Jesus

É fim de ano e a época em que proliferam textos sobre Jesus Cristo, de todos os tipos. El País publicou um artigo de Juan Arias sobre o Jesus histórico, meu “abominável homem das neves” preferido.

É um texto razoável, embora não muito elaborado, e eu assinaria embaixo de muito do que ele escreve. Mas também tem algo que me deixa incomodado. E não é ele dizer repetidas vezes que, para a Igreja, Jesus nasceu no dia 24 de dezembro.

De modo geral, o que realmente me incomoda nessas avaliações são as convicções absolutas, e Arias é pródigo nelas.

Para mim, a única certeza justificável em se tratando de Jesus é a dos crentes, que veem nos Evangelhos a verdade absoluta. Não deveria ser a de nenhum historiador. A maneira mais sensata de enfrentar a questão do Jesus histórico é, em primeiro lugar, dando-lhe a devida importância: é um assunto fascinante, que interessa muito a mim e a muita gente, mas é irrelevante. Fosse quem fosse Jesus, o que realmente importa é o que Seus seguidores — principalmente Paulo de Tarso — fizeram d’Ele.

Em segundo lugar, é preciso usar uma combinação de bom senso e respeito histórico. A humanidade não mudou tanto de lá para cá: mudaram os costumes, mudaram as circunstâncias, mas a essência humana continua a mesma. É a mesma desde Homero, aliás, e certamente desde muito antes. Por outro lado, os padrões éticos e mesmo parte dos lógicos que utilizamos hoje foram definidos pelo cristianismo; não apenas em concílios e conclaves, mas principalmente no dia a dia, na tentativa abnegada e bem-intencionada de aplicação de seus preceitos à vida cotidiana. É preciso abdicar deles, tentar entender a lógica do seu tempo, mas também não custa muito entender que há um limite para as diferenças. O cristianismo não apenas modificou o mundo, mas se adaptou a ele; e não foi à toa que escolheu o 25 de dezembro, dia do Sol Invictus e solstício de inverno celebrado pelos romanos, como data do nascimento do Senhor, além de modificar a própria natureza do messias aguardado pelos judeus, na base do “não foi bem isso eu queria dizer”.

Para historiadores, devido à total ausência de registros fora da literatura canônica e apócrifa, e levando em conta a força da tradição oral que os precedeu na criação e transformação da narrativa que se tornaria prevalente, absolutamente nada deveria ser tomado por certo. Nem mesmo a existência de Jesus. Eu acho improvável que Ele não tenha existido, ou que não tenha sido crucificado — o que mais podia fazer as pessoas pegarem um símbolo de humilhação como a cruz e fazer dele um ideal de vida, mais ou menos como gays americanos assumiram uma denominação derrogatória como queer e seguiram em frente com ela? —, assim como acho improvável que Ele fosse exatamente como dizem as Escrituras; mas uma coisa é achar, outra é jogar essa certeza nas fuças alheias, dizendo cabalmente que “nada mais falso”, ou “Na verdade, aos 30 anos Jesus se mostra capaz de discutir com os doutores da lei, conhecia os textos sagrados do judaísmo, várias culturas como a grega ou a dos gnósticos, e outras religiões como o budismo”.

A partir da primeira vírgula desse último trecho, sinto discordar, é tudo ilação. Arias diz que Jesus conhecia bem a cultura grega. Baseado em quê? Meu conhecimento dos Evangelhos é pífio, e talvez por isso não lembre de nenhuma referência do De Cujus a Ésquilo, Aristófanes ou Aristóteles. Se Arias supõe todo esse conhecimento a partir dos raciocínios de Jesus expostos naqueles versículos, ou mesmo em outros textos apócrifos, não apenas subestima a cultura hebraica e inconscientemente tenta impor um eurocentrismo que anda meio fora de moda, mas ignora as contribuições dadas seguidamente por milhares de seguidores ao recontar Sua história. Quanto às discussões com os doutores da lei, Arias comete o erro gravíssimo de tomar os Evangelhos como verdade histórica sem questioná-los.

Um dos eventos que mais me fascinam nos Evangelhos, e que me faz duvidar em princípio de cada fato narrado neles que não tenha sido comprovado historicamente, é o massacre dos recém-nascidos promovido por Herodes. Ele só existe nas Escrituras e nenhum historiador respeitado acredita que tenha possivelmente ocorrido. E no entanto, em apenas algumas décadas milhões de pessoas acreditavam piamente que Herodes tinha passado os bebezinhos no fio da espada. Isso mostra a força dos Evangelhos, sua capacidade de criar pós-verdades, mostra um pouco da lógica por trás do raciocínio que levou milhares de gentios, todos os anos, a se converterem. Por si só já seria um recado importante para historiadores.

É por isso que não sei se dá para negar com absoluta certeza que Jesus era analfabeto, como faz Arias. Todo o ministério de Jesus foi feito de maneira precária, sem recorrer à escrita, como provavelmente era a regra naquele tempo e naquele lugar. É mais lógico supor que Ele fosse analfabeto, mesmo. Mas há espaço para discussão.

Por um lado, não é absurdo acreditar que Ele tinha um domínio teológico acima da média, o suficiente para garantir o respeito de Seus seguidores (embora o público não fosse lá dos mais exigentes), e isso em tese pressupõe um nível de estudo difícil de ser conseguido apenas por via oral — embora eu ache que isso seja perfeitamente possível, ainda mais naqueles tempos; é só imaginar a dimensão do conhecimento revolucionário criado a partir dos diálogos com Sócrates, posto no papel muito tempo depois.

Ao mesmo tempo não há nenhuma referência a algum escrito d’Ele, e isso é incômodo.

É improvável que um evangelizador alfabetizado e com a posição e as responsabilidades sociais de Jesus dentro do seu círculo não tivesse escrito cartas, como Paulo faria algumas décadas depois, ou deixasse algum documento escrito. Eram uma ferramenta importante para a realização da sua missão, e às vezes até mesmo uma providência necessária e corriqueira. Imagine-se um seguidor de Jesus que tem uma carta de próprio punho do Senhor em suas mãos. Você certamente a guardaria com sua vida, como guardaram as epístolas de Paulo. É claro que nenhum documento semelhante precisaria ter sobrevivido, porque aqueles tempos não eram exatamente um passeio nos campos elísios; no entanto, forçosamente haveria alguma referência a ele, em algum lugar, mesmo que num apócrifo, da mesma forma que as palavras de Sócrates sobreviveram através de Platão e Xenofonte. Inventaram uma infância para Jesus, uma filiação divina, um parentesco com o que provavelmente era o mais importante pregador de seu tempo, João Batista, e até mesmo um milagre bem batuta de transformar água em vinho — mas não inventaram uma carta escrita por Ele, e isso é significativo.

Também acho que não há por que afirmar que Jesus era casado só porque, a princípio, todo judeu era casado. Independentemente do fato de sempre existirem exceções, a vida de pregador errante escolhida pelo filho de José (“Meu uma ova!”, grita José) tornava o casamento uma escolha muito difícil, até improvável. Os apóstolos não eram casados (aliás, se não me engano Pedro era, mas disse à patroa que ia comprar mirra e nunca mais voltou). É possível que estivessem seguindo o exemplo de Jesus, ou simplesmente se virando dentro do que era possível, como Ele fez. Não havia uma conversa de abandonar tudo e seguir Seus passos? E a vida difícil que escolheram em nome de sua fé não era exatamente de encher os olhos de pais em busca de um marido para suas filhas.

Além disso, me irrita profundamente a certeza de que Ele era casado com Madalena. Se eu não soubesse que a tese era anterior, diria que quem afirma isso levou “O Código da Vinci” a sério demais. Aqui parece haver a contaminação de uma hipótese histórica pelas convicções de outra era. Assim, Jesus não apenas devia ser casado, mas (numa variação matrimonial e feminista da santidade de Maria) ela era uma senhora douta e importante e houve uma campanha posterior para denegri-la, movida pela conhecida misoginia da Igreja.

Por favor, das duas, uma: ou a gente adequa a vida singular de Jesus aos padrões de Sua época, e Ele então seria casado, mas muito provavelmente com uma mulher comum, que ficava cuidando da casa e lamentando o maluco com quem tinha juntado os trapos, ou O transforma em um revolucionário dos costumes, e então Ele tanto poderia ser casado com uma mulher à frente do seu tempo quanto ser solteiro. É um silogismo estranho: Arias afirma que Jesus apareceu primeiro para Madalena porque era casado com ela, mas esse casamento é inferido porque Ele apareceu primeiro a ela.

É importante lembrar também que o cristianismo paulino que se tornou hegemônico era apenas um entre tantos cristianismos. Isso está bem representado nesse trecho de Arias:

Foi sempre esse fato a grande dor de cabeça de Tomás de Aquino, doutor da Igreja, que faleceu sem entender por que Jesus não apareceu em primeiro lugar para Pedro, que era o chefe do grupo de apóstolos, e sim para uma mulher.

É aí que está a questão. Isso era dor de cabeça para Tomás de Aquino porque ele raciocinava necessariamente dentro da lógica cristã definida pela narrativa oficial.

Para começar, ele parte da certeza de que a ressurreição aconteceu, que não foi uma possível combinação de alucinações individuais, em um momento de choque e dor, e invenções malandras posteriores. Tudo bem. Além disso, desconfio que a ideia de Pedro como “pedra fundamental” da Igreja por indicação de Jesus é uma construção posterior, consolidada paralelamente ao cristianismo paulino a partir do fortalecimento da posição política de Pedro, e tão imaginária quanto o galo que cantou três vezes. Mas abstraia tudo isso, fuja da narração canônica, e tudo pode se encaixar. Jesus apareceu primeiro a Madalena como poderia ter aparecido para Tadeu ou para o bodegueiro da esquina, por um lado. Por outro, não seria cinismo demais supor que a narrativa é verdadeira e Madalena apenas teve uma alucinação primeiro. Obviamente, o importante aqui não é a ressurreição em si, mas a lógica que levou a pessoa que escreveu isso pela primeira vez a criar essa situação específica.

Madalena é o resultado da nossa evolução social. As conquistas feministas levam algumas pessoas, mais radicais e chegadas num revisionismo, a exigirem um lugar para a mulher numa história que sempre foi eminentemente masculina, nem que para isso que seja preciso reescrever a história; são os Kruschevs do Senhor. Ao mesmo tempo, há algo de arraigadamente machista nessa certeza: costumes da época só são válidos se interessam à nossa tese.

Eu consigo imaginar um cenário muito simples para os anos que se sucederam à crucifixão de Jesus, e ele ajuda a explicar o problema de Madalena.

Jesus morre e o seu círculo de seguidores — que pode incluir seu irmão Tiago, sua mãe Maria e sua mulher Madalena — tenta dar prosseguimento ao seu trabalho. É um círculo pequeno, conservador. Eles operam dentro dos limites do judaísmo, e seu sucesso é, na melhor das hipóteses, moderado. Eles estão felizes com o seu pequeno status quo, com o respeito que aquele pequeno grupo lhes presta, com a certeza de que estão honrando a memória e fazendo a vontade de um homem amado e respeitado, e como um bônus de Natal estão construindo o seu caminho para se dar bem no Juízo Final. Mesmo dentro desse pequeno círculo a mensagem cresce, sai de controle, as pessoas que a repetem fazem seus próprios acréscimos, ajudam a criar a lenda de Jesus não mais um homem santo, mas um deus.

E então chega um sujeito de fora, sem compromisso com esse legado. Ele se chama Saulo de Tarso, não conheceu Jesus, e a imagem que faz dele é principalmente uma recriação. Saulo não é apenas judeu, mas é romano também. E o choque de concepções que se segue, assim como a disputa por poder, é vencido pela concepção paulina, cosmopolita e evangelizadora.

Mesmo dentro desse panorama, enxovalhar a reputação de uma veneranda Madalena que tinha dividido a cama e a pregação com Jesus cada vez mais Cristo seria impossível, pelas reações que geraria.

Mas nada disso importa, na verdade. O Jesus histórico não existe, nunca existiu. O verdadeiro Jesus era filho de Deus, nasceu em Belém, foi visitado por três reis magos, aos 13 anos impressionava os doutores do templo com Sua sabedoria, e aos 30 levantava os mortos e foi crucificado mas ressuscitou no Domingo de Páscoa. Foi esse Jesus que, nos últimos 1700 anos, escreveu a história do Ocidente e ajudou a definir os rumos do mundo. O resto é lenda.

O Natal de 1980

No Natal de 1980 eu não ia ganhar nenhum presente.

Minha mãe nos avisou. A coisa está complicada, ela me disse. Não vai dar para comprar presentes para vocês. Eu entendi. Eram cinco filhos, e pelo visto daquela vez não seria possível dar presentes. Tudo bem.

Eu sempre tinha recebido presentes interessantes no Natal. A verdade é que estava acostumado a ganhar o tipo de presente, em qualquer momento do ano, que outras famílias só trocavam no Natal, no máximo no Dia das Crianças e em aniversários. E por isso, o Natal era reservado para presentes bem mais caros, aqueles que você passava o ano desejando.

Devia ser uma seis da tarde, um pouco mais que isso, quando minha mãe chegou afobada em casa, carregando um saco grande de plástico, desses usados para colocar lixo. Dentro dele uma porção de brinquedos. Eram todos brinquedos muito baratos, o tipo que não costumávamos ganhar, ainda menos em datas especiais. Porque Natal, aniversário, Dia das Crianças, todos esses dias mereciam presentes mais caros, mamãe fazia o possível para nos dar o que pedíamos.

O meu foi uma lancha de plástico amarela. Não uma lancha chique, com motor ou plástico de qualidade ou cheia de detalhes: uma lancha simples, sem absolutamente nada, plástico e uns adesivos de papel, apenas. O tipo de presente que se compraria mais tarde em lojas de 1,99, em dollar stores.

Foi o presente mais vagabundo que eu ganhei em qualquer Natal. Foi o melhor presente que eu ganhei em qualquer Natal. Aquilo tornou aquele Natal pungente, doce, inesquecível. Ainda que não tivéssemos tantas provas da sua dedicação a todos nós, naquele momento nós saberíamos.

Por uma dessas estranhezas da vida, não lembro bem dos presentes que ganhei ao longo daqueles anos. Lembro mais dos que não ganhei: o Panzer, o Stratus, o Ar-Tur, porque minha mãe não gostava de brinquedos desse tipo, controlados por controle remoto. Mas sei que no Natal de 1980 eu ganhei uma lancha de plástico amarelo.

Antes e depois ganhei presentes muito mais caros. Nunca mais ganharia de Natal um presente tão simples, tão barato, tão vagabundo. Mas também nunca mais ganharia um presente tão maravilhoso, tão carregado de amor e esforço quanto aquela lancha de plástico amarelo.

Aqueles presentes tiveram um significado muito maior que qualquer outro depois. Porque percebi imediatamente que era o resultado de um esforço grande. Aquilo era tudo o que ela podia nos dar; talvez fosse até mais do que era possível. Estávamos todos conformados com o fato de não ganhar presentes; e mesmo assim ela fez um esforço grande para evitar que seus filhos não ganhassem nada. Aqueles presentes foram uma surpresa. Eu sabia que os tempos eram difíceis.

Mais tarde, depois da ceia, assisti a uma adaptação de “Romeu e Julieta” na TV Aratu, estrelada por Fábio Júnior e Lucélia Santos. Jamais esqueceria da cena em que Romeu, num porão pedregoso de uma igreja, acreditando que sua Julieta tinha morrido, se oferece a um escorpião: “Vem, bicho nojento.” Quase quatro décadas depois pude rever essa cena no YouTube, e me impressiona ver como eu lembrava perfeitamente dela.

Esse é o Natal de 1980: Shakespeare e uma lancha de plástico amarelo. É também a salada de frutas na mesma bandeja inox que um ano antes, em tempos de fartura absoluta, em tempos de seis empregados em casa, tinha presenciado um Natal tão farto, mas do qual não lembro que presente ganhei.

Vieram outros presentes depois. De alguns ainda lembro, a maioria se perdeu na minha memória. Depois disso, uns poucos Natais permanecem: o primeiro Natal da minha filha, o Natal em que passei doente. Mas em nenhum deles minha mãe chegou com um saco plástico, trazendo dentro dele o melhor presente que eu recebi em minha vida.

Dia desses, uma moça encontrou minha irmã e falou da gratidão que sente em relação à minha mãe: ela era doméstica num apartamento vizinho, ficou doente, e mamãe a colocou lá em casa e garantiu que ela melhorasse. Eu não lembro disso, e minha mãe também não. Mas essa moça lembra, e isso é o bastante. Do que lembro é do Natal em que ganhei uma lancha de plástico amarelo, e decidi que aquele era o melhor presente que eu ganhei em toda a minha vida. Porque tem gente que é filho de gente boa, e tem gente que é filho de gigantes. Eu tenho essa sorte.

Get Back and Let it Be

Eu já escrevi sobre isso aqui, em mais de um momento, mas não custa escrever de novo.

Basicamente, o filme Let it Be pode ser visto como a crônica de uma banda superando suas dificuldades através da força redentora da música.

A primeira parte do filme foi filmada nos estúdios Twickenham, em Londres, a partir de 2 de janeiro de 1969. Frio de assustar pinguim num espaço enorme e vazio com um bocado de gente estranha em volta: fazer música assim, principalmente sem se darem o tempo necessário para superar as sessões conturbadas do “Álbum Branco”, era impossível, como apontou George Harrison. O resultado é um clima estranho, hostil até. Vemos uma banda que está claramente se desintegrando, em que a intolerância mútua não para de aumentar. A presença tóxica de Yoko Ono não ajuda em nada; o vício de John Lennon em heroína, tampouco. Paul McCartney tenta fazer a banda funcionar tomando a frente, o que para os outros soa apenas como uma tentativa de controlá-los e fazer deles sua banda de apoio, uma impressão que talvez não fosse totalmente disparatada.

Quando Harrison finalmente saiu da banda, depois de uma discussão com Lennon, uma de suas condições para voltar era a de que saíssem de Twickenham e fossem para o estúdio da Apple. O estúdio montado por um picareta chamado Alexis Mardas não valia nada, mas ali era sua casa — mais que isso, era um estúdio de gravação, o seu ambiente natural. Foi a decisão mais acertada que poderiam tomar. Os ânimos melhoraram instantaneamente, e certamente para isso contribuiu também a presença de Billy Preston, obrigando-os a se comportar com civilidade. Essa melhora é facilmente perceptível no filme, mas também nas gravações não incluídas no produto final.

Finalmente vem o concerto no telhado da Apple, no penúltimo dia de gravação. Foi outra das condições de Harrison, que não queria fazer o grande show ao vivo que McCartney propôs (pensaram até em Pompéia, antecipando o Pink Floyd em alguns anos). Apesar do frio desolador, a intimidade entre os quatro, o entrosamento musical único, a cumplicidade histórica entre Lennon e McCartney e, paradoxalmente, as semanas desgraçadas que passaram ensaiando fazem daqueles poucos minutos quase um revival da velha banda que havia conquistado e ajudado a mudar o mundo. Naquele momento não existem os problemas financeiros, as diferenças de visão artística e musical, a queda de braço entre McCartney e os Eastman e os outros Beatles ao lado de Allen Klein. O que existe é a música, exatamente o que fez deles a maior, a melhor e a mais influente banda de toda a história.

Se s Beatles tivessem continuado, o Let it Be seria visto assim: a história de uma banda em crise que graças à música supera os seus problemas; essa é a sua estrutura básica. Mas não foi bem isso que aconteceu, e o resultado é um filme que, sendo lançado com um ano de atraso, um mês após o anúncio da separação, soa unicamente como um epitáfio, um pós-escrito, e não dos melhores. Não é mais o crescendo musical e pessoal, a apoteose alegre, os olhares cúmplices entre Lennon e McCartney que sobressaem: é a irritação, a má vontade, o descaso, é Harrison dizendo que tocará como McCartney quer, ou não tocará se ele preferir assim.

Mas não é só isso. O fato é que, além do interesse histórico e musical, o Let it Be é um filme muito ruim.

Eu assisti a ele — ou melhor, vi que estava passando na televisão e aturei alguns momentos — no dia 14 de dezembro de 1980, quando a TV Aratu o exibiu numa tarde quente de domingo, certamente motivada pelo assassinato de Lennon uma semana antes. O pouco que lembro consegue evocar apenas uma palavra em mim: tortura. Mas tarde, já fã da banda, assisti várias e várias vezes. Continuo achando muito, muito ruim.

Os Beatles cometeram um erro gravíssimo ao entregar uma tarefa que se revelaria hercúlea a Michael Lindsay-Hogg. Verdade seja dita, seria muito difícil para qualquer um ter que lidar com uma banda em crise mas perfeitamente consciente do seu tamanho e do seu poder, e certamente com um profundo senso de unidade quando confrontada com qualquer pessoa de fora — o que incluía Brian Epstein e George Martin. Mas além de tudo isso, ele não tinha a experiência necessária, e provavelmente nem o talento.

Lindsay-Hogg não soube editar um filme que fosse coerente e inteligente. Ele parece ter tentado costurar uma narrativa linear, mas realmente não sabia o que estava fazendo. O resultado é abaixo do medíocre. Há uma infinidade de conversas registradas que fariam do filme algo surpreendente, sólido, valioso (recomendo uma visita ao A Moral To This Song, que faz um trabalho belíssimo transcrevendo esses diálogos); mesmo obedecendo aos limites estabelecidos pela banda seria possível fazer um grande filme — se ele soubesse como fazer.

Let it Be já foi restaurado digitalmente há muito tempo, mas os Beatles sempre relutaram em relançá-lo. O filme conseguiu a proeza de desagradar a todos, e ainda hoje deve ser um dos pontos de conflito entre os remanescentes e os herdeiros dos já defuntos. Mas o tempo passa, o dinheiro da venda de discos que possibilitou a George Harrison e John Lennon viverem nababescamente sem fazer nada não existe mais, e o Let it Be pode descolar alguns caraminguás tão necessários nestes tempos difíceis.

A oportunidade virá em 2020, quando ele completará 50 anos. No entanto, eu já disse aqui e repito: eu jamais relançaria o Let it Be. Em vez disso, entregaria as 90 horas de material bruto para Martin Scorsese e deixaria que ele fizesse um novo filme, como quisesse, utilizando o que se sabe ser uma experiência e talento muito, muito superiores aos de Lindsay-Hogg e com o benefício de meio século de distância. Acho que ele faria isso até de graça.

Eu daria ao resultado o título original do filme: Get Back.

Mas isso é impossível. Basta ver o que fizeram com Eight Days a Week, dois anos atrás: entregaram o trabalho a um diretor medíocre como Ron Howard, porque eles já consolidaram a sua história e não querem alterá-la, e precisam apenas de um artesão obediente que organize uma narrativa de acordo com as versões que querem deixar para a posteridade.

***

Musicalmente o cenário é melhor, com mais possibilidades, mas também com mais chances de dar tudo errado.

Agora que a Apple Corps. finalmente se rendeu ao modelo utilizado por McCartney há anos para continuar a vender material antigo — remixar um disco velho, incluir outtakes, demos e eventualmente canções inéditas, jogar no balaio livretos e souvenirs e vender tudo isso por dez vezes o preço de um disco comum —, dificilmente deixará de aproveitar as próximas oportunidades para reembalar seus cacarecos e vendê-los a fãs que comprariam qualquer coisa com a chancela dos Beatles. É desonesto: todo esse material é simplesmente inferior, que jamais deveria ver a luz do dia ou, ao menos, ser oficializado. Mas as pessoas querem ser enganadas, como prova Jair Bolsonaro.

Eu posso apostar que as primeiras gravações retiradas das sessões do Let it Be serão lançadas em agosto do ano que vem, numa eventual edição comemorativa do cinquentenário do Abbey Road. Podemos esperar uma nova mixagem, discos e mais discos de outtakes e etc. Várias dessas gravações serão retiradas das sessões de janeiro de 69, quando boa parte delas foi ensaiada. Há cerca de 90 horas de gravações do Let it Be — que, para quem tem pressa e paciência, podem ser encontradas na internet, na série A-B Road, da Purple Chick.

Mas é em 2020 que virá chance de os Beatles finalmente resolverem as questões que envolvem o Let it Be e que estão mal resolvidas há meio século, Curiosamente, essa seria a única remixagem que eu gostaria de ouvir. Realmente não liguei para as do Sgt. Pepper’s e do “Álbum Branco” (as do “Álbum Branco”, por sinal, me pareceram ter retirado um pouco do som distinto do álbum, encaixando-melhor no padrão George Martin dos outros discos dos Beatles, o que não é bom), mas sempre achei o som do Let it Be estranho, abafado. Uma remixagem vai lhe fazer bem.

Mas a principal questão é: e o resto? Que vai haver uma edição comemorativa do Let it Be eu não tenho dúvidas. O problema é saber como ela vai ser, porque ela poderia ser realmente boa, rica, nova.

Eu tenho a minha ideia de uma edição comemorativa. Para começar, eu relançaria o Get Back, a segunda mixagem de Glyn Johns, com a capa original. (Falo “relançar” porque o álbum chegou a ser distribuído para algumas rádios, mas foi quase imediatamente recolhido.) No entanto, acho difícil. É mais fácil relançarem o livro que acompanhava a primeira prensagem do Let it Be, excluído logo depois porque encarecia muito o disco.

Em vez de incluir o amontoado de outtakes que costumam incluir, eles poderiam fazer um álbum apenas com gravações realmente inéditas da banda. Certo, duvido que eles lancem pequenas pérolas como Negro in Reserve, When You’re Drunk You Think of Me ou What’s the Use of Getting Sober, mas ali há material suficiente para encher três ou quatro discos com qualidade.

Mas tudo isso são apenas desejos. O histórico da Apple nesse sentido é muito ruim, e eles sempre passam a impressão de estarem sempre segurando material, para garantir que possam lançar algo “novo” daqui a alguns anos. A mim isso não importa mais. Quase todo esse material está na internet. Ninguém precisa mais da Apple. Let it be.

Mais um sobre Jerry Lewis

Assisti nos últimos dias a alguns filmes de Jerry Lewis. Fiz isso porque percebi que fazia mais tempo do que eu imaginava desde sua morte. Na minha cabeça ele tinha morrido há três, quatro meses. Tomei um susto quando vi que foi em agosto do ano passado. O tempo está passando rápido demais para mim, e isso é ruim, mas Jerry foi um dos meus ídolos de infância e agora me percebo um fã ingrato, indigno.

Acontece.

Na verdade, fazia alguns anos que eu não assistia a um filme dele, com exceção de “Max Rose”, de 2013. E fazia muito mais tempo que não assistia a algo que já tinha visto várias vezes, como “Bancando a Ama Seca” ou “Errado Pra Cachorro”.

Então no fim de semana assisti a “A Barbada do Biruta”, “Artistas e Modelos” e “Cinderelo Sem Sapato”. Amanhã assisto a “O Terror das Mulheres”.

“A Barbada do Biruta” eu peguei da metade para o final, em 82. Assistindo a ele sem prestar a atenção devida, concluí que era um filme ruim, talvez porque nos últimos tempos vinha vendo apenas suas obras ruins, como “3 em um Sofá” e, antes disso, “O Fofoqueiro” e “Um Biruta em Órbita”. Eu estava enganado: esse é um dos bons filmes de Martin & Lewis, típico dos seus primeiros tempos, com todos os vícios maravilhosos das apresentações da dupla.

“Artistas e Modelos”, que assisti há quase 40 anos, é outro bom filme, e embora eu não lembrasse de muita coisa, há cenas indeléveis que me acompanham há quase 40 anos, como Jerry pegando um bife na janela (na versão dublada, eu lembro, era filé), e Shirley MacLaine cantando Innamorata para ele.

“Cinderelo Sem Sapato” eu vi em 1999 ou 2000. Achei ruim na época. Mas depois vi críticas boas sobre o filme, a cena da dança na escadaria é antológica, e achei que estava errado, que não lhe tinha dado a devida atenção. Não estava: o filme é muito ruim, mesmo. Passa a sensação de que foi severamente cortado, tirando do corte final elementos essenciais para a compreensão da história, como a transformação dele pelo “fado padrinho”. Além disso, a história de amor é completamente absurda, mal construída e inverossímil; deve ter sido outra vítima de cortes.

Foi coincidência, mas esses filmes, nessa ordem, acabam ilustrando bem a evolução de sua carreira. E me fizeram pensar em algo que eu nunca tinha pensado de verdade: a causa de sua decadência a partir da metade dos anos 60.

Em Dean and Me, Jerry credita sua derrocada ao divórcio entre ele e o gosto do público. Ele está parcialmente certo, mas as causas são muito maiores do que apenas isso, ou pelo menos mais variadas.

A principal é o fato de que, sem Dean Martin, ele foi forçado a crescer, ou (se levarmos em conta o seu ego monstruoso e a certeza da própria genialidade) aproveitou a oportunidade para isso. Do espiroqueta amalucado e anárquico dos filmes da dupla, ele tentou desenvolver uma persona mais complexa, mais hollywoodiana: se tornou mais “ator”. Seus personagens deixaram de ser tão histriônicos, tão naturalmente engraçados, porque ele se viu obrigado a demonstrar um espectro maior de sentimentos e atuação. Talvez não tivesse escolha: basta assistir a “O Delinquente Delicado”, concebido para Martin & Lewis mas filmado depois do rompimento, para ver que aquele modelo só funcionava com aqueles dois indivíduos. (O filme também mostra que Dean tinha razão em juntar os panos de bunda e ir embora:  é um veículo para Jerry, não para a dupla, embora a mutilação do papel que caberia a Martin possa ter sido feita depois da separação.)

O Jerry Lewis mais velho já não podia se permitir o completo abandono de si mesmo em que aquele garoto, que tinha Dean Martin para o controlar, se esbaldava. Ele não era mais infantil, e embora seus personagens sempre apostassem na ingenuidade e na pureza de coração, era a ingenuidade do adulto comparada à ingenuidade da criança: a atitude que desperta nas pessoas a vontade de dar uns tapas, em vez de rir. Não tinha como dar certo por muito tempo.

A isso se junta algo que eu sempre senti, mas nunca tinha racionalizado: fisicamente ele foi mudando muito à medida que se aproximava dos 40 anos. O rosto antes magro e anguloso, adolescente, ficou mais gordo, mais cansado, e ele perdeu aquela pureza transparente e ansiosa que tinha nos anos 50. Mais que isso, seu rosto oleoso e sua expressão passaram a ter algo cansado, cínico, até ruim — o rosto de um magnata do cinema, gasto, vicioso. Ele deixou de ser alguém de quem você gostaria imediatamente. Talvez eu esteja exagerando, mas o fato é que não dava para um homem de 40 anos se comportar como um menino de 8. E acho que Jerry percebeu isso.

Ao mesmo tempo, rever seus filmes dos anos 50 reavivam a sensação de deslumbramento que eu e o público, torcendo nossos narizes para os críticos, sempre tivemos. Sobre isso eu já escrevi aqui, não faz sentido me alongar. “A Barbada do Biruta” traz um bocado desse esplendor. Mas a verdade é que nada pode se aproximar do que esses dois sujeitos faziam no palco.

Hoje qualquer pessoa pode achar suas apresentações no Colgate Hour. Estão disponíveis no YouTube. Dia desses encontrei uma que não tinha visto ainda. E estou maravilhado até agora.

Por isso faço uma aposta com você. Assista a esse vídeo aí embaixo e não ria. Não acredito que seja necessário entender inglês para cair na gargalhada. Mas se você conseguir, volte aqui e eu te pago uma Heineken. Eu preciso ser honesto e avisar que pago, mas vou pensar em você, por todo o sempre, como o personagem de Kevin Kline ouvindo I Will Survive em “Será Que Ele É?”.

Já vai tarde, Saraiva

O Luiz Schwarcz publicou uma carta aberta em defesa das redes de livrarias Cultura e Saraiva, que pediram concordata dia desses.

É curioso que, quando o sapato aperta no calo de algumas pessoas, elas de repente se arvoram em defensores de todos os calos do mundo, principalmente os pequenos, aqueles de que ninguém parecia se lembrar antes. A carta do Schwarcz parece ser um caso desses. Invoca a devoção aos livros, pede a união amorosa e idealista de editores, autores e livreiros — é, aqueles mesmos que editoras grandes como a Cia. das Letras e a Record, e redes como a Saraiva, sempre asfixiaram.

Se eu fosse um pouco mais cínico enxugaria uma lágrima furtiva pela dor da Saraiva e pela bondade insuspeita da Cia. das Letras. E não riria com incredulidade ao ver empresas — que fizeram suas fortunas investindo em um modelo predatório — pedindo a solidariedade dos antes esquecidos para ajudar essas coitadas altruístas, vitimadas pela concorrência desleal da internet e da Amazon. Felizmente a bondade que mamãe colocou no meu coração tem limite, e tudo o que eu consigo fazer é me perguntar: só agora? Só depois que a Civilização Brasileira, a Distribuidora de Livros Salvador, a Didática, a Modelo, que centenas de livrarias pequenas fecharam é que vocês vêm falar em “união pelos livros”?

Não. Desculpe, mas não. Eu estou pouco me lixando para o destino da Saraiva.

Trinta anos atrás, Aracaju tinha umas cinco, seis livrarias. Provavelmente não eram o suficiente para uma cidade do seu pouco tamanho, mas cada uma delas era o retrato de um modo singular de ver livros e cultura, o estilo do seu dono. A Didática tinha identidade específica, a Modelo tinha um jeito diferente, a Regina tinha cara própria. Salvador, tão maior, tinha muitas mais, tinha inclusive algumas pequenas redes locais como a Civilização Brasileira e a Distribuidora de Livros Salvador, além de uma infinidade de pequenas aqui e ali, algumas especializadas, outras não. Livrarias como a Estante na Alameda Antunes ou a Freitas Kanitz em Ondina, umas tantas na Praça da Sé onde hoje só existem armadilhas para turistas.

Todas elas desapareceram. Hoje, a única livraria local em Aracaju é a Escariz, que nasceu como banca de revistas há mais de 30 anos e aos poucos migrou para o mercado de livros. A Escariz representa uma resistência heróica (desculpe, eu não sei escrever “heroica”) a um sistema em que editoras e grandes redes se uniam para oferecer mais vantagens ao leitor, ao mesmo tempo em que as negavam para as pequenas livrarias.

Mais triste foi o destino de Salvador, que viu a Civilização Brasileira passar pela humilhação de tentar macaquear seu algoz, transformando-se por algum tempo num arremedo de algo que não deveria ser imitado jamais, antes de fechar definitivamente as portas. Há umas poucas décadas a Avenida Sete era repleta de livrarias; hoje as lojas onde funcionavam vendem bugigangas e badulaques e roupas vagabundas.

Isso, claro, não pode ser creditado apenas à ação predatória das grandes redes; é o resultado das mudanças urbanas causadas pelo crescimento das cidades, pelo surgimento dos shopping centers, pela mudança de padrões culturais. Mas as redes foram um instrumento importante na derrocada das livrarias, e com isso, o que a cidade perdeu foi muito mais que alguns lugares onde comprar livros. Não apenas porque todas elas tinham algo em comum, a individualidade. Nem porque eram obras de pessoas mais interessadas em realizar suas próprias ideias de mundo do que em ganhar carroças de dinheiro, e portanto não eram, nem podiam ser, criações de entrepreneurs, de executivos modernos, de gente que quer apenas ficar rica, tanto faz se vendendo ideias, papel ou linguiça. Mas porque a cada livraria que fechou as portas na Avenida Sete ou no Calçadão da João Pessoa, as cidades morreram um pouquinho.

Não quero que fique a impressão de que estou dizendo que “naquele tempo era melhor”, porque não era. O mundo das pequenas livrarias era restrito, limitador. Mas elas tinham uma ligação orgânica com suas cidades, refletiam suas comunidades de uma maneira completamente inversa à de livrarias como a Saraiva, que impõem o seu modelo pasteurizado independentemente de onde se instalem.

Foram essas livrarias, retratos únicos das cidades onde estavam, que redes como a Saraiva e a Siciliano engoliram sem pena e sem cartinhas. Ninguém fez apelo bonitinho quando a livraria da esquina fechou as portas diante da concorrência impossível das grandes redes. E agora, quando o Schwarcz lamenta que “muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias”, só pode estar brincando. Para começar, a maioria das cidades pequenas do país já não têm livrarias há muitos anos, e quando essas cidades precisaram de uma, nunca interessou à Saraiva ou à Cultura abrir uma lojinha nelas. Ele certamente se refere às médias, aquelas onde a Saraiva dizimou a concorrência disponibilizando descontos oferecidos apenas a ela por editoras como a do Schwarcz.

Pior que isso, esse apelo é extemporâneo e inútil. Pequenas ou médias, essas cidades já não precisam da Saraiva, ou de qualquer outra rede.

Dia desses comprei “Os Anos 20”, de Edmund Wilson, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 30 anos atrás. Comprei também “Olympia”, de Otto Friederich, livro que quis mas não tive dinheiro para comprar uns 25 anos atrás. Ambos usados, já saíram de catálogo há alguns anos. E não foi na Saraiva, na Cultura ou mesmo num sebo local: foi na Amazon. Foi ela quem mitigou a ausência de livrarias.

Não é só isso que, na carta do Schwarcz, soa falso e até desonesto. “Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos – gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil”, diz Schwarcz. Vamos falar a verdade. Dezenas de lojas foram fechadas — confere, embora ele se refira a redes como a Fnac e Saraiva. Editoras ficaram sem 40% ou mais de seus recebimentos depois de apostarem num modelo que prejudicava as pequenas livrarias — confere, e é essa a razão dessa carta. Centenas de livreiros foram despedidos — epa.

Se ele se refere aos vendedores da Saraiva, meninos mal pagos e explorados e sem conhecimento real do mercado editorial, chamá-los de “livreiros” é um desrespeito às centenas de pessoas apaixonadas por livros, que tocavam negócios além do comercialmente viável, e que foram tiradas do mercado pelas Saraivas da vida. Livreiro é outra coisa. Livreiros são aqueles de quem a Saraiva veio ajudando a tirar empregos e ganha-pães há décadas, com a ajuda das grandes editoras. Sempre em silêncio, acompanhados de pequenos choros aqui e ali, mas que ninguém fazia questão de ouvir.

Não, não, eu não vou chorar a morte da Saraiva. Sua eventual falência não me vai me dizer absolutamente nada. A vida é assim mesmo — devem ter sido exatamente essas as palavras ditas quando a Civilização Brasileira fechou. Agora é a minha vez de louvar a lógica fria da consolidação de mercado e do ganho de escala que fez da Saraiva um instrumento de destruição das pequenas livrarias, a mesma que agora faz da Amazon a guilhotina no pescoço das “megastores”. Foi na Amazon, aliás, que aprendi que, procurando, posso comprar livros novos — inclusive livros da própria Companhia das Letras — por preços muito mais baixos, como meu pai me ensinou há quase 40 anos numa Civilização Brasileira da Avenida Sete e que as Saraivas da vida tinham tornado coisa do passado.

Desculpe, mas para mim essas redes de livrarias podem morrer, com seus descontos insuficientes, com seus cafezinhos de dez reais, com seus iPhones e Blu-Rays. Para mim, a Saraiva já vai tarde.

Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

Anteontem parei numa banquinha de livros e revistas usados no mercado, enquanto ia comprar camarão, e comprei também uma Sabrina e uma Momentos Íntimos.

Alhures nesta internet sem lei você vai encontrar resenhas e críticas bem fundamentadas de livros decentes, como os do Machado de Assis, Alex Castro e Luiz Biajoni. Aqui neste blog não há lugar para tantas sofisticações, e portanto seguem alguns comentários sobre essa categoria literária tão desprezada por aí.

Antes, no entanto, uma explicação.

Uns sete lustros atrás, quando eu ainda era criança, costumava acompanhar minha mãe ao trabalho. Nunca tinha o que fazer, mas uma colega dela, que trabalhava no turno anterior, era viciada nesses romances de banca: Júlia, Sabrina e Bianca. Na época eu lia compulsivamente o que quer que me aparecesse na frente, e além disso tinha algumas horas completamente livres em minhas mãos. Assim, ao longo de alguns meses, li dezenas desses romances, a ponto de entender perfeitamente a estrutura comum a todos eles.

Lembre-se, era o começo dos anos 80. Aqueles livros editados então pela Abril tinham sido publicados nos EUA e na Inglaterra cinco, dez anos antes. Suas protagonistas eram sempre garotas belas, às vezes belíssimas, mas sempre despretensiosas. Sempre jovens, sempre querendo saber bem mais que seus vinte e poucos anos; trabalhavam, modernas que eram, mas muitas vezes apenas como um esforço orgulhoso e sensato por independência, antes que a necessidade mesquinha e pouco romântica de garantir o pão com manteiga da manhã seguinte e a prestação da geladeira. Porque no fundo, como moças sérias e direitas que eram, o que elas queriam era casar. Como um plus a mais adicional, essas heroínas eram invarialmente virgens, e embora já demonstrassem sentir alguma vergonha por insistirem em ser moças à moda antiga (o que obviamente as qualificava mais diante de suas leitoras), estavam decididas a se guardar para quando o amor verdadeiro chegasse.

Para essas moças que toda leitora queria ser, o de cujus chegava na forma de um homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico. Tinha sempre um “olhar magnético” — até hoje, quando lembro desses livros, é essa expressão presente em nove de cada dez deles que me vem à cabeça: um “olhar magnético”, geralmente vindo de olhos cinzentos.

Ela se apaixonava perdidamente, loucamente, descontroladamente, e a paixão era obviamente recíproca. Eles começavam a namorar, mas em algum momento um mal-entendido os separava, normalmente resultado da grande paixão e da grande insegurança de ambos. Era a suprema vitória dessas moças: conquistar o macho alfa, fazê-lo menino de novo, inseguro diante delas. Claro que, no final, o mal-entendido se resolvia. E a moça virtuosa e forte em sua feminilidade e o homem poderoso mas subjugado pelo amor seriam felizes para sempre.

Aí pela metade dos anos 80 apareceu um novo título. Se chamava Momentos Íntimos e trazia uma diferença fundamental, ainda que com um atraso de dez ou vinte ou oitenta anos em relação à vida real: agora as moças abriam as pernas. Momentos Íntimos tinha esse nome porque aqui o véu casto do pudor não mais caía depois do beijo mais ardente; em vez disso, éramos brindados com descrições lúbricas da maneira como ele, amante insaciável e talentoso, a fazia descobrir um novo significado para a vida. É bom lembrar que até o meio do livro as moças, assim como suas colegas belas, recatadas e do lar em Júlia, Sabrina e Bianca, eram virgens. Mas agora hímens rompiam a três por quatro, como barragens em Mariana.

Era isso que eu queria rever quando decidi comprar os livros.

Escolhi com algum cuidado. Os que eu queria precisavam ter sido publicados na primeira metade dos anos 80, no caso de Júlia, Sabrina e Bianca, e na segunda metade no caso de Momentos Íntimos. Escolhi a Sabrina pela logomarca, minha velha conhecida, e a Momentos Íntimos pelo preço original, marcado em Cz$.

A Sabrina traz “Terra de Paixões”, de Janet Dailey, publicado originalmente em 1975 e, aqui, em 1983. Antes de me aventurar no conto de fadas tive um lembrete agradável de que às vezes o melhor de comprar livros usados são os brindes involuntários que você recebe. Nesse caso, ganhei dois vales-transporte de uns 30 anos atrás e uma xerox da carteira de identidade de dona Maria Luiza Teixeira dos Santos. As sucessivas donas desse livro também deixaram suas marcas. Uma rubricou seu nome com a data: 16/01/84; outra, pioneira da economia colaborativa, preferiu deixar seu veredito: “Muito boa. Agradável de ler, curiosa, diferente. 18/05/12, Aju”´.

Eu não queria diferente, eu queria igual. De qualquer forma, o nome da autora não me era estranho. Fui catar e ela está na Wikipedia. Morreu dia desses, não sem antes vender a bagatela de 300 milhões de livros. Dizem que inovou o gênero ao criar o “romance de western”. E “Terra de Paixões”, um dos seus primeiros livros e que ainda está no prelo, é exatamente isso: uma modelo linda e virgem e esforçada conhece um cowboy de rodeio com metro e noventa, belo, arrogante, infelizmente sem o clássico “olhar magnético”. Se casa por impulso, porque percebeu imediatamente que esse era o homem de sua vida, e vai para a fazenda nele no Novo México. O choque cultural causa problemas, o pobre vaqueiro rico se sente inseguro porque acha que ela não vai se adaptar à vida no campo, e naturalmente o orgulho de ambos os afasta. Mas ai de você, pessoa pobre do século XXI já descrente da felicidade que só se pode encontrar num homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico, se aposta que eles continuaram distantes um do outro: no final vence o amor, sempre o amor.

A Momentos Íntimos traz “Insensato Amor”, de Catherine Coulter, publicado originalmente em 1985 e aqui um ano depois. Pertenceu a dona Maria Juvanira Nunes, que o comprou em 24/01/1986 — não, 1987: ela tinha escrito 1986, antes de riscar e marcar a data correta. Ainda não tinha se acostumado com o novo ano.

Dona Coulter também está na Wikipedia, numa página que parece ter sido escrita por ela mesma mas sem o destaque de Mrs. Dailey. Neste livro a digna senhora conta a história de uma modelo linda e virgem que conhece um médico de metro e noventa, de olhos verdes (diabo, aqui também falta o “magnético”), atlético, bem-sucedido, 15 anos mais velho, por quem se apaixona perdidamente. Se no livro anterior a história é contada exclusivamente do ponto de vista da mocinha, aqui Coulter, menos talentosa em seu ofício, é uma narradora onisciente, e sabemos que o pobre doutor também está loucamente apaixonado, mas inseguro por ser tão mais velho e achando que a família dela não vai aceitá-lo; e então eles se afastam, apenas para se reconciliarem no final, que acaba lembrando o do filme Lover Come Back sem a graça deste.

Mas isto aqui é Momentos Íntimos, não é Júlia nem Sabrina nem Bianca; aqui a jurupoca pia e geme e grita. A primeira vez da mocinha deste livro é descrita em detalhes:

A língua ardente tocou-lhe o sexo, e foi como se seu corpo todo entrasse em comunhão. Nunca imaginara que pudesse existir um prazer tão intenso!

— Oh! Elliot… Não pare agora, por favor… — sussurrou, sentindo-se transportada para o paraíso.

Elliot afastou-se um pouco para admirá-la. Sentia-a reagir e beijou-a com sofreguidão, contornando-lhe a boca com a língua.

— Você é tão doce! — murmurou, segurando-lhe os seios.

Christine gemeu baixinho, contorcendo o corpo. Percebendo que ela estava pronta para recebê-lo, Elliot então penetrou-a lentamente, tentando não machucá-la.

Os dedos delicados cravaram-se nas costas largas. Christine sentia um misto de dor e desejo. Olhou atônita para o homem cujo sexo latejava dentro de seu corpo.

— Elliot! — chamou, num espasmo de prazer.

Sinceramente não sei o que é pior, se a penetração lenta por um sexo que latejava dentro do seu corpo ou os adjetivos ou os pontos de exclamação. Mas o fato é que milhares, muitos milhares de senhoras neste país afora compraram e leram esses romances, e eles, ainda que por uns breves instantes, tornaram suas vidas um pouco melhores, com mais fé no amor e mais poesia.

Ler esses dois livros me fez perceber duas coisas curiosas. Uma, bem boba, é entender que pelo menos uma das minhas lembranças estava errada: eu achava que o rompimento entre protagonistas vinha antes, e não a apenas algumas páginas do final, como nesses dois romances; mas isso faz todo o sentido do mundo.

A outra é, antes de tudo, uma impressão: essas moças não faziam sexo oral. Em Momentos Íntimos a protagonista é servida magnificamente várias vezes, mas não retribui. Puxando pela memória, não lembrei de nenhum caso semelhante em algum dos tantos livros que li. E acho que há uma razão para isso.

De uma forma estranha, esses livros eram feitos não apenas para que as mulheres sonhassem com um príncipe encantado, mas para aumentar sua autoestima. Não importa a mediocridade da escrita, as estruturas dramáticass sempre iguais; o fato é que elas davam voz às mulheres, ainda que dentro de um contexto que dificilmente uma feminista, mesmo em sua época, iria admitir. Aqui as mulheres eram princesas modernas. E receber sexo oral pode implicar mais poder do que fazer. Sem falar no que pode ser um certo pudor natural da época: aprendia-se na Socila que uma moça decente não devia falar com a boca cheia.

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

Mesóclises

O Serge e o Thiago, nos comentários ao post anterior, me fizeram lembrar de alguns aspectos da língua escrita nas revistas em quadrinhos d’antanho. Por uma dessas coincidências da vida, andei pensando nisso ultimamente.

Nos últimos anos baixei o que pude de revistas antigas digitalizadas. Principalmente do final dos anos 70, início dos 80, e principalmente da Disney — porque essa, antes de tudo, é uma viagem nostálgica. Mas também de outras épocas, anos 50 e 60 e 2000, e me impressiona a maneira como os diálogos mudaram.

Nos anos 50 e 60 a linguagem era excessivamente dura. Não acho que tenha visto um “cáspite” nas revistinhas que baixei, porque isso era coisa do Tex, se lembro bem; mas tenho certeza de que havia um sem-número de ênclises. E não duvido que até mesóclises pudessem ser encontradas numa fala simples do Pato Donald.

O mais grave é que eu acho mesóclises bonitas. Quase passei a gostar do Temer por causa delas. Neste blog, se elas aparecem, é certamente de maneira irônica, porque eu sou um frouxo incapaz de desafiar as normas da escrita conscientemente (só inconscientemente, mas isso tem outro nome: ignorância); mas elas são bonitas, porque a língua não precisa ser simples, sempre. Ela precisa dar ao menos um espaço possível para ir além. É a diferença entre a Sétima Sinfonia do alemão surdo e a Melô do Não Sei Qual do Bonde do Sei-Lá-o-Quê. E que concisão: um ato, um objeto, um tempo contidos no mínimo espaço necessário. Em vez de “você vai fazer aquilo”, “fá-lo-ás”.

Nos anos 70 a linguagem nas revistinhas começou a se soltar. Volto a elas daqui a pouco. E a partir dos anos 80, assim como enfiaram o Zé Carioca num boné com a pala para trás, também aderiram de maneira decisiva ao coloquial. Quadrinhos mais adultos, tipo super-heróis, ousaram muito mais, mas eles se dirigem a outro público. O que interessa é que a linguagem utilizada então, se ainda correta, já não diferia tanto da língua falada por gente comum.

Quando deixei de ler revistas Disney elas ainda se mantinham nesse nível. Não sei como estavam até deixarem de ser publicadas em Pindorama. As revistas mais recentes que li, geralmente de super-heróis, abusam da informalidade, da tentativa de transcrição da língua das ruas. E usam um bocado de palavrões.

Eu realmente tenho problemas com o uso excessivo de palavrões. Acho que são desnecessários. É engraçado ver essa pudicícia em mim mesmo: escrevendo isso, fico me achando um daqueles sujeitos que é contra a legalização do aborto mas enfia Cytotech na namorada quando ela engravida. Eu falo palavrões o tempo todo, tenho uma das bocas mais sujas que conheço, e para mim qualquer substantivo e qualquer adjetivo podem ser substituídos por algum deles. Na verdade eu não acho que não se deva usar palavrões nunca na língua escrita; só acho que devem ser usados com moderação. A força do palavrão está na sua transgressão, em sua imprevisibilidade.

(Claro, um gramático lexicógrafo semântico semiótico desses tipos novilíngua poderia dizer que isso é a língua em transformação, que o palavrão de ontem é a moeda corrente de ontem. Foda-se.)

E aqui voltamos aos pontos levantados pelo Serge e pelo Thiago.

Eu não aprendi a ler com os quadrinhos; foi minha mãe que me ensinou, antes do tempo normal. E não tenho certeza de que eles colaboraram demais para o pouco que entendo de português. Colaboraram, e muito, para a minha cultura geral; mas quanto à intimidade com a última marafona do Lácio eu realmente não sei, porque nessa época havia um bocado de livros de que eu gostava e dos quais não esqueci até hoje. Talvez esteja sendo injusto com o Tio Patinhas, talvez queira lembrar de mim mesmo lendo mais livros do que realmente li. Eu não sei.

Mas acho que a linguagem utilizada nos anos 70 ainda respondia a algumas das âncoras do português culto sem deixar que elas a prendessem a um passado que, se existiu realmente, já fazia muito tempo. As ênclises eventualmente estavam lá. E tenho certeza de que quem as lia tinha mais facilidade em falar e escrever corretamente.

Eu não concordo, nunca, com aqueles que adotam uma postura de absoluto laissez faire em relação à língua, que dão validade excessiva aos falares mais incultos. Uma coisa é respeitar o sujeito que fala “nós vai”; outra, completamente diferente, é tentar me convencer que ele está certo. No fundo, isso é reflexo de um paternalismo extremo. Lá está o sujeito que passou por sei lá quantos doutorados, que reconhece na educação formal e no reconhecimento de códigos um valor importante, tentando convencer o sujeito que mal cursou o ginasial que o jeito dele falar “estrupo” é aceitável. Então tá. O que chamam de respeito eu chamo de perpetuação da dominação.

Resumindo, eu acho que são necessários padrões. A função da língua escrita é, principalmente, possibilitar que alguém seja completamente entendido por outros. Agora imagine um texto todo escrito com expressões e termos exclusivamente gaúchos lido por um sujeito do interior do Piauí.

Por outro lado, é cada vez menos incomum para mim achar um sinônimo de algumas palavras mais facilmente em inglês do que em português. Isso não é sinal de proficiência em inglês, é sinal de deficiência crescente no portuga velho de guerra. Como o filho do português que, ao emigrar para Londres — no meu caso, a internet e a Netflix —, não aprendeu o inglês e estava esquecendo o português.

E por tudo isso eu fico cada vez mais pessimista em relação ao futuro da língua. De um lado, uma geração que simplifica em excesso os códigos que nunca dominou e torna aceitável a ignorância. Do outro, uma classe que se aproxima do inglês com a veneração de um melanésio diante de um caixote largado em suas cabeças. Isso não pode dar certo.

Stan Lee

A morte de Stan Lee não poderia acontecer em hora mais adequada, se é que há algum tipo de adequação na morte que justifique uma frase tão infeliz quanto a que abre este texto.

Durante algumas décadas, Lee foi um velho conhecido dos fãs de quadrinhos de super-heróis, e nesse nicho da cultura pop nada é capaz de obscurecer o seu legado. Ele foi o maior de todos, o sujeito que revolucionou o segmento ao incluir nele elementos da vida real, criando personagens como o Quarteto Fantástico, e logo depois o Homem-Aranha, com algo semelhante aos problemas cotidianos das pessoas comuns: contas para pagar, amores mal-resolvidos.

Resumindo da melhor forma possível, a verdadeira revolução de Stan Lee não foi criar o Homem-Aranha, foi criar Peter Parker.

Nos últimos 15 anos, no entanto, o cinema fez sua fama extrapolar o mundo dos quadrinhos. Stan Lee se transformou no tipo de celebridade que é ainda maior do que sua obra, com o detalhe raríssimo de ter uma obra realmente importante. A internet fez dele um mito, e hoje um número monstruoso de pessoas sabe que ele é o “pai dos super-heróis”, o que é uma injustiça com nomes como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane, Lee Falk e mesmo Will Eisner, mas não está muito longe da verdade. Mesmo os mais desavisados sabiam que ele era o velhinho de bigode que aparecia nos filmes de super-heróis.

E isso ainda é pouco para Lee. Seu impacto na cultura popular do mundo inteiro é incalculável, e poderia ser o objeto da inveja de milhares de filósofos, escritores e músicos, que faziam cultura e arte mais séria, mas para infinitamente menos pessoas.

Como tudo tem outro lado, no começo dos anos 70 Stan Lee já tinha dado o que tinha de melhor como criador. Havia estabelecido uma fórmula infalível e a repetia em todas as histórias que assinava. Isso é compreensível se lembrarmos o volume desumano de roteiros que escrevia mensalmente, mas isso significa que seus personagens ficaram cada vez mais parecidos. Assim, os dilemas vividos por Steve Rogers eram muito parecidos com os de Peter Parker: amores desencontrados e às vezes silenciosos, um profundo senso de inadequação ao mundo, intermináveis dúvidas existenciais — basicamente, Lee colocava em quadrinhos a vida dos adolescentes que o liam. Hoje suas histórias soam até pueris, embora ainda mantenham uma aura de verdade intrínseca que não é moeda corrente em boa parte da produção atual.

Nada disso diminui a sua importância. Suas histórias foram revolucionárias em sua época. O homem foi um dos gigantes do século XX — eu já escrevi aqui que acho os super-heróis uma das grandes invenções do século passado, e Stan Lee foi fundamental para a sua permanência.

Mas o século XX já passou. E Stan Lee morre exatamente no momento em que a indústria que ele ajudou a revolucionar está desaparecendo.

Durante todo o século passado, revistinhas em quadrinhos foram um dos principais passatempos de crianças e adolescentes. A partir dos anos 80, quando houve uma explosão criativa e elas se tornaram mais complexas (se eu fosse escolher um marco arbitrário para essa transição seria “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller), passaram a ser consumidas sem culpa por adultos, o que garantiu status de quase arte para o gênero.

Mas os anos pós-HAL-9000 (curiosamente Douglas Rain, que deu voz a HAL em “2001”, morreu no mesmo dia que Lee) têm sido espinhosos com essa indústria e as revistinhas em quadrinhos estão condenadas a desaparecer.

O fim recente da publicação dos personagens Disney pela Abril não é resultado apenas da crise em que a editora se encalacrou. As vendas vêm despencando nas últimas décadas, e nada indica que deixarão de rolar morro abaixo. Como disse o Paulo Maffia, que editava a Disney cá nos trópicos, o problema é muito mais grave: a verdade é que a era das revistas baratas vendidas mensalmente em bancas está chegando ao fim, porque elas estão perdendo o sentido e a importância para as novas gerações. Aliás, até as bancas estão acabando, para minha tristeza inconsolável. Quadrinhos estão deixando de ser mídia de massa para se alojar nos nichos dos encadernados de luxo, à venda em livrarias.

(Uma pessoa mais chata poderia lamentar isso, apontar para o fato de que em vez de ler livros de verdade as pessoas estão lendo quadrinhos, e isso estaria contribuindo para a epidemia de burrice que assola o mundo e tem surtido efeitos tão nefastos em eleições mundo afora. Que bom que eu não sou chato.)

Diante do esboroamento de seu mundo, os super-heróis — certamente ajudados pelos seus superpoderes — se adaptaram e encontraram uma sobrevida no cinema. Mas há um grande paradoxo nisso. A tecnologia que permite que eles sejam representados de maneira verossímil é a mesma que está matando o astro de cinema (nesses blockbusters o importante é, por exemplo, o Hulk ou o Pantera Negra, não os atores que os representam. Estes podem mudar sem problemas: só o coitado do Homem-Aranha já foi interpretado por três sujeitos diferentes desde 2001) e, paradoxalmente, as próprias revistas em quadrinhos; mas isso não interessa.

Talvez por isso a morte de Stan Lee pareça tão tempestiva. Morrer aos 95 anos não é injusto para ninguém, para sermos francos. Tampouco é motivo de alegria. Mas se é possível achar algum motivo de, pelo menos, consolo nesse pequeno incidente, ele está em entender que a vida foi mais que boa para o velho e bom Stan: ele morreu antes de ver a sua indústria, pela qual ele fez muito mais que a maioria de seus colegas, agonizar e morrer.

Obviamente, resta ainda uma esperança: que a sua morte seja igual às de tantos super-heróis, mortes espetaculares que invariavelmente são revertidas logo depois.

Talvez Stan Lee volte no próximo número.

Beatles, raspando o fundo do tacho

Durante décadas, o legado dos Beatles foi mantido com uma pureza que nenhuma outra banda, na história, repetiu. Os Stones vivem raspando seus tachos em busca de algo que possam vender já desde os anos 60. Até Bob Dylan, desde os anos 80, vem revirando seus baús e transformando em algo rentável sobras de estúdio e quetais.

Os Beatles, não. Durante o quarto de século seguinte ao seu fim, o catálogo original de 13 álbuns foi mantido intacto, entronizado como a obra cristalizada de uma banda revolucionária e inigualável, um cânon pelo qual a música popular ocidental deveria se guiar. Suas músicas não eram licenciadas para comerciais. Raramente apareciam em filmes (eu só consigo lembrar de Shampoo). A integridade de sua obra nunca foi ameaçada.

O que a gente não sabia é que isso talvez se devesse menos a um purismo excessivo do que ao fato de, durante aqueles primeiros 25 anos, o emaranhado de processos e contra-processos em que os Beatles se meteram impediam o mínimo acordo para a rentabilização do seu catálogo. Além disso, ainda vigorava a era do LP: as vendas lhes davam dinheiro suficiente para que pudessem manter a compostura.

Resolvidas as questões judiciais, no início dos anos 90, a Apple se viu livre para colocar caça-níqueis em cada loja de discos do mundo e faturar com o que, até então, tinha sido o playground dos piratas. Os primeiros lançamentos foram excelentes: o Live at BBC e os Anthologies trouxeram gravações importantes, de grande qualidade. Mas o se seguiu foi apenas uma sucessão de bobagens desnecessárias. O Let it Be…Naked decepcionou quem quer que conhecesse a história de suas gravações. On Air, Hollywood Bowl — não sei se sou só eu, mas a cada novo lançamento dos Beatles eu venho torcendo o nariz e criando uma resistência que só faz crescer.

E agora que eles aprenderam a lição de Paul McCartney, a coisa parece ter saído de controle.

Enquanto a Apple se perguntava se liberava ou não suas canções para o iTunes, Paul McCartney veio tratando seu material solo de maneira diferente, até agressiva. Quando lançou seu catálogo em CD, nos anos 90, tentou agregar valor a eles incluindo os compactos contemporâneos, dando um panorama histórico mais abrangente e muitas vezes fortalecendo o próprio disco. (E mesmo assim eu não gosto. Um LP é uma obra fechada. Se o Ram se tornou um pequeno clássico ou se Wild Life é até hoje esculhambado, é pelas canções que traziam quando foram lançados, não pelas correções feitas depois. Isso é trapacear.)

Nos anos 2010, às voltas com a necessidade de reembalar um material tantas vezes relançado, McCartney resolveu dar um passo adiante. Agregou a seus discos outtakes, demos, livrinhos, o escambau: seus relançamentos são pacotes caros, feitos para fãs dispostos a pagar por arrotos engarrafados, e que vão muito além da única razão de ser de um LP: a música.

Ano passado a Apple parece ter aprendido essa lição e cruzou o Rubicão. Lançou um Sgt. Pepper’s cheio de badulaques desnecessários. A impressão que um velho fã chato como eu tem é a de que conspurcaram algo sagrado, como se tivessem passado batom e maquiagem pesada numa criança e enfiado a coitada em lingerie vermelha. Mas o resultado parece ter sido satisfatório para os cofres da Apple, porque agora anunciaram uma nova versão do “Álbum Branco”, cheio de penduricalhos para aumentar seu valor de mercado.

A versão deluxe, aquela a que todos vamos dar preferência na hora de baixar ilegal e gratuitamente nas redes da vida, traz um volume enorme de material.

São seis discos, ao todo, além das fotos e pôster originais e um livreto. Os dois primeiros CDs são o velho e bom “Álbum Branco”, agora remasterizado — pela segunda vez em menos de dez anos. O terceiro disco traz as famosíssimas “Esher demos” (voltando da Índia e precisando gravar um novo disco, os Beatles se reuniram na casa de George, Kinfauns, em Esher, e gravaram versões de demonstração das suas novas canções para escolher o repertório do disco, cujas sessões seriam caóticas e serviriam como marco, um tanto arbitrário, do início do fim da banda). Os três discos restantes, intitulados Sessions, trazem sobras de estúdio. Takes alternativos, jams, ensaios. Algumas das faixas aparentemente já foram lançadas oficialmente, como Step Inside Love/Los Paranoias, no Anthology III. O resto parece ser basicamente o que vimos na edição comemorativa do cinquentenário do Sgt. Pepper’s, ano passado: material ruim que uma pessoa honesta jamais revelaria para o mundo.

Isto aqui não é uma resenha porque parece estranho resenhar sobras de estúdio e demos, ainda mais antes de serem lançadas. E porque a grande maioria desse material está disponível, há muitos anos, nas redes. From Kinfauns to Chaos é um entre tantos álbuns feitos apenas como as demos de Esher, e boa parte das sobras de estúdio incluídas nos outros discos também circula fartamente na internet. Quem tiver curiosidade procure pela versão deluxe do “Álbum Branco” lançado pela Purple Chick.

Definitivamente, esses não são os discos que eu gostaria de comprar. Principalmente porque, fora desse esquema de recauchutagem, há uma imensidão de faixas realmente inéditas oficialmente que dariam novos álbuns interessantes. Eu compraria um Decca Tapes oficial, mesmo tendo o pirata há mais de 30 anos; compraria, se fosse lançado como um álbum isolado, as demos de Esher. Compraria um disco com curiosidades como versões de Maxwell’s Silver Hammer, I Lost My Little Girl, I’ve Got a Feeling e Get Back cantadas por Lennon, Something por Paul e por John, Get Back em algo que parece alemão ou cantada por George. No entanto, aparentemente isso não seria suficiente para fazer alguém comprar esses discos. Por isso a versão desnecessária de Sgt. Pepper’s do ano passado, e agora esse “Álbum Branco” gordo, pesado.

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Mas essa nova orientação de lançamentos pode vir a trazer uma coisa boa para os fãs.

Em 2020, o Let it Be completará 50 anos. É a chance de lançar o filme restaurado nos cinemas (embora eu goste mais da sugestão que já dei aqui: entregar o material bruto para Martin Scorsese e deixar que ele faça algo decente daquela mixórdia), e as versões de Glyn Johns para o Get Back original. Eu entraria em qualquer fila para comprar esse LP, talvez um álbum duplo com as duas mixagens e com a capa original.

New Egypt Station

Cinco anos atrás, quando Paul McCartney lançou o álbum New, alguém no Twitter disse que ia esperar minha resenha sobre o álbum. Eu nunca me acostumei àqueles 140 caracteres e, quando fui olhar de novo, a mensagem desapareceu e eu não lembro mais quem escreveu. Por isso, caso ainda leia isso aqui, peço que me perdoe. Eu tinha uma boa razão para não responder.

O problema era que eu também estava esperando.

Assim que o álbum saiu, minha filha me perguntou se ele era bom. Respondi que não. (Na verdade eu disse que era uma bosta, mas esse não é o tipo de resposta que se deve dar a uma filha.) O fato é que minha primeira impressão de New foi horrorosa. Eu detestei o disco, sua produção, virtualmente todas as canções. Me pareceu um álbum ruim que se tentou salvar através de uma produção excessiva, e a emenda saiu pior que o soneto.

Ao longo dos meses seguintes, eu o ouvi insistentemente. Era menos uma tentativa de gostar do disco, elogiado pela crítica em geral, do que de entendê-lo. Cheguei a comprar o vinil um ano depois, achado por acaso numa Barnes & Noble qualquer enquanto eu procurava livros baratos, e que ainda está lacrado porque mp3 é suficiente para mim.

O tempo passou e, à medida que fui me acostumando às canções e aos valores de produção, passei a achá-lo quase tolerável. O disco traz boas faixas. Save Us, Early Days, On My Way To Work (mais pela evocação trazida pela letra do que pela melodia medíocre e a produção bombástica), New — talvez a única a demonstrar neste disco a capacidade sobre-humana de McCartney de criar melodias pop absoluta e enganosamente fáceis —; Turned Out não faz muito feio, embora pareça tão velha, Looking at Her tem alguma classe, e Get Me Out of Here é um bom aceno aos anos 60.

Tem também faixas ruins, em número infelizmente grande demais. Queenie Eye, apesar de alguns bons momentos, é fraca, e o seu videoclipe não vai muito além de um desfile idiota e sem significado de celebridades. Appreciate é irritante. Everybody Out There é um tipo de sub-rock de arena que McCartney gosta de cometer eventualmente (e uma letra absolutamente pedestre: “do some good before you say goodbye” vai para o seu panteão de letras cretinas, empatada com “changes in the way we treat our fellow creatures”, de Looking For Changes). Hosanna é muito chata. I Can Bet, idem. Road, ibidem. E Struggle tem um título que anuncia o esforço que você vai fazer para escutá-la até o fim.

É só fazer as contas e ver que um dos principais problemas do disco é que a maioria das faixas é ruim. Essas canções parecem excessivamente trabalhadas, resultado antes de um grande esforço para fazer algo diferente do que da inspiração absoluta e quase matemática que sempre foi a marca de McCartney. A isso se junta uma produção estapafúrdia, exagerada e modernosa, que nivela por baixo as canções e as submerge em camadas e camadas de mediocridade. O resultado é isso: um disco ruim, piorado pela decisão de soar jovem demais.

Em suma, em New McCartney tentou fazer um álbum moderno, cool. Só conseguiu nos fazer lembrar que, como diziam os Skrotinhos do Angeli, no cool dói.

Mas New trazia alguns elementos curiosos. Ali ficou definitivamente claro que a ausência da voz de Linda McCartney nos backing vocals tornava a música de Paul diferente, para quem ainda lembrava dos Wings. Além disso, confirmava definitivamente uma tendência razoavelmente recente de McCartney a escrever letras mais intimistas, mais pessoais. Nos últimos anos, suas letras parecem refletir cada vez mais uma angústia existencial e uma tentativa de entender o mundo à sua volta que não existia nos seus verdes anos. McCartney era o sujeito que encarava a composição principalmente como artesanato, o mestre para quem o que realmente importava era encaixar uma letra em uma melodia, e não o seu significado. Mas agora, bem adiantada a sua oitava década de vida, McCartney parece querer fazer as pazes com a sua existência, e às vezes deixar registrada a sua versão da sua própria história, o que acontece em canções como On My Way To Work e Early Days.

E agora ele se sai com um novo disco.

Egypt Station teve uma das campanhas de lançamento mais competentes de que tive notícia. A equipe de McCartney soube utilizar bem as mídias sociais, em todas as suas variedades, e as possibilidades que elas oferecem. Shows de surpresa, aparições em programas de TV, e finalmente a liberação homeopática de faixas ao longo dos últimos três meses. Pouco antes do lançamento do álbum, lançou no YouTube uma série de comentários sobre cada canção e transmitiu um show na Grand Central de Nova York. Conseguiu gerar, assim, uma expectativa entre os fãs que não se via há muitos anos.

Resta o disco em si, que é o que realmente importa.

Duas coisas chamam a atenção em Egypt Station, imediatamente. A primeira é o nível de degradação da voz de McCartney. Em 1969, tentando gravar Oh! Darling em infinitas tentativas, McCartney comentou que cinco anos antes teria conseguido de primeira. Sua voz seguiu mais ou menos igual até os anos 90, mas de lá para cá a coisa parece ter saído de controle, e rapidamente. Depois que as vendas de discos diminuíram e ele precisou voltar a tocar ao vivo, o processo de deterioração de sua voz se acelerou de maneira assustadora.

Isso ficou claro para mim, pela primeira vez, quando o vi cantar She’s a Woman no Rock in Rio Lisboa, em 2004. Ele já não conseguia alcançar as notas mais altas, e o resultado chegava a ser constrangedor.

Hoje, a voz de McCartney é a de um ancião que gritou muito a vida inteira e agora faz um esforço sobre-humano, até dolorido, para cantar. Se alguém prestar atenção, vai ver que ele mudou também a maneira de cantar algumas das antigas canções dos Beatles, tocando seu baixo pelo menos uma oitava acima do original. Ele fez isso, por exemplo, ao cantar A Hard Day’s Night em Nova York. Isso é ainda mais triste quando lembramos que ele só cantou o middle eight dessa canção porque Lennon não conseguia alcançar aquelas notas mais altas.

O som do baixo de McCartney é a outra curiosidade. Paul McCartney é provavelmente o baixista mais influente da história da música pop e um dos mais criativos. Durante o seu auge, seu baixo foi um Rickenbacker 4001. Mas depois que voltou a fazer turnês, McCartney voltou ao velho Hofner 500/1, o “beatle bass”, certamente por evocar o velho beatle Paul e porque o Hofner é extremamente leve e confortável, algo essencial para velhos que insistem em fazer shows de duas horas e meia. Com isso, sua música perdeu o peso e o punch que o Rickenbacker lhe oferecia. Além disso, o nível de compressão a que McCartney o submete durante as gravações torna o seu som, bem particular, absolutamente comum. Mais importante, no entanto, é que McCartney adotou definitivamente uma abordagem burocrática e fácil ao instrumento, muitas vezes até repetititva. Vão longe os tempos em que ele mostrava ao mundo que o baixo podia ir muito além da marcação da canção. O baixo de McCartney hoje é elegante como sempre, correto, mas é medíocre e deixa saudades do tempo em que se aventurava de maneiras inimaginadas.

Mas isso são bobagens, meu bem, bobagens. Egypt Station é o melhor álbum de Paul McCartney desde Chaos and Creation in the Backyard, de 2005.

O disco abre com I Don’t Know, uma bela balada, típica de McCartney. Tem classe e a elegância harmônica que sempre foi sua marca, e uma letra decente. É uma excelente canção, digna da lenda do seu autor.

Come On To Me é um ótimo rock, de uma vitalidade contagiante. Poderia ser gravada por qualquer dessas bandas pop que andam por aí. Mas aqui já se começa a ver o excesso de computadores. De qualquer forma, é uma das boas canções do álbum e expressa uma vitalidade muito agradável.

Happy With You é uma bela cançãozinha, aparentemente dedicada à sua mulher, em que ele canta que “eu era um bêbado, e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus” — ou melhor, Nancy Shevell. É o velho McCartney, e agradável de reencontrar.

Who Cares é uma boa canção, um daqueles rocks simples que fazem você bater o pé no chão e mexer os ombros discretamente. Poderia talvez ser melhor com sua velha e boa banda de apoio, sem muitas firulas. Mas ao oferecer uma reflexão sobre bullying e trolls de internet, mostra que Macca ao menos tenta entender o mundo em que vive e oferecer a ele um posicionamento.

Em contrapartida, Fuh You é embaraçosa. Um pouco pela letra: “I just wanna fuh you” não é coisa que mesmo um velho safado como McCartney cante em público. Certo, é legal essa ideia de a terceira idade ter uma vida sexual ativ — ei, vovô, sua dentadura caiu! Mas o principal problema da faixa é o tratamento pop radiofônico que ela recebeu. Computador demais, adulação demais ao gosto jovem atual. McCartney tem tamanho suficiente — quem tem esse tamanho fora ele? — para dispensar esse rastejar. É como se McCartney tivesse se rendido a Phil Spector.

Evocativa de Chaos and Creation in the Backyard, seu melhor álbum nas últimas décadas, Confidante é uma canção de gratidão, como parecem ser muitas baladas de McCartney nos últimos tempos. Mas aqui essa gratidão é ao seu violão. Não é a melhor canção do álbum, mas é digna.

Eu pensava que McCartney já tinha desistidos dessas tentativas de hino-hippie-odara-vamos-ver-o-sol-nascer-no-Vale-do-Amanhecer, como People Want Peace. O discurso político de McCartney sempre foi frouxo, fácil — medíocre, na melhor das hipóteses. É uma das canções fracas do disco. Alguns detalhes da melodia empolgam, mas são só detalhes, que não chegama redimir a canção.

Hand in Hand é uma canção belamente construída, com referências claras à música medieval inglesa, que ele já não consegue cantar. Típica de sua produção mais recente, é uma prova de talento e de domínio de sua arte.

Dominoes, por sua vez, é uma grande canção, que traz a marca de McCartney ao mesmo tempo em que desvenda caminhos melódicos. É uma daquelas canções que fazem valer a pena comprar um disco.

Back in Brazil é uma canção curiosa. De certo modo, parece que suas referências são pré-samba canção: para mim, que sou velho e ouço coisas mais velhas que eu, tem detalhes que parecem tirados do filme “Alô Amigos” ou de “A Dama de Shanghai”; mas me parece que uma certa moderna música brasileira tem esses grooves de que a canção se apropria. Diz McCartney que compôs essa canção no Brasil depois de ouvir o Bonde do Rolê. Ele devia ter vergonha de falar essas coisas. Ao mesmo tempo, essa atitude é absolutamente louvável, e enriquece a música.

Do it Now parece sobra de New, em seu tom menor e no jeito de que foi construída com esforço e sofrimento diante das teclas de um piano. Não tenho mais nada a dizer sobre ela.

Caesar Rock é uma dessas canções que atualmente se fazem num estúdio, feita no Pro Tools. Mas tem qualidades. Aqui a voz desgastada de McCartney empresta uma verdade cuja ausência era um dos problemas quando ele podia cantar o que queria. Lembra bastante a música solo de Mick Jagger.

Despite Repeated Warnings nos lembra novamente que McCartney não é o melhor sujeito do mundo para nos falar de política. Ele é rico demais para isso. No entanto é uma boa faixa, melodicamente mais complexa que a maior parte da música feita hoje. Seu grande problema é que é longa demais. Tem 6’57”. Só para lembrar, meio século atrás McCartney compôs uma canção com metragem semelhante. Se chamava Hey Jude.

O disco fecha com um típico medley de McCartney, Hunt You Down/Naked/C-Link. O riff inicial de Hunt You Down parece resgatado dos anos 80, mais precisamente de uma banda chamada The Clash, e não sabe se vai ou se fica. Isso não impede qua a canção seja agradável e forte. Naked, especialmente, é uma excelente canção. O verso “I’ve been naked for so long, now” adquire um sentido pungente quando lembramos que há quase 60 anos a vida de McCartney, um dos formadores da cultura ocidental, se dá debaixo dos holofotes. E C-Link parece estar aí como um lembrete de McCartney: “Eu sei que você sabe que eu sou o maior baixista do mundo, mas quero te lembrar que sou um grande guitarrista”.

No fim das contas, Egypt Station é um belo álbum. Um ótimo disco de McCartney, e poderia ser um disco memorável de cada uma dessas bandas pop modernas, o álbum que evitaria que elas pululem por aí durante uns meses e depois sumam definitivamente.

E o que mais me impressiona é que eu insisto em chamar esse negócio, que baixei da internet e só existe como zeros e uns, de “disco”. Eu estou velho. Mas ao contrário de McCartney, eu não quero ser novo.