina de escrever.

O artigo de Peter Khan é uma espécie de vingança contra o progresso, devidamente endossada por mim e por milhares de pessoas que sentem saudade de suas Olivettis.

Máquina de escrever é melhor que computador
Por Peter R. Kahn, do The Wall Street Journal

Walter Mossberg (o colunista de informática do The Wall Street Journal) está de férias, relaxando em alguma praia com alguns leves CD-ROM para o verão. Eu o estou substituindo, penitência por haver um dia sugerido que ele escrevesse uma coluna para aqueles que às vezes usam máquinas de escrever.

“Mas você é a última pessoa”, disse Mossberg. A premissa desta coluna é que não sou.

Nós proprietários de máquinas de escrever estamos intimidados, escondendo nossas Royals em porões, furtivamente pechinchando fitas de reposição em papelarias obscuras, encolhendo-nos aos comentários de nossos filhos da era do computador (“Claro, meu pai tem uma impressora com teclado”).

Uma vez que na verdade estou “online” no escritório, encontro-me quase à altura de meu filho de cinco anos em seu Mac e me orgulho por produzirmos este jornal em computadores. O objetivo aqui não é fazer uma guerra ludita aos PC, mas apenas questionar a visão que os seus adeptos têm sobre máquinas de escrever.

A clássica máquina manual de escrever fabricada desde a década de 1870 até a década de 1960 (não, perceba, elétricas, Selectrics, e outros mutantes desastrosos da década de 70) não merece tornar-se obsoleta. Se o rádio pode coexistir com a TV, fósforos com isqueiros, pais com adolescentes, por que não máquinas de escrever com computadores?

Vejamos alguns dos méritos da máquina manual:

Personalidade: Adeptos podem debater as virtudes de uma Royal 10 vs. uma Underwood 5, mas todos concordam que não apenas cada modelo mas cada máquina tem uma personalidade distinta. Excentricidades — uma tecla resistente, uma barra de espaços divertida, margens ingovernáveis — espelham as nossas fraquezas humanas. Com máquinas de escrever, da entrada à saída, do toque das teclas aos XXX em seu papel, processo e produto são inquestionavelmente seus.

Independência: datilógrafos, ao contrário de seus colegas computadorizados, não estão atados a correntes elétricas nem dependem de baterias. Observamos amigos que partem para viagens carregados com laptops, modems, cabos, baterias, tomadas, adaptadores e grampos para escuta clandestina em telefones de hotel. Alguns são presos como espiões por agentes alfandegários do Terceiro Mundo. Outros, não conseguindo carregar uma pesada impressora e precisando fazer muitas cópias, acabam usando fax modems para enviá-las através da máquina de fax ao hotel por taxas exorbitantes. Uma leve Olivetti Valentine não serviria com mais praticidade?

Versatilidade: Enquanto estamos nisso, tente produzir pequenas notas, cartões ou envelopes numa impressora PC normal.

Durabilidade: As máquinas de datilografia clássicas são feitas de sólido aço. A minha suportou monções na Nova Guiné e tempestades de areia no Paquistão. As máquinas de datilografia sobrevivem até aos transportadores de bagagens das empresas aéreas.

Audibilidade: O reconfortante estalo das teclas e o alegre tilintar do carro fazem da datilografia um passatempo divertido, semelhante a escutar poesia em voz alta. Considere: existem agora no mercado muitos programas compartilháveis de computador que tentam simular os sons das teclas e sinetas das máquinas de escrever. A realidade é melhor.

Saúde: Quem jamais ouviu falar sobre alguém que ficou com exaustão por esforço repetitivo e outras indisposições misteriosas — ou de ter precisado alistar-se no escritório ao Ergonomics 101 — por causa de uma máquina de escrever? A pior injúria que uma máquina pode lhe infligir é cair no dedão do seu pé.

Segurança: Com uma máquina de datilografia você pode ficar seguro de que nenhum “vírus” invadirá sua memória ou manuscrito, nenhuma criança de passagem destruirá seu documento ou diário. Não existem traços de dados que outros possam usar para reconstituir documentos que pensa que apagou. E o risco é zero de que você possa pressionar uma tecla errada e enviar um memo sobre seu chefe para seu chefe.

Intimidade: Cartas datilografadas invariavelmente são destinadas a uma pessoa. Correspondência por computador, ao toque de uma tecla, com muita freqüência vai para listas de distribuição — para relações de grupos desinteressados — que têm o infortúnio de estar conectados on line. A ironia de nossa era do computador é que nunca antes tantos foram tão abundantemente copiados a respeito de tanto que lhes importa tão pouco. Computadores, na verdade, matam mais árvores do que máquinas de datilografia jamais fizeram.

Produção: Diz-se que Mark Twain foi o primeiro autor a apresentar um manuscrito datilografado a um editor. Isto aconteceu nos anos 1870 e o título era “Tom Sawyer”. Alguém já escreveu um livro melhor num computador?

Modéstia: A máquina de datilografia é um instrumento honesto; não aspira a ser humano. Não existem programas para checagem de termos usados nem arquivos de memória. A máquina de escrever não pretende soletrar quando não pode ler, não alega lembrar quando não pode pensar. Máquinas de escrever não competem com seus proprietários.

Procurando uma máquina de escrever: Tenha em mente que máquinas de escrever, como ocorre com vinhos Bordeaux, quanto mais velhas melhores. A produção de todas as excelentes manuais terminou na década de 60. Apenas a Olivetti ainda produz algumas portáteis plásticas. Assim você fará melhor procurando uma loja de material usado em busca de uma máquina dos anos 20 (US$ 5 a US$ 50) ou tente descobrir um modelo “recondicionado” no porão de um depósito de materiais de escritório (US$ 50 a US$ 150). Teste todas as teclas, o retorno no carro e a reversão da fita. Compre fitas extras sempre e quando as encontrar.

Minha favorita é uma atraente Royal negra fabricada nos anos 20. Foi comprada de Lev Shapiro, do Lincoln Center Business Machines, em Nova York. Shapiro ainda vende, presta assistência e ama máquinas de escrever.

Para os que têm mais interesses acadêmicos, recomendamos um volume esgotado de Wilfred A. Beeching intitulado “Século do Datilógrafo”. Ele escreve uma história de 300 anos dos “Tipógraphos e Copistas” a “Impressoras com Teclado” e “Escrita com Espineta”, assim como detalha cada modelo clássico manufaturado.

Se, por acaso, quiser se desfazer de uma máquina de escrever, sinta-se à vontade para enviá-la (não para pagamento contra entrega) ao endereço postal de Mossberg no The Wall Street Journal. Mossberg gosta de receber notícias dos leitores.

O Pequeno Burguês

Salvador, praia de Stella Maris, 1993. Manhã cedo, aí pelas seis horas. No bar de um amigo, eu procuro alguma coisa para comer depois de uma noite meio agitada, quando aparece um sujeito que eu nunca tinha visto.

“Waltinho tá aí”?

Tá dormindo, eu acho. Procure em uma das redes na praia.

A única coisa que se podia comer era xinxim de galinha, e eu não sou filho de Oxum para gostar daquilo. Ora yeyê o!, Oxum, mas vou morrer achando que galinha não vai bem com dendê. Volto à cerveja. E a gente começa a conversar.

O sujeito, um neguinho de seus 40 e alguns anos, magro, vesgo, dentes que sobraram apodrecendo, veste apenas um short azul, e traz no corpo corroído pela cachaça as marcas de uma vida de trabalho braçal. Ele se diz chamar Wilson, mas se eu quiser posso chamá-lo de Zoinho, é assim que todo mundo o chama. É alcoólatra, é claro que é alcoólatra.

Zoinho conta histórias, enquanto derruba uma garrafa de vodca. E então me conta o seu grande momento na vida. Ele se diz autor de “Canudo de papel”. “Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade é particular”.

A primeira coisa em que penso é que aquele bêbado está inventando histórias; pagando a vodca que eu graciosamente ofereço como se fosse minha. Mas ele fala com tanta certeza, e tão sem revolta, como se a miséria em que vive fosse tão natural como compor um samba numa mesa de boteco, que eu passo a acreditar nele. A única glória que reclama é ser reconhecido com o autor do samba, só isso. É tão pouco. Para mim, Zoinho é o autor de “Canudo de Papel”.

Algumas doses depois ele vai embora. Eu nunca mais veria Zoinho.

O samba na verdade se chama “O Pequeno Burguês”, e a autoria oficial pertence a Martinho da Vila. Se Zoinho é mesmo seu autor, eu nunca vou saber. E algum dia até essa dúvida sumirá, assim como Zoinho sumiu um dia em Stella Maris.

De volta ao futuro

Para a maior parte das pessoas a Internet significa um vínculo seguro com o futuro.

Para mim, sempre foi um meio de me manter em contato com o passado.

Antes da Internet, informação era cara. Era comprada em livros, revistas e jornais. E dependia do mercado, sempre.

Houve um seriado de que nunca esqueci, chamado “Joe, o Fugitivo”. Era uma mistura de “O Fugitivo” com “Rin Tin Tin”. Foi exibido aqui entre o final de 1979 e o começo de 1980. Durante anos não consegui descobrir ninguém que lembrasse dele (recentemente conheci o Daniel, que lembrava; é o único até hoje). E não sabia absolutamente nada sobre seu destino.

Só com a Internet pude descobrir que o seriado se chamava Run, Joe, Run, e que tinha durado 2 temporadas (ou 26 episódios) nos EUA.

Há outros exemplos. “Ratos do Deserto”, um dos últimos seriados de guerra, foi sucesso aqui em 80, 81, e sumiu completamente.

Para esses, e mais algumas dezenas de seriados, filmes, acontecimentos e pessoas que sumiram no tempo ou em sua própria mediocridade (alguém lembra de Leif Garrett, cantor disco dos anos 70 com uma cara de meio viadinho que até fez umas pontas em “Mulher Maravilha”?), a Internet é a redenção. O mundo de informação disponível, muitas vezes colocada ali graças à boa vontade das pessoas, faz com que o mundo seja, paradoxalmente, mais simples. É reconfortante ver que há um mundo de gente que gostava das mesmas coisas que você, e que faz questão de compartilhar o que sabe.

Qual a desculpa para a ignorância, agora?

Lembranças soltas tiradas de um baú bolorento

O Bia não gostava de “Daniel Boone”. Eu e a Mônica adorávamos. Eu não gostava de “Terra de Gigantes”, mas gostava de “Batman”, de “Durango Kid”, de “Maya” (dois meninos e uma elefoa) de “O Homem do Fundo do Mar”, de “CHiPs”, de “Ratos do Deserto”, de todos os filmes de Jerry Lewis, do Zorro (o Lone Ranger, aquele de Tonto e Silver), dos filmes de Tarzan com Johnny Weissmüller, e de uma infinidade de outros que não lembro agora. Isso para não citar os desenhos.

Eu gostava de faroestes. Brincava com o Playmobil e com o Falcon. Tive revólveres de espoleta, até mesmo uma carabina de espoleta, igualzinha àquelas Winchester que matavam bandidos, bisões e índios.

Entre a minha infância e as de hoje há uma diferença enorme. É estranho que em um quarto de século tantas coisas tenham mudado. Os símbolos que valiam para a minha geração não valem para a de hoje.

Não se vê mais crianças brincando de cowboys. Na década de 70 os símbolos válidos eram do passado: eu cheguei a brincar de espadachim, embora a Idade Média e o Renascimento também já estivessem saindo de moda. A informação a que tínhamos acesso tirava suas referências do passado, e tinha como matéria prima o cinema de Hollywood, embora até chanchadas da Atlântida pudéssemos ver na Sessão da Tarde.

Sou de um tempo em que as cenas de sexo nos filmes que a TV exibia eram indicadas por um beijo ardente e um fade out. A informação se completava na mente de quem assistia: para mim, tudo se encerrava naquele beijo. Sinceramente, acho uma fórmula melhor que cenas razoavelmente eróticas em filmes que crianças assistirão; há um tempo para tudo.

Na minha época o espaço sideral era curioso, mas distante. A febre que o Sputnik criou na humanidade já tinha passado, e tinha restado muito pouco; além disso, era difícil simular gravidade zero em nossas brincadeiras.

Eu realmente acho que minha infância foi abençoada, por ter se dado em um momento de transição entre o já velho século XX e a preparação frenética para o século XXI. Como se fosse uma espécie de interseção meio paradinha entre um passado razoavelmente estável e um futuro desconhecido. Mas não saberia dizer se a infância de quem tem 8 anos agora, em uma época absolutamente fantástica em que tudo se transforma rapidamente, é melhor ou pior. Só que é diferente.

A única certeza — que não é dita com tristeza ou orgulho, apenas como uma constatação quase bovina — é a de que eu estou ficando velho.