A língua dos animais ou "Senão vejamos"

Já disse antes: uma das razões para a minha birra com advogados é o modo sádico como tratam a língua portuguesa.

Não é apenas pela ignorância dos que tentam escrever de modo que não sabem. De vez em quando esse dialeto que julgam castiço se torna absolutamente ridículo, em que o que eles vêm como sacro e o profano se juntam, e deixam aquela linguagem pseudo-erudita em séria desvantagem. Eis uns trechos de uma ementa:

RELATÓRIO Desembargador ZZZ (Relator): Trata-se de uma Apelação interposta por FULANO QUE COMO TODO BAIXINHO É ESQUENTADO DEMAIS contra a sentença proferida pelo M.M. Juiz de Direito Titular da 0ª Vara Cível da Comarca de “Um lugar que eu não posso especificar mas que dá para saber qual é” (fls.000/000) nos autos de uma Ação de Indenização por Danos Morais movida por FULANA QUE FOI PEGA ROUBANDO UMA ENTIDADE. A decisão atacada condenou o apelante ao pagamento de indenização no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), mais custas processuais e honorários de advogado no importe de 10% do valor da condenação. O requerido ofereceu o presente apelo (fls.000/000), alegando que houve por parte do sentenciante um equívoco ao julgar procedente o pleito, visto que as provas colacionadas aos autos, comprovam que existiu conduta ilícita por parte da apelada e das pessoas que ali trabalham. Aduz, ainda, que o quantum fixado pelo juízo a quo, foi elevado, visto que o mesmo está em desconformidade com a sua capacidade econômica. Devidamente intimado, o apelado apresentou contra-razões (fls.000/000), defendendo a manutenção da sentença. Instada a se manifestar, a Procuradoria de Justiça opinou (fls. 000/000) pelo provimento parcial do recurso. É o relatório.
[…]
Senão vejamos: Depoimento da Recorrida (fls. 000/00) (…) Inicialmente disse para a depoente se retirar porque ele não queria ver a cara dela e imediatamente mandou que ele colocasse o dedo naquele lugar fl. 000. Diz que o réu tanto falou como fez gestos no sentido mencionado à fl. 000. Diz que o Sr. XXX ficou surpreso com essas expressões do réu e buscava uma ponderação quando esse reagiu com palavrões chegando a responder madame coisa nenhuma.(…) Depoimento do Recorrente (fls. 000/000) (…) A depoente disse que não sairia do seu local de trabalho e nisso contou com o apoio do Sr. XXX e do Sr. YYY. O clima era insuportável. Em dado momento o depoente levantou o dedo e puxou para si e então a requerente perguntou que era aquilo como se não entendesse. O depoente então explicou “enfie e rasgue”. A requerente disse faça você. Sabe o depoente naquele momento se encontrava o Sr. XXX, YYY e a autora. (…) (original sem grifo) Testemunha YYY (000/000) (…) Chegou a pedir para a autora para se retirar do recinto. Esta reagiu afirmando que não sairia porque ali era o seu local de trabalho. Então ele respondeu que ela ficasse ali e com o gesto com os dois dedos disse enfie e rasgue. A autora respondeu: enfie você e rasgue você (…) Testemunha XXX (fl. 000) (…) Em dado momento ele respondeu a autora apontando o dedo para cima e dizendo enfie e rasgue. A autora replicou que ele mesmo fizesse isso. Aí foi quando o depoente disse Fulano respeite a madame. Ele respondeu: “é a madame né?!” (…) Inquestionável, ante a prova dos autos, a agressão verbal e gestual dirigida à pessoa da vítima, capaz de ferir seu sentimento de dignidade, principalmente porque praticadas na presença de terceiros”.
[…]
Neste jaez se posiciona, Caio Mário da Silva Pereira em sua obra, “Responsabilidade Civil”, 9ª ed., editora Forense, pág. 60, senão vejamos: “a vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que em certos casos pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes de seu patrimônio, deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva.” Assim, levando em consideração tais aspectos , entendo que a quantia arbitrada deve ser reduzida para R$ 3.000,00 (três mil reais) pelos danos morais sofridos pela apelada. Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso para alterar a sentença apenas no tocante ao valor da indenização, mantendo-se a decisão nos demais termos. É como voto.

2 thoughts on “A língua dos animais ou "Senão vejamos"

  1. Qual a sua ligação com o Direito? Pergunto porque sou advogado (além de outras atividades) e, tirando as velhas múmias em extinção que insistem num português “pseudo-erudito”, não vejo como regra o uso indevido de nossa língua por parte de quem trabalha com o Direito, sejam advogados, juizes ou outros.

  2. Rafael,
    Eu de novo.

    Acho que esse texto que você repassou até que é “levinho”. Tem outros até mais empolados na linguagem e que força o pobre mortal a fazer um esforço para entender o que significa o que tem ali escrito.
    Erudição nunca foi sinônimo de complicação. A simplicidade é a chave de tudo.
    Leia os textos de Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, para ficar só no mais elementar) ou Norberto Bobbio (O Tempo da Memória – De Senectude e outros escritos autobiográficos)e verá como são ditas coisas de largo alcance de forma direta, sem empolações ou rococós de linguagem.
    Mas o que queria falar não era só disso não. O texto trouxe para reflexão a indústria do dano moral, em que tudo é dano e tudo é indenizável. A dor agora foi tabelada. De repente as pessoas se tornaram carpideiras de si próprias, chorando a dor que não sente. Essa apreciação não é minha, mas do baiano “arretado” J. J. Calmon de Passos, um dos grandes nomes do direito (veja o texto completo em : O imoral nas indenizações por dano moral – http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2989)
    Já vi casos que o senso mediano não crê que vá parar nos tribunais, mas vai. O cidadão comprou um produto comestível em conserva numa dessas lojas de conveniência em posto de serviço. Viu que tinha algo parecido com um fiapo (cabelo, talvez, até hoje o vidro não foi sequer aberto) e sem abrir, levou pra casa e entrou com ação pedindo indenização por dano moral, uma contra a loja e outra contra o fabricante. Mesmo com o oferecimento da troca do produto pela loja e pelo fabricante, não quis conversa, pediu logo indenização de cada um pelo máximo permitido para os juizados especiais (40 salários mínimos de cada).
    O outro caso também é sintomático: madame entrou em um loja de roupas; logo na entrada soou o alarme; o gerente foi até ela e pediu desculpa dizendo que alguma interferência tinha feito ativar o alarme; o fato se repetiu na saída e novo pedido de desculpas do gerente. O fato foi causa para ação de indenização por dano moral, exigindo dinheiro.
    Outros casos poderia relatar. Fica, no entanto, só nesses.
    Não há dúvidas que muitas ocorrências abalam o indivíduo e merecem reparação. O que questiono é a desfaçatez das pessoas que, de repente, passaram a ter hipersensibilidade moral e a exigir reparação em tudo por tudo. E o pior é que juízes têm dado indenização com prodigalidade. O dinheiro não é deles.
    Um abraço,
    Sérgio.

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