Racismo

Num dos meus primeiros dias na quarta série, eu e dois amigos, um branco e um negro, tínhamos impedido um menino de bater em outro. Na verdade, eles estavam brincando e a gente entendeu errado, mas isso não importa. Eu estava saindo da escola quando a mãe ou avó dele me parou e reclamou comigo. Além das pequenas ameaças, disse que um menino como eu não deveria andar com aqueles crioulinhos.

Em sua imbecilidade, ela me tomou por duas coisas que não sou. Olhou para mim, na época lourinho, com cara de menino bem criado e morador da Graça, e achou que estava diante de um pseudo-caucasiano racista como ela.

Fiquei chocado com aquilo. Foi a primeira vez que vi um racista assumido em minha vida, e não consegui esquecer até hoje. E se em Salvador era assim, eu imaginava como seria em outros lugares.

Mas esse nojo de qualquer tipo de racismo não é tão forte quanto pode parecer.

Um tio meu é um belo negão de quase 2 metros de altura. Num belo dia de 1985, provavelmente um daqueles em que a gente se dedicava a encher o saco um do outro, ele resolveu apelar para o fato de eu ser um pobre brasileiro confinado aos limites nacionais: “Eu fui para tal país, você não, tal país, você não, tal país, você não” — era uma lista enorme. Eu ouvi calado. Quando a lista dele se esgotou, eu aproveitei: “Pois é. Mas tem um país aonde eu posso ir e você não: a África do Sul.”

Às vezes o racismo dos outros pode ser útil.

Um prato que se come frio

Luiz estava na redação, escrevendo seu primeiro poema. Meu pai chegou e Luiz mostrou para ele.

Quando terminou, meu pai avisou:

— Vou te fazer um favor.

E rasgou o poema.

— Isso vai te poupar muitas desilusões no futuro. Alguém pode dizer que isso é bom e aí você continua fazendo essas coisas.

O tempo passa. 1988, agora; eu levo um texto para Luiz e digo que quero escrever em seu jornal.

Ele lê e faz um comentário:

— Puta que pariu, ele escreve melhor que o pai!

Não era verdade, mas a partir dali, e pelos próximos 3 anos, passo a escrever no jornal.

Ainda não sei se Luiz me fez um favor. Ou se isso foi apenas uma vingança tardia, acalentada obcecadamente durante mais de 20 anos.

Live fast, die young, leave a beautiful corpse

Quando eu tinha 10 anos, achava que quem tinha 5 anos era uma criança.

Quando tinha 15, achava que quem tinha 10 anos era uma criança.

Quando tinha 20 anos, achava que quem tinha 15 anos era uma criança.

E agora, passado dos 30, tenho a impressão de que se viver demais vou voltar a ser criança de novo.

Paris

ParisEu nunca entrei no Louvre.

Mesmo no inverno, quando o número de turistas baixa consideravelmente, as filas são gigantescas. E além está Paris, e suas ruas têm mais vida que os mármores acumulados no museu jamais terão.

Mais importante do que passar 3 segundos diante da Mona Lisa que ri debochada de você é dobrar a esquina e se ver diante da casa onde morou Molière.

É subir a pé, sem pressa, a Champs Elisèes e parar numa lojinha de roupas para bebês e olhar as roupinhas Dior que custam o mesmo que as da Tyrol.

É parar no meio da Pont Neuf e cuspir no Sena, esperando não acertar a cabeça de ninguém que passeia naqueles batelões — ou talvez esperando, sim.

É sentar num café na ruela à esquerda de Notre Dame e beber o melhor café de sua vida.

É entrar no hotel e ver o recepcionista argelino festejar com a cinqüentona americana, e saber que dali a algumas horas ele vai dormir mais rico e ela vai poder falar pelo resto dos seus dias do seu romance inesquecível com um legítimo amante francês.

É discutir em inglês com o motorista do ônibus que não sabe onde fica a rua Raynouard e que tampouco entende o que você está falando.

É morrer de fome e cometer a idiotice de entrar num restaurante grego perto da Saint André des Arts com decoração de puteiro.

É pegar um jornalzinho gratuito de classificados e fingir que tem 100 mil dólares para comprar um estúdio no Marais.

É beber Evian baratinha e jurar que morrerá de sede antes de beber qualquer outra água.

É andar pelas ruas cantando Sur Le Ciel de Paris numa língua enrolada que lembra vagamente a você, e só a você, o francês.

É sentar nas escadarias de um prédio da Sorbonne, fazer a pose improvável do Pensador e dizer bem alto que “Philosophie est une grande merde“.

É passar horas na Shakespeare & Co. e levar apenas um livro porque você não tem dinheiro para comprar um décimo de tudo aquilo que lhe aviva a cobiça e deslumbra seus olhos, ao mesmo tempo em que espera avistar em algum canto o fantasma de Hemingway.

É entrar num bar, pedir um maço de Gitanes e ver a expressão assustada do balconista, que provavelmente não entende como alguém pode fumar aquele mata-rato.

É aproveitar a fila bem menor do Musée d’Orsay e tirar uma foto proibida diante da estátua de Balzac por Rodin, porque Balzac justifica qualquer advertência.

É se vingar admiravelmente da negona desnecessariamente grosseira que lhe cobra 20 sous para fazer xixi no banheiro do metrô.

É cruzar com outros turistas e sorrir para eles enquanto diz bem alto que ele é viado e ela é uma puta sem-vergonha.

E depois você se senta numa mureta qualquer do Louvre e tira uma foto com a pirâmide ao fundo para mostrar àqueles que jamais entenderão como você pode ir a Paris e não entrar no Louvre, e mesmo assim porque não pode escrever com carvão “Rafael esteve aqui”.

Os livros que (quase) mudaram minha vida

Quis fazer uma listinha com os 10 livros que de uma maneira ou outra mudaram a minha vida, mas não consegui imaginar um só que tenha-me feito dar uma guinada no meu modo de ver o mundo. Por mais que eu goste deles, um livro é só um livro. Devo ter lido, por exemplo, “O Apanhador no Campo de Centeio” tarde demais, rápido demais, porque nunca achei que tivesse nada em comum com Holden Caulfield, ou que o sujeito fosse um modelo que eu deveria seguir.

Em vez disso fiz a lista dos livros que foram importantes em algum momento. Não são os que mais gostei ou admirei — muitos estão longe disso. Mesmo assim não chegam a 10, não que eu lembre. E fiquei envergonhado ao ver que não posso dizer que “A Montanha Mágica” ou “No Caminho de Swann” me influenciaram. Cada um recebe o que merece.

As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain — Durante um tempo — fim da década de 70, começo da de 80 — eu queria ser Tom Sawyer e viver numa cidadezinha quase rural, às margens de um rio onde pudesse brincar de pirata.

O Cobrador, Rubem Fonseca — A linguagem do conto que dá título ao livro foi uma porrada. Durante anos fui alucinado pelo Fonseca. E ele conseguiu me surpreender mais uma vez, com “Lúcia McCartney”. Não é todo escritor que consegue isso.

Beleza Negra, Anna Sewell — Não sei se o meu fascínio por cavalos veio antes ou depois de ler este livro; provavelmente antes. Mas ele foi fundamental para me dar uma visão humanista da relação homem-cavalo. Obviamente, essa visão foi pras picas no dia que o primeiro cavalo tentou me derrubar e eu me vi obrigado a mostrar quem mandava naquela bodega.

Como Era Verde Meu Vale, Richard Llewellyn — Já falei sobre ele, mas é sempre bom lembrar: a linguagem do livro é divina.

O Relatório Hite, Shere Hite — Ah, eu recomendo que todo adolescente do sexo masculino leia esse livro. Vai lhe poupar muitos erros na vida. E que ele nunca esqueça que a meta é superar o conhecimento inestimável contido ali.

Minha Vida, Meus Amores, Frank Harris — Autobiografia de um sujeito que marcou época como editor de uma revista na virada do século XIX para o XX, com uma mistura interessante de sacanagem, literatura e muita mentira. Eis ali um sujeito que soube viver. E que me mostrou o valor da persistência.

Brás, Bexiga e Barra Funda, Antônio de Alcântara Machado — Outro daqueles livros que trazem uma linguagem fantástica. Eu fiquei fascinado pela rapidez quase telegráfica, pela concisão do sujeito. É um pequeno grande livro.

A Experiência Burguesa – Da Rainha Vitória a Freud, Peter Gay — Livro do autor de uma excelente biografia de Freud, que me fez entrar em contato com o básico do pensamento freudiano. É algo próximo ao que chamam de psico-história e é fascinante e erudito. Para um pseudo-marxista ignorante como eu, era uma visão de mundo completamente diferente. São cinco livros, ao todo, e cada um deles vale a pena.

Pranto por Ignacio Sanchez Mejías, Federico García Lorca — Foi o livro que me ensinou a gostar de poesia.

Rafael, seu filho da… — Não é bem um livro, foi um telefonema. Ainda penso que poderia ter seguido tantos caminhos diferentes na vida, não fosse por essa reação mal-educada a uma opinião boba, de somenos importância. É incrível como as pessoas não sabem perdoar.

Quando a cigana me enganou

Em 1989 eu estava em Salvador e morava em Nazaré.

Tinha que chegar na agência onde era redator júnior às 9. Quando acordava cedo, atravessava devagar a Saúde, descia a Ladeira do Alvo, subia o Pelourinho e ia ao Paço Municipal esperar o ônibus que me deixaria na Ladeira da Barra. Enquanto ele não chegava eu aproveitava para me debruçar na amurada e contemplar a vista da baía, a Ladeira da Montanha, o Mercado Modelo e o Forte de São Marcelo. Era por esses poucos minutos que eu subia e descia aquelas ladeiras de pé de moleque.

Num desses dias um grupo de ciganos saiu do Elevador Lacerda e uma cigana velha, gorda, veio falar comigo. Disse que leria a minha mão, que não custaria nada. Declinei mas ela insistiu. Certo, então.

Estendi a mão e ela me disse as coisas de praxe, que eu ia ser feliz e rico e feliz e rico. E então ela me disse para colocar o meu dinheiro na mão, fechar com força que ela ia benzê-lo e ele se multiplicaria espetacularmente, ad seculum per seculorum.

Eu não usava carteira e carregava meu dinheiro em dois bolsos separados, amassado como dinheiro de bêbado. Em um deles guardava o dinheiro miúdo, em outro as notas de 50 cruzados novos.

Peguei o dinheiro trocado e coloquei na mão.

“Só tem isso?”

“Só.”

“Tá desconfiando de Mãe Qualquer-coisa do Espírito Santo?”

“Nao, só tenho esse, mesmo. É o dinheiro do ônibus.”

Ela insistiu, eu continuei dizendo que só tinha aquilo. Mas minha expressão devia me desmentir, porque ela largou minha mão com um gesto de impaciência e saiu bufando, sem esquecer de me mandar para lugares que eu não gostaria de conhecer.

A cigana, no entanto, me enganou. Ainda não fiquei rico. Talvez devesse ter dado o dinheiro a ela.

Rafael G., 33 anos, esquerdista, libertário

Testezinho via nomínimo: em que parte do espectro político você se encontra?

Eu fiz e deu o seguinte:

De pé, ó vítimas da fome

Acontece que o teste só retrata uma parte das coisas. Não conta, por exemplo, que há alguns anos eu seria bem mais libertário e bem mais esquerdista. E que quando chegar aos 60 anos vou ser um reacionário que não vai poder ler o jornal sem xingar Deus, o mundo e o vizinho do 702 que continua insistindo em fazer barulho em suas orgias quando eu preciso dormir para jogar dominó na praça na manhã seguinte.

Aquele desgraçado do Balzac

Conversando com duas amigas, ambas na minha faixa de idade, e ouvindo suas reclamações a respeito dos homens.

Segundo elas os homens se dividem entre os que não querem nenhum tipo de compromisso e os neuróticos.

Enquanto isso outra amiga, também trintona, não tem problemas desse tipo. Vai levando a vida e escolhendo (nem sempre sabiamente, é preciso dizer) o que ela lhe apresenta. Suas preocupações na verdade são outras.

A diferença entre elas, percebo agora, é simples. A que não tem problemas não faz a mínima questão de casar. Pelo visto é esse o problema: essa necessidade, presente em tantas mulheres, de um “relacionamento” a longuíssimo prazo.

Como as coisas estão difíceis, essa eterna luta das balzaquianas força algumas delas a procurar nichos específicos. Homens divorciados com filhos, por exemplo.

Uma das duas amigas que estão em pé de guerra com o mundo masculino me explica que pais divorciados são atraentes porque a) indicam que são capazes de entrar em relacionamentos estáveis; e b) são mais maduros emocionalmente.

Acho que essa tese é uma grande bobagem; para mim, esses elementos a) são incapazes de continuar casados, b) são imaturos e preferem ser solteiros, ou c) têm sérios traumas de guerra. Conselho: prefiram os viúvos, esses agüentaram até o fim. Verifiquem, no entanto, se a falecida não morreu em um acidente mal explicado. Por garantia.

Mas fiquei pensando nisso. Somos atraentes, hein? Isso me dá idéias.

Como eu não sou idiota de botar minha filha numa roubada dessas, vou fazer como Hugh Grant em About a Boy e inventar um filho. Melhor, vou alugar um menino. Tem que ser bonito para indicar minhas qualidades de reprodutor; vou ver se minha irmã me empresta meu sobrinho, é mais barato. Aí faço passeios pelos shoppings, por teatros infantis e, se no Rio, pelo Baixo Bebê. Depois invento que meu amado filho não foi com a cara dela.

Do jeito que as coisas vão, isso bem que pode dar certo.

Velhos tempos

Encontro na rua uma velha amiga.

Grávida e casada.

Feliz por ela, volto para casa e risco seu nome do meu caderninho vermelho.

Como faço o que faço e talvez inclusive o porquê

Durante muito tempo eu passava por blogs com uma expressão de desdém. Não me interessavam diários de adolescentes, porque já fui um e posso afirmar que não eram tempos tão maravilhosos assim.

Acabei escrevendo um porque percebi que podia escrever o que quisesse. Não precisava ser um diário. Podia ser qualquer coisa.

Desde o início, assumi um compromisso comigo mesmo: escreveria todo dia, não importava que não tivesse nada a dizer (como se pode ver, é o que mais acontece aqui). A princípio, a idéia era tirar da cabeça uma série de mini-temas que apenas ocupavam espaço; uma forma de desentulhar a imaginação e abrir espaço para coisas novas. Outros motivos eram escrever a palava “eu” quantas vezes quisesse, algo que raramente posso fazer, e simplesmente exercitar o texto, por exemplo escrevendo parágrafos mais longos do que costumo escrever.

Essa era a única razão, na verdade. Do contrário, não havia sentido em perder tanto tempo fazendo de graça o que normalmente cobro para fazer.

O blog nasceu, portanto, como algo extremamente pessoal. Um lugar onde eu poderia escrever “caralho”, se quisesse, onde poderia ser politicamente incorreto, onde poderia dar as opiniões mais esdrúxulas possíveis — em suma, um espaço onde eu pudesse escrever o que quisesse, como quisesse, sem me preocupar se determinada palavra estava correta e se o estilo era adequado.

As coisas não saíram exatamente como eu previa, claro. Como tudo na vida, blogs têm uma dialética própria. Alguns assuntos se recusaram a morrer sem lutar, outros surgiram do nada, quando em condições normais jamais sonhariam com isso. Acabei aceitando algo que no início via como defeito: este blog não conseguia ter uma unidade temática. Na verdade tinha, e por isso mudei o nome dele: de “Pensamentos Mal Passados” para “Rafael Galvão”.

No fim das contas, acho que acabei escrevendo uma versão torta de um diário.