A diferença entre marketing político e projeto político

Para a Criss, a eleição ainda não acabou.

Ela deixou um comentário interessante ao último post. Num comentário anterior, eu tinha mencionado erros de campanha do PSDB/PFL. Ela interpretou como erros de marketing político. Não era bem isso. Por erros de campanha eu me referia, basicamente, a erros de conceituação política e mesmo programática.

Por exemplo, a Criss identificou uma disputa de publicitários se sobrepondo ao conteúdo de campanha. Sobre isso já escrevi algumas coisas. Basicamente, eu dizia o seguinte: a classe média se acha esperta porque sabe que são publicitários que fazem os programas eleitorais. Enquanto isso, o velho e bom proletariado, alheio a isso, presta atenção ao programa como obra do político — como, aliás, deve ser, porque ninguém vota em publicitários. No fim das contas essa consciência, especificamente, não altera em nada a percepção dos programas. Mesmo assim, talvez por vaidade, de modo geral a classe média incorre no erro de achar que a política é definida pelos publicitários. Não é. Nunca foi. Nunca será.

Mas o mais grave é que, justamente em relação à campanha passada, esse tipo de avaliação está mais equivocado do que nunca.

Avaliar que erros de marketing político foram o que houve de mais grave na campanha do PSDB/PFL é reduzir demais as coisas, e pior: é subestimar o papel do confronto ideológico nessas eleições.

Erro de marketing político, para o PSDB, foi cair na armadilha da discussão sobre privatizações; talvez também tenha sido um erro negar o seu carinho atávico pelo escambo do aparato estatal. O problema é que a questão realmente existia; mais que isso, o PSDB reconhecia a antipatia que a privatização gerava e estava disposto a simplesmente mentir. O caso serve para ilustrar um fato simples: no final das contas, a eleição girou em torno da escolha entre um projeto historicamente privatista e o de Lula.

Quando eu soube que haveria segundo turno para presidente — ao mesmo tempo em que, em compensação, soube que o Jacques Wagner tinha vencido na Bahia –, confesso que fiquei assustado. Um jornalista amigo meu disse na hora: “Lula perdeu a eleição.” Porque muitas vezes, quando uma candidatura que tinha tudo para vencer no primeiro turno cede um segundo, indica que está caindo enquanto a outra está subindo. É por isso que viradas são relativamente comuns no segundo turno.

(Pouco antes das eleições o Marcos Coimbra fez uma análise perfeita do mecanismo eleitoral em turnos na Carta Capital. Derrubou o mito de que segundo turno é outra eleição, e deu uma aula de leitura de pesquisas.)

Mas essa eleição foi diferente. Por um lado, a ascensão momentânea de Alckmin foi um fenômeno localizado, criado por razões muito simples: a idiotice do PT paulista e a oposição cerrada e extremamente desleal da grande mídia. O resultado é que, passado o efeito do tal dossiê, conseguiu-se um feito inédito na história das eleições brasileiras: um segundo turno em que o desafiante teve ainda menos votos que no primeiro turno. Houvesse um terceiro turno e o Alckmin ficaria devendo votos.

Isso a Criss admitiria sem dificuldade. Ela erra, no entanto, é ao colocar a política em segundo plano.

É difícil lembrar de alguma eleição, na história do Brasil redemocratizado, com um caráter ideológico tão marcado como este. Nem mesmo a de Collor. Graças ao segundo turno, ficou bem claro que o que estava em jogo eram dois projetos políticos bem diferentes. E o que parecia ser uma tragédia acabou sendo a mais absoluta legitimação de Lula e do seu projeto de governo.

Se as eleições serviram para apagar alguns mitos sobre o primeiro governo Lula — como a sua “traição” ao projeto social da esquerda — o segundo turno, especificamente, derrubou de uma vez o mito de que eram apenas os pobres que sustentavam a candidatura de Lula. A virada no sudeste, o crescimento na classe média e os resultantes 1,5 milhão de votos a menos para Alckmin deram uma força que Lula dificilmente teria vencendo no primeiro turno. Uniu o projeto das esquerdas em torno do seu nome, mais uma vez. Os eleitores da Gralha das Alagoas, por exemplo, não foram para Alckmin (com exceção da mãe da moça, ainda magoada). Os de Cristovam Buarque também não. Lula podia não ser sua primeira opção, mas ainda representava um projeto mais palatável que o do PSDB/PFL. Pior: muita gente que tinha votado em Alckmin no primeiro turno pensou melhor e decidiu voltar para os braços de Lula. E a principal responsabilidade sobre isso está, justamente, no fato de que graças ao segundo turno a diferença entre os dois projetos ficou clara. Se o PSDB/PFL engoliu a isca da privatização, foi porque não podia negar, consistentemente, a sua história.

A eleição se transformou também em mais que um referendo sobre o bom ou mau desempenho de Lula presidente: se tornou uma decisão entre visões diferentes de Estado. E, paradoxalmente, levou a uma situação em que a oposição estaria hoje mais forte se não conseguisse chegar ao segundo turno. Para o governo, o segundo turno acabou sendo uma bênção.

Em vez de ficar repetindo os bordões de campanha, a oposição deveria catar seus cacos e repensar sua estratégia. Hoje têm dois bons candidatos em potencial, o Aécio e o Serra, com chances reais de trazer de volta o PSDB ao poder — embora aqueles que já os vêm como candidatos virtualmente eleitos sejam muito, muito, muito precipitados. Deveriam entender que, nas próximas eleições, terão se passado 8 anos desde a era FHC. Deveriam aprender com o governo Lula. Por exemplo, deveriam deixar de lado sua visão elitista de mundo e falar de crescimento do PIB quando o povo descobre que está comendo melhor.

No fim das contas, enquanto a oposição continuar sem admitir que a derrota foi do seu projeto político, e não apenas do picolé de chuchu diet, e que esse projeto precisa ser revisto, ela vai continuar a perder. Se conseguirem, em vez de ficar tapando o sol — ou melhor, a estrela — com a peneira, talvez tenham melhor sorte no futuro.

Republicado em 23 de julho de 2010

10 thoughts on “A diferença entre marketing político e projeto político

  1. Rafael, tudo o que disse é lindo e faz sentido – e eu sou PSDB – mas se colocar a grande maioria “votante” para ler seu post, a maioria, mas a grande maioria mesmo, não entenderá lhufas, então acho que a coisa fica assim: o plano foi falho em muitos aspectos – quem tem um pouco mais de cultura entendeu e tomou suas atitudes. O Lula é “popular” pq “defende” a causa dos pobres, que é a grande massa do país, é, existe aí aquele “troço” da identificação, sabe? Você é publicitário e sabe do que estou falando.

    Eu fiquei horrorizada de ver que as pessoas nas filas não sabiam quantos votos deveriam dar no primeiro turno, iam para a rua, pegavam um “santinho eleitoral” para pegar os números e votar. O povo ainda não entendeu a diferença entre votar no Big Brother e no Presidente da República – e claro, preferem mil vezes votar no Big Brother. Eu não vou discutir política pq não é meu forte, você é muito melhor que eu nisso, mas a campanha do PT também teve seus “contratempos” até hoje não solucionados e temos mais uma vez Lula na Presidência. Isso é bom? Para uns sim, para outros não, mas está aí e não foi SÓ pela campanha – ou histórico – “falhos” do PSDB. Uma eleição é muito mais que isso. Eu acredito que se hoje começarmos a investir sério em educação, somente daqui a 16 anos o plano político aliado ao histórico do candidato, o “marketing político” – assunto discutido até hoje por grandes profissionais da área – juntamente com a ética, honestidade, competência e caráter REALMENTE serão levados à sério em uma eleição. Eu acredito no Brasil, eu amo o Brasil, mas há muitas falhas em todos os setores, então a “culpa” não pode estar somente em um único ponto. É preciso uma reprogramação de todo o sistema.
    Beijos

  2. O texto ficou excelente, como de hábito em relação aos seus textos de análise política.

    Sobre a menor votação de Alckmin no segundo turno (dois milhões e meio de votos a menos, é muita coisa), há uma teoria de que um grande contingente de eleitores mudou de voto (de Lula para Alckmin) assustado com a história do dossiê, e disposto a levar a eleição para o segundo turno e pensar melhor. Após, refluíram para sua intenção de voto original.

    Sobre a diferença de projetos, uma coisa é a campanha de Alckmin na televisão (que evitou se colocar contra o bolsa família ou tocar em temas polêmicos, como cotas), outra é a discussão que foi feita na sociedade, onde estavam claras as diferenças entre os dois projetos.

  3. O comentário da Raquel mostra o quanto o preconceito é forte na classe média. O “povo” ou o eleitor “pobre” descrito por ela é um tanto estereotipado. Além disso não se pode generalizar. Existe sim uma parcela grande de cabeças pensantes e críticas entre as classes baixas e médias. Nem todo mundo prefere o Big Brother. E não estamos falando de uma minoria insignificante. A politização das classes pobres (ainda que ainda seja muito pequena, assim como nas outras classes sociais) foi a maior herança deixada pela atuação sindical de Lula, nos anos 80. O que talvez Raquel precise é conhecer de perto a periferia ao invés de definir seu pensamento por critérios preconceituosos.

  4. Como sempre, lúcido, preciso e brilhante. O comentário da Raquel aí em cima vem mostrar ainda mais o elitismo do PSDB/PFL e seus eleitores; achar que povo não vê diferença entre as eleições e o Big Brother é – claramente – resquício daquele discurso que justificava as eleições indiretas da ditadura:”o povo não sabe votar…”. Lamentável…

  5. Rafael, sua análise é impecável. Lúcida, madura e, para aqueles que ainda não compreenderam o que aconteceu nas eleições, esclarecedora.
    (faça uma revisão, pois tem uma palavra trocada em algum lugar que não lembro mais; acho que é num ponte onde você escreveu segunto turno, qdo deveria ser primeiro).

  6. Bruno, nada nunca é 100%, quando generalizamos algo estamos tratando da maioria. Você sinceramente acha que eu não conheço a periferia? Já fiz e faço trabalhos em Barueri, Itapevi, Jandira – um povo pobre, mas bem pobre mesmo – entre ouros lugares que eu “acho” ser periferia. Ainda bem que não são todos que preferem Big Brother né? Eu disse o povo e quando digo “o povo” nesse caso digo: a maioria de pessoas da periferia que estão mais preocupados no que vão comer no dia seguinte do que com os candidaros que vão colocar no poder. Eu não os culpo. Eu não os julgo. Eu somente descrevo uma realidade que eu vejo, que eu sinto. Eu sei que os lugares que eu ando não significam “toda” a periferia, mas uma pesquisa é baseada em certos números de opiniões não é? Então, as que eu conheço são essas, se as que você conhece são outras e contradiz o que eu vejo, sinceramente fico muuuuito feliz e mais esperançosa. Pobreza não quer dizer falta de cultura, ignorância ou falta de interesse. Quer dizer somente prioridades diversas às nossas. Eu sei como vou pagar as contas e como vou alimentar meu filho até o mês que vem, eles não.

  7. Oi Rafa
    Só agora tive oportunidade de ver seu post – em resposta a mais um de meus comentários inconsequentes, mas que para minha honra você teima em levar a sério.

    Tenho um amigo que se separou. A ex-mulher dele, que sempre teve por certa a eternidade dessa união, ficou inconformada com o desfecho. Movida pela revolta e pelo rancor, ela passou a falar mal dele para a filha dos dois e para todos os conhecidos em comum. Que ele era um sacana, que ele não tinha caráter, que ele era um traidor, um desalmado, um irresponsável que não dava valor à família nem a nada do que eles construíram juntos, etc.

    “Mas se eu voltar pra você, eu não sou nada disso, certo?”, ele disse.

    Essa pequena parábola serve para ilustrar meu ponto:

    Qual a explicação para fenômenos como: a duração da ditadura militar, a eleição de Collor, a reeleição de Maluf, a eleição de Clodovil, os séculos de coronelismo no nordeste, ACM, Sarney, Big Brother, Páginas da Vida, Orkut, Igreja Universal, tênis Nike, Silvio Santos…

    É o mesmo povo, ou não? O povo elege, na mesma votação, um Maluf e um Clodovil para cada Lula.
    Afinal, o povo é ignorante e se deixa levar pelo marketing e pelas aparências, ou é esclarecido e está ligado no conteúdo e nas propostas?

    É claro que existe de tudo nesse país, mas como não generalizar? Eleições são, por princípio, generalizantes.

    Muito me comoveu ver o sujeito na minha frente na fila, totalmente analfabeto, quase chorando porque não estava se entendendo com a urna eletrônica, mas queria a todo custo votar no Lula.
    A mesária, alegando suas obrigações e juramentos, dizia estar de mãos atadas e não poder ajudá-lo. Nós outros na fila, da pretensa elite esclarecida da zona sul do Rio, combinamos fazer “paredinha” para que a mesária não fosse vista ajudando o camarada a votar. Alguns podem ter feito isso movidos pela pressa de acabar logo com aquilo, mas acho que de certo modo todos se comoveram com a vontade daquele senhor, da importância que aquilo tinha para ele.
    Confesso que tive inveja, mesmo sem saber ao certo o que motivava aquele homem – se convicção racional ou crença cega. Há muitos anos não sinto entusiasmo por votar em alguém, e acho que isso não vai acontecer nessa encarnação. (Ideologia, eu quero uma pra viver!)

    Por outro lado, ouvi de motoristas de táxi e operários de obra que iriam votar em Lula porque ele iria vencer – pessoas que encaram as eleições como um banco de apostas, e votam no provável vencedor. Ou seja, é mesmo verdade que existe gente que pensa que eleições são como Big Brother – e pior é que, em muito mais de um sentido, isso é verdade!

    Só ilusão ou cinismo explicariam a crença de que o povo não se deixa levar pela propaganda.

    Você cita, por exemplo, Aécio Neves como um candidato com bom potencial para trazer o PMDB de volta ao poder. Bom, como? Só se for no sentido de marketing, de estratégia, e nada mais! Bom de voto, bom dum filhos-da-puta, isso sim, um dândi que só assistiu de camarote a derrocada do Alckmin, como um boi-de-piranha, e que na próxima eleição virá revestido com a aura de salvador da pátria. O típico político brasileiro.
    Quer apostar?

  8. Os discursos de hoje (2010) me parecem bem mais radicalizados do lado da turma do Serra. Seria só impressão minha ou falha de memória recente de uma pessoa com um pé na terceira idade?

  9. Frank, não acho que estão só mais radicalizados. Estão imbecilizados, também. Porque quando eles apelam para FARCs, ou tentam dizer que as coisas não estão melhores, eles não apenas demonstram uma total falta de projeto político. Demonstram também que são tão idiotas que acham que um discurso alucinado desses pode dar um jeito na sua situação.

    Agora é esperar o fim das eleições, a vitória de Dilma, o fim do DEM e a consolidação do PSDB como o grande partido de direita do país. E ver se eles conseguem juntar seus cacos e construir um discurso minimamente decente para fortalecer a candidatura de Aécio em 2014.

  10. O Serra, creio, vai tentar a prefeitura de São Paulo, assim como fez o Alkmin, pois não pode deixar seu círculo (cada vez menor) de relacioamentos (tucanei a palavra que gostaria de usar) ao “relento”. O Alkmin Opus Dei (que, infelizmente, tem grande chance de se tornar, mais uma vez, governador de SP ) não tem a menor condição de assumir um projeto deste porte. Seu apelido, picolé de chuchu, não é por acaso. Além disso, como o Serra (um cara que não abre mão de dormir até o meio dia nem para ser presidente da república), não gosta do batente.
    Sobrou, pelas minhas contas, o Aécio (outro que não gosta da labuta), o mais carioca dos mineiros. Acho que é suficientemente esperto para não assumir o discurso extremista que o Serra está assumindo.
    Tudo isso para dizer que não tenho como saber quem o pessoal do Milenium vai tentar entronizar como líder dessa oposição de direita. Acho que hoje nem eles sabem.

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