Belle Époque

Cartaz francêsEste cartaz francês para uma marca de absinto, do início do século passado, é de uma crueldade absurda.

É como se o artista, morando numa mansarda em Montparnasse, revoltado por finalmente perceber que seus quadros nunca venderão e que como ilustrador ele jamais chegará aos ombros de um Toulouse-Lautrec, tivesse decidido demonstrar todo o seu desprezo à burguesia na sua encomenda. E com que prazer ele deve ter conseguido convencer aquele comerciante abrutalhado de que essa peça era sensual e lhe traria lucros estupendos. Com o dinheiro no bolso, dirigindo-se à casa de ópio, ele deve ter se sentido reconfortado por sua pequena vingança.

O honrado e elegante senhor parece estar dizendo com o olhar coisas indizíveis à moça que bebe com circunspecção e recato. Espera sua presa com uma calma antecipatória do prêmio. E traduz o lado obscuro da Belle Époque — ou talvez o mais brilhante deles.

Originalmente publicado em 10 de maio de 2004.

O crime da rua Campos

Há algumas semanas — ou meses, que o tempo em um blog é a prova sobralense de que Einstein estava correto — eu falei, num post sobre Aracaju, sobre o crime da rua Campos, coisa de quase 50 anos atrás e que até hoje é o crime mais fantástico já ocorrido em Sergipe.

Parece que as lembranças estão no ar, porque uma revista local, na edição que começou a circular na semana passada, publicou uma matéria sobre o crime. Hoje, em sua coluna no Jornal do Dia, o jornalista Luiz Eduardo Costa publica um comentário a essa matéria.

Luiz Eduardo é uma das pessoas que mais conhecem o crime da rua Campos, pelo menos que eu saiba. A outra é minha avó. A diferença é que minha avó não escreve, ao passo que Luiz é o dono de um dos melhores textos de Sergipe.

Graças à revolta de Luiz Eduardo, que resolveu corrigir a série de erros factuais que encontrou na matéria publicada pela revista (e no post original, sem saber: eu datei o crime de 1954, quatro antes), agora posso atender a um pedido feito por Viva, e contar aqui, através das palavras de Luiz Eduardo Costa, o básico da história do Crime da Rua Campos (ou rua de Campos, como chamam em Aracaju).

Continue reading

It was twenty years ago today

Uma vizinha está ouvindo rádio. Deve ser a empregada, porque ninguém escuta rádio por aqui. Com exceção de programas noticiosos, rádio — ainda mais a uma altura dessas — é coisa que só se ouve no carro ou na cozinha.

Por alguma razão resolveram fazer um especial dos anos 80. Já ouvi New Edition (Is this the eeeend?), Berlin (Take my breath awaaaay), Culture Club (Mistake #3), Stevie Wonder (I Just Called to Say I Love You) Chris DeBurgh (The Lady in Red) e uma canção que assolou o Brasil em 1986, Yes, cujo cantor era um picareta brasileiro que fingia ser gringo, adotou o nome de Tim Moore e enrolou boa parte do Brasil; o Bia lembra dele bebendo caipirinha no camarim, antes de um show em Americana, enquanto resmungava: “Merda de cidade…”

A música de 20 anos passados interrompeu o Caruso que eu estava ouvindo. Não só por tocar mais alto, mas porque é um aviso de que estou ficando velho; lembro de quando essas músicas eram tocadas durante a programação normal, e não no que parece ser uma espécie de “Especial Para Caquéticos”. Essas notas musicais, boa parte das quais detestadas por mim já na época, me lembram também que quando cada geração chega à maturidade costuma usar a mídia para contar uma visão edulcorada de como os seus velhos tempos eram bons. Assim os anos 50 deram American Grafitti no início dos 70 e tudo o que se seguiu depois — Grease, Happy Days, e um revival completo nos anos 80. Era a visão tipicamente americana de um passado pretensamente dourado que o resto do mundo foi obrigado a engolir. Mais apropriadamente, era a saudade da classe média branca americana dos bons tempos de Eisenhower.

Antigamente demorava-se cerca de 15 anos (ou 3 gerações de consumidores) para que uma geração fosse entupida de lembranças cor-de-rosa, e muitas vezes falsas, de outra. Mas os órfãos dos anos 80 começaram cedo, porque ultimamente a juventude tem chegado chegado mais cedo ao poder. O primeiro sinal de recaída de que me lembro foi um filme com o John Cusack, Grosse Pointe Blank. Agora aqui e ali pipocam referências. Boa parte da revista Flashback, que conta com os textos brilhantes do Ina, é composta disso, de lembranças de uma década que, sabe Deus como, conseguiu definir uma identidade própria a partir de retalhos de décadas passadas.

Tudo isso me lembra quão ruins foram os anos 80.

Que ninguém me entenda mal. Não é que não goste deles. Tenho boas lembranças daqueles tempos, no fim das contas: foi nessa década que passei a adolescência e, como diz o Roger Ebert, a adolescência é o período mais miserável na vida de uma pessoa, embora depois nos lembremos dela com saudade. Com o tempo, as pessoas transformam experiências terríveis como andar a pé, fazer sacanagem na cama dos pais da namorada ou rodar a cidade atrás de mulher em boas lembranças, de um tempo que já passou.

Mas que os anos 80 foram uma droga, foram.

***

Há algo de muito errado na ordem cósmica quando os dois maiores ícones de uma geração são Madonna e Michael Jackson. Este a gente já sabe no que deu, mas não vamos ser injustos creditando sua degradação aos últimos tempos: ele nos avisou do que vinha pela frente. Nos anos 80 o sujeito usava uma jaqueta de couro vermelho e uma luvinha branca e brilhosa na mão, com o cabelo eternamente solto e molhado por uma tonelada de gel; algum ingênuo esperava que ele melhorasse?

Quanto a Madonna, cada vez que vejo as roupas que ela usava fico com duas sensações: a de reconhecimento, de ter feito parte daquela era, e a certeza de que aqueles são os trapos que usaria uma mulher sexualmente reprimida que pirou o cabeção e resolveu nos dar a sua versão ensandecida de uma puta. Isso pode ter lá seu significado social e histórico; aquele crucifixo sexualizado pode até ser uma ofensa aos puritanos americanos. Mas além de dizer pouco a brasileiros que há séculos se despedem de suas virgindades encostados no muro da igreja, tudo aquilo era absolutamente brega. Era como se quatro estilistas cafonas acumulassem, sobre a lourinha da voz esganiçada, os seus conceitos lisérgicos de mau gosto.

Um consolo é que as roupas da Madonna podem ter sido imitadas pelas adolescentes de miolo mole nos EUA da época, como a gente costuma ver nos filmes, mas aqui no Brasil éramos mais comportados. Isso não quer dizer, no entanto, que tivéssemos bom gosto. Ah, não. Os anos 80 foram a década do rosa-choque e do verde-limão, provavelmente as cores mais medonhas já criadas — tanto que a Mãe Natureza, que tem lá sua carga de bizarrices, não ousou criá-las –, e que, como se sua própria feiúra não fosse suficiente, normalmente eram usadas ao mesmo tempo. Foram a época dos jeans verdes, de estampas berrantes que chamavam de new wave e que vilipendiavam a memória do finado Godard, das ombreiras, e mais tarde das saias balonê. Os anos 80 foram uma década de confusão e mau gosto.

Mas as coisas sempre podem piorar, e pioravam. Talvez nada disso fosse pior que os blazers com mangas dobradas copiados de Miami Vice, ou as barbas por fazer inspiradas no Mickey Rourke de “9 1/2 Semanas de Amor” (provavelmente a maior fraude erótica de todos os tempos). Como dizia uma antiga música de McCartney, no one left alive in 1985. Nos anos 80, era in ter cara de traficante cubano vagabundo da Jecolândia.

E os cabelos. Os cabelos. Mulheres com cortes que lembravam poodles epilépticos; homens com cabelos curtos mas compridos atrás, moda lançada a nós botocudos pelo Evandro Mesquita. As jubas piolhentas e embaraçadas dos hippies, em comparação, pareciam muito melhores; pelo menos exprimiam uma atitude. Não que aquele corte oitentista não tivesse nenhuma; o problema era saber qual.

Deus do céu, como é que alguém pode ter saudade daquilo?

***

Fãs dos anos 80 costumam lembrar de bandas como Smiths e U2 para mostrar que aquela, afinal, não foi a década perdida.

Duas bandas.

Acho que consigo lembrar de mais: Poison, Mötley Crue, Menudo, A-ha, Mr. Mister, Dominó, Tremendo, Dr. Silvana, Olivia Newton-John, Toto.

Chega. Bastam esses para lembrar que foi preciso que o grunge aparecesse para que a música pop fosse resgatada de um longo e tenebroso inverno.

Mas o que se poderia esperar de uma década que começou com um maluco dando cinco tiros em John Lennon?

***

Os anos 70 foram a década em que surgiram cineastas como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Os anos 80 foram a década de John Hughes.

(Deixa-se aqui de lado a estética publicitária no cinema patrocinada pelos irmãos Ridley e Tony Scott e outros; isso é terrível demais para ser abordado assim, sem aviso.)

Alguns dos maiores sucessos da época foram dirigidos ou escritos por Hughes. “A Garota de Rosa Shocking”, “Gatinhas e Gatões” e “Curtindo a Vida Adoidado” são alguns dos filmes aos quais a gente recorre quando quer lembrar do que foram aqueles anos miseráveis.

(The Breakfast Club, talvez o filme mais “cabeça” dessa fornada, tinha originalmente duas horas e meia de duração. O estúdio, achando que ia ser um fracasso, cortou 50 minutos. O resultado é o único filme do Hughes que poderia ser bom, mas que parece episódico demais; essa é a explicação que encontro para rever o filme e achá-lo ruim.)

Não é que eu não goste desses filmes. Todos eles têm a capacidade de me lembrar uma época que vivi e que já passou há muito tempo. Queira ou não, eu estava presente aos anos 80.

Mas o fato de gostar de Some Kind of Wonderful, por exemplo, não faz com que ele se transforme miraculosamente em bom cinema. O melhor que se pode dizer desses filmes é que eles retratavam a juventude da época. Certo, e “Barrados no Baile” retrataria a juventude dos anos 90 nos mesmos termos. Além disso, é bom lembrar que “Sabrina”, “Júlia” e “Bianca” também retratam o amor. O problema é que “Sabrina” et al não são exatamente um soneto de Shakespeare, e juventude por juventude é melhor dar uma olhada no que Nicholas Ray andou fazendo 30 anos antes. Um antropólogo que tentasse compreender a juventude dos anos 90 a partir de “Barrados no Baile” concluiria que éramos todos todos estudantes lindos e ricos; se fizer o mesmo com os filmes de John Hughes vai ter a certeza de que éramos um bando de alienados fúteis com algum problema no juízo.

(E então lembro da diva dos anos 80: Molly Ringwald. A garota de rosa-choque. Diva adequadíssima à época: insípida, insossa, inodora. Nunca entendi por que investiram nela em vez de em delícias como Kelly Preston, cuja cena nua em “A Primeira Noite de Jonathan” é a única coisa que presta em um filme bobo. De qualquer forma, hoje ninguém ouve falar em Molly Ringwald. Tudo o que sei da ruiva é que mal começaram os anos 90 e a tonta cometeu duas grandes bobagens: dispensou os papéis principais de “Uma Linda Mulher” e de “Ghost”. As atrizes que fizeram esses filmes todo mundo sabe onde estão. Mas duvido que alguém saiba onde anda Molly Ringwald. Sumiu, coitada, como os anos 80 deveriam ter sumido.)

As pessoas podem até ter saudades dos anos 80. Acho que eu tenho, também. Mas isso deve ser uma versão degenerada da síndrome de Estocolmo. Talvez os anos 80 tenham sido tão ruins que as pessoas se acostumaram. Ou, o que é mais provável, do que as pessoas têm saudades é de um tempo em que eram melhores do que o que se tornaram. E nesse caso, não é dos anos 80 do que têm saudades. Elas têm saudades é de si mesmas.

E assim se passaram 10 anos

A Folha de S. Paulo resolveu fazer um caderno comercial em comemoração aos 10 anos da internet comercial no Brasil, na semana passada.

10 anos, já.

Acessei a Internet pela primeira vez em agosto de 1995. Ainda não havia provedores em Aracaju, onde eu morava, mas um amigo meio alucinado, Maurício, conseguiu uma daquelas contas experimentais da Embratel — na época estatal — e ligava para Recife todas as madrugadas.

Nós já acessávamos BBS, principalmente uma “conferência” de bobagens chamada Abobrinhas, em uma rede chamada SyNC-Net. Mas a internet era outra coisa.

O que mais me surpreendeu naquelas poucas horas foi a quantidade de informação que se podia ter. Nao foi a web que me seduziu naquela madrugada: foi a Usenet, e mais especificamente o rec.music.beatles. Até hoje esse grupo é, provavelmente, o maior repositório de informação sobre Beatles existente, superando até mesmo os livros de Mark Lewinsohn. Eu fiquei maravilhado. Aquilo era mais que trocar mensagens e baixar pequenos arquivos obsoletos. Aquilo era o futuro.

O resto é história.

Foi só no ano seguinte que passei a usar a internet diariamente. Lembro de pagar 90 reais por 80 horas de acesso mensais, algo como 220 reais hoje se formos usar o dólar como padrão. Só no final de 97 o acesso ilimitado chegou a Aracaju, por 60 reais. Dos programas que usava naquela época — Netscape, Eudora, mIRC, iPhone, Free Agent, WSGopher (alguém ainda sabe o que é isso?), ICQ (meu UIN tem 6 dígitos, apenas) –, o único que sobreviveu no meu computador foi o CuteFTP, e mesmo assim porque estou acostumado e FTP não é algo que mude todo dia (a versão que uso é a 4; ele ja está no 7). E eu ainda usava o Windows 3.11 em um 386, o velho e bom Percival.

Talvez por isso eu tenha olhado com atenção o caderno da Folha. Não é a pior coisa do mundo. Serve, quando menos, para mostrar que ao contrário da lenda a Microsoft foi rápida ao perceber a revolução da internet: seu browser — se é que se pode chamar essa coisa chamada Internet Explorer de browser — foi lançado dois anos depois do Mosaic; para uma empresa do seu tamanho, é um feito e tanto. Aqui e ali ele levanta uma ou outra lembrança, aqui e ali comete erros crassos (como por exemplo ao chamar o Pirch de “rede”, quando era apenas um programa, concorrente do mIRC). Erra na perspectiva: mal se refere a blogs, por exemplo. Comete alguns atos de má-fé, como ao negar ao JB a primazia entre os jornais na internet, chamando-o de apenas “um dos primeiros”. Quando tenta contextualizar os velhos tempos, usa uma Quick Take, a câmera digital pioneira da Apple. Mas ninguém usou a Quick Take. Eu nunca a vi na minha frente.

Mesmo assim o caderno dá uma visão razoável desses 10 anos. O problema é que, de acordo ele, a internet basileira é o UOL. De modo geral essa edição é basicamente uma grande propaganda do provedor do grupo Folha. E os portais são a razão de ser da internet.

Pior que isso, negam ao iG a sua importância. Não fosse pelo iG e pelos provedores gratuitos que se seguiram, como o iBest e o Click21, a internet demoraria mais para se popularizar. Por essa abordagem, negam também ao BOL a sua parte, por ter sido o primeiro e-mail gratuito realmente popular no país, mais até que o Zipmail.

Acho que vou ficar com as minhas lembranças, não com as da Folha de S. Paulo.

Espectador

E pelos próximos dias espero ficar aqui, sentadinho, acompanhando a bela discussão entre um dos melhores blogs brasileiros, o Smart Shade of Blue, e o Alexandre Soares Silva.

Comentário aos comentários

Os comentários ao último post são interessantes.

Eu só gostaria de fazer algumas poucas ressalvas. O que mais me chamou a atenção foi como o viés ideológico se manifesta não apenas no que se diz e no que não se diz, mas no que a gente acha que faltou alguém ter dito. É quase como se eu tivesse violado a santidade da guerra. Como se a URSS não pudesse ter sido a principal responsável pela vitória aliada porque era liderada por comunistas comedores de criancinhas e porque cometeu seus pequenos crimes antes e durante a guerra.

Por exemplo, João Philippe: aqui não se disse que a União Soviética era liderada por São Stálin. Você caiu no mesmo erro que o Paulo nos comentários do Alexandre, que viu uma declaração de amor ao Exército Vermelho nos números citados. Para entender melhor a situação política que gerou tudo aquilo, procure saber um pouco mais sobre o “leste europeu” resultante do processo que incluiu o fim da I Guerra Mundial e a guerra civil russa. Passe para o Tratado de Munique, quando foi a vez dos países ocidentais dividirem a Europa entre si, e finalmente para o tratado Ribbentrop-Molotov. Essa era a Europa que gerou a Segunda Guerra, em que todos os países fizeram o que acharam preciso para evitar uma guerra que só a Alemanha queria, ao mesmo tempo em que tentavam conseguir o máximo de vantagens possível. A invasão das repúblicas bálticas e da Finlândia, ao mesmo tempo em que podem ser compreendidas dentro do mecanismo que levou à guerra e, sim, medida de proteção (da mesma forma como você constrói um muro em sua casa), tem origens mais remotas. Talvez nenhuma delas seja justificável, mas não era disso que o post falava. E Katyn foi mesmo um crime: mas a União Soviética também estava entre os vencedores, não estava? Agora você entendeu o que eu queria dizer?

A isso se chama política. Eu não preciso citar Von Clausewitz.

Percival, a primeira coisa a fazer é verificar a definição de crime de guerra. É realmente um conceito subjetivo, apesar de usado em Nuremberg, mas se o Holocausto é um crime de guerra (até a ditadura de Pinochet é considerada por alguns crime contra a humanidade), por que Hiroshima e Nagasaki não são? Os critérios conferem: democídio, destruição de cidades inteiras, uso de armas venenosas. Quanto à “necessidade militar”, Eisenhower era contra, porque acreditava que os japoneses (que naquele momento se debatiam entre negociar a rendição e a linha dura que queria a guerra até o último homem; dizer que os japoneses jamais se renderiam é uma inverdade, como seria mentira dizer o contrário) já estavam derrotados. MacArthur não foi consultado, mas depois diria que tudo aquilo era desnecessário. Quanto aos gulags, a gente estava falando da guerra. Não misture as coisas. Do contrário eu vou reclamar que faltou falar no conflito de Ruanda. Ou da invasão de Granada pelos americanos. Ou do que Saddam fez com os curdos. Ou de quem matou Joana D’Arc, ué.

Se bem que, opinião por opinião, acho que a mais válida é a de Leó Szilárd, um dos desenvolvedores da bomba:

If the Germans had dropped atomic bombs on cities instead of us, we would have defined the dropping of atomic bombs on cities as a war crime, and we would have sentenced the Germans who were guilty of this crime to death at Nuremberg and hanged them.

Cisco, quanto à “versão esdrúxula das terras alternativas”, eu só posso recomendar uma coisa: leia mais. Sobre o teatro europeu pode ser o livro recomendado pelo Alexandre. “Ascensão e Queda do III Reich”, do William Shirer, é leitura obrigatória. É melhor do que fazer witty comments sem substância alguma.

Sinceramente, eu preferia que implicassem com a acusação de racismo na decisão de usar a bomba. Era a única “idéia” do post, e questionável. No entanto, o pessoal preferiu brigar com fatos. Eu, hein.

E assim se passaram 60 anos

Daqui a pouco, em maio, vai-se comemorar o fim da II Guerra Mundial na Europa. Alguns meses depois, agosto, vai ser a vez do fim da guerra no Pacífico.

Mais uma vez vamos ouvir a história sendo contada de acordo com os americanos. Por exemplo, vão falar de como eles venceram a guerra na Europa. Só vão esquecer que, entre junho de 1941 e janeiro de 1945, a União Soviética enfrentou 78% das tropas alemãs. Depois disso, com os EUA e o que restou da Inglaterra avançando (e também o general De Gaulle gritando sozinho “nós vencemos, nós vencemos”), esse percentual diminuiu. Para 58%. Os Estados Unidos perderam 400 mil soldados naquela guerra. A URSS perdeu 13 milhões.

Mas o que importa é que quem conta a história é quem decide o que se passou, e para todos nós, 60 anos depois, a verdade absoluta é que sem os yankees comedores de putas alemãs os nazistas teriam vencido. Claro.

Vão falar também, pela enésima vez desde 1989, quando o assunto voltou à baila, do pacto Ribbentrop-Molotov de 1939. Vão aproveitar para descer a lenha no canalha do Stálin, vão chutar cachorro morto e dar um jeito de encaixar sua habitual imprecação contra o marxismo — esse monstro que todos eles, ignorantes mas militantes fáceis de uma causa que sabem vencedora, não conhecem mas espancam assim mesmo — vão dizer que a URSS se aliou a Hitler em sua sanha de divisão do mundo, etc.

Só vão esquecer, de novo, que em 1934 Stálin avisava que uma nova guerra estava se formando na Europa, e era contra ele. Que a ascensão do nazismo foi tolerada pelo resto da Europa, e indiretamente pelos Estados Unidos, como medida profilática para evitar que o comunismo se espalhasse pelo mundo — como se Stálin tivesse, naquele momento, alguma vontade em relação a isso, como se não tivesse traído os comunistas alemães em 1927. Vão esquecer que o anti-semitismo nazista, pré-Holocausto, foi tolerado como um mal menor dentro de um jogo político muito mais importante. Vão esquecer que o pacto era imperativo para Stálin, que imediatamente começou a transferir as indústrias soviéticas da Ucrânia para além Urais, sabendo que o pacto não iria durar para sempre e que mais cedo ou mais tarde Hitler iria partir para cima dele.

E isso só em maio. Em agosto vão comemorar — melhor dizendo, rememorar — Little Boy e Fat Man.

As explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foram um dos maiores crimes já cometidos contra a humanidade. Em muitos aspectos — talvez aspectos demais — foi algo tão monstruoso quanto o Holocausto. Não pelo número de mortos (cerca de 110 mil, nas duas cidades, 130 mil feridos e, nos cinco anos seguintes, mais 230 mil mortos em decorrência da radiação), mas pela capacidade de matar tanta gente, em tão pouco tempo, de maneira tão torpe mas tão eficiente. E porque há, sim, um componente de racismo naquela decisão. Não um racismo óbvio como o nazista, mas algo muito mais sutil, talvez até secundário.

Por mais que se negue, é difícil imaginar que os americanos explodiriam dessa forma a Alemanha, embora o bombardeio da Berlim já ajoelhada tenha mostrado uma fúria injustificável — as imagens que sobraram mostram uma cidade completamente destruída, muito mais que o “necessário”.

Há algum tempo, assisti a um filme americano dessa época, típico do esforço de guerra. Os termos utilizados — de amarelo nojento para baixo — indicavam algo mais grave que a simples raiva de um inimigo. Havia racismo naquelas palavras. Não era sequer novo: orientais sempre tiveram vida difícil nos Estados Unidos. Se os americanos não tinham nenhum motivo específico para odiar os alemães, contra os japoneses foi diferente. Foram eles que bombardearam Pearl Harbor inesperadamente, tentando destruir sua marinha e prejudicar sua entrada na guerra, àquela altura já inevitável. O ódio justificado pelo ataque traiçoeiro catalisava o racismo. E já que eles tinham que dar um recado importante à União Soviética, nada melhor que juntar o útil ao agradável. Uma coisa é explodir a mãe Europa; outra, muito diferente, é dar uma lição àqueles amarelos comedores de peixe cru.

Hiroshima e Nagasaki deveriam bastar para colocar Truman e os Estados Unidos no banco dos réus em Nuremberg. Mas há uma lição que todos aprenderam há alguns milênios: não existem criminosos de guerra entre os vencedores. Vencedores não cometem crimes, apenas modificam a jurisprudência.

Bem, talvez nada disso seja importante agora. Tudo isso aconteceu há muito tempo, há três gerações. Nesses 60 anos as coisas mudaram. O Holocausto não foi apenas uma das maiores representações do Mal na história da humanidade; foi a justificativa que faltava para tornar a II Guerra Mundial a única guerra santa dos americanos. E agora, mais uma vez, vamos ouvir a história contada por eles. Eu só não sei qual é exatamente a lição que se pode tirar daí.

Pedido

O livro foi lançado em 1987, depois de uns dois anos sendo publicado em folhetim n’O Planeta Diário, o jornal que alguns integrantes do Casseta e Planeta editavam antes de perderem totalmente a graça.

Esse mesmo livro eu emprestei no fim daquele ano para uma colega de escola que, canalha, ladra, miserável e vagabunda, não me devolveu antes de sumir, provavelmente em direção ao inferno que merece.

Seu autor é Alexandre Machado, sob o pseudônimo Eleonora V. Vorsky. O sujeito, depois de ganhar um Grand Clio há alguns anos com um comercial para Época e se tornar objeto de minha eterna inveja, escreveu “Os Normais” com sua mulher, a Fernanda Young. Mas nada que ele tenha feito chegou sequer perto do nível de demência daquele livro, com personagens inesquecíveis como Primo Levi, Kowalski e Prima Roshana, e participações especialíssimas de dois ajudantes de cozinha: o escarrador do molho verde e o punheteiro do molho branco. Isso além de frases lindíssimas e românticas como “Chama o meu cu de pastel e enche ele de carne”, da inesquecível prima, que até hoje me traz lágrimas emocionadas aos olhos quando lembro.

O livro se chamou “A Vingança do Bastardo” e foi uma das coisas mais engraçadas que li na minha vida (de vez em quando o Alexandre lembra disso).

É esse livro que o Casseta e Planeta não reedita, preferindo perder tempo com piadas gastas e recauchutadas pela milésima vez.

Por isso, se alguém tiver e puder scannear ou xerocar o livro, eu agradeceria muito.

E prometo rebobinar a fita no final.

O Ministério da Saúde adverte

Há alguns anos ganhei um Zippo, uma edição comemorativa dos Beatles. Perdi em algum lugar da vida.

E só agora, depois que George Harrison, a primeira mulher de Ringo Starr e a primeira mulher de Paul McCartney morreram de câncer, é que percebo uma coisa: acho que não vai haver mais isqueiros Zippo dos Beatles.

Por que falo mal dos anos 80

Matéria no Globo (via Neosaldina com Coca-Cola) cita o autor de um livro sobre aqueles anos:

Quem falava mal da década de 80 tinha dor-de-cotovelo. Especialmente os que viveram os anos 70 e começaram trabalhar e a ter responsabilidades nos 80. A geração dos 80 foi a primeira que não teve uma expressão ideológica. Foi uma década de pouca preocupação e muito divertimento para a juventude – avalia Alzer, que saiu dos anos 80 com 19 anos.

O sujeito deu uma definição esquisita daqueles anos. Foi nos anos 80 que o movimento sindical renasceu, que a ditadura militar se esfacelou, que o Muro de Berlim caiu — e não tiveram expressão ideológica? Os anos 80 foram os anos da vitória definitiva do capitalismo e o fim da utopia para muitos, e possibilitou a loucos como Francis Fukuyama proclamarem “o fim da História”.

Passei boa parte dos anos 80 envolvido com política estudantil, e obviamente sou suspeito para falar; para mim, a alienação é um prêmio duramente conquistado. Mas a verdade é que a segunda metade dos anos 80 foi uma época de agitação política, em que o país se reencontrava com a democracia. E muita gente boa participou dela. E não custa lembrar da crise econômica. A coisa ficou tão braba naqueles anos que se colocou em desuso uma palavra — carestia — porque ela já não dava conta do que acontecia. A tal alienação encontrava o seu limite no bolso.

O fato é que qualquer década é de pouca preocupação e muito divertimento para quem é adolescente, e mesmo quando não é acaba se tornando algo do tipo, porque a memória vai selecionando os fatos passados e transformando uma época miserável, como costuma ser a adolescência, nos tempos mais felizes que se viveu. Mas daí a fazer uma comparação tão boba vai uma distância muito grande. Os sujeitos provavelmente imaginam que todo adolescente nos anos 70 pegou em armas, e esquecem — ou não sabem — que a maior explosão de hedonismo aconteceu justamente naquela década: a discoteca. Eles não foram considerados “a década do eu” à toa.

Na verdade, o que se viu nos anos 80 foi outra coisa: um processo de fragmentação social irreversível, aprofundado nos anos posteriores. No caso dos autores do livro, sua “tribo” específica podia ser tudo isso: alienada, inconseqüente, talvez fútil. Mas ela não respresenta os anos 80.

Além disso o livro tem alguns erros. O computador não se popularizou nos 80, e sim nos 90; durante aquela década computadores eram caros, para ricos e para uns poucos aficcionados. Os anos 80 apenas viram a chegada dos micro-computadores ao mercado brasileiro. E Kichutes eram mais usados nos anos 70; os 80 viram seu ocaso.

Por mim, eu continuo falando mal dos anos 80. Eu evitava ouvir rádio porque não suportava a música — até hoje aquele som de bateria, com caixa muito amplificada, me dá arrepios, e apenas uma cresceu com o tempo: Like a Virgin, de Madonna, é uma bela canção pop –, só via televisão tarde da noite (com exceção de algumas minisséries como “Anos Dourados”). Era velho demais para gostar de Xuxa ou do Balão Mágico. Não vi Top Gun, Rambo II, The Breakfast Club ou Ferry Bueller’s Day Off no cinema — e com exceção dos dois últimos, achei tudo um lixo (mas assisti a “Eu”, de Walter Hugo Khouri, e fiquei sabendo que o avô de Marcelo tinha um belo e invejável slogan: “Io se non chiavo non mi diverto“). Um dos meus orgulhos é ter passado incólume pela moda daqueles anos: acho que descobri cedo demais que jeans, camiseta branca (na época com dizeres tipo “Liberdade para Lamia”) e tênis são atemporais. Não usei calça verde-limão, roupa da OP ou tênis quadriculados. Meu passado, que me condena em tantas coisas, me inocenta desses pecados.

Para mim os anos 80 foram chatos, só isso.