Adeus ao Pato Donald

É mais ou menos como se, de repente, você recebesse a notícias de que seus avós estão se separando.

Na semana passada, a notícia de que a Editora Abril tinha perdido os direitos de publicação dos personagens Disney no Brasil chocou os fãs mais antigos. A manchete do Planeta Gibi, que deu a notícia, resume tudo: é o fim de uma era.

Eu cresci com esses quadrinhos, e os considero muito melhores que os da Turma da Mônica; enquanto Carl Barks e Don Rosa nos apresentam o mundo, Maurício de Sousa nos regala com as pequenas coisinhas fáceis de um mundo restrito à rua do Limoeiro. Para a Abril, no entanto, esse episódio deve ter um peso ainda maior.

A Abril nasceu com a revista do Pato Donald, em 1950. Victor Civita costumava parafrasear Walt Disney ao dizer que “tudo começou com um pato”. Há uns 20 anos, uma matéria com um colecionador das revistas do Pato Donald no Brasil, no caderno de cultura da Gazeta Mercantil, contava que a publicação do Pato Donald era uma questão de honra para a Abril, algo que transcendia os meros interesses comerciais; tive a impressão de que os Civita viam o Pato Donald como o Tio Patinhas via a sua moedinha número 1. A notícia então se torna ainda mais melancólica. Mesmo sendo a Abril, uma editora cujos desserviços para o país são numerosos demais para contar, é impossível não ficar triste. É um pedaço da história de um bocado de gente que vai embora.

Aí pela segunda metade dos 70 havia umas quatro editoras que publicavam quadrinhos de maneira mais consistente. A Vecchi, com seus faroestes tipo Tex e Zagor e os personagens da Harvey (além da Mad); a legendária Ebal, que publicava entre outros Tom e Jerry, a DC, Epopéia Tri e Zorro; a RGE (depois Rio Gráfica e finalmente Globo, quando a rede carioca conseguiu comprar a Editora Globo gaúcha), que publicava a Marvel, Fantasma e Mandrake, Sítio do Picapau Amarelo; e finalmente a Abril, a melhor de todas, com uma qualidade editorial muito superior às concorrentes e que tinha também a Turma da Mônica.

Uma a uma, essas editoras foram desaparecendo. A Vecchi faliu no início da década de 80. A Ebal agonizou durante anos, e quando fechou já não tinha nenhuma relevância. Em 1985 a Abril parecia ser a dona do mundo: Disney, Mônica, Marvel, DC — tudo parecia estar em suas mãos. É verdade que esse fastígio absoluto não durou muito tempo e logo depois a Turma da Mônica foi para a Globo; mas ainda assim a Abril era a grande editora de quadrinhos do país. No início dos anos 2000 foi a vez dos super-heróis irem para a Panini, e a partir daí a decadência parece ter se acelerado, inexorável.

Mais ou menos nessa época, uma olhada nas bancas deixava claro que os quadrinhos Disney passavam por uma fase muito ruim. A Abril tinha deixado de produzir histórias da Disney já fazia algum tempo, e a qualidade das revistas era muito inferior ao padrão a que ela havia nos acostumado ao longo de décadas. (Curiosamente, foi nessa época que, graças ao Inagaki, descobri Don Rosa.)

Mas de lá para cá a situação havia mudado, e isso é o mais irônico. Parecia que a Abril tinha encontrado uma saída comercial para a crise óbvia no setor de quadrinhos, publicando edições de luxo com o melhor da sua produção e reedições dos manuais que tinham feito a alegria das crianças dos anos 70. Ela tinha se voltado para um segmento mais específico e de maior poder aquisitivo — velhos saudosistas e fãs de quadrinhos, especificamente. Além disso, tinha ressuscitado alguns dos seus títulos clássicos, como Disney Especial e Almanaque Disney, embora sem a qualidade editorial de outrora — o novo Almanaque Disney, por exemplo, não tinha nada a ver com a revista original e era muito inferior.

Eu não faço ideia do que está acontecendo, obviamente. Mas os números dos prejuízos recorrentes da Abril, impressionantes, devem servir de indício. A Abril está em processo de falência há muito tempo, e não para de encolher. O que foi um império simbolizado pelo prédio imponente ao lado da rua do Sumidouro está implodindo de maneira consistente há muitos anos, e quando ela chega ao noticiário é com demissões e “reestruturações”, uma palavra bonita que nunca significa outra coisa que não encolhimento. Normalmente, essas notícias são lamentadas por jornalistas que vêm seu mercado de trabalho encolher, ou comemoradas por quem, como eu, tem verdadeira ojeriza ao papel malfazejo da Abril na política nacional. Mas dessa vez não há nenhum aspecto positivo na notícia.

Porque em tudo isso há um aspecto que não devia passar batido, e que deve ajudar a dar a dimensão real desse acontecimento: nos últimos 68 anos, em nenhum momento deixou de haver uma revista Disney nas bancas brasileiras. Isso não aconteceu sequer nos Estados Unidos, onde a Disney passou alguns períodos sem ser publicada. É isso que estamos perdendo agora. É bem provável que os quadrinhos sejam assumidos por alguma editora — a melhor aposta seria a Panini, que já tem todo o resto, mesmo —, e quem gosta dos personagens que ajudaram a definir a visão de mundo de gerações vai continuar sendo servido, talvez até melhor.

Mas há um pessoal que gostava, também, da Disney na Abril. Talvez porque ver o Pato Donald ou o Mickey numa banca de revistas lhes desse um pouco de segurança e familiaridade em um mundo que não para de mudar e que, nos últimos tempos, passou a desafiar até os mais otimistas. Talvez porque mesmo em tempos de Facebook a desgraça dos outros não seja motivo de regozijo. Eu me junto a eles.

Um estado de espírito

Campanha de Zé Eduardo Dutra para o Senado, 2006. Uma campanha de resto inesquecível.

Bebeto de Freitas apareceu em Sergipe e foi convidado por Zé para dar um depoimento sobre sua atuação no Senado: Zé tinha sido o relator do Timemania, ou algo assim; Bebeto, se não me engano, era presidente do Botafogo naqueles dias, ou tinha sido.

Eram dois botafoguenses doentes, se me perdoam o pleonasmo. Quando o Botafogo perdia, eu já sabia que Zé ia achar defeito nos programas; ele era uma figura incrível, com um coração imenso e um senso de humor debochado debaixo de uma cara enfezada, mas tinha esse defeito de torcer pelo Botafogo. Acontece nas melhores famílias, menos na minha.

A conversa entre os dois, claro, era sobre o time pelo qual sofriam.

Enquanto a gente estava preparando as câmeras, peguei um trecho de uma conversa entre os dois.

— …Porque o Botafogo é um estado de espírito…

Naqueles tempos eu perdia o amigo mas não perdia a piada. Não podia deixar passar a oportunidade.

— …Também conhecido como depressão…

Incrivelmente, não fui linchado. Prometi a mim mesmo, e avisei a eles, que se ganhássemos a eleição eu publicaria esse diálogo no meu blog. Não ganhamos, mas Zé e Bebeto de Freitas me perdoarão por eu publicar essa história hoje.

Os bons anos 80

Lembrei uns dias atrás de um dos tantos motivos para odiar os anos 80, esses que os últimos tempos têm edulcorado e levado a uma reapreciação degenerada da sua música horrível, da sua moda tenebrosa, do seu cinema cheio de maneirismos infelizes.

Aquela década viu a primeira geração a chegar à puberdade sob o fantasma aterrorizante da Aids.

Para quem nasceu nos anos 90 a Aids é uma doença grave, incurável, e que condiciona em maior ou menor grau a vida sexual de todos. Mas naqueles tempos um diagnóstico de Aids era uma sentença de morte quase imediata, e dolorosa. Eu ainda lembro da confusão que cercou a sua descoberta, a maneira como as pessoas inicialmente a chamavam de “praga gay”, e de como o pânico se espalhou aos poucos, mas com firmeza, ao verem que gays não eram suas únicas vítimas.

Uns anos atrás, conversando com Almir Santana, coordenador da luta anti-Aids em Sergipe, comentei que o número de contaminações parecia estar diminuindo. Ele, delicadamente, me deu uma aula e tentou me ensinar a não falar besteira sobre o que eu não entendo. Este blog é prova de que ele não conseguiu.

O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos: jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas. Os dois últimos me pareceram bem lógicos: os velhos ganharam o presente inestimável do Viagra, mas não os novos hábitos; mulheres casadas não costumam usar preservativos com seus maridos, mesmo os que têm um pé fora do armário. Eu só não consegui entender imediatamente o caso dos jovens, que eu achava terem aprendido com o sofrimento dos que lhes precederam — até lembrar que adolescente é animal idiota, e essa juventude usa camisinha principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer. Além disso, o fato de que aparentemente pode-se viver hoje normalmente com o vírus faz com que a urgência em evitá-lo diminua.

A geração anterior à minha lembrava dos tempos anteriores, tempos perdulários de fartura e exuberância e alegria de viver; e por isso os mais odaras tentavam entender o que se passava, os mais místicos viam a Aids como uma espécie de punição pelo desbunde dos anos 70. A minha, que não tinha vivido nada disso, tinha apenas o medo e a obrigação de desenvolver uma visão nova sobre a moral sexual, algo que tentasse combinar a liberdade alcançada com a ameaça constante de morte. Isso se tornou pior quando Henfil e seus irmãos foram condenados à morte por receber transfusões de sangue contaminado. Alguns anos depois, como se a situação já não fosse crítica o suficiente, Magic Johnson anunciou que tinha o vírus e nós levamos um golpe fatal no pé do ouvido, coitados de nós, que então nos víamos diante da prova definitiva de que era possível pegar Aids com mulheres. “É, gente. Ferrou de vez.”

Lembrei dessas coisas que o tempo deveria ter enterrado porque vi uns trechos de uma série recente da Globo, ambientada no início dos anos 80, que tinha entre seus personagens uma moça morrendo de Aids. Me impressionou a maneira como ela era bem tratada, como as pessoas bebiam do seu copo, beijavam sua boca. Tão bonito.

E tão falso. Era tudo mentira. Esse cenário quase idílico, do amor superando a incompreensão e a ignorância, não existiu. Naqueles anos 80 a regra era o medo, e a falta de certezas. As pessoas tinham medo. Medo de abraçar, medo de apertar a mão, medo até de respirar o mesmo ar que o “aidético”, era assim que os portadores de HIV eram chamados, respirava. Certo, não demorou tanto assim para entendermos que abraço não transmitia Aids. Mas nenhum pesquisador tinha certeza absoluta de que beijo não transmitia. E o medo continuou por muito tempo.

Já faz um bom número de lustros, isso. Os anos passaram, a cura não veio mas o pânico passou. E como o esquecimento leva sempre a distorções, hoje as pessoas até acreditam piamente que os anos 80 foram uma época boa.

Mas os que vivemos aqueles anos sombrios temos uma missão diante das novas gerações. Temos o dever cívico e moral de descortinar a tragédia daqueles dias. Esses eram os anos 80, os bons anos 80 em que sentíamos que a vida tinha nos pregado uma peça de muito mau gosto e encerrado a festa justamente na hora em que conseguíamos driblar os leões de chácara e entrar. E como se não bastasse, toda essa tragédia se desenrolava ao som da música desgraçada de Rosana, Yahoo e Kátia Cega.

Os burgueses do porto de Calais

Lendo aqui que na Coreia do Norte fotos de soldados são proibidas.

Ditadura, gritam. Opressão. Queremos liberdade para eles. Como é ruim viver num país assim, onde não se pode tirar uma simples foto. Morte ao gordinho maluco.

E aí lembrei de um pequeno episódio no porto de Calais.

Naquele tempo ainda se usavam máquinas fotográficas. Puxei a minha para tirar umas fotos do lugar; era uma área comum, ao ar livre, eu sequer estava no centro de operações do porto. Então uma lourinha de uniforme vistoso veio correndo até mim.

Eu certamente não percebia que portos são, ao menos em tese, unidades militares. Muito menos que um paraíba com uma câmera na mão pode ser na verdade um espião perigoso a soldo dos soviéticos, homem de artes e talentos saídos diretamente de um livro de John Le Carré. Perigosíssimo, eu. Um paraíba tão insidioso que, em vez de usar câmeras em canetas ou em botões de camisa ou implantadas na íris, tentava dar uma de turista desavisado com uma câmera furreca. Afinal de contas, quem seria tão idiota para tirar fotos de um lugar feio como aquele? Pensando nisso agora, com a serenidade e a clareza que o passar dos anos às vezes nos dão, eu devia me sentir lisonjeado: na verdade, eles me tomaram por muito, muito mais do que eu poderia ser.

Porque o que eu sabia era outra coisa: que fora ali que D’Artagnan embarcara em direção a Londres para encontrar o Duque de Buckingham e frustrar um plano de Richelieu. Fora ali em que ele tinha mostrado com quantos ferros se faz um buraco no bucho de uns pobres guardas e embarcara com destino à grande inimiga de sua pátria. Tudo bem, o lugar onde D’Artagnan mostrou que era o guarda real mais batuta da Lutécia não devia parecer muito com aquilo que eu via; mais de 350 anos haviam se passado. Mas para mim Calais é e sempre será, antes de qualquer coisa, um cenário para D’Artagnan mostrar sua bravura e lealdade à rainha.

Mas a guarda lourinha estava se lixando para o mosqueteiro, Darta quem?

Ela era bonitinha, britanicamente bonitinha. Com aquela simpatia inglesa, me disse que era proibido tirar fotos ali. Bem simpática, a moça, tentando fazer o seu trabalho com o máximo de civilidade possível, acostumada provavelmente a reprimir, todos os dias, centenas de turistas desavisados como eu, tarefa ainda mais doce porque feita na terra dos outros. Simpática, de fato.

Mas eu sou baiano e para mim simpatia é quase amor. Ainda tentei jogar uma conversa qualquer, Hello, my name is John Holmes; mas ali não havia conversa possível. Sorrindo ainda, um sorriso que deve ter se desvanecido em tédio assim que me virou as costas, ela se afastou como quem não entende a cordialidade brasileira. Deve ser o clima, tadinha, o frio e a falta de sol fazem isso com as pessoas.

Tomara que o Google Earth tenha tirado o emprego daquela moça.

***

Foi naquele ano que vi pela primeira vez os “Burgueses de Calais”, de Rodin, nos jardins de Victoria Tower, ali pelos fundos do parlamento londrino. Eu não sou daqueles fãs alucinados de Rodin, mas aquela escultura que evocava justamente um lugar que eu tinha acabado de conhecer ficou na minha cabeça. Imaginei a guardinha inglesa enchendo o saco daqueles pobres burgueses, Sorry, no pictures, sires.

Uns anos depois voltei ao mesmo local, procurando meus companheiros de infortúnio, e os burgueses tinham desaparecido.

Eram os tempos posteriores à crise de 2008, aquela que diziam ser a mais grave de todos os tempos, tempos de desespero e medo do futuro. A ausência dos burgueses foi, para mim, a maior prova de que a crise era mesmo grave, marolinha coisa nenhuma. A crise tinha destruído os burgueses de Calais, eles deviam ter se mudado para Dagenham, deviam estar sobrevivendo do que ainda restava do welfare state inglês, tentando trocar cupons por um pint de Guinness num pub qualquer.

Mas tudo isso eram apenas suposições. Eu tinha uma única certeza: em nenhum momento duvidei que foi aquela guardinha inglesa que tirou os coitados dali.

De lá para cá os burgueses voltaram. Da última vez que andei por lá, os danados estavam no mesmo lugar de antes, com as mesmas cordas no pescoço, em sacrifício não mais a Eduardo III, mas ao deus Mercado. Eu devia saber que nessas crises do capitalismo quem sempre se ferra de verdade são os pobres. E que nesses momentos sempre aparece uma guardinha inglesa para dizer: Sorry, no pictures.

Hitler no Brasil

Uma senhora de grande imaginação chamada Simoni Renée Guerreiro Dias revelou — certamente com grande perigo para sua própria integridade física — um segredo que forças ocultas tentam esconder de nós reles há mais de 70 anos, junto com a existência de ETs congelados nos porões de Washington. Vi agora no National Enquirer History.com que a dita senhora lançou no início do ano um livro em que afirma que Adolf Hitler morreu no Brasil, aos 95 anos.

O History, citando um autor russo chamado Dimitri Boryslev, diz que Stálin estava “convencido de que Hitler havia escapado. Ele suspeitava de um pacto entre o tirano alemão e as potências ocidentais, que teriam poupado sua vida em troca de conhecimentos de tecnologia bélica.” O que é tão óbvio que chega a ser vergonhoso duvidar: todos sabemos que, perto de Hitler, Von Braun era um estudante de terceiro ano primário.

Segundo a tese, foi assim: um submarino veio para a América do Sul deixando os refugiados — como Mengele e Eichmann — em vários países, mais ou menos como uma van parando de ponto em ponto com o sujeito pendurado na porta gritando; “Rio de Janeiro! Puerto Stroessner! Buenos Aires! Aceitamos vale-transporte e tique-refeição!” “Comboio do Holocausto” seria um bom nome para esse submarino da esperança. Ou, se alguém me perdoa a ironia, “Exodus”.

Sem ler o livro, o que posso intuir é que deve ser especificamente aí que entra a tese da senhora Dias. Segundo ela, assim que deu com os costados no Brasil, Hitler se transformou em um tal de Adolf Leipzig e foi morar em Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso, como prova a foto ao lado.

Eventuais discrepâncias em sua aparência devem ser relevadas. Leve em consideração a passagem do tempo, a diferença de clima: há um mundo de diferença entre a temperatura amena de Obersalzberg e os 89 graus Celsius do inverno mato-grossense, e deve ter sido isso que fez o Führer repensar sua vida, colocar em xeque seus valores e emergir como uma pessoa melhor, provando que nem todo pau que nasce torto morre torto, que todo mundo no fundo é bom, e que a gente deve continuar a acreditar na humanidade.

Porque vir ao Brasil fez bem a Hitler, e a foto prova isso. Antes racista convicto, aqui se atracou a uma negona de responsa que deve ter ensinado a ele coisas que aquela lambisgoia da Eva Braun, com sua rigidez alemã, jamais poderia; e dizia em seu ouvido “ai, Dodô… ai, Dodô…” Seu nome, segundo o Daily Express, era Cutinga; ninguém pode ser amargo se se deita com uma Cutinga.

Antes antitabagista fanático, aqui se rendeu ao cigarrinho — como não sei de quando é a foto, não posso dizer se é Clássicos, Belmont ou Derby; mas o fato de estar na mão esquerda significa que, além de tudo, Hitler se tornou canhoto, o que prova a sua capacidade inacreditável de mistificação. Os trópicos aumentaram suas orelhas e ele provavelmente terminava a noite com uma cachacinha na bodega, não sem antes derramar o pouquinho do santo para abrir os caminhos.

E aí a gente não pode deixar de admitir que Araripe Júnior tinha razão quando falava na tal “obnubilação tropical”:

Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

Mas por mais que eu goste da tese da senhora Dias, por mais que a admire pela coragem quase insana, a verdade é que tenho outra teoria. Está mais para “Meninos do Brasil” que para desesperos de fuga num pinga-pinga submarino. Além disso, estou plenamente convencido de que minha tese faz mais sentido na atualidade, e ajuda a explicar o mundo em que vivo.

Todos sabemos que a ciência alemã era uma das mais avançadas do mundo aquele momento. Todos sabemos também que Hitler era chegado numas macumbagens, numas coisas de ocultismo.

Graças a uma farta documentação fotográfica, hoje posso afirmar que, com a ajuda de seus cientistas e de seus magos, descobridores da conexão graálica entre ciência e sobrenatural, Hitler digitalizou completamente a sua mente, tornando-a imortal. Mandou queimarem seu corpo para todos acharem que ele estava morto: aquele churrasquinho de chucrute que os soviéticos encontraram era mesmo de Adolf. Mas a sua essência estava mais viva do que nunca, certamente mais viva que os judeus torrados em Auschwitz.

Hitler não fez isso à toa. Antes de todo mundo, ele percebeu para onde o mundo seguia. Anteviu o mundo hiperconectado do século XXI. Hoje, Hitler está completamente interligado à rede elétrica mundial e à internet, se multiplicando a cada clique numa página do MBL e a cada acendimento de uma lâmpada; e basta olhar em volta de você, basta ver o que as pessoas andam dizendo e pensando para entender que a minha tese este correta: só isso pode explicar o mundo em que vivemos.

Hitler hoje é uma tomada, é milhares de tomadas, talvez milhões, e está mais ativo do que nunca.

O tempo que passa

Da primeira vez que fui a Paris, décadas atrás, eu olhava para os velhinhos com quem cruzava na rua, alguns deles sobraçando baguetes, outros com aquele indefectível boné coroando um rosto curtido pelo tempo, e pensava: esse sujeito atravessou a II Guerra, aquele talvez tenha lutado na Resistência.

Depois os velhinhos começaram a rarear. Ou melhor, as suas histórias começaram a rarear.

Agora, eu olhava para os velhinhos e no máximo podia pensar: esse aí viu as barricadas de 68.

O passado não é mais como era antigamente.

Cinderela 77

Imagino que um bocado de gente já tenha visto isso, o último capítulo de “Cinderela 77”, uma novela da Tupi exibida em — surpresa! — 1977. Mas não custa postar aqui.

(É a maravilha da internet, especificamente do YouTube. A maior parte das gentes louva o link com o futuro que essas coisas de internet propiciam; eu sou grato pela chance de acertar as contas com o passado. De repente, um mundo de informações que pareciam perdidas para sempre no último grotão de minha memória reaparece aqui. Ninguém jamais vai saber o quanto sou grato ao YouTube por essas coisas. Eu vi capítulos dessa novela nessa época. Odiava novelas e desprezava quaisquer coisas associadas a elas — mal-estar que o tempo e a velhice destruíram, substituindo-as por uma condescendência extemporânea; mas lembro do robô que falava “PT saudações” [as gerações mais novas imaginarão que ele se referia ao Partido dos Trabalhadores e não a telegramas, pobres gerações ignorantes de um passado inútil] e de Sandoval. Eu sempre gostei dos vilões.)

Olhando agora, em retrospecto, fico impressionado com o uso da metalinguagem nessa novela.

Nos anos 70, a Tupi era uma empresa que respondia pelos erros de julgamento (e familiares) de Assis Chateaubriand e estava condenada ao fim. Reclamem o quanto quiserem, apontem as teorias conspiracionistas que desejarem: a verdade é que Figueiredo só apressou o desenlace inevitável. Ela mal pagava seus funcionários, se pagava. As condições técnicas eram terríveis. A sensação de fim cada vez mais próximo era inevitável, apenas contrabalançada pela fé na força de sua história.

Em diversos lugres vejo pessoas lembrando dos bons tempos da Tupi, muito parecidas com as que lamentam o fim da PanAir. A verdade é que tudo aquilo era heróico, sim, mas também era trágico. Conheço bem o espírito de improviso que fez parte do universo da TV durante muito tempo, e acho que ele só é bonito em retrospecto. Imagino quantos comerciais não foram editados clandestinamente na TV Tupi, quando o jabá era praticamente institucionalizado. Imagino o clima de “cada um por si e Deus que se foda” que a situação decadente da TV propiciava.

Mas quando vejo a liberdade criativa que era possível na Tupi, tudo isso acaba parecendo valer a pena.

A Tupi já tinha inventado a telenovela moderna com “Beto Rockefeller”, quase 10 anos antes. Há alguns capítulos disponíveis no YouTube, tirados do site da Cinemateca Brasileira, e eles são fascinantes. A linguagem se assemelha, em vários momentos, à do Cinema Novo, e imagino que se deva à mesma falta de dinheiro e de tecnologia. Os atores trazem muitas vezes os vícios do teatro, as marcações rígidas, o apego excessivo aos rr ditos corrrrretamente. Mas conseguem passar a emoção necessária, ao contrário dos atores despreparados que se vê nas novelas de hoje em dia.

É por tudo isso que fico impressionado com a liberdade criativa de que uma novela como “Cinderela 77” pôde desfrutar. Uma novela feita para o público do início da noite com resultado é fascinante, e quem tem alguma familiaridade com as tragédias gregas vai encontrar um bocado de pontos de convergência. E depois, se não for pedir demais, compare com as novelas pasteurizadas e engessadas da Globo hoje.

Isso não quer dizer que eu ache que a Globo destruiu a criatividade na TV. Pelo contrário. Ao contrário de outros comunistas velhos de guerra, tenho uma admiração sem tamanho pela tal Vênus Platinada. Mas para mim, pessoalmente, rever essa novela significa rever padrões estéticos que definiram a base do meu modo de ver TV, e que já foram superados há mais tempo do que ouso contar. Mas representa acima de tudo um deslumbramento com o talento, a ousadia e o amor que você vê em cada frame. Não se faz mais TV aberta como antigamente.

(Este post é um oferecimento da Associação dos Leitores Revoltados com a Cagada na Cabeça de Rafael Naqueles que Falam que “Minha Infância Foi Melhor Que a Sua”.)

“Dona Olga não tirou essa fotografia em vão.”

Eis uma confissão desnecessária: eu estou longe, muito longe de ser um sujeito modesto. Não tenho culpa, foi Deus que me fez assim.

Mas sempre que leio esses anúncios, tenho a certeza de que precisaria comer muito feijão até ser um redator tão bom.

(Outros três títulos dessa mesma campanha: “Não trabalha na Prefeitura, mas já tapou muito buraco por aí”; “Já passou dos 30. Mas podem vir quente que ela está fervendo.”; e “Roubaram a mulher do Romeu. Juro por Deus que não fui eu”.)

Essa campanha tem quase 40 anos, e foi veiculada em 1978 pela Publivendas, em Salvador. São os textos que me fascinam, que me impressionam além do normal.

São praticamente crônicas da vida comum. Contam detalhes da vida do ouvinte de rádio que mesmo hoje, quatro décadas depois, ainda são verdadeiros. É uma campanha absolutamentebrilhante.

E ela acabou participando de um episódio curioso na minha vida.

Olhando para trás, é assustador que esse episódio já tenha um quarto de século — fazendo aniversário por esses dias, se já não fez.

Eu trabalhava em uma agência de Aracaju e estava fazendo uma campanha para uma rádio local. A primeira campanha que fiz ficou legal, mas foi rejeitada pelo dono da agência.

Fiz uma segunda. E essa ficou muito boa. Leve, engraçada, abrangia os públicos-alvo da rádio. Brincava com nomes locais famosos e tentava se aproximar do universo dos ouvintes. Ela foi rejeitada também.

E aí eu cansei. Tá certo, vamos brincar.

Datilografei os títulos dessa campanha e levei para o sujeito que tomava as decisões. Joguei o melhor papo de vendedor que eu tinha — o que não devia ser grande coisa, porque se eu vendesse bem não seria redator. De novo: “Não tá bom.”

Era a minha deixa.

“Olha, essa campanha ganhou não apenas o Colunistas de melhor campanha de jornal, mas também o Melhores da Década. Mas se você não gostou, paciência. Eles não entendem nada mesmo.”

Pedi demissão uma semana depois.

(A propósito, o título deste post é a legenda do anúncio da dona Olga.)

Sítio do Picapau Amarelo

Uns anos atrás surgiu uma dessas polêmicas que adquirem mais importância graças à caixa de ressonância das redes sociais. Um professor tentou proibir a reedição de “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, por causa do conteúdo racista que ele colocava na boca da Emília; mais tarde, o Conselho Nacional de Educação desaconselhou o seu uso nas escolas, a não ser que fosse “acompanhado de explicações sobre o seu conteúdo” — o que, cá para nós, equivale a uma proibição de fato: é esperar muito da maioria dos professores deste país que eles discutam algo um pouco mais profundamente.

Na quiproquó que se seguiu, o mais chato foram os argumentos ad hominem. Cartas pessoais de Lobato, em que ele defendia a eugenia, apareceram na mídia. É um fenômeno antigo, mas que tem se agravado em tempos de redes sociais e de matérias como “Caetano estaciona no Leblon”: toda obra literária é necessariamente o retrato cuspido e escarrado do homem. Lobato era racista, o que ninguém jamais pensaria em negar; logo, sua obra deveria ser proibida. Infeliz ou felizmente, seus livros eram muito maiores que o racismo, e é justamente isso que faz dele um grande escritor. Da mesma forma, o conservadoríssimo Honoré de Balzac conseguiu gravar um retrato absoluto da França na primeira metade do século XIX, bom a ponto de um tal de Karl Marx (ou Engels? Eu não lembro) dizer que aprendeu mais sobre a França da primeira metade do século XIX com ele do que nos livros de história. Por isso, o mesmo sujeito que colocava nos lábios de Dona Benta afirmações justas sobre o respeito às pessoas e ao conhecimento passou a ser julgado unicamente pelas referências irritadas e canalhas da Emília aos “beiços da tia Nastácia”.

Não escrevi sobre isso na época; deveria ter escrito. Porque eu fui criado com Monteiro Lobato. Primeiro com o seriado da Globo e da TV Cultura, depois com os livros do Sítio do Picapau Amarelo, aquelas edições ainda com as ilustrações de André Le Blanc.

É possível que eu não tenha escrito sobre isso, numa época em que este blog ainda podia ser considerado ativo, porque não queria me ocupar com as discussões que se seguiriam, ou mesmo eventuais acusações de racismo que iriam aparecer. Então eu teria que responder que dificilmente sou racista — ultimamente é difícil dizer cabalmente que não se é racista a não ser que você se mostre disposto a se enquadrar num discurso específico, com termos ainda mais específicos, então eu acharia mais prudente deixar espaço para a dúvida e tascaria o “dificilmente” redentor, e se necessário faria um daqueles mea culpas hipócritas que nos dias de hoje fazem as vezes da autocrítica soviética da época do grande camarada.

Mas em minha defesa, caso se chegasse ao veredito de que eu sou racista-mas-racista-mesmo, eu poderia dizer que não foi o Sítio que me fez assim, não foi o Sítio que nunca me tratou com amor (eu e a Lílian queríamos ser como uma criança, cheias de esperança e felizes). Ao contrário, com ele aprendi a respeitar os talentos da Tia Nastácia, e a sabedoria popular do tio Barnabé. Com Dona Benta, por sua vez, aprendi a importância da racionalidade e do bom senso. Com a própria Emília, mais do que os comentários disparatados de sempre, alguns dos quais nitidamente racistas, aprendi que era bom manter a minha curiosidade acerca do mundo que me rodeava, e que era bom questionar o estabelecido. Eu só não aprendi porra nenhuma com o Quindim. Mas acho que ninguém aprendeu.

O que me fez racista foi o rebolar da neguinha de carne tão dura andando por uma quebrada da Federação, ah, danada, ela deslizava pela rua, ereta, os seios apontando para a torre da TV Aratu, e ela caminhava orgulhosa, sem dar nem tchuns aos bestas que tentavam controlar a saliva que lhes escorria pela boca, pelo queixo, que molhava o seu olhar assombrado; foi aquele rebolar que me fez usar esses termos racistas-mas-racistas-mesmo. Peço perdão por isso.

Para mim, diante de uma escolha entre o valor cultural e didático dos livros do Sítio e as posturas racistas da Emília, que eu posso identificar (ao contrário dos pobres alunos que não parecem ter a quem recorrer), não há escolha possível. Sem falar, claro, na estupidez que é proibir qualquer livro — seja “Caçadas de Pedrinho”, Mein Kampf ou a Bíblia.

O problema é que acho muito improvável que um livro pudesse transformar uma pessoa em racista. Ainda menos os livros de Lobato, escritos nos anos 30. O conteúdo que hoje salta aos olhos como racista era moeda corrente em sua época; estava dentro da normalidade de seu tempo, e por essa razão tudo isso que hoje incomoda mesmo a quem, como eu, normalmente estranha os termos utilizados, simplesmente passava batido, assim como a expressão “preto de alma branca” podia parecer elogio 40 anos atrás.

Acima de tudo, a estupidez de sequer pensar em deixar de oferecer a crianças e adolescentes o universo de Monteiro Lobato porque simplesmente não se quer discutir em sala de aula a questão do racismo, ir além de um “racismo ruim, tolerância bom” orwelliano, nem colocar as declarações da Emília em perspectiva histórica — o que em si representa uma chance rara de mostrar a maneira muitas vezes imperceptível como o preconceito pode ser normal em um tempo e inaceitável em outro —, é mais uma prova não apenas do desprezo como se vê a capacidade de percepção e compreensão das crianças, mas principalmente da falência do sistema educacional brasileiro. (A outra sou eu, mas isso é assunto para outra hora.)

Muito mais que isso, mais do que essa discussão que apenas reflete um tempo em que um certo obscurantismo de boas intenções parece estar se tornando um valor universal, me dói saber que catorze contos ou novelas do Sítio só foram publicados na Argentina e permanecem inéditos no Brasil, dos quais um é um tal “Ciência do Visconde” — de três outros ninguém sabe sequer o nome. Em vez de polêmicas vazias, a academia bem que podia tentar encontrar essas histórias nas bibliotecas hermanas. Faria mais bem à cultura nacional do que com essas discussões estéreis. E os senhores acadêmicos dariam mais sentido ao tempo que gastam na universidade e aos salários que recebem.

Mas eu sou um otimista, e a cada dia tenho mais certeza dessa característica antes insuspeita em mim. Não gosto dos exageros dos tempos atuais, mas acredito que do choque de concepções que dão as tônicas destes tempos, que dou a sorte de presenciar, vai surgir uma síntese que expurgue esses exageros e absorva os novos valores sem precisar obliterar absolutamente o passado, nem abdicar completamente da inteligência.

Pensando melhor, não; “acreditar” é demais. Então me deixe substituir esse verbo por “esperar”. Confiar e esperar, pedia o Conde de Monte Cristo quando eu era pequeno.

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Mas no fundo o problema talvez seja outro. Deixa eu admitir: o problema todo é que o Sítio é um assunto pessoal para mim.

A partir de 1977, e principalmente em 1978, o Sítio do Picapau Amarelo foi parte do cotidiano de todos nós — do meu, ao menos. Os fins de tarde, depois que tínhamos amealhado os cortes, hematomas e arranhões do dia, tinham que ser passados diante da TV, assistindo às aventuras do Pedrinho, Narizinho e Emília.

Há uns poucos anos encontrei no YouTube o primeiro capítulo do Sítio. Fiquei impressionado com a sua qualidade didática, com a modernidade (para sua época) de um produto que conseguia juntar muito bem educação e entretenimento. Mas para ser objetivo, seu maior mérito foi dirimir uma antiga dúvida minha: durante quase 40 anos achei que não tinha visto o primeiro capítulo. Na verdade, vi; mas em vez de assistir a ele no dia da estreia, à tarde, quando provavelmente estava na escola, vi a reprise na manhã seguinte. É graças a isso que sei exatamente onde eu estava na manhã do dia 8 de março de 1977: em casa, assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo.

Estranhei, em 1978, a mudança da Emília; Dirce Migliaccio saiu e foi substituída por Reny de Oliveira. Eu não gostava de mudanças assim. Hoje, olhando para trás, Reny sempre foi “a” Emília, ela só não tinha entrado ainda no Sítio. E foi justamente naquele ano que o Sítio deu um salto enorme de qualidade. Imagino que a experiência acumulada no ano anterior tenha possibilitado esses avanços narrativos. O resultado foram grandes episódios, como “O Minotauro”, hoje disponível no YouTube, e “Os Piratas do Capitão Gancho”.

Dando uma olhada na lista de episódios do Sítio do Picapau Amarelo, percebo que para mim ele começou a perder a graça já a partir de 1979. “Davi e Golias” foi uma das coisas mais chatas a que assisti, com Jonas Bloch fazendo um pobre Davi sofredor. Provavelmente não eram roteiros ruins; talvez fosse eu que estava crescendo.

Mas o Sítio acabou definitivamente, para mim, quando Júlio César, que fazia o papel de Pedrinho, e Rosana Garcia, a Narizinho, foram substituídos porque haviam crescido demais, estavam velhos demais, no final de 1980. Acabava ali um pedaço importante da minha infância; outros iriam acabar nos poucos anos seguintes.

(É engraçado assistir aos episódios hoje. Rosana Garcia era uma atriz medíocre, mas Júlio César é impressionante em sua naturalidade. Era um ator nato que infelizmente desistiu da carreira.)

(N. do A.: Parei agora para tentar entender as minhas paixões. Eu era apaixonado simultaneamente pela Rosana Garcia, pela Lynda Carter [que fazia a Mulher Maravilha], pela Paula Saldanha e por uma menina que fazia um comercial dos biscoitos Tupy com uma versão de “Ciranda, Cirandinha”. Eu tinha 6, 8 anos. Rapaz, eu tinha problemas.)

Tokusatsus

E daí que eu passei a tarde assistindo a tokusatsus. Escrevo tokusatsu com gosto, porque tokusatsu é palavra que aprendi hoje: tokusatsu, tokusatsu, e me esforço em pronunciar a palavra estranha com aquele jeito gutural que não diferencia paroxítona de oxítona, um jeito agressivo de japonês rico que se quer descendente de samurai: tokusatsu. Vou repetir tokusatsu até cansar.

Tokusatsu.

Tokusatsus são aqueles filmes com monstros e efeitos especiais do tempo da TV a lenha — o meu tempo. Parecem toscos hoje. Mas esses meninos de hoje estão mal-acostumados com essas coisas de CGI barata que em todo canto se acha, que nem bolacha, mulher e patrão. Para quem foi menino quando eu fui, eles eram fascinantes.

Quase 40 anos atrás eu assistia a esses trecos todo o tempo. Obviamente não sabia que os tokusatsus tinham sido uma febre no Japão, como descobri hoje. Começaram com o Nacional Kid da Panasonic, que não fez muito sucesso naquele tempo e lugar. E então, de uma hora para outra, na metade dos anos 60 eles começaram a pipocar: Ultraman, Ultraseven, Robô Gigante, Vingadores do Espaço e o mais elusivo de todos, Ésper (criado pela concorrente da Panasonic, a Toshiba). Nos anos 70 eles eram parte da programação da TV Tupi — que, para crianças, era muito melhor que a Globo.

Mas só hoje, assistindo a episódios de Vingadores do Espaço, Ultraman, Ultraseven e Ésper, eu entendi por que esses filmes apareceram.

Pode-se datar a origem do tokusatsu no dia em que o almirante Matthew Perry usou seus canhões para obrigar o Japão a abrir seus portos aos Estados Unidos, pondo fim a séculos de isolacionismo e dando início a uma cadeia de acontecimentos e sangue ruim que desembocou no ataque japonês a Pearl Harbor, quase 90 anos depois. Mas eles só existem mesmo por causa da ocupação americana capitaneada pelo general MacArthur.

Na metade dos anos 60, fazia menos de 15 anos que os Estados Unidos Aliados tinham assinado o tratado de São Francisco, dando início ao fim da ocupação do Japão, um país naturalmente isolacionista, orgulhoso, e extremamente consciente de valores como honra — onde mais o seppuku poderia nascer? A humilhação de se ver, pela primeira vez em sua história milenar, um país ocupado ainda estava muito viva no subconsciente dos japoneses; aquele era um país mais acostumado a cometer atrocidades no país dos outros. Esse era o seu grande medo.

Os tokusatsus são a resposta perfeita ao orgulho japonês. Suas sinopses são sempre as mesmas: alienígenas malvados, como antes os americanos, tentam invadir o Japão; mas não vão conseguir, porque os japoneses são carne de pescoço. É sempre essa a briga: a defesa da Terra, e a Terra não pode ser mais que a terra japonesa. É verdade que esse tipo de resistência patriótica é um valor universal; mas para que ele se consolide na psique de um povo e encontre o seu caminho para o mainstream televisivo é preciso um trauma específico, e nesse caso foram os samangos americanos estuprando ou comprando milhares de japonesas e fazendo o possível para destruir sua cultura e sua memória.

Se Mishima fosse um pouco mais novo teria assistido fascinado a esses filmes.

Mas entender a gênese dos tokusatsus é apenas parte da diversão, e uma parte pequena. Rever esses filmes depois de décadas é uma sensação muito boa, porque me ajuda a entender a criança que fui e, talvez, com boa vontade, talvez sentir de novo aquilo que senti quando assisti, pela primeira vez, ao Ultraman dando uns golpes safados de caratê num monstro que, com sorte, pareceria o Godzilla.

Enquanto somos crianças qualquer coisa serve, qualquer coisa fascina e nos coloca diante do novo. É essa a graça de ser criança. Mas aí você cresce e vira isso que é hoje. Agora é impressionante ver a mediocridade da produção dos Vingadores do Espaço, por exemplo. É muito ruim. Ultraman, por sua vez, impressiona pela qualidade, se nos lembrarmos que eram filmes feitos para a TV, em prazo apertado, e em 1966.

Em todos eles, no entanto, há roteiros com aquela qualidade básica de oferecer às crianças os arquétipos com que elas se identificam. Não são ruins. Além de colocar crianças como agentes heróicos do futuro, condição sine qua non para que meninos se sentem no chão diante da TV em preto e branco com olhos atentos, equacionam tragédias e valores razoáveis. Simplórios, e mal escritos quase sempre; mas suficientes.

É engraçado descobrir agora que nunca vimos as versões japonesas. Não acho que houvesse muitos tradutores de japonês na TV Tupi. Em vez disso, nossas traduções eram feitas sempre a partir das versões americanas, e por isso “Vingadores do Espaço” não se chama “Embaixador Magma”, e Goa no Brasil virou Rodak, como na gringolândia.

Ésper, por sua vez, é uma das razões pelas quais sou grato à internet. Durante anos, não encontrei ninguém que tivesse visto o seriado, ninguém que sequer lembrasse que ele havia existido. Só com a internet pude ter a certeza de que não estava louco, inventando coisas, ou que o pipoqueiro da porta do colégio não tinha colocado LSD na minha pipoca. Que eu realmente tinha assistido a um seriado com um menino que trazia um jetpack nas costas e tinha um passarinho mecânico que às vezes aparecia em seu ombro — Oscar Wilde tem um conto que fala de um rouxinol mecânico, conto que li quando criança. Esse rouxinol, para mim, sempre foi igualzinho a Shikar, o tal passarinho.

Talvez seja por causa desse passarinho que, em vez de assistir a “Era Uma Vez em Tóquio” pela enésima vez nesta tarde de domingo, fiquei assistindo a Ultraman. Não me arrependo nem um pouco.