Tempos difíceis

Você quer saber como a vida está difícil para vendedores?

Há um ano minha TV começou a agonizar. Apareceu uma listra vertical grossa na tela. Descobri que não tem conserto — ou melhor, tem, mas é preciso “trocar a placa” e o conserto sai quase pelo preço de uma TV nova. Coisas desse tipo dão saudade dos tempos em que, quando a TV dava problema, você apenas trocava a válvula. Mas a vida é assim mesmo, e eu não quero perder tempo reclamando.

Deixei como estava. Não vejo tanta TV assim, e mais importante, para quem foi criado assistindo ao “Sítio do Picapau Amarelo” com chuviscos e fantasmas (e interferência quando ligavam um liquidificador), se incomodar com uma listra boba é coisa de millenial.

Mas numa sexta-feira dessas ela começou a gritar “Eu vou morrer, eu vou morreeeeer!”, escandalosa como lavadeira batendo boca por causa de homem, e isso me preocupou.

Aproveitei a noite do sábado seguinte para passar no shopping e procurar uma TV nova. Achei numa dessas grandes redes. A vendedora disse que estava em oferta, disse isso, disse aquilo, disse também que tinha para pronta-entrega.

OK. Fui fazer um lanche e pensar, que eu tenho problemas sérios em jogar dinheiro em eletrodomésticos e em celulares, é sempre uma decisão difícil para mim. Pensar e ver o preço na internet, claro. Aquele, naquela rede, era o melhor preço da tal TV — que tinha isso e aquilo e até blutufo, coisa de que gosto muito.

Quinze minutos depois voltei e disse que ia levar a TV. A moça então disse que infelizmente ela tinha três televisores, mas nesse período de tempo em que fui pagar caro por um lanche vagabundo um vendedor as tinha vendido. Agora ela tinha para entrega em cinco dias.

OK, eu volto daqui a cinco dias. “Mas aí a oferta pode ter acabado”, ela disse. Paciência. Tchau.

Eu não ia voltar, claro. Porque estava irritado, e o que me irritou foi a mentira. Ela mentiu, ponto. Ninguém vende três TVs caras em quinze minutos no dia 25 de qualquer mês. A verdade é que ela nunca teve a TV para pronta-entrega, mas se acha malandra, boa vendedora, tem as manhas de segurar o cliente e depois enfiar-lhe a faca. Manhas que funcionaram durante décadas, mas que em tempos de preços mais baratos na internet talvez não façam mais sentido.

Em outros tempos você ficaria à sua mercê e, se quisesse muito a tal TV, acabaria comprando nela. Mas não é mais necessário.

A tal rede tem um programa de vendedores “online”. Você cria uma loja, uma espécie de subdomínio do site deles, e se alguém comprar por ela você ganha uma comissão. Deve ser útil para quem está desesperado e disposto a trabalhar para a rede sem nenhuma vantagem empregatícia. Mas na prática, mesmo, funciona como os rebates americanos: você compra e depois recebe um troco de volta.

Voltei para casa e comprei na “minha” loja. Pelo mesmo preço. E mais 150 reais que vão voltar para a minha conta. E ainda vão entregar em casa.

Se eu fosse vendedor de loja ia dirigir para o Uber.

Bolsonaro, o perdão ao Holocausto e o desvio da esquerda

A reação à declaração do tenente expulso do Exército, Jair Bolsonaro, de que podíamos perdoar o Holocausto, mas não esquecê-lo, é uma mostra do quão míope e desconectada da realidade está uma parte da esquerda, pelo menos essa que parece militar em posts de Facebook e respostas inteligentes no Twitter.

O Holocausto se transformou em um trunfo histórico e político para o movimento sionista. Golda Meir mostrou entender isso perfeitamente ao dizer que “depois do que fizeram conosco, podemos fazer tudo”. É o que justifica a atuação de grupos como o Yad Vashem, que se recusa a aceitar homossexuais, ciganos e comunistas como vítimas do Holocausto, e o que motivou o protesto preconceituoso de certos setores judeus nova-iorquinos quando, no início dos anos 1990, um museu tentou promover uma mostra sobre essas vítimas do Holocausto. Em grande parte, essa é a justificativa subjacente ao colonialismo agressivo e ao genocídio que Israel executa há décadas na Palestina.

Mesmo gente mais ilustrada tem dificuldade em compreender a dimensão tenebrosa da Solução Final. Certos setores do movimento negro, por exemplo, tentam (inadvertidamente ou não) relativizar o Holocausto comparando números com outro crime contra a humanidade, a escravidão africana nas Américas, sem entender sequer o mínimo: que para além da questão racial inerente e justificadora, a escravidão tinha motivação e racionalidade econômica, enquanto o antissemitismo não tem nenhuma — ao contrário, é absolutamente irracional, ódio puro que deve ser materializado não importa o custo econômico. Escravizar negros gerava lucro; matar judeus representava um prejuízo que valia a pena diante do ódio aos “assassinos de Cristo”.

E no fim das contas nada disso quer dizer alguma coisa para 95% dos eleitores de Bolsonaro.

Analfabetos políticos e simplórios, eles estão absolutamente alheios a questões históricas como essa. Para eles, o Holocausto representa pouco ou nada. É algo que, quando ouviram falar, sabem ser errado, mas que já passou e não afeta suas vidas. Não têm a dimensão do horror, e para eles Auschwitz é algo quase tão distante, e sem nenhuma conexão emocional, quanto a batalha de Hastings.

Para esses eleitores, quando Bolsonaro diz que “podemos perdoar o Holocausto, mas jamais esquecer”, ele não está subscrevendo o nazismo, não está justificando suas ações, não está se posicionando a favor desse crime. Fora do sectarismo militante, pelo contrário, para seus eleitores ele mostra uma faceta que seus opositores não conseguem ver nele: um governante tolerante, moderado. É o contrário do psicopata fascista que seus opositores enxergam, e do idiota funcional, reacionário, ignorante e despreparado que ele realmente é. E nesse caso, ele é transformado, para aqueles que o elegeram, em vítima.

Ainda mais triste — ou talvez mais uma prova desse entrincheiramento intelectual míope — é que eles não conseguem ver que algo semelhante aconteceu com Lula. Quando ele traduzia posicionamentos mais complexos em palavras simples, quando dizia que “a gente não vai pagar a conta dessa crise criada pelos louros de olhos azuis”, ele era rechaçado pela elite, que o acusava de analfabeto — enquanto se fazia entender pela patuleia, que era o que interessava a ele. Bolsonaro faz isso de maneira mais simplória, talvez até involuntária.

O resultado é que o eleitor médio de Bolsonaro continua se identificando com ele. Com as barbaridades que diz, com a incompetência verbal. Esses eleitores foram educados, ao longo de quase 40 anos de exercício da democracia em eleições, a descrer de promessas de campanha de candidatos e confiar no seu “bom senso” e na opinião majoritária de sua comunidade. Eles veem no idiota twitteiro o seu mesmo padrão de comportamento, de pensamento, o mesmo modo de ver o mundo e se posicionar diante dele.

Talvez o fenômeno mais curioso nessas eleições tenha sido o número de famílias de latrocidas, de gays e negros que votaram nele. Para eles, o discurso identitário nunca surtiu efeito. Eles focaram seletivamente naquilo que lhes: o discurso do combate à corrupção, da restauração da ordem, do fim de privilégios que só os outros têm, do conservadorismo de costumes que representa uma estabilidade existencial perdida há muito tempo (se é que alguma vez existiu). Anos de bombardeio da mídia contra a corrupção inventada pelos petistas o tornaram descrente e radical, infelizmente com a ajuda alegre de uma parte do PT. E o crescimento da penetração das redes, da possibilidade do compartilhamento em massa de ideias semelhantes e compreensíveis, ainda que estúpidas, lhes deu força e autoafirmação.

É isso que essa parte dos seus opositores não consegue enxergar. É um problema que aparentemente tem origem no momento em que o Muro de Berlim caiu e a esquerda perdeu o referencial ideológico e concreto do socialismo. Órfã, se tornou presa fácil para a dominação das pautas identitárias, que sobrepunha questões de gênero e étnicas à luta de classes.

Desde o início, quem conseguia ver um pouco além dos posts lacradores de uma esquerda que achava que todo mundo ia se afastar de Bolsonaro pela sua homofobia, pelo seu racismo, pelo seu machismo delirante, tinha muito mais medo da sua incompetência e do seu despreparo. Mas a guerra de informação que se travou nas redes, especialmente no WhatsApp, se deu a partir de uma militância que privilegiava esses argumentos — que, no fim das contas, apenas galvanizavam a certeza de cada lado de que ele é que estava certo, levando a um impasse infértil que ajudou, mesmo que pouco, a beneficiar o candidato de uma direita desesperada.

É uma esquerda que se recusa a compreender as consequências sociológicas do crescimento do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade; que denuncia acertadamente que negros são as principais vítimas da violência, mas convenientemente esquece o que essas vítimas sentem na pele: que negros são também os perpetradores imediatos dessa violência.

Mais importante, não consegue entender as mudanças profundas que o capitalismo vem atravessando, possibilitadas pela tecnologia, e que transformaram profundamente a natureza das relações de trabalho. O sujeito que trabalha no Uber, o motoboy, o ciclista do Uber Eats, o caminhoneiro que está pouco se lixando se os subsídios que Bolsonaro prometeu há pouco vão beneficiar principalmente os fabricantes de pneus, os milhares de MEIs que aos poucos se tornam a norma nas relações trabalhistas representam uma mudança profunda e irreversível, que afeta profundamente a maneira como essas pessoas enxergam as pautas da esquerda. Para elas, que se veem não como explorados, mas como agentes autônomos, e que acham que seu sucesso depende apenas do seu próprio esforço, questões como previdência e pisos salariais representam antes de tudo a defesa de privilégios que certamente não são seus.

É com essa realidade complexa, em que certo e errado são cada vez mais fluidos, verdadeiros ou falsos apenas para um fragmento da sociedade mas não para outros, e que são definidos por experiências muitas vezes conflitantes, que essa esquerda teria que lidar — mas suas pautas identitárias impedem isso. Em vez de tentar compreender e lidar com esses processos, essa esquerda se esbalda em estultícies como o conceito de apropriação cultural.

As classes dominantes deste país nunca tiveram medo de se jogar aos crocodilos, se isso impedisse a esquerda de assumir o poder e promover mudanças estruturais que temem quase irracionalmente, em parte pela ignorância atávica e provinciana que lhe é característica e que fez, por exemplo, os médicos cearenses que foram vaiar os cubanos do Mais Médicos se espantarem ao ver que em Cuba há médicos negros. Já tinham feito isso com Castello Branco, e mesmo com Fernando Collor. A diferença é que agora, com a internet dando voz a uma legião de imbecis que sequer sabe escrever — e que se recusa até mesmo a confiar no corretor ortográfico do Microsoft Word —, quanto mais pensar política, essa burguesia tem ao seu lado uma camada de gente ignorante, preconceituosa e burra que assume como seu esse discurso. Eles, a propósito, são um indício de que em algumas coisas Marx estava errado. O barbudo não conseguiu prever que poderíamos viver a ditadura do lumpemproletariado.

De qualquer forma, são essas pessoas que ajudarão a decidir o futuro do país, e é com elas que se precisa dialogar. Mas essa esquerda parece não entender que política não é uma disputa para ver quem está moralmente certo ou errado. Infelizmente, é essa a base dessa esquerda identitária, aparentemente mais interessada em se afirmar diante de seus pares do que em conseguir conquistas tangíveis, mais interessada em fazer valer sua visão sectária de mundo do que em efetivamente mudá-lo.

Fases

Eu nem ligo muito quando vejo o pessoal falar que a segunda fase dos Beatles é que é boa, que o resto é bobagem. Pessoalmente, considero a tal primeira fase muito mais revolucionária que a segunda, como já escrevi aqui, mas entendo que as pessoas pensem diferente. Entendo inclusive que algumas pessoas pensem que a Terra é plana. O único problema é que elas estão completamente, uterinamente erradas.

Primeiro porque essa divisão é equivocada. Não há apenas duas fases dos Beatles. Essa ideia foi sedimentada por aquelas coletâneas lançadas alguns poucos anos depois do fim da banda, The Beatles 1962-66 e The Beatles 1967-1970, também conhecidos como os álbuns Vermelho e Azul. Mas a obra dos Beatles é uma evolução constante, do primeiro compacto ao Abbey Road, e foi assim que foi vista em seu tempo. Para efeito de classificação, entretanto — essas imbecilidades em que a academia é mestra —, é possível no máximo fazer uma divisão porca em três fases, mais ou menos. Essa classificação foi feita pela primeira vez por Joe Brennan, se não me engano.

A primeira fase, caracterizada pela abordagem mais básica, estruturada sobre as possibilidades de uma banda com duas guitarras, baixo e bateria, e adequada à necessidade de ser reproduzida ao vivo, iria até o Help!; a segunda, que compreende as fases “de transição” e a “psicodélica”, extremamente experimental, poderia ter como marcos inicial e final o Rubber Soul e o Magical Mystery Tour (incluindo aí o Yellow Submarine, lançado depois mas composto por sobras de 1967); finalmente, uma terceira e última fase, inaugurada com o “Álbum Branco”, que um materialista dialético — fora de moda em tempos de pós-verdade, mas me perdoem por não conseguir deixar de ser um velho comunista — poderia chamar de síntese.

Essa divisão, no entanto, não sobrevive a uma investigação mínima de cada canção.

Olha She Came in Through the Bathroom Window. É uma das faixas do último e mais perfeito álbum dos Beatles, o Abbey Road. Agora compara a danada com uma canção menos conhecida chamada It’s Only Love, do Help!. It’s Only Love tem um problema a mais: para muita gente é uma canção ruim, porque Lennon disse que não a suportava e a palavra de Lennon deveria ser lei.

John Lennon foi para o inferno não pelas barbaridades que cometeu ao longo da vida, mas porque o seu revisionismo magoado e despeitado no início dos anos 70 induziu milhões de pessoas em todo o mundo a uma visão deturpada e errônea da obra da banda que ele fundou, mas não soube levar adiante. Um de seus grandes pecados foi macular algumas canções com opiniões bizarras que um fã que o conhece bem até entende, explica e desculpa, mas que para o resto do mundo serviu apenas para gerar preconceitos infundados. Não custa lembrar: Lennon é o sujeito que disse que o melhor trabalho dos Beatles é aquele hoje disponível nos Live at BBC I e II.

De modo geral, Lennon tinha muito orgulho dos Beatles. Mas por razões que dizem respeito unicamente à sua evolução intelectual e espiritual e à influência muitas vezes nefasta de Yoko Ono, chegou à conclusão de que It’s Only Love, entre umas poucas outras, era uma canção muito ruim, que o envergonhava. É possível que se referisse especificamente a algumas soluções líricas pouco brilhantes, a algumas rimas pouco elaboradas. Lennon via uma canção, prioritariamente, do ponto de vista da letra. A sorte é que não é assim que as pessoas enxergam a música: por exemplo, em nenhum momento os Beatles se aproximado da sofisticação e brilhantismo literários de Bob Dylan em sua melhor fase, os seis discos absolutamente geniais entre The Freewhelin’ Bob Dylan e Blonde on Blonde. E no entanto os Beatles eram tão maiores que Dylan.

O que interessa é que para uma parte significativa das pessoas It’s Only Love é ruim, ponto, foi John quem disse. E se um pai renega seu próprio filho, boa bisca ele não deve ser.

Por causa disso, quase por definição She Came in Through the Bathroom Window é muito superior a It’s Only Love.

É claro que Bathroom Window traz qualidades a mais, que vêm principalmente da evolução sem precedentes da música pop e da própria banda nesses curtíssimos anos; os músicos são mais experientes, mais hábeis, mais inventivos: não dá para comparar, por exemplo, o baixo de McCartney nas duas canções. Mas qualquer doido que toque as duas canções num violão entenderá o óbvio: melodicamente, It’s Only Love é muito superior. Nela, a progressão de acordes, além de mais rica, é por vezes surpreendente — é mais ou menos como se Lennon tivesse compreendido com perfeição o ideal platônico por trás daquele F que Buddy Hollly tirou da manga para encaixar em Peggy Sue. A estrutura de She Came in Through, por sua vez, é muito mais simples, A D, A D, A Dm, A Dm, G7 C, G7 C A, e uma pessoa mais malvada poderia dizer que é a mesma base de Lady Madonna, descontado um Bm aqui, um G ali, um F acolá.

Alguém pode argumentar que liricamente a canção do Abbey Road é mais sofisticada. E é aí que a desgraçada da porca torce o rabo.

Por que é mais sofisticada? Porque fala de algo que nos parece mais chique, porque fala de coisas que a gente não entende direito? “Ela entrou pela janela do banheiro protegida por uma colher de prata”. “Ela trabalhava em quinze boates por dia; e embora achasse que eu sabia a resposta, bem, eu sabia mas não podia contar”. E o melhor dos melhores: “O domingo telefona para a segunda, a terça telefona para mim”.

O uso excessivo de maconha por Paul McCartney é demasiado conhecido e deveria servir para explicar essa letra. De qualquer forma, se você sabe o que ele queria dizer com isso, por favor me dê um alô.

Enquanto isso, It’s Only Love fala de algo que milhões de adolescentes reconheceram como verdadeiro imediatamente. Why am I so shy when I’m beside you?, Lennon perguntava, e aquela matilha de garotos incapazes de chegar junto da garota pela qual, juravam naquele momento, morreriam de amor mais cedo ou mais tarde compreendia isso perfeitamente bem. Entendia também a resposta dada pelo próprio Lennon um pouco adiante: “É só amor, e isso é tudo; por que eu deveria me sentir desse jeito? É só amor, e isso é tudo; mas é tão difícil amar você”.

It’s Only Love é um exemplo muito melhor da conexão estabelecida entre os Beatles e a multidão de seres humanos que se reconheciam em sua letra ao mesmo tempo em que descobriam, através de suas melodias, novas possibilidades musicais. Essa conexão foi única em toda a história. Não se repetirá jamais. E It’s Only Love a exemplifica adequadamente.

O fedor

Dia desses me bati com um depoimento de uma francesa no Quora dizendo que essa conversa de gauleses cheirarem mal é mentira, que isso não existe, que eles fazem os melhores perfumes do mundo.

Qualquer pessoa pode contrapor essa afirmação delirante com mais que o senso comum. Por exemplo, com estatísticas sobre o uso de sabonete — os franceses não são muito chegados nessas sofisticações e as consomem bem menos que outros povos europeus. Eu poderia contradizer essa moça com uma história pessoal muito triste.

O fato é que quando vejo um francês dizendo com a cara mais sonsa que “nóis num fede não” a vontade que dá é de dar uns tapas para ele deixar de ser cínico desse jeito. Alguém devia deixar a polidez de lado e dizer na lata que eles fedem, sim. Fedem muito. Pegue um metrô em Paris no verão ou num dia de chuva para você ver uma coisa. Quantas vezes vi senhoras com cabelos literalmente duros de tanta sujeira acumulada, o tipo de cabelo que a gente cá na Ilha de Vera Cruz só vê na volta dos blocos de carnaval em Salvador. Uma vez, em Londres, uma senhora loura, gordota, entrou numa loja de camisetas em Camden. Fedia, fedia, fedia. “Saporra é francesa”, pensei. Se eu tivesse falado em voz alta perto de outras pessoas teria falsamente me arrependido imediatamente pelo meu preconceito, com a hipocrisia diante dessas coisas que me é peculiar, mas teria ao menos o consolo de estar certo assim que ela abriu a boca e lascou um combien.

Mas nada pode se comparar ao dia que, até hoje, às vezes lembro em sonhos, pesadelos dos quais invariavelmente acordo suado, gritando, pedindo ajuda a um Deus que nunca, nunca, nunca me ouve.

Tem alguns anos, isso, quase dez. Eu descia o boulevard Saint Michel e entrei numa Gap porque resolvi comprar uma camisa.

O provador da loja era no subsolo. Lá fui eu, com duas camisas — iguais, mas de cores diferentes — que, se bem sucedido, me fariam parecer um marinheiro marselhês, e quem sabe eu não poderia vir a ser um dos ajudantes do Conde de Monte Cristo, ou pelo menos me enturmar com a Brigitte Bardot e a Isabelle Adjani. A camisa eu já tinha.

Infelizmente o provador estava ocupado. Fiquei por ali, olhando as modas bagunçadas em volta, até que o sujeito saiu do provador.

Era um francês típico, coisa que para mim, turista invariavelmente embasbacado, era algo cada vez mais raro. Naquele ano mais que em outros: graças a Lula, eu nunca tinha visto tanto brasileiro nas Oropa, e ali, em Paris, em todo lugar que se ia o português com sotaque paulista ou carioca se fazia presente como na feira de Caruaru.

O patrício que saía do provador parecia saído de um livro de Simenon: era muito branco, cabelos pretos, alto, magro, o nariz aquilino de De Gaulle. Trazia um pulôver furado, mas do jeito que ele olhava para o mundo, aquilo parecia mais charme do que pobreza. Um francês. Se eu, paraíba, saísse com uma roupa furada daquele jeito olharia para as pessoas pedindo desculpas por existir — mas ele, francês, não estava nem aí.

Assim que ele saiu do provador, eu entrei. Não devia ter feito isso. Devia ter esperado algumas horas, talvez dias. Melhor, devia ter ido a outra loja, no boulevard Magenta tem umas lojas tipo sulanca que acabariam sendo uma escolha melhor. Era melhor ter pego o próximo avião de volta para o Brasil, era melhor me deixar chicotear por dez mouros cegos. Eu teria sofrido menos.

Porque eu nunca tinha sentido um cheiro igual àquele; parecia o cheiro de dez mil sovacos jamais lavados, suados, sofridos, calejados numa muleta. O cheiro de trinta mil escravos hebreus construindo a pirâmide de Gizé na época da seca do Nilo. Acredito que o filho da puta não tomava banho há meses. Não era só o sovaco: era o cheiro de um corpo completamente imundo, um corpo que não via água — quanto mais sabonete — havia meses. Eu nunca vi um fedor daqueles. Eu que tinha orgulho de lembrar que, em meus verdes anos, andei em tantos lugares a que pessoas decentes jamais iriam. Havia o fedor bom, as moças da minha adolescência que fediam a perfume Avon. Havia o fedor ruim, o fedor dos doidos que moram na rua, o fedor do desespero, da tristeza, da loucura; o fedor da miséria que destrói as noções de higiene porque o esforço para conseguir sobreviver é tão maior que essas bobagens. Mas aquele era um fedor diferente. O fedor que eu sentia ali, e que pela primeira vez em minha vida me fazia ter ânsia de vômito em um provador de roupas, era o fedor da imundície consciente, desnecessária, pusilânime.

Tive que sair dali imediatamente, sufocado, cego, trôpego. Dir-me-iam bêbado.

Esperei algum tempo e entrei de novo no provador. Ainda fedia, e muito, mas agora era tolerável. Experimentei a camisa rapidamente, vi que dava em mim, saí correndo, deixando para trás os demônios que me assolavam e tiravam minha saúde.

Como a vida sabe ser canalha e debochada, fiquei exatamente atrás do sujeito putrefato na fila do caixa. Vestido o filho da mãe fedia muito menos.

Eu jamais esqueceria essa experiência. Mas demorou alguns anos até entender que isso era carma. Essas coisas orientais que dizem que o que vai, volta. Eu não acredito nessas besteiras, não consigo. Mas eu não acreditava que o povo brasileiro ia eleger Bolsonaro e olha ele aí. É por isso que hoje sei que aquele francês imundo foi a forma como as parcas resolveram me lembrar de maldades cometidas em outros tempos.

***

A negona no caixa, com óculos de Risoleta Neves, grossa, metida, canalha, apenas dizia: “Vingt sous, vingt sous!”, e me olhava como quem olha uma lagarta que rói a sua roseira.

Era a mesma Paris, uns muitos anos antes. Estou perto do Louvre e a moça que está comigo precisa ir ao banheiro. Descemos numa das estações de metrô, que eu não lembro mais. Talvez tenha sido a Palais Royal, talvez a Louvre-Rivoli — certamente a linha 1.

E enquanto esperava, resolvi que ia no banheiro também, fazer xixi. Entrei no banheiro e a negona me lascou um vingt sous.

Eu sou baiano e considero desaforo pagar 20 centavos de franco para dar uma mijadinha. Não. Na minha terra, na velha Cidade da Bahia de Jorge Amado e do mano Caetano, a gente mija e caga na rua, na calçada — ultimamente essas coisas de civilização andam atrapalhando e o pessoal parece estar mais tímido, mais acanhado e cheio de não-me-toques, mas além de todo ano haver um carnaval para nos redimir, de vez em quando a gente vê o resultado do trabalho de um saudosista — e pode acreditar, uns anos atrás fui à praça Castro Alves com minha então namorada e ali, atrás da estátua da poeta, um baiano tinha deixado sua homenagem a séculos de escravidão, de exploração, de suor e sangue.

(Acho, no entanto, que ele foi apressado demais. Esperasse uns anos e poderia ter feito aquilo atrás da estátua de Gregório de Matos, era só atravessar a rua. Porque isso tem mais cara de Gregório que de Castro Alves, convenhamos.)

Mas certo, Paris, a conversa era outra. A negona repetindo com cara feia vingt sous, vingt sous. OK. Então tá, se eu tenho que pagar que seja pelo serviço completo.

Era a minha primeira visita a Paris. Eu tinha acabado de achar uma rua que aparentemente homenageava meus ancestrais, a rue de Valois. Via pela primeira vez a única cidade que, até o fim dos meus dias e não importa quantas eu conhecesse depois, iria rivalizar com Salvador. O grau de excitamento só era igualado pela vontade de parecer cool, calm, collected. E por falar em cool, com tudo isso fazia dias que eu não ia ao banheiro.

Aquele era um banheiro tão bonito, tão antigo, tão chique. O mosaico no chão remetia à Belle Époque, o teto, tudo aquilo me fazia pensar que civilização era aquilo, não era o Terminal da Lapa em Salvador. Mas a negona com óculos de Risoleta Neves ficava repetindo com cara feia, vingt sous, vingt sous.

Do bolso da parka emprestada que eu usava surgiram os vingt sous. Estendi as moedinhas mas ela, grosseira como sempre, me mandou largá-los num pratinho ao lado do ventiladorzinho que jogava ar mais fresco em seu rosto. Entrei no banheiro, abaixei as calças como Bolsonaro diante de Trump, olhei para o mosaico no chão.

Quando saí eu era um homem mais leve, em paz com o universo e com a humanidade. Saí do banheiro olhando firme para a negona e sorrindo para ela — sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere. Fiquei alguns instantes no corredor da estação, parado a alguns metros do banheiro. Estava feliz, pensando na negona no banheiro da estação do metrô, imaginando-a olhando para os vingt sous que eu havia lhe entregado, imaginei o ventiladorzinho jogando ar mais fresco no seu rosto. Alguns minutos depois, a moça que estava comigo surgiu afobada:

“Rafael, vamos embora, alguém empesteou este lugar.”

Perdidos na TV

Andei vendo, na Netflix, uns seriados que derivam diretamente de programas dos anos 60, meus velhos conhecidos.

O primeiro foi Star Trek: Discovery, mais um spinoff do seriado que só fui entender e admirar recentemente, agora em sua segunda temporada. O segundo é Lost in Space, versão nova do familiar “Perdidos no Espaço” que assolou as TVs do mundo a partir de 1965. Sua segunda temporada deve estrear em alguns meses.

Star Trek: Discovery é uma prequel da série original. Na realidade faz muito pouco sentido, principalmente pelas discrepâncias históricas e estéticas, como a exibição de uma tecnologia obviamente muito mais avançada do que a que víamos no seriado dos anos 60. Em acordo com os tempos, a principal personagem do novo seriado é mulher, negra, complicada, forte: isso a coloca a anos-luz de distância de um seriado em que mulheres apareciam de preferência em trajes sumários. E Sonequa Martin-Green é uma atriz muito melhor que William Shatner.

Mas o seriado começou muito mal. Já vão longe os tempos em que cada episódio de um seriado continha uma história estanque. Agora, cada um deles está mais preocupado em contar a parte que lhe cabe de uma história muito maior e garantir que você assista o episódio seguinte, porque seriados viraram grandes novelas, essa é a verdade. Em tese isso não é bom nem ruim; mas na prática, o resultado é que não temos mais grandes episódios como tantos da primeira série, porque eles não almejam isso.

O “Jornada nas Estrelas” original, com todos os seus defeitos, permaneceu porque conseguiu se tornar maior que seu tempo, utilizando como matéria prima exatamente o melhor que este lhe oferecia; discutia os grandes temas da então atualidade, e mais que a simples aventura, que a simples ficção científica, tentou abordar temas universais como tolerância, preconceito, amor. Star Trek: Discovery abdica disso na maior parte do tempo, e aqui os problemas individuais e a ação são o que realmente importa. O novo seriado é medíocre e a ele falta aquilo que tornou o original atemporal: o humanismo, a busca por respostas a questões maiores do que a simples aventura espacial, a defesa quase militante do respeito à diferença. Isso é ainda mais notável no ano da graça de 2019, em que esses temas são obrigatórios, ainda que normalmente em uma nota só.

Star Trek: Discovery respeitou o seu tempo ao colocar como protagonista uma mulher, negra, com nome masculino; mas mostrou o quanto isso pode ser vazio ao abdicar de qualquer discussão sobre o assunto; é como se estivesse apenas se antecipando ao tribunal do Facebook.

De modo geral, Star Trek Discovery é umbiguista como qualquer outra série menor produzida hoje, e isso dá o seu tamanho exato, lhe insere em seu tempo e o torna medíocre. Star Trek Discovery tentou encaixar pés frágeis em sapatos muito grandes demais, e não conseguiu.

(A situação mudou um pouco na segunda temporada. Não que milagres tenham sido operados, esta ainda é essencialmente a mesma série; mas parece que entenderam um pouco do que tornou imortal o seriado original. Agora, temas um pouco mais amplos se imiscuem em alguns episódios, embora esta ainda seja uma série dos anos 10, o que significa privilegiar acima de tudo os pequenos dramas individuais e o “arco” da estória.)

***

“Perdidos no Espaço” é outro velho amigo das gentes que se aproximam dos 50 anos, e dos mais velhos que isso. Crescemos assistindo a ele, e apesar de ter durado apenas três temporadas, como “Jornada nas Estrelas”, “Perdidos no Espaço” me parece ter sido reprisado com mais frequência, pelo menos no Brasil. Para mim isso nunca fez diferença, porque eu não ligava tanto assim para o seriado. Will Robinson era um idiota e o dr. Smith era um pé no saco e eu nunca entendi por que não davam um fim nele, ei, esquecemos o dr. Smith em Órion XIII, que coisa.

Para mim é tentador dizer que refilmar “Perdidos no Espaço” talvez seja a maior prova de que o mundo em que vivemos está criativamente esgotado, tendo que buscar referências em programas  medíocres feitos meio século atrás. Meio século é muito tempo. Só não é mais tentador porque não consigo esquecer que Walt Disney criou um império reembalando contos de fadas com mais de 400 anos de idade (na verdade, tem gente que diz que essas estórias na verdade têm milhares e milhares de anos).

O fato é que o novo Lost in Space tem uma vantagem inestimável em relação a Star Trek: Discovery: o original era ruim. Se qualquer sequência de “Jornada nas Estrelas” já começa em desvantagem, uma refilmagem de “Perdidos no Espaço” tem tudo a seu favor.

Para começar, é tão agradável ver novamente o letteringCreated by Irwin Allen”. Eu sei que na ortodoxia das coisas é Gene Rodenberry o bambambam das galáxias, mas a verdade é que nós, cá no meu torrão natal e no meu tempo, gostávamos muito mais das tosqueiras simplórias e mal produzidas de Allen. “Túnel do Tempo”, “Terra de Gigantes”, “Viagem ao Fundo do Mar”, tudo isso nos dizia mais que as indagações aparentemente profundas do capitão Kirk. E eram mais engraçados.

Sua nova encarnação não tem muito a ver com o original, além dos nomes dos personagens e da nave. A história é diferente, os personagens são diferentes. À primeira vista, deve mais aos filmes de astronautas feitos recentemente — especialmente aos filmes menos que medíocres de Ridley Scott, como Prometheus — do que à pequena tradição da comédia de ficção científica da TV americana dos anos 60. E isso é desnecessário. Lost in Space se sustenta sozinha. Talvez se sustentasse melhor se, 50 anos depois, fosse buscar mais inspiração na ”Tempestade” de Shakespeare, mas não dá para esperar demais.

Importante mesmo é que o novo seriado faz sentido, muito mais que Star Trek: Discovery. A família perfeita americana de 1965 não existe mais — já não existia naquele tempo, talvez —, por mais que os saudosistas queiram: os casais estão se divorciando, os filhos têm pais diferentes, nada é tão perfeito como nos anos 60.

O novo “Perdidos no Espaço” entende esses novos tempos, e isso parece ter incomodado muita gente. Comentaristas no IMDb reclamaram da nova abordagem “politicamente correta”: uma mulher à frente das grandes decisões, uma filha negra, o Dr. Smith como uma mulher, tudo isso parece incomodar muito um número muito grande de pessoas.

Por um lado, é inegável que há uma parcela assustadoramente grande da humanidade com muitos problemas para aceitar o mundo novo, e extremamente vocal em sua revolta.

Mas em parte essa revolta é compreensível. A sensação que essas pessoas parecem ter é que não basta lhe negarem uma primazia que lhes deveria ser reconhecida naturalmente — do homem sobre a mulher, do branco sobre o preto, do europeu sobre o resto do mundo; mas querem tomar também o seu passado, num momento em que, ao menos na seara do discurso, eles são cada vez mais minoria. Eu mesmo tenho dificuldades em entender a razão pela qual insistem em pegar símbolos que são caros a algumas pessoas e transformá-los a ponto de não os reconhecermos. Quem quer uma 007 feminina passa longe do que, para algumas pessoas, devia ser o objetivo da luta feminista: em vez de fazer uma cirurgia de sexo e dar um nome social ao Bond, James Bond, me parece mais justo criarem seu próprio ícone feminino. Talvez fosse mais fácil fazer Lara Croft se tornar adulta, por exemplo. (Isso merece um post à parte, que em suma discutiria o seguinte: para começar, Lara Croft diz mais às novas gerações do que James Bond. Mas se mesmo assim você insiste em emascular Bond, dá razão a quem reclama do discurso “hétero cis opressor estuprador por princípio”.)

Voltando a “Perdidos no Espaço”, o mais interessante nessa série — e em virtualmente todas as refilmagens de seriados antigos — é que eles perderam o humor. Agora eventuais tiradas engraçadinhas são restritas a um personagem, como tem acontecido nestes tempos, e neste caso o que mais se aproxima disso é Don, que de piloto e genro virou mecânico muambeiro.

Mas talvez as coisas sejam um pouco mais complexas do que isso.

O “Perdidos no Espaço” original nasceu como um programa para toda a família, em sua primeira temporada em preto e branco. Mas sendo tão estereotipado, tão esquemático, rapidamente se transformou em um seriado voltado para o público infantil, e daí a excessiva proeminência do Dr. Smith e de Will Robinson, sempre acompanhados pelo robô B9. “Perdidos no Espaço” nunca aspirou à profundidade de “Jornada nas Estrelas”; ainda assim, o Dr. Smith de Jonathan Harris foi um personagem razoavelmente ambíguo. Era um comunista canalha, covarde, aético, mas extremamente carismático em sua humanidade, a ponto de fazer o seriado passar a girar em torno de si. Agora, a Dra. Smith de Parker Posey, em um mundo em que o egoísmo substituiu a ideologia como motor da humanidade na TV, é uma boa personagem, mas sem as muitas vantagens que a comédia trazia para o Smith original.

Por tudo isso, você se vê torcendo pelo personagem menos humano de todos, o robô, e isso é muito triste.

Ele merece um parágrafo. Seu desenho é muito bom: do ponto de vista de um designer, ele respeita as linhas originais e as atualiza ao máximo. Certo, ele não é mais feito por humanos. Isso tira da série a possibilidade de discussão de um tema que que surge no horizonte, as possibilidades e os perigos da inteligência artificial geral, mas mostra que a própria percepção do espaço como reflexo da humanidade mudou, e muito, nos últimos 50 anos. Nos tornamos menos antropocêntricos e menos geocêntricos.

O robô original se chamava B9 — benign, sua besta, nunca percebeu? —, mas de benigno o novo robô não tem nada. E isso reflete o mundo pós HAL-9000. Se nos anos 50 e 60 a humanidade ainda podia ver a tecnologia como uma aliada subalterna e perfeita, hoje ela pode ser nada mais que uma esfinge. E essa é talvez a grande qualidade de Lost in Space.

De como deixei de gostar de futebol

Como virtualmente todo brasileiro, eu gostava de futebol. Não gosto mais. Às vezes, no meio de uma conversa qualquer, perguntam por qual time eu torço, e me vejo forçado a responder que não torço por nenhum: sou flamenguista, é diferente. É sina, e das ruins.

Torcer por um time tem a ver com comunidade, com identidade de grupo, com tradições ancestrais e algum grau de atavismo — o mesmo atavismo que faz de mim flamenguista, embora seja bem provável que o fato de eu ter visto aquele time de 1981 ser campeão da Libertadores e do mundo ajude um pouco. Eu não sei se essas condições ainda existem ou são possíveis em um mundo em que o futebol se transformou, acima de tudo, em um negócio multimilionário. Tenho a impressão cada vez mais forte de que as pessoas não torcem mais por clubes, torcem por marcas — daí tanta gente torcendo pelos grandes times ricos da Europa. E para mim torcer pelo Barcelona ou pelo Manchester United, como essa meninada de hoje anda torcendo, é tão sem sentido quanto torcer pela Nike contra a Adidas, quanto colocar aquela maçãzinha ridícula no carro para dizer que tem um iPhone.

Para completar o quadro, para mim esse é um jogo cada vez mais feio. Ou pelo menos, cada vez mais sem graça. A evolução física e o aparentemente esgotamento tático do futebol fizeram do esporte bretão algo previsível, corrido demais. O jeito europeu de ver o futebol se impôs. Entre um menino alto e forte e um franzino mas habilidoso, é no forte que os times e empresários vão investir hoje, porque força física é cada vez mais importante. É como se escolhessem Dunga em vez de Zico, sempre.

Devo estar completamente errado em entender as coisas desse jeito, claro. Quem vê, quem ainda gosta genuinamente disso a que chamam futebol, fala maravilhas dos campeonatos tipo Champions League e quetais, tece elogios ao futebol moderno, fala em siglas estranhas como R9 e CR7, siglas que tenho dificuldade em decifrar. Eles devem ter razão e eu certamente estou errado, não vou nem tentar me justificar.

Porque não me importo mais. Cresci em um mundo que via no futebol brasileiro o epítome de um esporte transformado em arte, porque ele tinha redefinido possibilidades e estabelecido padrões ideais; uma época em que se podia dizer que o futebol fora inventado na Inglaterra e recriado no Brasil.

Cresci e aprendi a gostar de futebol vendo o Flamengo da virada dos anos 80. Aquilo para mim definiu o que era futebol: era o drible, a jogada imprevista, a surpresa, o carinho e o respeito à bola, e um conjunto se movendo harmoniosamente em busca de um objetivo. Eu vi Leandro jogar; e no entanto preciso me resignar a viver em um mundo que acha Cafu um craque. É difícil viver assim.

Lembro de um jogo de Edmundo no Palmeiras, aí pelo início dos anos 90. Ele tinha algum problema com um jogador do Corinthians, acho que Viola, e decidiu resolver ali. Deu-lhe um daqueles dribles humilhantes,  e em vez de seguir a jogada voltou para driblá-lo outra vez. E faria isso pelo resto do jogo, se àquela altura o resto do Corinthians não tivesse partido para cima dele. Há também a jogada clássica de Denílson na copa de 2002, dezenas de turcos grossos correndo atrás dele.

Garrincha não poderia jogar daquela forma hoje, porque a evolução tática do futebol não permite mais. Seria, como foi, um grande jogador: mas não teria a chance de enfileirar joões porque não se utiliza mais a marcação homem a homem. E se Garrincha não pode jogar eu não quero mais brincar. A bola não é minha e eu não posso parar o jogo, mas posso ir pra casa emburrado. É o que eu faço, deixando de gostar de futebol.

E por gostar cada vez menos, a cada minuto saltam à vista mais e mais detalhes irritantes. Eu, por exemplo, estou certo de que o futebol começou a morrer na Copa de 82, quando juízes deixaram de usar  o preto obrigatório; deu seus últimos suspiros quando os jogadores passaram a usar chuteiras de outra cor que não a preta; e teve seu cadáver vilipendiado no dia em que uma cretina criou uma camisa amarela e azul para o Flamengo.

Mais importante, para mim o futebol morre mais um pouco quando vejo jogadores receberem uma falta qualquer e rolarem infinitamente no chão como se tivessem quebrado suas pernas, como se a tíbia estivesse perfurando seu pulmão. Não é apenas Neymar; ele é apenas o exemplo mais patético. O que me salva é ver jogos antigos no YouTube; assim ainda posso ver Zico receber faltas duras, cair e levantar, como todos os outros jogadores daquele tempo. Mas hoje isso parece desonroso. Catimba é recurso para ser usado com parcimônia, se usado. Era milonga argentina que apenas ilustrava a nossa superioridade. Futebol não é isso. Não pode ser isso.

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Quando nasci, o país tinha orgulho de abrigar o maior estádio do mundo, aquele que fica a uma bala perdida da Mangueira e que foi projetado por ninguém menos que Rafael Galvão. Mas à medida que o tempo foi passando o Maracanã foi encolhendo. E num claro crime de vilipêndio de cadáver, sua última reforma o transformou na antítese do futebol brasileiro. Hoje, ali não cabem 80 mil pessoas, mas não é esse o problema. O problema é que, desses 80 mil tristes, nenhum deles estará na geral, porque geral é coisa que não existe nesse estádio europeu. O novo Maracanã, como tantos outros, é estádio para rico, e por isso desonra toda a tradição do futebol brasileiro. A verdade é que não existe, não pode existir futebol sem o geraldino, assistindo ao jogo em pé, sem camisa, sem dentes, com um radinho de pilha no ouvido e o coração na mão.

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Quase 60 anos depois, minha mãe ainda fala da raiva que tinha do Botafogo, do que era ir para o Maracanã ver o Flamengo perder, invariavelmente, para um dos melhores times que o país já viu. Descobri há pouco tempo que Zico compartilha essa raiva. Os dois são da mesma geração e iam para o Maracanã ver Garrincha humilhar o Flamengo.

Leandro, o maior lateral direito que vi jogar e um dos jogadores mais subestimados da história, tem outra raiva. Para ele, o importante mesmo é o Fla-Flu. Leandro faz parte de outra geração, a que viu a “Máquina” tricolor.

Eu faço parte de outra geração, cerca de 10 anos mais nova que Leandro. Cresci sem ver rival de verdade para o Flamengo no Rio de Janeiro, embora um ou outro time tenha tido uma boa fase (o Fluminense campeão brasileiro, ou o Vasco vice-campeão mundial). Eu posso me dar ao luxo de não ter raiva de time nenhum.

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A comparação de Pelé com Maradona sempre foi absurda para mim. Pelé, se precisasse, jogava até no gol. Era brilhante em absolutamente todos os fundamentos do futebol. E, se for necessário, as fotos ao lado mostram que não, Maradona não é maior que Pelé, em nenhum aspecto.

Também por isso, sempre achei que a pergunta que se pode fazer é se Zico era melhor que Maradona.

Se perguntam a Zico, ele responde que o melhor era Maradona, e explica por quê: Maradona podia ser menos completo, mas naquilo que fazia brilhava como ninguém. No entanto, no YouTube há alguns técnicos falando que preferem Zico, como Tite e Muricy Ramalho. Se eu fosse um técnico, também preferiria Zico a Maradona no meu time.

Maradona era genial, mas para mim tinha duas grandes limitações. Primeiro, era mais fácil ele fazer gol com a mão que com a perna esquerda. Mas o seu pior defeito, para mim, é que ele era fominha. Era um jogador genial, provavelmente o melhor que a Argentina já teve. Assim como Garrincha, ganhou uma copa para seu país. Mas ele jogava para si mesmo. Olhe o seu histórico e você vai ver que ele tinha mais títulos individuais (melhor jogador disso ou daquilo) do que títulos pra seus clubes ou seleção. É justamente o contrário de Zico, um meia que inclusive tem mais gols que Maradona.

Mas isso é coisa de 30 anos atrás. Agora tentam comparar Messi com Pelé. Por favor.

Messi é brilhante, mas não se compara sequer a Maradona. Messi é brilhante, e me lembra muito Zico jogando, mas os tempos são outros. Infelizmente, são tempos em que as pessoas parecem ter perdido os referenciais.

Minha geração não viu Pelé jogar. A lembrança mais antiga que tenho dele é, justamente, seu último jogo, encerrando a carreira no Cosmos. Mas eu sabia ler e, aparentemente, tinha bons referenciais e pontos de partida para julgamentos. Daí porque um flamenguista com vergonha na cara jamais diria que Júnior foi o melhor lateral esquerdo da história, como vejo hoje as pessoas falando de Marcelo.

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Nos últimos 20 anos, desde que vi os jogos do Brasil na Copa de 1970, eu alardeei uma certeza: a seleção de 82 foi a melhor de todos os tempos. Para mim, 82 combinava o carinho com a bola e um quase perfeito entrosamento coletivo com o jogo mais rápido que os novos tempos estavam trazendo. Fiquei sabendo há pouco tempo que João Saldanha também achava algo semelhante: que a seleção de 82 era melhor que a de 70.

Quero aproveitar o espaço para corrigir essa opinião: eu estava errado. Perdoe a minha ignorância, mas eu realmente estava errado.

A melhor seleção de todos os tempos, uma seleção que nunca será igualada porque os tempos não permitem mais, foi a de 1958.

Há algum tempo descobri no YouTube o jogo completo, que eu nunca tinha visto. E o que vi me impressionou. Eu conhecia, claro, os gols, a imagem de Didi voltando para o meio de campo com a bola debaixo do braço depois do primeiro gol da França, os gols belos, a perfeição de Pelé. Mas isso são detalhes, apenas. Se formos julgar alguém por detalhes, por trechos apenas, “melhores momentos”, até Piá pode ser um grande jogador.

Não retiro nada do que já disse sobre cada seleção posterior. A de 70 era genial e dispensa quaisquer defesas. A de 82 era impressionante e o futebol que jogava era absolutamente belo, jamais repetido por uma seleção nacional.

Mas em seu contexto histórico, em 1958, o desnível entre o Brasil e todas as outras seleções do mundo era intransponível.

As seleções de 70 e de 82 apresentaram ao mundo um futebol melhor, mais belo que os outros.  A de 58 apresentou ao mundo algo totalmente diferente. Apresentou uma maneira de jogar que ensinava o que era realmente bom àquele mundo deslumbrado com a Hungria de quatro anos antes. Pelé, Garrincha e Didi ensinaram ao mundo um novo esporte.

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Taffarel, Leandro, Domingos da Guia, Luís Pereira, Nilton Santos; Clodoaldo, Falcão, Zico, Pelé; Garrincha, Romário.

No banco, Gilmar, Djalma Santos, Oscar, Aldair, Roberto Carlos; Didi, Gerson, Zizinho, Ronaldinho Gaúcho; Ronaldo, Reinaldo.

E fim de papo, que eu não gosto mais desse negócio.

Os livros da moda

Você já notou que acabaram aqueles “livros da moda”?

Eu tenho uma lista deles. “Rumo à Estação Finlândia”, “Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar”, “1968: O Ano que Não Terminou”, “Minha Razão de Viver”, “Notícias do Planalto”, “Chatô: O Rei do Brasil”, “Estrela Solitária”. Livros que eram resenhados nas principais revistas nacionais, como a Veja, e que tornavam obrigatórios nas estantes das pessoas — tão mais obrigatórios quanto mais simples eram as estantes.

A fragmentação da mídia, a ascensão das redes sociais acabaram com eles. Dependendo do digital influencer, o livro que a namorada de um deles escreveu com pensamentos que ela julga inteligentes pode ter a mesma exposição que um hipotético inédito recém-descoberto de Balzac.

E com isso acaba também uma ponte, um ponto em comum entre as pessoas, uma razão para iniciar uma conversa com alguém, “Você leu o último do Fulano?”

É um mundo estranho, esse. Eu não gosto dele.

Luís Alberto se espatifou contra a marquise do Elevador Lacerda

Há três dias fez quarenta anos que Luís Alberto Sampaio Tranquile se suicidou.

Luís Alberto morava nos Barris, no número 9 da rua Dionísio Cerqueira, uma rua que, esquecida pelo progresso, ainda hoje é margeada por edifícios baixos dos anos 50 e 60 e casas em estilo art déco, quase centenárias, de uma classe média tranquila que já não existe mais. A casa onde ele morava talvez seja uma daquelas dos anos 30 que ainda sobrevivem na rua, talvez seja uma que está para alugar.

No comecinho da manhã daquele 27 de janeiro de 1979, Luís Alberto se aproximou da amurada do lado direito do Elevador Lacerda. A cidade ainda acordava, ele não pôde tomar um sorvete n’A Cubana. Dificilmente tomaria, é de se imaginar; Luís Alberto provavelmente havia passado a noite em claro, remoendo seu desespero, vendo apenas uma única saída para aquilo que o afligia.

Era mais ou menos 7:45 quando Luís Alberto se jogou da amurada e se espatifou, intermináveis segundos depois, contra a marquise do elevador na praça Cayru.

Luís Alberto morreu como o capitão da areia Sem-Pernas. Mas há uma diferença, definida pelo talento das pessoas que narraram as suas mortes. É belo o fim de Sem-Pernas. Ele “ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.” A morte de Sem-Pernas é antes de tudo um ato de rebeldia e de orgulho, ainda que amargo, e então o aleijado humilhado, mesquinho e cruel finalmente se torna grande. Luís Alberto teve destino diferente. Dele não se fala nada, apenas que se espatifou na marquise do elevador, uns tantos metros abaixo, na praça Cayru. Podemos adivinhar que ele chegou em silêncio à amurada, olhou para baixo durante tantos e tantos minutos, provavelmente tentando se convencer de que a decisão que tomara era a mais acertada, de que não havia outro jeito — talvez até tenha tentado se se libertar do langor mórbido da perspectiva da morte, do fim de tudo, de todos os problemas, tentando buscar em vão uma outra saída. Ficamos sabendo também que o delegado de plantão iria procurar os familiares.

Mas a principal diferença talvez seja o detalhe bobo de Luís Alberto ter ficado por uma hora ali, espatifado na marquise do elevador. Mesmo depois de morto, Luís Alberto estava sozinho e desamparado. A salvo dos curiosos amontoados na praça Cayru, mas sob os olhares dos populares que se amontoavam no paço municipal, embora talvez não tenham sido poucos aqueles que, sem nada para fazer na Cidade Alta, se dispuseram a pagar uns poucos centavos apenas para se debruçar na amurada e ver com seus próprios olhos o cadáver de Luís Alberto.

Luís Alberto Sampaio Tranquile tinha 28 anos no dia 27 de janeiro de 1979. Eu queria poder dizer que ele viveu mais tempo morto do que vivo, mas não posso.

Para viver mais tempo morto do que vivo é preciso que você permaneça na memória de alguém. De pessoas que contem histórias da sua vida, da impressão que você deixou nelas, casos bobos ou não que garantem que enquanto alguém lembrar deles, você continua vivo de alguma forma, e sua existência teve algum sentido.

A esta altura os pais de Luís Alberto já morreram. Na internet não há nenhuma família Sampaio Tranquile; então não é absurdo supor que ele não deixou irmãos, não deixou filhos. É possível que os Sampaio Tranquile tenham se espatifado com ele na marquise do Elevador Lacerda. Pelo sobrenome, Luís Alberto era filho ou neto de um dos tantos espanhóis que faziam da baiana a maior colônia espanhola do país, imigrantes como seu Manolo que tinha a melhor padaria da Graça naquela época e alguns casarões na Saúde. Mas sua família não prosperou, não existe nem na internet, e talvez tenha sido ali, espatifado na marquise do Elevador Lacerda, que Luís Alberto matou a si próprio, sim, mas matou também os Sampaio Tranquile.

E assim, tudo o que se pode fazer a respeito de Luís Alberto é imaginar a razão do seu suicídio. Motivos há ao gosto do freguês.

Talvez uma moça bonita, moça vulgar de Cajazeiras e um jeito de olhar fazendo promessas indizíveis, tivesse feito Luís Alberto perder a cabeça, largar tudo para se encaixar entre suas pernas, e agora ela tinha se cansado dele e lhe mandado ir embora e agora não valia mais a pena viver — mas não, talvez não seja cinismo demais achar que isso não seria jamais motivo para suicídio; é apenas motivo para uns desejos de morrer de mentirinha por uns tempos, para lágrimas que vão diminuindo à medida que os dias passam, até a próxima moça vulgar lhe sorrir novamente em um oferecimento mudo.

Talvez aquele cafetão da 28 de Dezembro estivesse ameaçando cobrar à sua família suas dívidas, e Luís Alberto sabia que sua mãe desmaiaria e seu pai o expulsaria de casa, e não, eles não mereciam a vergonha e o prejuízo, era melhor pular.

Talvez Luís Alberto tivesse dívidas de jogo e estivessem ameaçando quebrar suas pernas; talvez tivesse perdido tudo ali, no cassino que funcionava nos fundos da padaria de seu Manolo na Euclides da Cunha, e era uma dívida tão grande que ele jamais poderia pagar com seu salário de comerciário.

Talvez a sua colega comerciária estivesse grávida, e Luís Alberto via, naquela barriga a cada dia mais redonda, o fim de todos os seus sonhos — largar aquele emprego numa loja de sulanca da Baixa dos Sapateiros, estudar, ser alguém na vida, fazer valer a pena o esforço dos seus ancestrais imigrantes. Talvez a perspectiva de viver com a mulher que não amava e um filho indesejado, num quarto qualquer do Maciel de Baixo, o deixasse apavorado e certo de que qualquer destino era melhor do que aquele.

Ou talvez não, talvez naquela manhã ele tenha olhado para o filho que dormia no berço improvisado, saciado pelos peitos flácidos da mulher que Luís Alberto nunca tinha amado, e decidido que nada daquilo valia a pena; e a angústia que tornava pesado o seu viver desapareceria quando ele estivesse voando livre sobre a Ladeira da Montanha.

Talvez alguém tivesse descoberto que Luís Alberto gostava de rapazes, e pedia dinheiro para não contar para os seus pais; e ao fechar a loja na véspera daquele dia 29 — uma das tantas na rua Chile, então ainda resistindo galhardamente à decadência trazida pelo shopping da qual jamais se recuperaria — Luís Alberto não foi para casa como fazia todos os dias, vagou pelo centro onde as putas substituíam os comerciários como ele, foi para o Pax procurar um último rapaz, e esperou o sol nascer para encontrar o seu destino e se ver livre de sua dor.

O endereço à rua Dionísio Cerqueira, 9 torna improvável um dos meu cenários favoritos, o do rapaz que naquela manhã beijou pela última vez o seu filho bebê que dormia numa esteira, entre ele e sua mulher, num quarto de um cortiço qualquer na Visconde de Ouro Preto, e foi andando até o elevador Lacerda com a certeza de que a vida de todos estaria melhor sem ele.

Seja qual for a razão, quando se suicidou Luís Alberto não mereceu mais que uma matéria no alto da página 14 d’A Tarde, página par. Sua morte foi talvez um pouco menos insignificante do que sua vida. Sua grande proeza, no fim das contas, sua única reivindicação à imortalidade foi ter sido o primeiro suicida a se espatifar contra a marquise do Elevador Lacerda naquele ano da graça de 1979, Ano Internacional da Infância, ano da queda do Skylab — lembranças que, assim como Luís Alberto, se espatifaram no esquecimento.

Gourmet

A única coisa mais chata que essa nova subcultura “gourmet” é reclamar dela, admito.

Mas eu não tenho problemas em ser chato, e é quase impossível controlar minha profunda antipatia a essa moda, quase tão irritante quanto ver alguém chamar um gato ou cachorro de “serumaninho” ou “filhinho”. Uma porra de um gato.

Cresci achando que “gourmet” era substantivo. Transformá-lo em adjetivo, tascar um “gourmet” depois de qualquer palavra — “hambúrguer gourmet”, “self-service gourmet”, “podrão da esquina gourmet” — é, para mim, apenas garantia de comida pretensiosa com ágio excessivo, nada mais que isso. Ninguém jamais viu um “El Bulli Gourmet”, ou um “Ducasse Gourmet”. Eu poderia encerrar meus argumentos aí. E encerro, porque o que vem a seguir é basicamente a eterna arenga de um velho cansado da estupidez que tem virado a norma nos dias de hoje.

Essa coisa de gourmet é, em essência, contraditória: é profundamente antidemocrática, mas é também resultado de uma certa democratização. A princípio, me parece a convergência de dois fatores curiosos. Um é a proliferação dos cursos superiores de gastronomia, que fez com que um bocado de gente sem talento real para a coisa, como sói acontecer em qualquer profissão (e eu sou a prova viva disso), precise ganhar a vida de maneira digna, que pelo menos pague os dinheiros gastos nos anos de curso — embora, sem querer desmerecer ninguém, mas pouco me lixando se desmereço, me pareça desaforo alguém passar anos estudando técnicas gastronômicas para depois ganhar a vida como pouco mais que chapeiro de luxo. O outro, e certamente o mais importante, é a necessidade de uma sociedade perdida no labirinto de um interminável fin de siécle, cujo hedonismo crescente nunca deixa de me espantar, de se diferenciar individualmente através do que tem ou daquilo a que aspira ter. Comer todo mundo come; mas só uns poucos comem diferente, porque podem pagar mais por isso — e esse pagar é a garantia de superioridade da bobagem que estão comendo, da “experiência”.

Obviamente não posso fazer nada quanto a esse estado de coisas. É inútil e uma implicância extremamente pessoal. Junto minha antipatia às idiossincrasias daqueles que não gostam de, sei lá, Beatles ou suco de mangaba: reclamar é ainda mais chato, e no fundo não interessa a ninguém, ou pelo menos não interessava antes que virasse moda doirar a própria vida medíocre no Facebook ou no Instagram: o idílio com o marido que trai você, a viagem cuja foto no Instagram esconde a bolsinha da CVC, o filho horroroso que você diz ser lindo (você quer acreditar nos comentários, uma sucessão de lindo lindo lindo, sem maiúsculas nem pontos; saiba que eles estão mentindo) — tudo isso está umbilicalmente ligado a essa coisa de gourmetização.

O que posso fazer é me recusar, por princípio, a fazer algumas coisas.

Eu não como hambúrguer gourmet, ponto. Não como porque a ideia de hambúrguer gourmet é um contrassenso para mim, uma confissão abjeta do fracasso de uma civilização em processo acelerado de decadência. O hambúrguer foi inventado para tornar mais palatável e macia uma carne dura mas saborosa, e é coisa para ser combinada de maneira rápida e simples; na prática isso é, ou deveria ser, antitético à ideia de comer realmente bem, que pressupõe uma elaboração e riqueza de sabores impossível de ser alcançada por aquela mistura simples de pão, carne e otras cositas más em uma mordida só.

É uma razão diferente da que me faz não comer macarrão na rua — eu faço melhor, quase sempre —, e diferente também daquela que me faz olhar com reservas esse pessoal que tenta reinventar a comida do cotidiano, aquela comida entrincheirada na cultura e tradição de um povo e feita de maneira simples, quase automática, por quem não precisa sobrevalorizar o que faz com aquela conversa intragável e canalha de que “cozinhar é um ato de amor”. Por exemplo, há poucas coisas mais gostosas que sarapatel, do jeito que é feito. Inventar sobre isso é chover no molhado, e o resultado por ser justamente o contrário do que se pretendia.

Claro que em tese — embora eu duvide muito— seria possível fazer isso, reduzir o sarapatel à sua eventual essência (para entender melhor o que quero dizer, é só lembrar da ratatouille servida ao crítico gastronômico no desenho homônimo). Mas para isso é preciso um talento que as pessoas, em sua virtualmente absoluta totalidade, não têm. O resultado é garam masala na rabada.

Eu já vi hambúrguer de filé mignon, e custei a acreditar no que via. Porque o filé não é, nem de longe, a carne mais saborosa de um pobre boi. É a mais macia, apenas, e por isso os franceses inventaram tantos molhos para acompanhá-la. Um hambúrguer de filé mignon é uma confissão de estupidez como poucas outras no mundo culinário. Maior só a daquele infeliz que colocou pó de ouro em seus pratos, um sujeito que certamente merece os mais dantescos castigos que o inferno pode oferecer.

Da mesma forma, acho tão estranho essa mania de “degustar” cerveja cara. O sujeito compra uma cerveja de 50 reais, 300 ml apenas. Não. Está errado. Que me desculpem os aficcionados, mas isso é um desrespeito à cerveja, à sua história e à sua finalidade.

Cerveja é bebida de quantidade. É bebida social, feita para beber em grupo, em grandes quantidades. Você fica bêbado com uma cerveja? Se não, não vale a pena empurrar 60 reais numa cerveja artesanal feita por monges trapistas em Connard de Poche-Pleine, só porque é a última explosão da moda. Se vai me dizer que bebe apenas pelo gosto — por favor, respeite os seus próprios anos de esforço para passar a gostar daquela bebida amarga porque não queria se sentir socialmente deslocado. Mais degradante que isso, só cerveja sem álcool.

Mas a cultura gourmet faz você sentir que precisa comprar coisas caras, singulares — mesmo que você precise fingir não perceber o paradoxo da singularidade na cultura de massa. Mais que isso, é a disposição em ser roubado que me incomoda. Tem pouca coisa como uma Guinness tirada na hora, ou uma Urquell preparando o seu apetite para seu joelho de porco que vem chegando. Não porque são boas, apenas, mas também porque são baratas em seus respectivos buracos. E no entanto as pessoas se esforçam para mostrar que estão bebendo uma cerveja cara. Estão se esforçando para serem otários.

Acontece algo semelhante com o vinho. Eu gosto muito de vinho. Muito, mesmo. Bebo mais que a média brasileira, o que não é grande coisa: no Brasil se bebe dois litros de vinho por cabeça ao ano, enquanto os padres do Vaticano bebem mais de 54 — embora não se saiba quanto disso é destinado a embebedar garotinhos inocentes. O desnível é muito maior porque a lista brasileira provavelmente inclui clássicos imorredouros como Dom Bosco, Canção e Sangue de Boi; se se restringir a vinhos minimamente decentes deve dar menos de uma garrafa por pessoa, e posso apostar que o grande campeão é aquele Reservado Concha y Toro — contra o qual, a propósito, eu não tenho nada. Só para comparar, cada brasileiro bebe 82 litros de cerveja por ano.

Eu bebia mais que os padres do Vaticano, e olha que nem gosto de menininhos. E sei que com 50 reais você compra uma garrafa de um vinho honesto, e com uns 100 compra um bem decente, naqueles dias em que você se sente muito rico. É o bastante para mim. Ainda é caro, e pode ser ainda mais — aqui você compra por 800 reais um bom Brunello di Montalcino que sai lá fora por uns 50 euros —, mas é o mercado, fazer o quê. No limite, não nego que se tivesse dinheiro eu seria capaz, uma vez na vida, de derramar 4 mil euros num Chateau Pétrus — se 4 mil euros equivalessem a uns 200 reais para mim —, apenas para saber por que é tão caro. Mas jamais, jamais, jamais jogaria fora 20 mil euros para comprar um Romanée-Conti, porque não acredito que alguém tenha papilas suficiente no diacho da boca para sentir a diferença desses 15 mil tostões. A cultura gourmet, no entanto, é a eterna busca pelo Romanée-Conti, e cada um vai se contentando com o mais próximo a que pode chegar dele, uma proximidade medida em reais.

É isso que essa conversa de “gourmet” significa para mim. É apenas um desvirtuamento do que significa prazer, comer e beber bem. Comida tem apenas duas funções reais: encher a barriga e, se possível, dar algum prazer sensorial. Vinho também, com o prazer sensorial tomando a dianteira. Mas a cultura gourmet os eleva acima disso, e por isso, para esse pessoal, qualquer chianti de 400 reais é por definição melhor que um portuga de 60, não interessa quais sejam.

É isso. Agora que as definições mudaram, que gourmet deixou de ser um sujeito que gosta de comer bem e variadamente, a palavra para mim passou a definir algo diferente: aquele sujeito mais interessado em espalhar aos quatro ventos que dormiu com uma mulher do que em fazer safadeza com ela.

Ser turista em Salvador

De vez em quando dá umas vontades esquisitas, e dia desses deu uma mais esquisita ainda, a de ser turista na Bahia. De pegar um grupo de gente e sair me oferecendo a todo vendedor de souvenirs e badulaques e informações meia-boca, donzela fácil para os tantos e tantos cafetões da baianidade.

O mais perto que cheguei disso foi há muito tempo. Adolescente, passava pelo Pelourinho e via os grupos de turistas ouvindo atentamente um guia repetindo as informações que tinha decorado. Então eu parava por perto, como quem não quer nada, e ouvia o que eles tinham a dizer. “Aqui era a Faculdade de Medicina”, essas coisas, apontando as estátuas daquele prédio bonito que minha avó tinha me dito ser apenas o Nina Rodrigues.

Engraçado que nunca vi esses grupos na Avenida Sete, nunca vi ninguém dizendo àquela gente branca avermelhada que a Igreja de São Pedro não ficava na Piedade, ficava no Relógio, e que a Igreja do Rosário teve quase toda a sua nave demolida mas ainda está lá, pequenininha e mutilada; tragédias que aconteceram na mesma época, quando as ruas do Rosário e de São Pedro deram lugar à avenida que deveria ter feito de Salvador uma cidade moderna, quase haussmaniana.

Mas não posso negar que aprendi com eles, e é por isso que tem horas que eu queria ser turista, para ouvir atento e embasbacado as informações básicas sobre uma cidade que, por mais que eu queira, nunca vou conhecer direito.

Não seria fácil. Há uns dois meses, vermelho-turista porque depois de quase 40 anos me abandonei novamente ao sol e à água morna de uma piscininha de pedras no Farol de Itapuã, diante da revoada de vendedores que se aproximavam de mim, adestrados para reconhecer em cada bobo avermelhado o seu ganha-pão, eu reagia instintivamente com irritação e enfado. “Eu sou baiano, rapaz”, frase mágica de eficiência taylorista; mas isso me parecia tão mentiroso, porque faz tempo que deixei de ser baiano.

O que importa é que o negócio funcionava e eles me deixavam em paz, porque não há tempo a perder nesse negócio de engrupir turista.

Mas há algumas semanas parei para olhar a dança de turistas e gaviões, e percebi que há algo ali que eu nunca pude saber o que é, a disposição para entrar naquela zona cinzenta, crepuscular, onde a diferença entre ser servido e ser esfolado quase não pode ser percebida. Foi do que senti falta, porque há nisso uma certa inocência, uma certa joie de vivre e um certo abandono tipo deixe-a-vida-me-levar que a minha empáfia arrogante não me deixa sentir.

Foi logo depois da festa de Santa Bárbara, o palco ainda estava montado no largo do Pelourinho. Parei para acender um cigarro e olhar para o vaivém das pessoas, encostado num umbral de porta como um malandro de Jorge Amado. Um grupo — ou vários, eu não sei — se deslumbrava diante da atenção obsequiosa e simpática daqueles baianos tão gentis. Pintando o corpo com uma tinta branca, fazendo tererê no cabelo, garantindo o pão de cada dia a partir da vontade dos turistas de se sentirem baianos e gastar um dinheiro que não gastariam em suas próprias cidades, eles se desdobravam para conquistar a sua simpatia gringa, sabedores atávicos da verdade que na cidade de Tomé de Souza simpatia é quase amor — ah, Sheslayne, você sabe disso —, e amor é dinheiro no bolso.

Na verdade eu olhava mesmo era as gringas branquinhas, esperando sua vez de serem pintadas como a Timbalada e depenadas como Barnabé teria sido. Devem ter aprendido, naquele filme em que o Lázaro Ramos pinta os peitos belos daquela moça, que para entrar no espírito das mais verdadeiras tradições da Bahia é preciso pintar o couro de branco, era assim que os baianos se vestiam quando iam comprar pão na padaria da esquina: pintavam os braços e as pernas e a cara como um aborígene australiano e saíam rebolando a dança da galinha, “Moça, me dá uma vara de milho”.

Uma mulher no final da casa dos 30 olhava a carteira semiaberta e respondia indignada a um sujeito: “Mais vinte? Mas eu não tenho mais dinheiro!”, e eu pensando que essa vítima já tinha pago caro por algo que não valia nada ou muito pouco, mas era esperta a ponto de entender o seu próprio limite. Nessa hora minha vontade de ser turista na cidade da Bahia arrefeceu um pouco, e lembrei das razões pelas quais nunca quis ser.

Mas então eu o vi.

Era um arremedo de pai de santo — ou, se o leitor tiver o coração pleno da generosidade que falta a este pobre ex-baiano, uma versão estilizada e alegórica —, o sujeito vestido de branco-presepeiro e um turbante que talvez fosse uma versão Goya Lopes do velho pano da costa, empunhando um punhado de galhos de arruda e um vidrinho de água de cheiro, tudo isso abrilhantado por óculos escuros aparentemente herdados de Elton John. Pai de santo “for English to see”, dava passes e, quem sabe, dizia alguma coisa que talvez soasse como iorubá — ou punjabi, ou suaíli, ou língua do P, tanto faz, ninguém ia entender mesmo.

Comentei com minha mãe que ia passar perto dele, esperar ele me abordar e responder algo que, pelo menos a mim, faria rir. Mas eu vacilei, e por alguma razão ele não veio atrás de mim, foi atrás da senhora minha mãe.

Que, mãe amorosa e desvelada que é, jamais deixaria o seu filho dileto na mão. Ela olhou com simpatia e comiseração pia para ele e respondeu o que eu ia responder:

“Ô, meu filho, eu sou evangélica…”

Ele sorriu um sorriso amarelo e falso e saiu virando os olhos com uma profunda expressão de enfado, talvez pensando que “Esses filhos da puta desses crentes ainda vão me matar de fome.” E saiu em busca de outra presa a quem pudesse oferecer a chance de experimentar uma verdadeira experiência baiana, e ter os seus caminhos abertos ali, no meio do Pelourinho, com a garantia de dinheiro e de amor, a pessoa amada de volta em três dias, o corpo finalmente fechado para a inveja dos outros.

Ao contrário dele, continuei a subir o Pelourinho rindo. Infelizmente, com o esprit d’escalier que sempre fez a minha desgraça, foi só ali pelo Terreiro que percebi que tinha feito tudo errado, ou melhor, que não tinha feito tudo certo, tinha feito um trabalho incompleto. Porque eu — eu, minha mãe, tanto faz, você não leu “As Aventuras de Tibicuera”? — não devia ter dito apenas que que era crente. Devia ter olhado para ele, com o rosto bem sério, talvez estupefato, talvez os olhos arregalados com aquele brilho insano dos que viram a luz extática de Deus e se espantam diante dessas artes de Satanás, e então perguntar:

“O senhor teria alguns minutos para ouvir a palavra de Jesus Cristo? São só 20 reais, para ajudar a divulgar a obra do Senhor.”