E D. João VI voltou à minha cabeça essa semana. Ainda aquela questão sobre a genialidade estratégica dele, que tanta gente parece ter como certa.
O que define um estrategista genial é a capacidade de ver o que ninguém vê e definir as táticas necessárias para concretizar essa estratégia. Ele está à frente dos outros. Estrategista genial era Lênin, por exemplo, que no comecinho do século passado percebeu que havia uma brecha na teoria marxista e que uma revolução socialista poderia ser feita em um cu de mundo como a Rússia, queimando a etapa do desenvolvimento capitalista, e se mandou para a Estação Finlândia.
Por outro lado, em nenhum momento D. João compreendeu que, diante do estado de Portugal e das possibilidades do Brasil, a correlação de forças que caracteriza as relações entre uma metrópole e sua colônia poderia ser invertida.
Estrategista genial D. João seria se, confrontado pelas Cortes Portuguesas, se revelasse um monarca magnânimo e concedesse graciosamente a independência a Portugal. Ele poderia até anistiar a terrinha da indenização que o Brasil, tendo sido outro o desenrolar da história, teve que pagar à metrópole.
D. João não podia fazer isso porque era e se sentia português, e era incapaz de ver além disso. Em nenhum momento a sua lealdade, o seu compromisso e a sua identidade estiveram fora de Portugal. Talvez não fosse isso o que a maior parte dos portugueses deixados na mão de Junot pensava, mas para D. João essa era uma das verdades absolutas da vida: ele era português, e Portugal era o centro do seu mundo. Essa visão arraigada, claro, não lhe impediu de ver o óbvio: sua escolha pela Inglaterra em detrimento de Napoleão foi feita em função do fato simples de que Portugal dependia em praticamente tudo do Brasil. O futuro, do ponto de vista da importância econômica entre os dois países, estava aqui. Portugal, àquela altura, jamais poderia ser maior do que era. O Brasil, por sua vez, sozinho poderia ir além dos mais alucinados sonhos de Camões. No entanto, nem essa percepção lhe fez tomar a decisão que seria mais acertada
(Antes que alguém cite inadvertidamente a Revolução Americana como exemplo comparativo de qualquer coisa, é bom lembrar que essa estratégia não daria certo para a Inglaterra. Embora a velha Albion tenha lutado ferozmente para manter seus domínios americanos, naquele momento avançava com rapidez na invenção da revolução industrial. Ao bom rei Jorge, caso forçado a escolha semelhante, valeria mais a pena manter a Inglaterra que um amontoado de 13 colônias que, afinal, basicamente produziam tabaco. Além disso, os Estados Unidos são uma invenção americana: aquelas 13 colônias expandiram seu território e criaram a maior potência do século XX comprando e roubando terras de espanhóis, franceses, mexicanos, russos e, principalmente, índios. O Brasil é uma decididamente uma invenção portuguesa.)
O problema em todos os revisionistas que tentam resgatar a imagem de D. João VI é que exageram na dose e caem no erro oposto. Certo, El Rey não era de todo desprovido de talento; o problema está na confusão acerca de sua natureza. Se D. João tinha talentos, não estavam na capacidade estratégica: estavam na política.
Nisso, todos os relatos concordam: D. João sabia lidar adequadamente com as circunstâncias — o que certamente fez no Brasil, negociando com inteligência as relações entre a elite brasileira e a nobreza portuguesa, ainda que de sua forma hesitante e reativa. Esse deve ser um traço estilístico dos Bragança: é algo que D. Pedro II, outro estadista luso-brasileiro injustamente admirado, também fez sistematicamente ao longo de seu reinado, trocando gabinetes regularmente para manter o equilíbrio de forças e uma estabilidade que lhe beneficiava. O que D. João sabia era interpretar as correlações de força ao seu redor — ou seja, era um bom tático. É isso que faz um bom político. Algo diferente do que faz um bom estrategista, que é simplesmente ver mais longe o que poucos veem.
Em sua história de fuga e rendição, o lance realmente genial de D. João se daria em 1821 quando, ao ver que a elite brasileira estava querendo fazer a independência, aconselhou seu filho a tomar a frente de um movimento pelo qual a família real não era minimamente responsável. Esse senso de oportunidade, se olhado com isenção, é digno de admiração.
Mas isso é política. É a capacidade de se posicionar diante de uma situação apresentada e tentar tirar o melhor dela. D. João era um bom político, de uma estirpe e um estilo que definiu a cultura política brasileira. Só que isso não faz dele um grande estrategista.
Essa postura diante de D. João me parece se dever a um certo “modo carioca” de olhar o Brasil, derivado da permanência da cidade como capital econômica, cultural e política ao longo de quase dois séculos. Porque a vinda da família real foi tão importante para o Rio, deveria ter sido na mesma medida para o país inteiro, também.
Por causa dessa presunção se chega a conclusões absurdas. Começam confundindo a renovação de costumes trazida pela chegada dos Bragança com renovação social, o que não é necessariamente a mesma coisa. Além disso, tem gente que credita à vinda da família real a continuidade da unidade territorial brasileira. No post anterior sobre o assunto, o Hermenauta de saudosa memória lembrou que deveríamos considerar a hipótese de a América portuguesa ter se dividido, como aconteceu com a espanhola.
O André Kenji lembrou que há diferenças significativas que levaram à fragmentação do império espanhol e do sonho bolivariano. Que os espanhóis mantinham colônias autônomas, e enfrentavam grandes obstáculos geográficos, como os Andes, algo diferente da situação brasileira.
Mas tem mais. Muita gente olha para a Confederação do Equador e diz que se não fosse a presença da família real no Brasil, a pressão pela independência e as muitas diferenças regionais fatalmente fariam com que a colônia se subdividisse em uma série de republicazinhas bolivarianas. Bobagem.
Essa atitude centralizadora diante de movimentos separatistas já era parte da administração brasileira antes da vinda da família real — e os pedaços de Tiradentes espalhados entre o Rio de Janeiro e Ouro Preto confirmam isso. Se a Inconfidência Mineira não precisou da presença de D. João tomando banhos no Caju para ser esmagada exemplarmente, tampouco precisaram os tantos outros movimentos que se deram depois.
Foi a formação de uma certa elite administrativa brasileira que garantiu a unidade territorial do Brasil. É engraçado que as pessoas deixem de lado o fato de que essa unidade foi seriamente ameaçada e mantida a ferro e fogo em um período posterior da história nacional: a Regência. Foram aqueles quase 10 anos que definiram de uma vez o que seria o país, quando movimentos importantes como a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, mesmo a Revolução Farroupilha foram combatidos e vencidos. Meio século depois, a lembrança dessa época certamente foi fundamental para que o país cometesse o crime genocida de Canudos.
Se a alguém se deve o tamanho do país, seria antes ao Padre Feijó que a D. João VI.