“Dona Olga não tirou essa fotografia em vão.”

Eis uma confissão desnecessária: eu estou longe, muito longe de ser um sujeito modesto. Não tenho culpa, foi Deus que me fez assim.

Mas sempre que leio esses anúncios, tenho a certeza de que precisaria comer muito feijão até ser um redator tão bom.

(Outros três títulos dessa mesma campanha: “Não trabalha na Prefeitura, mas já tapou muito buraco por aí”; “Já passou dos 30. Mas podem vir quente que ela está fervendo.”; e “Roubaram a mulher do Romeu. Juro por Deus que não fui eu”.)

Essa campanha tem quase 40 anos, e foi veiculada em 1978 pela Publivendas, em Salvador. São os textos que me fascinam, que me impressionam além do normal.

São praticamente crônicas da vida comum. Contam detalhes da vida do ouvinte de rádio que mesmo hoje, quatro décadas depois, ainda são verdadeiros. É uma campanha absolutamentebrilhante.

E ela acabou participando de um episódio curioso na minha vida.

Olhando para trás, é assustador que esse episódio já tenha um quarto de século — fazendo aniversário por esses dias, se já não fez.

Eu trabalhava em uma agência de Aracaju e estava fazendo uma campanha para uma rádio local. A primeira campanha que fiz ficou legal, mas foi rejeitada pelo dono da agência.

Fiz uma segunda. E essa ficou muito boa. Leve, engraçada, abrangia os públicos-alvo da rádio. Brincava com nomes locais famosos e tentava se aproximar do universo dos ouvintes. Ela foi rejeitada também.

E aí eu cansei. Tá certo, vamos brincar.

Datilografei os títulos dessa campanha e levei para o sujeito que tomava as decisões. Joguei o melhor papo de vendedor que eu tinha — o que não devia ser grande coisa, porque se eu vendesse bem não seria redator. De novo: “Não tá bom.”

Era a minha deixa.

“Olha, essa campanha ganhou não apenas o Colunistas de melhor campanha de jornal, mas também o Melhores da Década. Mas se você não gostou, paciência. Eles não entendem nada mesmo.”

Pedi demissão uma semana depois.

(A propósito, o título deste post é a legenda do anúncio da dona Olga.)

Sítio do Picapau Amarelo

Uns anos atrás surgiu uma dessas polêmicas que adquirem mais importância graças à caixa de ressonância das redes sociais. Um professor tentou proibir a reedição de “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, por causa do conteúdo racista que ele colocava na boca da Emília; mais tarde, o Conselho Nacional de Educação desaconselhou o seu uso nas escolas, a não ser que fosse “acompanhado de explicações sobre o seu conteúdo” — o que, cá para nós, equivale a uma proibição de fato: é esperar muito da maioria dos professores deste país que eles discutam algo um pouco mais profundamente.

Na quiproquó que se seguiu, o mais chato foram os argumentos ad hominem. Cartas pessoais de Lobato, em que ele defendia a eugenia, apareceram na mídia. É um fenômeno antigo, mas que tem se agravado em tempos de redes sociais e de matérias como “Caetano estaciona no Leblon”: toda obra literária é necessariamente o retrato cuspido e escarrado do homem. Lobato era racista, o que ninguém jamais pensaria em negar; logo, sua obra deveria ser proibida. Infeliz ou felizmente, seus livros eram muito maiores que o racismo, e é justamente isso que faz dele um grande escritor. Da mesma forma, o conservadoríssimo Honoré de Balzac conseguiu gravar um retrato absoluto da França na primeira metade do século XIX, bom a ponto de um tal de Karl Marx (ou Engels? Eu não lembro) dizer que aprendeu mais sobre a França da primeira metade do século XIX com ele do que nos livros de história. Por isso, o mesmo sujeito que colocava nos lábios de Dona Benta afirmações justas sobre o respeito às pessoas e ao conhecimento passou a ser julgado unicamente pelas referências irritadas e canalhas da Emília aos “beiços da tia Nastácia”.

Não escrevi sobre isso na época; deveria ter escrito. Porque eu fui criado com Monteiro Lobato. Primeiro com o seriado da Globo e da TV Cultura, depois com os livros do Sítio do Picapau Amarelo, aquelas edições ainda com as ilustrações de André Le Blanc.

É possível que eu não tenha escrito sobre isso, numa época em que este blog ainda podia ser considerado ativo, porque não queria me ocupar com as discussões que se seguiriam, ou mesmo eventuais acusações de racismo que iriam aparecer. Então eu teria que responder que dificilmente sou racista — ultimamente é difícil dizer cabalmente que não se é racista a não ser que você se mostre disposto a se enquadrar num discurso específico, com termos ainda mais específicos, então eu acharia mais prudente deixar espaço para a dúvida e tascaria o “dificilmente” redentor, e se necessário faria um daqueles mea culpas hipócritas que nos dias de hoje fazem as vezes da autocrítica soviética da época do grande camarada.

Mas em minha defesa, caso se chegasse ao veredito de que eu sou racista-mas-racista-mesmo, eu poderia dizer que não foi o Sítio que me fez assim, não foi o Sítio que nunca me tratou com amor (eu e a Lílian queríamos ser como uma criança, cheias de esperança e felizes). Ao contrário, com ele aprendi a respeitar os talentos da Tia Nastácia, e a sabedoria popular do tio Barnabé. Com Dona Benta, por sua vez, aprendi a importância da racionalidade e do bom senso. Com a própria Emília, mais do que os comentários disparatados de sempre, alguns dos quais nitidamente racistas, aprendi que era bom manter a minha curiosidade acerca do mundo que me rodeava, e que era bom questionar o estabelecido. Eu só não aprendi porra nenhuma com o Quindim. Mas acho que ninguém aprendeu.

O que me fez racista foi o rebolar da neguinha de carne tão dura andando por uma quebrada da Federação, ah, danada, ela deslizava pela rua, ereta, os seios apontando para a torre da TV Aratu, e ela caminhava orgulhosa, sem dar nem tchuns aos bestas que tentavam controlar a saliva que lhes escorria pela boca, pelo queixo, que molhava o seu olhar assombrado; foi aquele rebolar que me fez usar esses termos racistas-mas-racistas-mesmo. Peço perdão por isso.

Para mim, diante de uma escolha entre o valor cultural e didático dos livros do Sítio e as posturas racistas da Emília, que eu posso identificar (ao contrário dos pobres alunos que não parecem ter a quem recorrer), não há escolha possível. Sem falar, claro, na estupidez que é proibir qualquer livro — seja “Caçadas de Pedrinho”, Mein Kampf ou a Bíblia.

O problema é que acho muito improvável que um livro pudesse transformar uma pessoa em racista. Ainda menos os livros de Lobato, escritos nos anos 30. O conteúdo que hoje salta aos olhos como racista era moeda corrente em sua época; estava dentro da normalidade de seu tempo, e por essa razão tudo isso que hoje incomoda mesmo a quem, como eu, normalmente estranha os termos utilizados, simplesmente passava batido, assim como a expressão “preto de alma branca” podia parecer elogio 40 anos atrás.

Acima de tudo, a estupidez de sequer pensar em deixar de oferecer a crianças e adolescentes o universo de Monteiro Lobato porque simplesmente não se quer discutir em sala de aula a questão do racismo, ir além de um “racismo ruim, tolerância bom” orwelliano, nem colocar as declarações da Emília em perspectiva histórica — o que em si representa uma chance rara de mostrar a maneira muitas vezes imperceptível como o preconceito pode ser normal em um tempo e inaceitável em outro —, é mais uma prova não apenas do desprezo como se vê a capacidade de percepção e compreensão das crianças, mas principalmente da falência do sistema educacional brasileiro. (A outra sou eu, mas isso é assunto para outra hora.)

Muito mais que isso, mais do que essa discussão que apenas reflete um tempo em que um certo obscurantismo de boas intenções parece estar se tornando um valor universal, me dói saber que catorze contos ou novelas do Sítio só foram publicados na Argentina e permanecem inéditos no Brasil, dos quais um é um tal “Ciência do Visconde” — de três outros ninguém sabe sequer o nome. Em vez de polêmicas vazias, a academia bem que podia tentar encontrar essas histórias nas bibliotecas hermanas. Faria mais bem à cultura nacional do que com essas discussões estéreis. E os senhores acadêmicos dariam mais sentido ao tempo que gastam na universidade e aos salários que recebem.

Mas eu sou um otimista, e a cada dia tenho mais certeza dessa característica antes insuspeita em mim. Não gosto dos exageros dos tempos atuais, mas acredito que do choque de concepções que dão as tônicas destes tempos, que dou a sorte de presenciar, vai surgir uma síntese que expurgue esses exageros e absorva os novos valores sem precisar obliterar absolutamente o passado, nem abdicar completamente da inteligência.

Pensando melhor, não; “acreditar” é demais. Então me deixe substituir esse verbo por “esperar”. Confiar e esperar, pedia o Conde de Monte Cristo quando eu era pequeno.

***

Mas no fundo o problema talvez seja outro. Deixa eu admitir: o problema todo é que o Sítio é um assunto pessoal para mim.

A partir de 1977, e principalmente em 1978, o Sítio do Picapau Amarelo foi parte do cotidiano de todos nós — do meu, ao menos. Os fins de tarde, depois que tínhamos amealhado os cortes, hematomas e arranhões do dia, tinham que ser passados diante da TV, assistindo às aventuras do Pedrinho, Narizinho e Emília.

Há uns poucos anos encontrei no YouTube o primeiro capítulo do Sítio. Fiquei impressionado com a sua qualidade didática, com a modernidade (para sua época) de um produto que conseguia juntar muito bem educação e entretenimento. Mas para ser objetivo, seu maior mérito foi dirimir uma antiga dúvida minha: durante quase 40 anos achei que não tinha visto o primeiro capítulo. Na verdade, vi; mas em vez de assistir a ele no dia da estreia, à tarde, quando provavelmente estava na escola, vi a reprise na manhã seguinte. É graças a isso que sei exatamente onde eu estava na manhã do dia 8 de março de 1977: em casa, assistindo ao Sítio do Picapau Amarelo.

Estranhei, em 1978, a mudança da Emília; Dirce Migliaccio saiu e foi substituída por Reny de Oliveira. Eu não gostava de mudanças assim. Hoje, olhando para trás, Reny sempre foi “a” Emília, ela só não tinha entrado ainda no Sítio. E foi justamente naquele ano que o Sítio deu um salto enorme de qualidade. Imagino que a experiência acumulada no ano anterior tenha possibilitado esses avanços narrativos. O resultado foram grandes episódios, como “O Minotauro”, hoje disponível no YouTube, e “Os Piratas do Capitão Gancho”.

Dando uma olhada na lista de episódios do Sítio do Picapau Amarelo, percebo que para mim ele começou a perder a graça já a partir de 1979. “Davi e Golias” foi uma das coisas mais chatas a que assisti, com Jonas Bloch fazendo um pobre Davi sofredor. Provavelmente não eram roteiros ruins; talvez fosse eu que estava crescendo.

Mas o Sítio acabou definitivamente, para mim, quando Júlio César, que fazia o papel de Pedrinho, e Rosana Garcia, a Narizinho, foram substituídos porque haviam crescido demais, estavam velhos demais, no final de 1980. Acabava ali um pedaço importante da minha infância; outros iriam acabar nos poucos anos seguintes.

(É engraçado assistir aos episódios hoje. Rosana Garcia era uma atriz medíocre, mas Júlio César é impressionante em sua naturalidade. Era um ator nato que infelizmente desistiu da carreira.)

(N. do A.: Parei agora para tentar entender as minhas paixões. Eu era apaixonado simultaneamente pela Rosana Garcia, pela Lynda Carter [que fazia a Mulher Maravilha], pela Paula Saldanha e por uma menina que fazia um comercial dos biscoitos Tupy com uma versão de “Ciranda, Cirandinha”. Eu tinha 6, 8 anos. Rapaz, eu tinha problemas.)

Tokusatsus

E daí que eu passei a tarde assistindo a tokusatsus. Escrevo tokusatsu com gosto, porque tokusatsu é palavra que aprendi hoje: tokusatsu, tokusatsu, e me esforço em pronunciar a palavra estranha com aquele jeito gutural que não diferencia paroxítona de oxítona, um jeito agressivo de japonês rico que se quer descendente de samurai: tokusatsu. Vou repetir tokusatsu até cansar.

Tokusatsu.

Tokusatsus são aqueles filmes com monstros e efeitos especiais do tempo da TV a lenha — o meu tempo. Parecem toscos hoje. Mas esses meninos de hoje estão mal-acostumados com essas coisas de CGI barata que em todo canto se acha, que nem bolacha, mulher e patrão. Para quem foi menino quando eu fui, eles eram fascinantes.

Quase 40 anos atrás eu assistia a esses trecos todo o tempo. Obviamente não sabia que os tokusatsus tinham sido uma febre no Japão, como descobri hoje. Começaram com o Nacional Kid da Panasonic, que não fez muito sucesso naquele tempo e lugar. E então, de uma hora para outra, na metade dos anos 60 eles começaram a pipocar: Ultraman, Ultraseven, Robô Gigante, Vingadores do Espaço e o mais elusivo de todos, Ésper (criado pela concorrente da Panasonic, a Toshiba). Nos anos 70 eles eram parte da programação da TV Tupi — que, para crianças, era muito melhor que a Globo.

Mas só hoje, assistindo a episódios de Vingadores do Espaço, Ultraman, Ultraseven e Ésper, eu entendi por que esses filmes apareceram.

Pode-se datar a origem do tokusatsu no dia em que o almirante Matthew Perry usou seus canhões para obrigar o Japão a abrir seus portos aos Estados Unidos, pondo fim a séculos de isolacionismo e dando início a uma cadeia de acontecimentos e sangue ruim que desembocou no ataque japonês a Pearl Harbor, quase 90 anos depois. Mas eles só existem mesmo por causa da ocupação americana capitaneada pelo general MacArthur.

Na metade dos anos 60, fazia menos de 15 anos que os Estados Unidos Aliados tinham assinado o tratado de São Francisco, dando início ao fim da ocupação do Japão, um país naturalmente isolacionista, orgulhoso, e extremamente consciente de valores como honra — onde mais o seppuku poderia nascer? A humilhação de se ver, pela primeira vez em sua história milenar, um país ocupado ainda estava muito viva no subconsciente dos japoneses; aquele era um país mais acostumado a cometer atrocidades no país dos outros. Esse era o seu grande medo.

Os tokusatsus são a resposta perfeita ao orgulho japonês. Suas sinopses são sempre as mesmas: alienígenas malvados, como antes os americanos, tentam invadir o Japão; mas não vão conseguir, porque os japoneses são carne de pescoço. É sempre essa a briga: a defesa da Terra, e a Terra não pode ser mais que a terra japonesa. É verdade que esse tipo de resistência patriótica é um valor universal; mas para que ele se consolide na psique de um povo e encontre o seu caminho para o mainstream televisivo é preciso um trauma específico, e nesse caso foram os samangos americanos estuprando ou comprando milhares de japonesas e fazendo o possível para destruir sua cultura e sua memória.

Se Mishima fosse um pouco mais novo teria assistido fascinado a esses filmes.

Mas entender a gênese dos tokusatsus é apenas parte da diversão, e uma parte pequena. Rever esses filmes depois de décadas é uma sensação muito boa, porque me ajuda a entender a criança que fui e, talvez, com boa vontade, talvez sentir de novo aquilo que senti quando assisti, pela primeira vez, ao Ultraman dando uns golpes safados de caratê num monstro que, com sorte, pareceria o Godzilla.

Enquanto somos crianças qualquer coisa serve, qualquer coisa fascina e nos coloca diante do novo. É essa a graça de ser criança. Mas aí você cresce e vira isso que é hoje. Agora é impressionante ver a mediocridade da produção dos Vingadores do Espaço, por exemplo. É muito ruim. Ultraman, por sua vez, impressiona pela qualidade, se nos lembrarmos que eram filmes feitos para a TV, em prazo apertado, e em 1966.

Em todos eles, no entanto, há roteiros com aquela qualidade básica de oferecer às crianças os arquétipos com que elas se identificam. Não são ruins. Além de colocar crianças como agentes heróicos do futuro, condição sine qua non para que meninos se sentem no chão diante da TV em preto e branco com olhos atentos, equacionam tragédias e valores razoáveis. Simplórios, e mal escritos quase sempre; mas suficientes.

É engraçado descobrir agora que nunca vimos as versões japonesas. Não acho que houvesse muitos tradutores de japonês na TV Tupi. Em vez disso, nossas traduções eram feitas sempre a partir das versões americanas, e por isso “Vingadores do Espaço” não se chama “Embaixador Magma”, e Goa no Brasil virou Rodak, como na gringolândia.

Ésper, por sua vez, é uma das razões pelas quais sou grato à internet. Durante anos, não encontrei ninguém que tivesse visto o seriado, ninguém que sequer lembrasse que ele havia existido. Só com a internet pude ter a certeza de que não estava louco, inventando coisas, ou que o pipoqueiro da porta do colégio não tinha colocado LSD na minha pipoca. Que eu realmente tinha assistido a um seriado com um menino que trazia um jetpack nas costas e tinha um passarinho mecânico que às vezes aparecia em seu ombro — Oscar Wilde tem um conto que fala de um rouxinol mecânico, conto que li quando criança. Esse rouxinol, para mim, sempre foi igualzinho a Shikar, o tal passarinho.

Talvez seja por causa desse passarinho que, em vez de assistir a “Era Uma Vez em Tóquio” pela enésima vez nesta tarde de domingo, fiquei assistindo a Ultraman. Não me arrependo nem um pouco.

Porto da Barra

Só agora, mais de quatro décadas depois, eu descubro que o meu amor único, ciumento, exclusivista, neurótico-psicótico, é praga de mãe.

Então eu digo que as velhinhas têm razão: praga de mãe pega, pega de verdade, e lhe condena aos seus desejos e lhe dá a régua e o compasso com o qual você vai medir o mundo nos dias bons e ruins que se seguirão depois.

Foi assim que saí do Espanhol, onde sofri a primeira das tantas derrotas na minha vida e me trouxeram a este mundo. Acho que àquela altura o Carnaval que a cidade tinha feito para me receber já tinha acabado, porque demorei para sair do hospital. No táxi que me levaria ao apartamento na 8 de Dezembro, minha mãe me ergueu e mostrou para mim aquela nesguinha de praia entre dois fortes portugueses: “Olha, Rafael, essa vai ser a sua praia”. Minha avó Celeste, assustada, mandou que ela tivesse cuidado comigo, mas minha mãe sabia com quem estava falando, e de quem estava falando, e do que estava falando. Naquele dia de fevereiro ela me deu a posse daquela praia. Ela ainda é minha.

Não importa quanto tempo eu fique longe. O Porto da Barra é um daqueles poucos lugares onde lembro quem é Rafael Galvão. É a praia que tive inteira: perto do forte de São Diogo quando eu ia com Romário — e Tony, e Mário, e Magno, e onde Romário me ensinou a nadar —, no meio quando ia com meu pai porque ali havia um bar, mas principalmente perto do forte de Santa Maria quando ia com minha mãe, e via os barcos chegando para me darem manjubinhas com as quais eu criaria brincadeiras dignas de “Tubarão” — e um dia até mesmo uma cabeça de tubarão. No quebra-mar de onde, quando a idade se fez adequada e um vislumbre de coragem apareceu, passei a mergulhar. Na areia onde catei vidros do mar e fiz os meus primeiros castelos e recebi as primeiras lições sobre a efemeridade da vida, numa das tantas ondas que me jogaram no fundo e de novo na superfície e de novo no fundo, num rocambolear que durante aquele átimo sempre parecia infinito.

O amor à praia do Porto da Barra me fez cego para as belezas eventuais de outras praias. O mar cristalino e morno de Maceió, as águas geladas de Ipanema, o azul único do Mediterrâneo e do Egeu? Tudo tão pequeno, meu Deus, tudo tão menor que aquela praia onde as ondas batem com a cadência de uma canção de Caymmi.

Talvez sejam elas, as ondas. Talvez mais que tudo, mais que a água verde e o cheiro de maresia: as ondas. O Porto tem a calma do espírito da Bahia, a certeza de que o tempo é seu, e de que ali você pode enganar a vida. A praia dos velhinhos que a amam quase tanto quanto eu, das crianças que aprendem ali a perder o medo das ondas, das moças que ali se fazem mais bonitas para os homens que amam, ou daqueles que podem vir a amar. A praia daqueles que, ao contrário de mim, a têm como amante certa, que ainda têm a certeza de que amanhã ela ainda estará lá.

Nunca pude deixar de imaginar que deve ser por isso que, no dia dois de fevereiro, as pessoas vão para uma praia tão mais feia, coitada, dar presentes que Iemanjá quase sempre recusa; porque elas sabem que o Porto da Barra lhes é interditada, é a praia de Oxum. A Oxum que, como Iemanjá, oferece o seu regaço aos seus filhos, e isso é o máximo que o Rio Vermelho pode oferecer; mas que também oferece a beleza, a cadência das suas ondas como quadris que se movem apenas para você, com você, e junto ao espelho ela traz a sua espada.

Pode reparar. Na maior parte das praias do mundo o barulho das ondas é um rimbombar incessante, bruto, um big bang sem começo nem fim que nocauteia os sentidos e se perde na vulgaridade da oferta excessiva. Nas madrugadas caladas de Aracaju escuto da minha varando o troar constante das praias da capital e da Barra dos Coqueiros — diferentes apenas no nome, porque são a mesma praia, não há diferença.

Mas as ondas que batem na praia do Porto da Barra falam com a delicadeza da mulher que ama sem condições, sussurram no seu ouvido, e você já não as ouve 50, 100 metros depois. Elas dizem a você que tudo podem lhe dar, mas apenas se você não se afastar; o Porto da Barra é a praia de Oxum.

Por tudo isso olho para aquelas pessoas que usam a minha praia, sem a decência de pedir a minha permissão, com a condescendência de um senhor feudal magnânimo. Eles não sabem, mas a praia é minha. Podem se deitar em seu colo de areia, podem receber o abraço confortante de suas águas verdes. Eu não ligo. Você não sabe, mas a praia é minha. E, lá no fundo, eu sei que ela sabe disso.

Salvador, em algum lugar do passado

Não sei muito sobre o filme abaixo. Encontrei em um grupo do Facebook, que tampouco sabia alguma coisa sobre ele.

O que sei é que ele mostra uma Salvador que ainda existe e que já não existe mais, mas da qual lembro perfeitamente: o Jardim de Alah com barracas de camping; a região do Iguatemi, ainda em sua primeira encarnação, ainda vazia; a Rodoviária então nova, e daqui a pouco substituída por outra em Águas Claras; o Dique, um parque que mais ou menos ainda existe às suas margens, camelôs no comércio vendendo antiguidades nas calçadas, o Plano Inclinado.

As baianas que ainda não tinham sido contaminadas pelo vírus evangélico e ainda não vendiam “bolinhos de Jesus”; o monstrengo que conhecem por Prefeitura de Salvador ainda não existia; e as putas ainda faziam ponto nos bregas da Ladeira da Montanha, embaixo do Elevador Lacerda

Estão ali a Ribeira, a feira de São Joaquim, o Bonfim ainda sem o costume estranho de amarrar fitinhas em suas grades, o Humaitá e Mont Serrat.

O Parque da Cidade ainda tinha os tipis e os iglus estranhos em fibra de vidro que deveriam ser brinquedos infantis, mas eram utilizados basicamente como banheiro — assim como o labirinto e o castelo que não aparecem aí.

Estão ali também o Iate das gentes chiques, o Pelourinho de praxe antes da reforma de ACM, Santo Antônio, a Acalanto, a Arembepe longe dos meus domínios, Itapuã e Pedra do Sal, o Abaeté e a mais bela entrada de aeroporto do mundo. O Centro Administrativo, o Pestana que ainda se chamava Méridien visto ao longe, os hotéis de Ondina que ainda tinha as piscinas artificiais de água salgada — o Bahia Praia Hotel que nem sei se ainda está lá.

Ali também estão os sinais da destruição irreversível. Eis ali um casarão da Vitória funcionando como loja de material de demolição, abastecida pela destruição criminosa das mansões que ainda existiam naquela rua em grande número, mas sumiam a cada dia. Essas lojas floresceriam ao longo dos anos 80, até que não houvessem mais casarões a serem destruídos.

Acima de tudo ali está o Porto da Barra ainda com saveiros. São dois momentos distintos, um fim de tarde com a maré alta e um dia normal de praia. E quero acreditar que, em meio àquelas pessoas, eu estou bem ali.

O Jesus histórico

Sempre que vejo alguém falando do “Jesus Histórico”, tenho a certeza de estar diante de um quase picareta. Não existe Jesus histórico fora do Novo Testamento. As poucas menções contemporâneas, ou quase, feitas a Jesus que existem fora dos evangelhos, canônicos e apócrifos, e das tantas epístolas, atos e etc. são, no mínimo, questionáveis. No máximo fraudes, mesmo.

Talvez por isso tanta gente levante a possibilidade de que Jesus jamais existiu; que ele é uma espécie de Robin Hood, uma lenda formada a partir da combinação de várias pessoas diferentes, separadas no tempo e no espaço.

A Salon publicou uma pequena lista de razões pelas quais Jesus não deve ter existido. São válidas. Mas elas não provam que Jesus não existiu: apenas mostram que é impossível escrever algo honesto sobre o Jesus histórico.

A razão 1 — a inexistência de fontes seculares que comprovem a existência de Jesus — não quer dizer muita coisa. Não é porque não há citações das fontes oficiais que ele não existiu: a árvore cai na floresta mesmo que você não veja. Na verdade, seria até improvável haver tais citações naquele momento.

Pouca gente conhece o episódio de Zé Lourenço e o Caldeirão. Se mora fora do Nordeste, menos ainda. Ao contrário de eventos semelhantes como Canudos e o Contestado, o Caldeirão ficou pouco conhecido fora do Ceará. No entanto, foi a primeira vez em que o Estado brasileiro utilizou bombardeio aéreo contra sua própria  população civil.

Se esse nível de desconhecimento acontecia ainda em pleno século XX, não é difícil imaginar como os eventos trágicos, e relativamente comuns em uma província perdida num cudemundo do Império Romano, podiam não interessar aos historiadores romanos. A condenação de um pregador judeu qualquer simplesmente não era importante na época; como comparar às dezenas de seguidores de Spartacus crucificados ao longo da Via Ápia? Mesmo que a notícia chegasse aos centros de poder, seria vista como mais uma entre tantas crucificações de fanáticos religiosos. O estranhamento sobre a ausência de Jesus dos anais só é possível quando se dá a ele uma importância que só viria posteriormente. É mais ou menos como o Velvet Underground e sua influência bem tardia.

A segunda razão (os primeiros escritos do Novo Testamento desconhecem detalhes demais da vida de Jesus) é muito mais complexa, e contém a principal verdade desse texto: Jesus Cristo, mais que causa, é efeito do cristianismo.

Parece óbvio que a maior parte dos elementos que constituem a mitologia de Jesus — a imaculada conceição, a ressurreição, a fuga para o Egito, o hímen complacente de Maria — foram definidos aos poucos, com o passar do tempo, como forma de caracterizar o caráter divino de Jesus e adequar a narrativa ao zeitgeist místico de sua época. Ninguém mente mais, para si e para os outros, que religiosos.

Mas o principal argumento do artigo, a ausência dos aspectos biográficos de Jesus nas epístolas de Paulo como evidência de sua inexistência, é muito frágil. O problema é que o fato de os evangelhos sobreviventes só terem sido escritos algum tempo depois não impede que a história fosse contada desde antes de Jesus cair nas mãos de Pilatos. Além disso, é preciso lembrar que Paulo falava a comunidades cristãs, que presumivelmente já conheciam a história de Jesus. Paulo era um pregador e um doutrinador. Um livro de doutrina jurídica não costuma perder tempo explicando a canalhice de um Gilmar Mendes.

A terceira razão apresentada, a de que os livros do Novo Testamento não pretendem ser relatos em primeira mão, é mais um problema para os historiadores do que para a existência ou não do nazareno. Escritos décadas após a morte do sujeito e baseados na tradição oral de uma população majoritariamente analfabeta, ela acaba se misturando com a quarta, a de que os evangelhos se contradizem entre si, e que também é frágil. As diferenças entre eles, afinal, não são tão grandes assim, se devendo principalmente aos ruídos na transmissão oral. Se não fosse a existência de tantos evangelhos apócrifos seria até admirável que sejam tão semelhantes (não, é mentira: aparentemente uns basearam-se nos outros); mas o fato é que essa é a narrativa selecionada pela Igreja, em um tempo em que a própria ideia de historiografia era bem diferente.

E finalmente a quinta: o tal Jesus histórico. O fato é que quem escreve livros sobre isso poderia muito bem escrever sobre o Abominável Homem das Neves ou sobre o Eldorado ou sobre a Fonte da Juventude, daria no mesmo. Esses autores fazem, no mínimo, um grande exercício de imaginação e conjecturas para justificar o que certamente já é sua tese inicial, juntando fragmentos históricos reais para validar, de alguma forma, a sua própria ideia de Jesus. Por isso, de acordo com o livro que você ler, o Jesus resultante pode ser um rabino, um zelote, um fariseu, um pacifista — ele é essencialmente o Jesus que você constrói, seu alter ego.

Sempre tive a impressão de que Yeshua ben Yosef, se existiu, era pouco mais que um maluco pregando algum tipo de mensagem apocalíptica nas praças da Judeia. Tempos de ocupação política e militar como aqueles são extremamente propícios para isso, e ele não devia ser o único. Provavelmente não era o mais influente ou respeitado enquanto vivo: o fato de ele precisar da bênção de João Batista para se legitimar indica que aquele que transformaram em seu primo era a verdadeira grande liderança religiosa popular da época, naquele espaço específico. Além disso, Josefo fala muito mais de João do que de Jesus.

E em verdade, em verdade vos digo: por alguma razão o sujeito foi crucificado. E as pessoas acharam injusta a crucificação, e Jesus se tornou maior na morte do que tinha sido em vida, e o seu nome circulou de boa em boca, e catalisou um sentimento de mal-estar e de inquietação que as gentes viviam naqueles dias. E aos poucos a sua lenda foi se criando; e novos milagres foram inventados, e a sua mensagem foi se consolidando, adaptada aos tempos e aos públicos; e Saulo de Tarso entendeu que era preciso uma ruptura com a tradição judaica e pregou aos gentios, e elementos romanos foram agregados para que Ele se tornasse o Deus e o Filho de Deus. Amém.

O cachorro do Vinícius

Lembro bem de todos os cachorros que não tive. Primeiro foi um collie, como quase todo mundo que viu “Lassie” uma vez na vida. Depois, graças a “Joe, o Fugitivo”, um pastor alemão que só faltaria falar. Um brevíssimo idílio com os são bernardos durou os poucos meses até ver dois afghan hounds que moravam na Princesa Isabel, e desde então eu nunca mais quis saber de qualquer outro cachorro.

Mas antes vi um são bernardo de perto.

Era 1980, final do primeiro semestre. Eu morava em Itapuã, a uns 500 metros da casa de Vinícius de Moraes, que hoje é um hotel. Ia caminhando em direção ao centro do bairro, por uma das ruas de dentro, com o meu tio, duas crianças que não tinham muito o que fazer naquele dia. E então ali estava ele na varanda gradeada de outra casa, um pouco distante: deitado, indolente, muito maior do que eu imaginava. Ele nos viu e se levantou latindo, babando quinze litros de uma baba densa.

Nunca tinha visto um antes. Conhecia o cachorro, claro, não apenas porque tinha um livro com as raças de cães que eu jamais compraria, o “Livro de Ouro dos Cães”, mas porque mais ou menos naquela época tinha assistido a um episódio de Disneylândia que contava a história de Barry, o mais famoso de todos os são bernardos.

É uma lembrança desimportante, que ficou apenas pela coincidência de ter visto o primeiro exemplar da raça pouco depois de ver um filme sobre um deles. Até que neste feriado, lendo a biografia de Vinícius de Moraes por José Castelo, cheia de defeitos mas suficiente, descobri que quando foi morar em Itapuã ele comprou um são bernardo.

Vinícius tem uma certa história com minha família. Passou muito perto de levar um soco de meu pai, uns dez anos antes.

É uma história curta, simples. 1969: recém-casados, meus pais, Vinícius e alguns amigos estão num bar de uma Itapuã ainda meio selvagem. O poeta ainda não tinha se mudado definitivamente para lá nem casado com a Gesse Gessy.

Simpático, exuberante, galanteador e bêbado, embora já um tanto decrépito e prestes a dar início a uma fase estranha em sua vida, Vinícius resolve cantar “Minha Namorada” para minha mãe e lhe passa um bilhete.

Diante do constrangimento de minha mãe, meu pai começa a rir. E, rindo, fala para o poeta:

“Pare com isso, Vinícius. Porque se você continuar eu vou ter que lhe dar um murro, e vai ficar feio pra mim bater num velho como você.”

Tem coisas que a gente fala rindo mas o olhar da gente não sorri junto. A serenata parou, os bilhetes também. A noite seguiu tranquila e alegre, como eram as noites em que, dizem, Vinícius estava à mesa.

Agora fico sabendo que pouco tempo depois Vinícius se mudou para a Bahia, casou com Gesse — e, de certa forma, com Toquinho —, construiu aquela casa em frente à qual eu passava todos os dias no caminho para a praia ou para a escola e arranjou o tal são bernardo. Deu-lhe o nome de Meu, como o papagaio de Ungaretti; mas num dia em que Ricardo Ramos foi lhe fazer uma visita rebatizou o pobre cão como Graciliano — porque, você sabe, era um são bernardo. Imundo, cheio de pulgas, o coitado passava seus dias na piscina, correndo do calor que faz na terra de Oxalá, até que Vinícius resolveu o problema instalando um condicionador de ar em sua casinhola.

Mas isso tinha sido uns 10 anos antes. Àquela altura ele sequer morava em Salvador. Agora tenho quase certeza de que aquele são bernardo que vi numa manhã em Itapuã, aquela visão rara, era o de Vinícius. Não era um cachorro comum em Salvador, e quais as chances de haver dois tão perto? Imaginei que quando se separou de Gesse ele deu o cão a algum amigo, talvez Calazans Neto, talvez Carlos Bastos, sei lá quem morava naquela casa.

***

Ler a biografia de Vinícius, principalmente a parte que cobre seus últimos dez anos, me deixou pensativo.

Como quase todo mundo, sempre achei fraca sua última fase, marcada pela parceria com Toquinho. Na verdade o problema não era ele, porque ali estão algumas de suas melhores letras. Era Toquinho: a música inofensiva que ele fazia, leve, boba e derivada, apesar de extremamente melódica, parecia insuficiente, quase antitética, para o poeta que foi um dos vértices da bossa nova e fez os afro-sambas com Baden Powell — uma antítese ainda mais evidente em tempos de Tropicália. Seus amigos, por sua vez, olhavam com estranheza a escolha de vida que ele fez: a palavra decadência é usada não poucas vezes em sua biografia. De grande poeta e letrista, Vinícius virou um velho macumbeiro excessivamente hedonista que parecia se apegar à juventude do parceiro, e dos estudantes que iam aos seus shows em diretórios acadêmicos, como Dorian Gray se agarrava ao seu retrato.

Mas hoje, mais velho, mais cansado, olhando para trás cada vez mais amiúde, vejo as coisas de maneira um pouco diferente. E nessas horas tenho inveja de Vinícius. Porque entendi o que ele era então: um sujeito que simplesmente decidiu se abandonar à vida — nem que para isso tenha abandonado também uma mulher grávida, mas o que é um cafajeste a mais ou a menos no mundo? — como tão poucos de nós jamais tivemos coragem.

Há muito tempo acho que no fundo só não se pode morrer entre os 30 e os 50 anos; aí é como se algo então tenha dado profundamente errado, porque é quando as pessoas finalmente vivem uma plenitude que nunca mais recuperarão. Morrer na adolescência é uma tragédia mas as pessoas morrem assim mesmo, às vezes vítimas da temeridade própria dos que ainda se acham imortais; depois dos 50 estamos todos na mesma roleta, e se é triste, é pelo menos aceitável. A própria tristeza vai diminuindo com o passar dos anos, e aos 90 o que o defunto ouviria, se ouvidos ainda tivesse, não seriam as expressões de dor e a mulher histérica se jogando ao seu caixão: seria um “descansou, coitado” melancólico e conformado.

Vinícius morreu aos 66 anos, uns poucos dias depois de eu ver seu são bernardo. Tinha vivido mais que a maior parte das pessoas viveria em 150. Mais que isso, se deu o direito de viver como bem lhe aprazia, e o preço que pagou em seus últimos anos, doente, foi mais que uma pechincha; tanta gente paga o mesmo preço e recebe bem menos.

Eu e quase todo mundo olhamos para trás e, mesmo quando temos a sorte de nos orgulhar do que fizemos, também sentimos aquela ponta de tristeza diante da miragem de tudo o que não fizemos, por impotência ou covardia. Por isso, agora tenho a impressão de que Vinícius sentia um pouco menos de tristeza que o resto de nós.

O que dizem ser sua decadência hoje chamo de ápice. E se a poesia, essa que os bobos escrevem com P maiúsculo, perdeu alguma coisa, paciência. Vinícius entendeu: nenhum poema jamais valeria uma noite de uísque, música, amigos e mulheres.

Ladeira da Montanha

A demolição de antigos casarões na Ladeira da Montanha, em Salvador, abalados pelas chuvas fortes que caíram recentemente, gerou revolta em muita gente. Aqui e ali pulularam — pululam ainda — protestos revoltados com o fato de o IPHAN ter autorizado, com rapidez que julgaram suspeita, a demolição dos prédios.

Basta uma olhada rápida para as casas demolidas para entender que não havia outra solução. Na foto ao lado é possível ver exatamente o que se perdeu: meras fachadas degradadas ao ponto da impossibilidade de recuperação, mantidas em pé apenas pela mão benevolente do Senhor do Bonfim. Mais grave, entretanto, é que não parecia haver nada ali que caracterizasse algum conjunto arquitetônico importante e necessário, nem que justificasse a repentina indignação de uma sociedade que evitava passar por aquela rua, principalmente à noite. Durante décadas, os prédios da Ladeira da Montanha cumpriram apenas o papel de oferecer sexo a preços módicos para trabalhadores de baixa renda; há anos, nem isso. O IPHAN agiu corretamente.

Digo isso com certa dor no coração. Muitos anos atrás, quando eu chegava a Salvador pela rodoviária, podia pegar dois ônibus para a casa de minha avó, em Nazaré. O R1 e o R2 faziam essencialmente o mesmo trajeto, mas em sentidos diferentes. O R1 era o mais rápido; mas eu preferia o R2, que primeiro passava pelo Comércio e pela Ladeira da Montanha. O caminho era mais longo, mas era mais bonito: eu, como qualquer baiano, sou cioso da parte que me cabe na herança cultural dos lupanares da cidade. Era melhor se fosse no cair da tarde: o pôr do sol visto da Ladeira da Montanha, entre as torres da Conceição da Praia, é um dos mais belos em uma cidade que os tem em demasia.

Em vez de carpir o enterro tardio dos cadáveres putrefatos de antigos bregas abandonados há eras, deveriam estar discutindo o destino que se vai dar àquela área. A Prefeitura ainda não se pronunciou sobre o futuro da Ladeira da Montanha, provavelmente porque foi pega de surpresa pela urgência de tomar uma atitude evitada por muitos anos. Acho que o lugar poderia se transformar num bom espaço de convivência, com apelo turístico e cultural. Daria um dos mais belos mirantes de Salvador, sem nenhuma dúvida. É um lugar adequado para uma grande praça com equipamentos de lazer, restaurantes e armadilhas para turistas. Podiam até fazer uns bares para que, com o passar do tempo, a Ladeira da Montanha voltasse a cumprir o papel social que cumpriu durante décadas: garantir um espaço razoavelmente seguro para o exercício da boa e mais antiga profissão do mundo. Turistas pagam em dólar.

Infelizmente o histórico da Prefeitura não é dos melhores e afeta as expectativas que possamos ter. Embora tenha realizado uma das mais importantes intervenções urbanas em Salvador dos últimos tempos, a transformação do trecho da avenida Sete de Setembro entre o Porto e o Farol da Barra em um grande calçadão de uso misto, o prefeito ACM Neto tem uma concepção de cidade ultrapassada e nociva: ele fala sem ruborizar em demolir casarões irrecuperáveis no Centro Histórico para transformá-los em estacionamentos, enquanto o mundo civilizado trabalha para banir automóveis dos centros das cidades. Não será ACM Neto o prefeito a transformar Salvador em uma cidade moderna, que tente harmonizar seu passado e seu futuro.

Isso é ainda mais triste porque Salvador tem uma cota alta demais de Alaricos urbanos. Mario Kertész, por exemplo, construiu no Paço Municipal aquela aberração estética que responde pelo nome de Palácio Tomé de Souza, ironicamente no local onde existiram a antiga Biblioteca e a Imprensa Oficial, demolidos por ACM (avô do atual prefeito) nos anos 70; os Magalhães gostam de derrubar coisas. Em defesa de Kertész apenas o fato de que aquele monstrengo deveria ser temporário; no entanto, aquela desgraça está lá há quase 30 anos.

Mas Salvador é uma cidade que pelas dimensões e variedade do seu patrimônio histórico ainda pode ter esperanças. E talvez a Paris do século XIX possa servir de exemplo para o que fazer.

Ao voltar do exílio em 1848, Napoleão III já trazia debaixo do braço o mapa dos futuros bulevares de Paris. Sua ideia era renovar completamente a cidade, construindo grandes avenidas que rasgassem a cidade de cima a baixo, recriando a estrutura urbana e adequando a capital aos novos tempos e tecnologias, eintegrando-a e expurgando os tantos e tantos cortiços que se espalhavam por uma cidade que tinha crescido assustadora e desordenadamente. Para isso ele nomeou o barão Haussmann chefe do departamento do Sena, uma espécie de super-prefeito de Paris.

A renovação de Paris no Segundo Império jamais seria igualada. A área da cidade subiu de 3500 para 8 mil hectares; mas acima de tudo, Haussmann transformou Paris numa cidade moderna, mais limpa, capaz de absorver o crescimento constante das décadas que se seguiriam.

É impossível saber o que se perdeu. Lugares históricos, lieus de mémoire, as provas materiais da Revolução de 1848; quase dois mil anos de camadas e camadas de evolução de uma cidade. A Paris que emergiu do Haussmanismo continha ainda muitos elementos da cidade antiga, mas era uma cidade diferente. É essa a Paris que conhecemos. Não parece ter se saído mal.

(A nota irônica em tudo isso é que os objetivos de Napoleão III não eram apenas modernizadores e sanitizadores. Com a nova ordenação urbana de Paris ele pretendia também facilitar a repressão às explosões sociais que aconteciam a três por quatro na cidade. Parisienses sempre tiveram uma queda por barricadas e paralelepípedos. Mas foram esses novos bulevares que cerca de 70 anos depois viram os panzers alemães deslizarem suavemente em sua tomada de Paris.)

Um dos problemas que o mimimi daqueles que protestam cegamente contra a demolição das ruínas da Ladeira Montanha acaba mostrando é que eles parecem não entender que a cidade é um organismo vivo, que precisa evoluir. Não deve fazer isso às custas cegas do seu passado e da sua história, e uma solução radical como a de Haussman não seria aplicável hoje. Mas não deve sobrevalorizar o que é só velho, e por isso um pouco desse espírito deveria ser levado em conta. A cidade às vezes tem que fazer escolhas. O grande problema é que simplesmente não é preciso fazer uma escolha difícil neste caso da Ladeira da Montanha.

Baianos têm orgulho do seu elevador Lacerda (enquanto, logo ali ao lado, deixam o belo Elevador do Taboão agonizar; só vão lembrar dele, pelo visto, quando finalmente desmoronar). Um anúncio antológico da Bahiatursa o descreve como parte da alma da cidade: “Cidade Baixa, Cidade Alta e um elevador no meio. Só podia ser coisa de baiano.” Vendo essa falsa polêmica sobre o “casario da Ladeira da Montanha”, fico pensando que, se esse pessoal que hoje se esvai em chororô ignorante e ludita estivesse vivo em 1930, Salvador não teria o elevador que conhecemos hoje; em vez disso teríamos o antigo, como projetado por Antonio de Lacerda no início dos anos 1870, porque a cidade não tem o direito de se erguer de suas próprias cinzas.

Lágrimas na chuva

Eu vi o CEP passar de 5 para 8 números.

Vi os telefones passarem de 7 para 8 números.

Vi câmeras de 35mm substituídas pelas digitais e estas começarem a desaparecer.

Vi os cinemas de rua desaparecendo um a um.

Vi o videocassete nascer para ser morto pelo DVD, e este pela internet.

Eu vi os orelhões de ficha darem lugar aos de cartão, e estou vendo estes morrendo.

Vi os cursos de datilografia florescerem, mas agora eles não existem mais.

Vi os jornais ganharem cor, e agora eles encaram seu fim.

Vi o vinil desaparecer ante o CD, e este superado pelo mp3.

Vi surgir o PC, para dar lugar ao notebook e então ao smartphone.

Eu vi as lâmpadas incandescentes substituídas pelas fluorescentes e estou vendo-as dar lugar às de LED.

Vi o celular surgir e passar de 7 para 8 números, e estou vendo passar para 9.

Eu vi surgir a TV em cores, e a TV por assinatura, e o YouTube e o Netflix destruindo-as aos poucos.

V i o fax nascer e morrer.

Vi as rádios FM surgirem, e vi a Noruega anunciar a sua morte.

Vi o bip dar lugar ao pager, e este dar lugar ao WhatsApp.

Eu vi coisas em que você não acreditaria. E todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.

Roy Batty, você não sabe de nada, inocente.

Alsace-Lorraine

É uma de minhas imagens mentais favoritas, e torço para que tenha sido verdadeira: sempre imaginei Hitler subindo a Champs-Élysées com olhar impassível mas o coração acelerado, desdenhando das expressões de choro e medo dos franceses que o viam desfilar. Eu o imagino descendo do carro no fim do bulevar, atravessando a Étoile pela rua, por cima, mãos para trás como sempre andava, e parando diante dessa placa. Primeiro olhou em volta e viu os nomes dos soldados, imaginando se no meio daqueles tantos sobrenomes alemães não havia o antepassado de algum conhecido seu, de um marechal talvez. Pensou em como tinha sido fácil chegar ali e como nada mais poderia impedir a realização plena do seu destino. Deu mais uma olhada em direção à Concorde e se permitiu um sorriso discreto; seu coração se encheu de alegria e gratidão, e então olhou para essa placa por longos segundos, e murmurou baixinho, tão baixinho que Albert Speer não pôde ouvir: “Vielen Dank, Französisch.”