Luís Alberto se espatifou contra a marquise do Elevador Lacerda

Há três dias fez quarenta anos que Luís Alberto Sampaio Tranquile se suicidou.

Luís Alberto morava nos Barris, no número 9 da rua Dionísio Cerqueira, uma rua que, esquecida pelo progresso, ainda hoje é margeada por edifícios baixos dos anos 50 e 60 e casas em estilo art déco, quase centenárias, de uma classe média tranquila que já não existe mais. A casa onde ele morava talvez seja uma daquelas dos anos 30 que ainda sobrevivem na rua, talvez seja uma que está para alugar.

No comecinho da manhã daquele 27 de janeiro de 1979, Luís Alberto se aproximou da amurada do lado direito do Elevador Lacerda. A cidade ainda acordava, ele não pôde tomar um sorvete n’A Cubana. Dificilmente tomaria, é de se imaginar; Luís Alberto provavelmente havia passado a noite em claro, remoendo seu desespero, vendo apenas uma única saída para aquilo que o afligia.

Era mais ou menos 7:45 quando Luís Alberto se jogou da amurada e se espatifou, intermináveis segundos depois, contra a marquise do elevador na praça Cayru.

Luís Alberto morreu como o capitão da areia Sem-Pernas. Mas há uma diferença, definida pelo talento das pessoas que narraram as suas mortes. É belo o fim de Sem-Pernas. Ele “ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.” A morte de Sem-Pernas é antes de tudo um ato de rebeldia e de orgulho, ainda que amargo, e então o aleijado humilhado, mesquinho e cruel finalmente se torna grande. Luís Alberto teve destino diferente. Dele não se fala nada, apenas que se espatifou na marquise do elevador, uns tantos metros abaixo, na praça Cayru. Podemos adivinhar que ele chegou em silêncio à amurada, olhou para baixo durante tantos e tantos minutos, provavelmente tentando se convencer de que a decisão que tomara era a mais acertada, de que não havia outro jeito — talvez até tenha tentado se se libertar do langor mórbido da perspectiva da morte, do fim de tudo, de todos os problemas, tentando buscar em vão uma outra saída. Ficamos sabendo também que o delegado de plantão iria procurar os familiares.

Mas a principal diferença talvez seja o detalhe bobo de Luís Alberto ter ficado por uma hora ali, espatifado na marquise do elevador. Mesmo depois de morto, Luís Alberto estava sozinho e desamparado. A salvo dos curiosos amontoados na praça Cayru, mas sob os olhares dos populares que se amontoavam no paço municipal, embora talvez não tenham sido poucos aqueles que, sem nada para fazer na Cidade Alta, se dispuseram a pagar uns poucos centavos apenas para se debruçar na amurada e ver com seus próprios olhos o cadáver de Luís Alberto.

Luís Alberto Sampaio Tranquile tinha 28 anos no dia 27 de janeiro de 1979. Eu queria poder dizer que ele viveu mais tempo morto do que vivo, mas não posso.

Para viver mais tempo morto do que vivo é preciso que você permaneça na memória de alguém. De pessoas que contem histórias da sua vida, da impressão que você deixou nelas, casos bobos ou não que garantem que enquanto alguém lembrar deles, você continua vivo de alguma forma, e sua existência teve algum sentido.

A esta altura os pais de Luís Alberto já morreram. Na internet não há nenhuma família Sampaio Tranquile; então não é absurdo supor que ele não deixou irmãos, não deixou filhos. É possível que os Sampaio Tranquile tenham se espatifado com ele na marquise do Elevador Lacerda. Pelo sobrenome, Luís Alberto era filho ou neto de um dos tantos espanhóis que faziam da baiana a maior colônia espanhola do país, imigrantes como seu Manolo que tinha a melhor padaria da Graça naquela época e alguns casarões na Saúde. Mas sua família não prosperou, não existe nem na internet, e talvez tenha sido ali, espatifado na marquise do Elevador Lacerda, que Luís Alberto matou a si próprio, sim, mas matou também os Sampaio Tranquile.

E assim, tudo o que se pode fazer a respeito de Luís Alberto é imaginar a razão do seu suicídio. Motivos há ao gosto do freguês.

Talvez uma moça bonita, moça vulgar de Cajazeiras e um jeito de olhar fazendo promessas indizíveis, tivesse feito Luís Alberto perder a cabeça, largar tudo para se encaixar entre suas pernas, e agora ela tinha se cansado dele e lhe mandado ir embora e agora não valia mais a pena viver — mas não, talvez não seja cinismo demais achar que isso não seria jamais motivo para suicídio; é apenas motivo para uns desejos de morrer de mentirinha por uns tempos, para lágrimas que vão diminuindo à medida que os dias passam, até a próxima moça vulgar lhe sorrir novamente em um oferecimento mudo.

Talvez aquele cafetão da 28 de Dezembro estivesse ameaçando cobrar à sua família suas dívidas, e Luís Alberto sabia que sua mãe desmaiaria e seu pai o expulsaria de casa, e não, eles não mereciam a vergonha e o prejuízo, era melhor pular.

Talvez Luís Alberto tivesse dívidas de jogo e estivessem ameaçando quebrar suas pernas; talvez tivesse perdido tudo ali, no cassino que funcionava nos fundos da padaria de seu Manolo na Euclides da Cunha, e era uma dívida tão grande que ele jamais poderia pagar com seu salário de comerciário.

Talvez a sua colega comerciária estivesse grávida, e Luís Alberto via, naquela barriga a cada dia mais redonda, o fim de todos os seus sonhos — largar aquele emprego numa loja de sulanca da Baixa dos Sapateiros, estudar, ser alguém na vida, fazer valer a pena o esforço dos seus ancestrais imigrantes. Talvez a perspectiva de viver com a mulher que não amava e um filho indesejado, num quarto qualquer do Maciel de Baixo, o deixasse apavorado e certo de que qualquer destino era melhor do que aquele.

Ou talvez não, talvez naquela manhã ele tenha olhado para o filho que dormia no berço improvisado, saciado pelos peitos flácidos da mulher que Luís Alberto nunca tinha amado, e decidido que nada daquilo valia a pena; e a angústia que tornava pesado o seu viver desapareceria quando ele estivesse voando livre sobre a Ladeira da Montanha.

Talvez alguém tivesse descoberto que Luís Alberto gostava de rapazes, e pedia dinheiro para não contar para os seus pais; e ao fechar a loja na véspera daquele dia 29 — uma das tantas na rua Chile, então ainda resistindo galhardamente à decadência trazida pelo shopping da qual jamais se recuperaria — Luís Alberto não foi para casa como fazia todos os dias, vagou pelo centro onde as putas substituíam os comerciários como ele, foi para o Pax procurar um último rapaz, e esperou o sol nascer para encontrar o seu destino e se ver livre de sua dor.

O endereço à rua Dionísio Cerqueira, 9 torna improvável um dos meu cenários favoritos, o do rapaz que naquela manhã beijou pela última vez o seu filho bebê que dormia numa esteira, entre ele e sua mulher, num quarto de um cortiço qualquer na Visconde de Ouro Preto, e foi andando até o elevador Lacerda com a certeza de que a vida de todos estaria melhor sem ele.

Seja qual for a razão, quando se suicidou Luís Alberto não mereceu mais que uma matéria no alto da página 14 d’A Tarde, página par. Sua morte foi talvez um pouco menos insignificante do que sua vida. Sua grande proeza, no fim das contas, sua única reivindicação à imortalidade foi ter sido o primeiro suicida a se espatifar contra a marquise do Elevador Lacerda naquele ano da graça de 1979, Ano Internacional da Infância, ano da queda do Skylab — lembranças que, assim como Luís Alberto, se espatifaram no esquecimento.

Júlia, Sabrina e Bianca — e Momentos Íntimos

Anteontem parei numa banquinha de livros e revistas usados no mercado, enquanto ia comprar camarão, e comprei também uma Sabrina e uma Momentos Íntimos.

Alhures nesta internet sem lei você vai encontrar resenhas e críticas bem fundamentadas de livros decentes, como os do Machado de Assis, Alex Castro e Luiz Biajoni. Aqui neste blog não há lugar para tantas sofisticações, e portanto seguem alguns comentários sobre essa categoria literária tão desprezada por aí.

Antes, no entanto, uma explicação.

Uns sete lustros atrás, quando eu ainda era criança, costumava acompanhar minha mãe ao trabalho. Nunca tinha o que fazer, mas uma colega dela, que trabalhava no turno anterior, era viciada nesses romances de banca: Júlia, Sabrina e Bianca. Na época eu lia compulsivamente o que quer que me aparecesse na frente, e além disso tinha algumas horas completamente livres em minhas mãos. Assim, ao longo de alguns meses, li dezenas desses romances, a ponto de entender perfeitamente a estrutura comum a todos eles.

Lembre-se, era o começo dos anos 80. Aqueles livros editados então pela Abril tinham sido publicados nos EUA e na Inglaterra cinco, dez anos antes. Suas protagonistas eram sempre garotas belas, às vezes belíssimas, mas sempre despretensiosas. Sempre jovens, sempre querendo saber bem mais que seus vinte e poucos anos; trabalhavam, modernas que eram, mas muitas vezes apenas como um esforço orgulhoso e sensato por independência, antes que a necessidade mesquinha e pouco romântica de garantir o pão com manteiga da manhã seguinte e a prestação da geladeira. Porque no fundo, como moças sérias e direitas que eram, o que elas queriam era casar. Como um plus a mais adicional, essas heroínas eram invarialmente virgens, e embora já demonstrassem sentir alguma vergonha por insistirem em ser moças à moda antiga (o que obviamente as qualificava mais diante de suas leitoras), estavam decididas a se guardar para quando o amor verdadeiro chegasse.

Para essas moças que toda leitora queria ser, o de cujus chegava na forma de um homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico. Tinha sempre um “olhar magnético” — até hoje, quando lembro desses livros, é essa expressão presente em nove de cada dez deles que me vem à cabeça: um “olhar magnético”, geralmente vindo de olhos cinzentos.

Ela se apaixonava perdidamente, loucamente, descontroladamente, e a paixão era obviamente recíproca. Eles começavam a namorar, mas em algum momento um mal-entendido os separava, normalmente resultado da grande paixão e da grande insegurança de ambos. Era a suprema vitória dessas moças: conquistar o macho alfa, fazê-lo menino de novo, inseguro diante delas. Claro que, no final, o mal-entendido se resolvia. E a moça virtuosa e forte em sua feminilidade e o homem poderoso mas subjugado pelo amor seriam felizes para sempre.

Aí pela metade dos anos 80 apareceu um novo título. Se chamava Momentos Íntimos e trazia uma diferença fundamental, ainda que com um atraso de dez ou vinte ou oitenta anos em relação à vida real: agora as moças abriam as pernas. Momentos Íntimos tinha esse nome porque aqui o véu casto do pudor não mais caía depois do beijo mais ardente; em vez disso, éramos brindados com descrições lúbricas da maneira como ele, amante insaciável e talentoso, a fazia descobrir um novo significado para a vida. É bom lembrar que até o meio do livro as moças, assim como suas colegas belas, recatadas e do lar em Júlia, Sabrina e Bianca, eram virgens. Mas agora hímens rompiam a três por quatro, como barragens em Mariana.

Era isso que eu queria rever quando decidi comprar os livros.

Escolhi com algum cuidado. Os que eu queria precisavam ter sido publicados na primeira metade dos anos 80, no caso de Júlia, Sabrina e Bianca, e na segunda metade no caso de Momentos Íntimos. Escolhi a Sabrina pela logomarca, minha velha conhecida, e a Momentos Íntimos pelo preço original, marcado em Cz$.

A Sabrina traz “Terra de Paixões”, de Janet Dailey, publicado originalmente em 1975 e, aqui, em 1983. Antes de me aventurar no conto de fadas tive um lembrete agradável de que às vezes o melhor de comprar livros usados são os brindes involuntários que você recebe. Nesse caso, ganhei dois vales-transporte de uns 30 anos atrás e uma xerox da carteira de identidade de dona Maria Luiza Teixeira dos Santos. As sucessivas donas desse livro também deixaram suas marcas. Uma rubricou seu nome com a data: 16/01/84; outra, pioneira da economia colaborativa, preferiu deixar seu veredito: “Muito boa. Agradável de ler, curiosa, diferente. 18/05/12, Aju”´.

Eu não queria diferente, eu queria igual. De qualquer forma, o nome da autora não me era estranho. Fui catar e ela está na Wikipedia. Morreu dia desses, não sem antes vender a bagatela de 300 milhões de livros. Dizem que inovou o gênero ao criar o “romance de western”. E “Terra de Paixões”, um dos seus primeiros livros e que ainda está no prelo, é exatamente isso: uma modelo linda e virgem e esforçada conhece um cowboy de rodeio com metro e noventa, belo, arrogante, infelizmente sem o clássico “olhar magnético”. Se casa por impulso, porque percebeu imediatamente que esse era o homem de sua vida, e vai para a fazenda nele no Novo México. O choque cultural causa problemas, o pobre vaqueiro rico se sente inseguro porque acha que ela não vai se adaptar à vida no campo, e naturalmente o orgulho de ambos os afasta. Mas ai de você, pessoa pobre do século XXI já descrente da felicidade que só se pode encontrar num homem alto, másculo, forte, seguro de si, dominador, arrogante, com um je ne sais quoi de mistério e, quase por desígnio divino, rico, se aposta que eles continuaram distantes um do outro: no final vence o amor, sempre o amor.

A Momentos Íntimos traz “Insensato Amor”, de Catherine Coulter, publicado originalmente em 1985 e aqui um ano depois. Pertenceu a dona Maria Juvanira Nunes, que o comprou em 24/01/1986 — não, 1987: ela tinha escrito 1986, antes de riscar e marcar a data correta. Ainda não tinha se acostumado com o novo ano.

Dona Coulter também está na Wikipedia, numa página que parece ter sido escrita por ela mesma mas sem o destaque de Mrs. Dailey. Neste livro a digna senhora conta a história de uma modelo linda e virgem que conhece um médico de metro e noventa, de olhos verdes (diabo, aqui também falta o “magnético”), atlético, bem-sucedido, 15 anos mais velho, por quem se apaixona perdidamente. Se no livro anterior a história é contada exclusivamente do ponto de vista da mocinha, aqui Coulter, menos talentosa em seu ofício, é uma narradora onisciente, e sabemos que o pobre doutor também está loucamente apaixonado, mas inseguro por ser tão mais velho e achando que a família dela não vai aceitá-lo; e então eles se afastam, apenas para se reconciliarem no final, que acaba lembrando o do filme Lover Come Back sem a graça deste.

Mas isto aqui é Momentos Íntimos, não é Júlia nem Sabrina nem Bianca; aqui a jurupoca pia e geme e grita. A primeira vez da mocinha deste livro é descrita em detalhes:

A língua ardente tocou-lhe o sexo, e foi como se seu corpo todo entrasse em comunhão. Nunca imaginara que pudesse existir um prazer tão intenso!

— Oh! Elliot… Não pare agora, por favor… — sussurrou, sentindo-se transportada para o paraíso.

Elliot afastou-se um pouco para admirá-la. Sentia-a reagir e beijou-a com sofreguidão, contornando-lhe a boca com a língua.

— Você é tão doce! — murmurou, segurando-lhe os seios.

Christine gemeu baixinho, contorcendo o corpo. Percebendo que ela estava pronta para recebê-lo, Elliot então penetrou-a lentamente, tentando não machucá-la.

Os dedos delicados cravaram-se nas costas largas. Christine sentia um misto de dor e desejo. Olhou atônita para o homem cujo sexo latejava dentro de seu corpo.

— Elliot! — chamou, num espasmo de prazer.

Sinceramente não sei o que é pior, se a penetração lenta por um sexo que latejava dentro do seu corpo ou os adjetivos ou os pontos de exclamação. Mas o fato é que milhares, muitos milhares de senhoras neste país afora compraram e leram esses romances, e eles, ainda que por uns breves instantes, tornaram suas vidas um pouco melhores, com mais fé no amor e mais poesia.

Ler esses dois livros me fez perceber duas coisas curiosas. Uma, bem boba, é entender que pelo menos uma das minhas lembranças estava errada: eu achava que o rompimento entre protagonistas vinha antes, e não a apenas algumas páginas do final, como nesses dois romances; mas isso faz todo o sentido do mundo.

A outra é, antes de tudo, uma impressão: essas moças não faziam sexo oral. Em Momentos Íntimos a protagonista é servida magnificamente várias vezes, mas não retribui. Puxando pela memória, não lembrei de nenhum caso semelhante em algum dos tantos livros que li. E acho que há uma razão para isso.

De uma forma estranha, esses livros eram feitos não apenas para que as mulheres sonhassem com um príncipe encantado, mas para aumentar sua autoestima. Não importa a mediocridade da escrita, as estruturas dramáticass sempre iguais; o fato é que elas davam voz às mulheres, ainda que dentro de um contexto que dificilmente uma feminista, mesmo em sua época, iria admitir. Aqui as mulheres eram princesas modernas. E receber sexo oral pode implicar mais poder do que fazer. Sem falar no que pode ser um certo pudor natural da época: aprendia-se na Socila que uma moça decente não devia falar com a boca cheia.

Agora fiquei curioso para saber como é que são esses romances hoje. As pessoas parecem continuar precisando de amor e de sonhos, mas já não parece fazer sentido dividir as linhas em com e sem sacanagem. Mulheres virginais parecem alucinações do passado e a inocência parece pertencer a outros tempos. As moças de Júlia, Sabrina e Bianca ruborizavam; as de hoje mandam nudes pelo WhatsApp? Essas dúvidas, neste instante, me intrigam. Acho que vou na banca e perguntar ao jornaleiro: “Por favor, o senhor tem uma daquelas Júlias, Sabrinas ou Bianca bem românticas?”

A banca da esquina

As pessoas lamentam tanto o fim das livrarias e dos sebos, e quando um deles fecha sai notícia em jornal e as pessoas choram o fim de uma era, essas coisas que caem bem no seu perfil do Facebook porque lhe fazem parecer mais lido do que você é.

Mas ninguém chora quando fecha uma banca de revistas.

E elas estão fechando. Uma a uma, bancas que estiveram na mesma calçada por duas, três gerações amanhecem fechadas, para nunca mais serem abertas, em ritmo muito mais acelerado que as livrarias.

As bancas de revista são, de longe, as maiores vítimas da internet. São vítimas indiretas, porque a internet mira os jornais e revistas impressos, e durante muitas décadas esses foram a própria razão de ser das bancas. O livro impresso vai continuar, não importam quantos Kindles inventem. Mas revistas e jornais, às vezes inúteis no dia seguinte, encaram um fim inexorável e apenas se perguntam quando virá o dia em que a última prensa rodará a última edição.

Não posso falar quanto aos outros, mas eu certamente comprei muito mais revistas do que livros ao longo da minha vida. Cheguei a ter conta nas duas bancas de um sujeito chamado Florêncio, contas que eu tentava honrar britanicamente por não terem nada de oficial, nenhuma promissória, nenhum recibo; eram contas feitas no fio do bigode, e sempre achei que minha palavra valia mais que minha assinatura. Quando quebrei pela primeira vez, aí pelos 19 anos, a sua foi a primeira conta atrasada que paguei quando voltei a colocar as mãos em algum dinheiro — parco, mas dinheiro ainda assim.

Por isso acho um esquecimento injusto, quase canalha, quando vejo pessoas carpindo o choro fácil diante das mortes das livrarias, mas esquecendo das bancas. Elas fazem parte da minha vida como as livrarias; mas eram mais comuns, mais diversas e mais presentes, e se o conhecimento que se adquire numa livraria é mais sólido, o das bancas é mais variado, mais urgente, mais palatável. Não foram poucas as vezes, nem têm sido, em que deixei de lado um Proust para acompanhar as aventuras do Batman ou um artigo na New Yorker.

Houve um tempo em que além dos diários sergipanos as bancas vendiam os principais jornais do sudeste — hoje, o único jornal de fora que ainda circula por aqui é o A Tarde de Salvador, ele mesmo uma sombra pálida do que era há 30 anos. Lembro de ter comprado, em seus últimos dias, o Última Hora, o Notícias Populares e outros jornais que já se foram, como a Tribuna da Imprensa, o Jornal da Tarde e a Gazeta Mercantil. Mas comprava, principalmente, a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, e o Estadão quando passou a circular também às segundas-feiras com a coluna do Paulo Francis.

Os jornais que vinham de avião chegavam às bancas a partir das quatro da tarde, mais ou menos. O Zero Hora, que era vendido apenas na banca do Moacir e na do Careca, velho comunista, chegava apenas no dia seguinte, o que reforçava a minha teoria de que o Rio Grande do Sul não ficava no Brasil. O JB, especificamente, era leitura obrigatória no fim de semana, por causa dos cadernos Livros e Idéias — e um sinal grave de que esse tempo é cada vez mais distante é que eu não consigo mais lembrar qual circulava no sábado e qual circulava no domingo. Um pouco mais tarde, os primeiros tempos do Mais! da Folha de S. Paulo representaram os últimos suspiros de razoabilidade e acessibilidade no jornalismo cultural tapuia.

Olhando para trás, parece haver algo de estranho em comprar um jornal no fim da tarde. Àquela época já não existiam vespertinos, a televisão já tinha acabado com eles. Mas eles eram tão melhores que os jornais locais — a Gazeta de Sergipe onde meu pai tinha sido preso em 64 e o Jornal de Sergipe e o Jornal da Manhã, os três já extintos, e o Jornal da Cidade —, e o tempo da informação era tão diferente, que ler o jornal à noite valia a pena, sempre.

Mas eram as revistas que faziam valer a pena ir com frequência a uma banca de revista, quando menos para checar o que havia saído nos últimos dias. A Veja, a IstoÉ, a Senhor (e a IstoÉ/Senhor), a Playboy, as tantas e tantas e tantas revistas em quadrinhos que comprei ao longo da vida, primeiro Disney, depois Marvel e DC, e ao menos um exemplar de virtualmente toda revista interessante que foi publicada com regularidade naquelas décadas; uma banca de revistas era a promessa de um mundo diferente.

Foi numa banca, não numa livraria, que um jornaleiro mais compassivo diante das dificuldades enfrentadas por dois adolescentes ensinou a mim e a Rone como abrir o plástico das Mini-Fiestas e depois fechá-las, queimando o plástico com um isqueiro, multiplicando o número de revistas que podiam ser lidas e aprendendo indecências inesquecíveis. Para quem descobriu assim esses truques, é ainda mais espantoso que hoje pornografia não seja mais algo de que se vá atrás sub-repticiamente, mas sim algo de que se precise proteger em tempos de internet, uma eterna ameaça de virii e trojans que parecem se materializar em cada pop up.

Tantos títulos que sumiram no tempo. Revistas como a Somtrês, Manchete, Be-a-Bá da Eletrônica, Bizz, Set, os quadrinhos Disney, os álbuns de figurinhas que iam além da Copa do Mundo; tantas editoras, também, como a Ebal e a Vecchi. E mesmo tantos livros comprados em bancas, mais baratos num tempo em que não havia Amazon.

O fim de quase todos os títulos e editoras que citei não tiveram nada a ver com o fim das bancas; mas isso não importa mais. O que acontece hoje é algo muito mais grave, mais dolorido, e é isso que mais se deve lamentar. O que mudou foi mais que o meio. A informação condensada em um único espaço, que tornava mais fácil a formação do pensamento, deu lugar à fragmentação total e irremediável, aos bits espalhados por todos os quadrantes. É um mundo mais vasto, mas ao mesmo tempo mais ignorante, mais cansado, enfastiado de informação. Talvez eu esteja velho; mas cada vez mais prefiro o mundo mais fácil e mais simples que tive a sorte de deixar para trás.

Nas bancas, em outros tempos, chegávamos a comprar enciclopédias: lembro da Novo Conhecer, da Biblioteca do Estudante, finalmente da Informática Hoje. Ou dos fascículos que tentavam me ensinar a tocar violão, Toque e Acorde. Era nas bancas também que comprávamos cigarros, primeiro “a retalho”, varejo, e depois maços inteiros que aos poucos duravam cada vez menos. Hoje poucas são as bancas que ainda vendem cigarros. Cigarros, como revistas, estão desaparecendo.

É incômodo ver bancas que em seu auge traziam uma diversidade imensa de produtos encolherem e desaparecerem. A banca que ficava no Largo da Barra, por exemplo, cujo dono, Renato, era a cara do Emerson Fittipaldi e que nos anos 80 vendia jornais estrangeiros, trocava dólares para os turistas e tinha até o luxo de um telefone. Ou do Moacir, quase em frente ao Cine Aracaju, também com sua cota imensa de jornais de todo o país e revistas de fora. Mas morreu o Cine Aracaju e morreu Moacir, e a banca do Renato, já uma sombra esmaecida do que fora por décadas, desapareceu durante a última reforma do largo. Assim como elas, tantas outras bancas definham, já sumiram — e ninguém parece ter chorado por elas. Dois anos atrás, tomei um choque de ver que a banca da rodoviária de Salvador, amiga velha de muitos anos, tinha fechado. Ninguém parecia ligar. Na verdade, ela fechou porque ninguém ligava.

Uma das bancas mais antigas de Aracaju, ao lado de um hipermercado, ainda tenta resistir. Vende jornais e revistas, também. Mas tenta desesperadamente diversificar sua atuação, se transformando também em uma espécie de armarinho, de venda de quinquilharias. A dona da banca entendeu que o seu tempo passou. Quem não entende sou eu.

Adeus ao Pato Donald

É mais ou menos como se, de repente, você recebesse a notícias de que seus avós estão se separando.

Na semana passada, a notícia de que a Editora Abril tinha perdido os direitos de publicação dos personagens Disney no Brasil chocou os fãs mais antigos. A manchete do Planeta Gibi, que deu a notícia, resume tudo: é o fim de uma era.

Eu cresci com esses quadrinhos, e os considero muito melhores que os da Turma da Mônica; enquanto Carl Barks e Don Rosa nos apresentam o mundo, Maurício de Sousa nos regala com as pequenas coisinhas fáceis de um mundo restrito à rua do Limoeiro. Para a Abril, no entanto, esse episódio deve ter um peso ainda maior.

A Abril nasceu com a revista do Pato Donald, em 1950. Victor Civita costumava parafrasear Walt Disney ao dizer que “tudo começou com um pato”. Há uns 20 anos, uma matéria com um colecionador das revistas do Pato Donald no Brasil, no caderno de cultura da Gazeta Mercantil, contava que a publicação do Pato Donald era uma questão de honra para a Abril, algo que transcendia os meros interesses comerciais; tive a impressão de que os Civita viam o Pato Donald como o Tio Patinhas via a sua moedinha número 1. A notícia então se torna ainda mais melancólica. Mesmo sendo a Abril, uma editora cujos desserviços para o país são numerosos demais para contar, é impossível não ficar triste. É um pedaço da história de um bocado de gente que vai embora.

Aí pela segunda metade dos 70 havia umas quatro editoras que publicavam quadrinhos de maneira mais consistente. A Vecchi, com seus faroestes tipo Tex e Zagor e os personagens da Harvey (além da Mad); a legendária Ebal, que publicava entre outros Tom e Jerry, a DC, Epopéia Tri e Zorro; a RGE (depois Rio Gráfica e finalmente Globo, quando a rede carioca conseguiu comprar a Editora Globo gaúcha), que publicava a Marvel, Fantasma e Mandrake, Sítio do Picapau Amarelo; e finalmente a Abril, a melhor de todas, com uma qualidade editorial muito superior às concorrentes e que tinha também a Turma da Mônica.

Uma a uma, essas editoras foram desaparecendo. A Vecchi faliu no início da década de 80. A Ebal agonizou durante anos, e quando fechou já não tinha nenhuma relevância. Em 1985 a Abril parecia ser a dona do mundo: Disney, Mônica, Marvel, DC — tudo parecia estar em suas mãos. É verdade que esse fastígio absoluto não durou muito tempo e logo depois a Turma da Mônica foi para a Globo; mas ainda assim a Abril era a grande editora de quadrinhos do país. No início dos anos 2000 foi a vez dos super-heróis irem para a Panini, e a partir daí a decadência parece ter se acelerado, inexorável.

Mais ou menos nessa época, uma olhada nas bancas deixava claro que os quadrinhos Disney passavam por uma fase muito ruim. A Abril tinha deixado de produzir histórias da Disney já fazia algum tempo, e a qualidade das revistas era muito inferior ao padrão a que ela havia nos acostumado ao longo de décadas. (Curiosamente, foi nessa época que, graças ao Inagaki, descobri Don Rosa.)

Mas de lá para cá a situação havia mudado, e isso é o mais irônico. Parecia que a Abril tinha encontrado uma saída comercial para a crise óbvia no setor de quadrinhos, publicando edições de luxo com o melhor da sua produção e reedições dos manuais que tinham feito a alegria das crianças dos anos 70. Ela tinha se voltado para um segmento mais específico e de maior poder aquisitivo — velhos saudosistas e fãs de quadrinhos, especificamente. Além disso, tinha ressuscitado alguns dos seus títulos clássicos, como Disney Especial e Almanaque Disney, embora sem a qualidade editorial de outrora — o novo Almanaque Disney, por exemplo, não tinha nada a ver com a revista original e era muito inferior.

Eu não faço ideia do que está acontecendo, obviamente. Mas os números dos prejuízos recorrentes da Abril, impressionantes, devem servir de indício. A Abril está em processo de falência há muito tempo, e não para de encolher. O que foi um império simbolizado pelo prédio imponente ao lado da rua do Sumidouro está implodindo de maneira consistente há muitos anos, e quando ela chega ao noticiário é com demissões e “reestruturações”, uma palavra bonita que nunca significa outra coisa que não encolhimento. Normalmente, essas notícias são lamentadas por jornalistas que vêm seu mercado de trabalho encolher, ou comemoradas por quem, como eu, tem verdadeira ojeriza ao papel malfazejo da Abril na política nacional. Mas dessa vez não há nenhum aspecto positivo na notícia.

Porque em tudo isso há um aspecto que não devia passar batido, e que deve ajudar a dar a dimensão real desse acontecimento: nos últimos 68 anos, em nenhum momento deixou de haver uma revista Disney nas bancas brasileiras. Isso não aconteceu sequer nos Estados Unidos, onde a Disney passou alguns períodos sem ser publicada. É isso que estamos perdendo agora. É bem provável que os quadrinhos sejam assumidos por alguma editora — a melhor aposta seria a Panini, que já tem todo o resto, mesmo —, e quem gosta dos personagens que ajudaram a definir a visão de mundo de gerações vai continuar sendo servido, talvez até melhor.

Mas há um pessoal que gostava, também, da Disney na Abril. Talvez porque ver o Pato Donald ou o Mickey numa banca de revistas lhes desse um pouco de segurança e familiaridade em um mundo que não para de mudar e que, nos últimos tempos, passou a desafiar até os mais otimistas. Talvez porque mesmo em tempos de Facebook a desgraça dos outros não seja motivo de regozijo. Eu me junto a eles.

Um estado de espírito

Campanha de Zé Eduardo Dutra para o Senado, 2006. Uma campanha de resto inesquecível.

Bebeto de Freitas apareceu em Sergipe e foi convidado por Zé para dar um depoimento sobre sua atuação no Senado: Zé tinha sido o relator do Timemania, ou algo assim; Bebeto, se não me engano, era presidente do Botafogo naqueles dias, ou tinha sido.

Eram dois botafoguenses doentes, se me perdoam o pleonasmo. Quando o Botafogo perdia, eu já sabia que Zé ia achar defeito nos programas; ele era uma figura incrível, com um coração imenso e um senso de humor debochado debaixo de uma cara enfezada, mas tinha esse defeito de torcer pelo Botafogo. Acontece nas melhores famílias, menos na minha.

A conversa entre os dois, claro, era sobre o time pelo qual sofriam.

Enquanto a gente estava preparando as câmeras, peguei um trecho de uma conversa entre os dois.

— …Porque o Botafogo é um estado de espírito…

Naqueles tempos eu perdia o amigo mas não perdia a piada. Não podia deixar passar a oportunidade.

— …Também conhecido como depressão…

Incrivelmente, não fui linchado. Prometi a mim mesmo, e avisei a eles, que se ganhássemos a eleição eu publicaria esse diálogo no meu blog. Não ganhamos, mas Zé e Bebeto de Freitas me perdoarão por eu publicar essa história hoje.

Os bons anos 80

Lembrei uns dias atrás de um dos tantos motivos para odiar os anos 80, esses que os últimos tempos têm edulcorado e levado a uma reapreciação degenerada da sua música horrível, da sua moda tenebrosa, do seu cinema cheio de maneirismos infelizes.

Aquela década viu a primeira geração a chegar à puberdade sob o fantasma aterrorizante da Aids.

Para quem nasceu nos anos 90 a Aids é uma doença grave, incurável, e que condiciona em maior ou menor grau a vida sexual de todos. Mas naqueles tempos um diagnóstico de Aids era uma sentença de morte quase imediata, e dolorosa. Eu ainda lembro da confusão que cercou a sua descoberta, a maneira como as pessoas inicialmente a chamavam de “praga gay”, e de como o pânico se espalhou aos poucos, mas com firmeza, ao verem que gays não eram suas únicas vítimas.

Uns anos atrás, conversando com Almir Santana, coordenador da luta anti-Aids em Sergipe, comentei que o número de contaminações parecia estar diminuindo. Ele, delicadamente, me deu uma aula e tentou me ensinar a não falar besteira sobre o que eu não entendo. Este blog é prova de que ele não conseguiu.

O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos: jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas. Os dois últimos me pareceram bem lógicos: os velhos ganharam o presente inestimável do Viagra, mas não os novos hábitos; mulheres casadas não costumam usar preservativos com seus maridos, mesmo os que têm um pé fora do armário. Eu só não consegui entender imediatamente o caso dos jovens, que eu achava terem aprendido com o sofrimento dos que lhes precederam — até lembrar que adolescente é animal idiota, e essa juventude usa camisinha principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer. Além disso, o fato de que aparentemente pode-se viver hoje normalmente com o vírus faz com que a urgência em evitá-lo diminua.

A geração anterior à minha lembrava dos tempos anteriores, tempos perdulários de fartura e exuberância e alegria de viver; e por isso os mais odaras tentavam entender o que se passava, os mais místicos viam a Aids como uma espécie de punição pelo desbunde dos anos 70. A minha, que não tinha vivido nada disso, tinha apenas o medo e a obrigação de desenvolver uma visão nova sobre a moral sexual, algo que tentasse combinar a liberdade alcançada com a ameaça constante de morte. Isso se tornou pior quando Henfil e seus irmãos foram condenados à morte por receber transfusões de sangue contaminado. Alguns anos depois, como se a situação já não fosse crítica o suficiente, Magic Johnson anunciou que tinha o vírus e nós levamos um golpe fatal no pé do ouvido, coitados de nós, que então nos víamos diante da prova definitiva de que era possível pegar Aids com mulheres. “É, gente. Ferrou de vez.”

Lembrei dessas coisas que o tempo deveria ter enterrado porque vi uns trechos de uma série recente da Globo, ambientada no início dos anos 80, que tinha entre seus personagens uma moça morrendo de Aids. Me impressionou a maneira como ela era bem tratada, como as pessoas bebiam do seu copo, beijavam sua boca. Tão bonito.

E tão falso. Era tudo mentira. Esse cenário quase idílico, do amor superando a incompreensão e a ignorância, não existiu. Naqueles anos 80 a regra era o medo, e a falta de certezas. As pessoas tinham medo. Medo de abraçar, medo de apertar a mão, medo até de respirar o mesmo ar que o “aidético”, era assim que os portadores de HIV eram chamados, respirava. Certo, não demorou tanto assim para entendermos que abraço não transmitia Aids. Mas nenhum pesquisador tinha certeza absoluta de que beijo não transmitia. E o medo continuou por muito tempo.

Já faz um bom número de lustros, isso. Os anos passaram, a cura não veio mas o pânico passou. E como o esquecimento leva sempre a distorções, hoje as pessoas até acreditam piamente que os anos 80 foram uma época boa.

Mas os que vivemos aqueles anos sombrios temos uma missão diante das novas gerações. Temos o dever cívico e moral de descortinar a tragédia daqueles dias. Esses eram os anos 80, os bons anos 80 em que sentíamos que a vida tinha nos pregado uma peça de muito mau gosto e encerrado a festa justamente na hora em que conseguíamos driblar os leões de chácara e entrar. E como se não bastasse, toda essa tragédia se desenrolava ao som da música desgraçada de Rosana, Yahoo e Kátia Cega.

Os burgueses do porto de Calais

Lendo aqui que na Coreia do Norte fotos de soldados são proibidas.

Ditadura, gritam. Opressão. Queremos liberdade para eles. Como é ruim viver num país assim, onde não se pode tirar uma simples foto. Morte ao gordinho maluco.

E aí lembrei de um pequeno episódio no porto de Calais.

Naquele tempo ainda se usavam máquinas fotográficas. Puxei a minha para tirar umas fotos do lugar; era uma área comum, ao ar livre, eu sequer estava no centro de operações do porto. Então uma lourinha de uniforme vistoso veio correndo até mim.

Eu certamente não percebia que portos são, ao menos em tese, unidades militares. Muito menos que um paraíba com uma câmera na mão pode ser na verdade um espião perigoso a soldo dos soviéticos, homem de artes e talentos saídos diretamente de um livro de John Le Carré. Perigosíssimo, eu. Um paraíba tão insidioso que, em vez de usar câmeras em canetas ou em botões de camisa ou implantadas na íris, tentava dar uma de turista desavisado com uma câmera furreca. Afinal de contas, quem seria tão idiota para tirar fotos de um lugar feio como aquele? Pensando nisso agora, com a serenidade e a clareza que o passar dos anos às vezes nos dão, eu devia me sentir lisonjeado: na verdade, eles me tomaram por muito, muito mais do que eu poderia ser.

Porque o que eu sabia era outra coisa: que fora ali que D’Artagnan embarcara em direção a Londres para encontrar o Duque de Buckingham e frustrar um plano de Richelieu. Fora ali em que ele tinha mostrado com quantos ferros se faz um buraco no bucho de uns pobres guardas e embarcara com destino à grande inimiga de sua pátria. Tudo bem, o lugar onde D’Artagnan mostrou que era o guarda real mais batuta da Lutécia não devia parecer muito com aquilo que eu via; mais de 350 anos haviam se passado. Mas para mim Calais é e sempre será, antes de qualquer coisa, um cenário para D’Artagnan mostrar sua bravura e lealdade à rainha.

Mas a guarda lourinha estava se lixando para o mosqueteiro, Darta quem?

Ela era bonitinha, britanicamente bonitinha. Com aquela simpatia inglesa, me disse que era proibido tirar fotos ali. Bem simpática, a moça, tentando fazer o seu trabalho com o máximo de civilidade possível, acostumada provavelmente a reprimir, todos os dias, centenas de turistas desavisados como eu, tarefa ainda mais doce porque feita na terra dos outros. Simpática, de fato.

Mas eu sou baiano e para mim simpatia é quase amor. Ainda tentei jogar uma conversa qualquer, Hello, my name is John Holmes; mas ali não havia conversa possível. Sorrindo ainda, um sorriso que deve ter se desvanecido em tédio assim que me virou as costas, ela se afastou como quem não entende a cordialidade brasileira. Deve ser o clima, tadinha, o frio e a falta de sol fazem isso com as pessoas.

Tomara que o Google Earth tenha tirado o emprego daquela moça.

***

Foi naquele ano que vi pela primeira vez os “Burgueses de Calais”, de Rodin, nos jardins de Victoria Tower, ali pelos fundos do parlamento londrino. Eu não sou daqueles fãs alucinados de Rodin, mas aquela escultura que evocava justamente um lugar que eu tinha acabado de conhecer ficou na minha cabeça. Imaginei a guardinha inglesa enchendo o saco daqueles pobres burgueses, Sorry, no pictures, sires.

Uns anos depois voltei ao mesmo local, procurando meus companheiros de infortúnio, e os burgueses tinham desaparecido.

Eram os tempos posteriores à crise de 2008, aquela que diziam ser a mais grave de todos os tempos, tempos de desespero e medo do futuro. A ausência dos burgueses foi, para mim, a maior prova de que a crise era mesmo grave, marolinha coisa nenhuma. A crise tinha destruído os burgueses de Calais, eles deviam ter se mudado para Dagenham, deviam estar sobrevivendo do que ainda restava do welfare state inglês, tentando trocar cupons por um pint de Guinness num pub qualquer.

Mas tudo isso eram apenas suposições. Eu tinha uma única certeza: em nenhum momento duvidei que foi aquela guardinha inglesa que tirou os coitados dali.

De lá para cá os burgueses voltaram. Da última vez que andei por lá, os danados estavam no mesmo lugar de antes, com as mesmas cordas no pescoço, em sacrifício não mais a Eduardo III, mas ao deus Mercado. Eu devia saber que nessas crises do capitalismo quem sempre se ferra de verdade são os pobres. E que nesses momentos sempre aparece uma guardinha inglesa para dizer: Sorry, no pictures.

Hitler no Brasil

Uma senhora de grande imaginação chamada Simoni Renée Guerreiro Dias revelou — certamente com grande perigo para sua própria integridade física — um segredo que forças ocultas tentam esconder de nós reles há mais de 70 anos, junto com a existência de ETs congelados nos porões de Washington. Vi agora no National Enquirer History.com que a dita senhora lançou no início do ano um livro em que afirma que Adolf Hitler morreu no Brasil, aos 95 anos.

O History, citando um autor russo chamado Dimitri Boryslev, diz que Stálin estava “convencido de que Hitler havia escapado. Ele suspeitava de um pacto entre o tirano alemão e as potências ocidentais, que teriam poupado sua vida em troca de conhecimentos de tecnologia bélica.” O que é tão óbvio que chega a ser vergonhoso duvidar: todos sabemos que, perto de Hitler, Von Braun era um estudante de terceiro ano primário.

Segundo a tese, foi assim: um submarino veio para a América do Sul deixando os refugiados — como Mengele e Eichmann — em vários países, mais ou menos como uma van parando de ponto em ponto com o sujeito pendurado na porta gritando; “Rio de Janeiro! Puerto Stroessner! Buenos Aires! Aceitamos vale-transporte e tique-refeição!” “Comboio do Holocausto” seria um bom nome para esse submarino da esperança. Ou, se alguém me perdoa a ironia, “Exodus”.

Sem ler o livro, o que posso intuir é que deve ser especificamente aí que entra a tese da senhora Dias. Segundo ela, assim que deu com os costados no Brasil, Hitler se transformou em um tal de Adolf Leipzig e foi morar em Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso, como prova a foto ao lado.

Eventuais discrepâncias em sua aparência devem ser relevadas. Leve em consideração a passagem do tempo, a diferença de clima: há um mundo de diferença entre a temperatura amena de Obersalzberg e os 89 graus Celsius do inverno mato-grossense, e deve ter sido isso que fez o Führer repensar sua vida, colocar em xeque seus valores e emergir como uma pessoa melhor, provando que nem todo pau que nasce torto morre torto, que todo mundo no fundo é bom, e que a gente deve continuar a acreditar na humanidade.

Porque vir ao Brasil fez bem a Hitler, e a foto prova isso. Antes racista convicto, aqui se atracou a uma negona de responsa que deve ter ensinado a ele coisas que aquela lambisgoia da Eva Braun, com sua rigidez alemã, jamais poderia; e dizia em seu ouvido “ai, Dodô… ai, Dodô…” Seu nome, segundo o Daily Express, era Cutinga; ninguém pode ser amargo se se deita com uma Cutinga.

Antes antitabagista fanático, aqui se rendeu ao cigarrinho — como não sei de quando é a foto, não posso dizer se é Clássicos, Belmont ou Derby; mas o fato de estar na mão esquerda significa que, além de tudo, Hitler se tornou canhoto, o que prova a sua capacidade inacreditável de mistificação. Os trópicos aumentaram suas orelhas e ele provavelmente terminava a noite com uma cachacinha na bodega, não sem antes derramar o pouquinho do santo para abrir os caminhos.

E aí a gente não pode deixar de admitir que Araripe Júnior tinha razão quando falava na tal “obnubilação tropical”:

Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

Mas por mais que eu goste da tese da senhora Dias, por mais que a admire pela coragem quase insana, a verdade é que tenho outra teoria. Está mais para “Meninos do Brasil” que para desesperos de fuga num pinga-pinga submarino. Além disso, estou plenamente convencido de que minha tese faz mais sentido na atualidade, e ajuda a explicar o mundo em que vivo.

Todos sabemos que a ciência alemã era uma das mais avançadas do mundo aquele momento. Todos sabemos também que Hitler era chegado numas macumbagens, numas coisas de ocultismo.

Graças a uma farta documentação fotográfica, hoje posso afirmar que, com a ajuda de seus cientistas e de seus magos, descobridores da conexão graálica entre ciência e sobrenatural, Hitler digitalizou completamente a sua mente, tornando-a imortal. Mandou queimarem seu corpo para todos acharem que ele estava morto: aquele churrasquinho de chucrute que os soviéticos encontraram era mesmo de Adolf. Mas a sua essência estava mais viva do que nunca, certamente mais viva que os judeus torrados em Auschwitz.

Hitler não fez isso à toa. Antes de todo mundo, ele percebeu para onde o mundo seguia. Anteviu o mundo hiperconectado do século XXI. Hoje, Hitler está completamente interligado à rede elétrica mundial e à internet, se multiplicando a cada clique numa página do MBL e a cada acendimento de uma lâmpada; e basta olhar em volta de você, basta ver o que as pessoas andam dizendo e pensando para entender que a minha tese este correta: só isso pode explicar o mundo em que vivemos.

Hitler hoje é uma tomada, é milhares de tomadas, talvez milhões, e está mais ativo do que nunca.

O tempo que passa

Da primeira vez que fui a Paris, décadas atrás, eu olhava para os velhinhos com quem cruzava na rua, alguns deles sobraçando baguetes, outros com aquele indefectível boné coroando um rosto curtido pelo tempo, e pensava: esse sujeito atravessou a II Guerra, aquele talvez tenha lutado na Resistência.

Depois os velhinhos começaram a rarear. Ou melhor, as suas histórias começaram a rarear.

Agora, eu olhava para os velhinhos e no máximo podia pensar: esse aí viu as barricadas de 68.

O passado não é mais como era antigamente.

Cinderela 77

Imagino que um bocado de gente já tenha visto isso, o último capítulo de “Cinderela 77”, uma novela da Tupi exibida em — surpresa! — 1977. Mas não custa postar aqui.

(É a maravilha da internet, especificamente do YouTube. A maior parte das gentes louva o link com o futuro que essas coisas de internet propiciam; eu sou grato pela chance de acertar as contas com o passado. De repente, um mundo de informações que pareciam perdidas para sempre no último grotão de minha memória reaparece aqui. Ninguém jamais vai saber o quanto sou grato ao YouTube por essas coisas. Eu vi capítulos dessa novela nessa época. Odiava novelas e desprezava quaisquer coisas associadas a elas — mal-estar que o tempo e a velhice destruíram, substituindo-as por uma condescendência extemporânea; mas lembro do robô que falava “PT saudações” [as gerações mais novas imaginarão que ele se referia ao Partido dos Trabalhadores e não a telegramas, pobres gerações ignorantes de um passado inútil] e de Sandoval. Eu sempre gostei dos vilões.)

Olhando agora, em retrospecto, fico impressionado com o uso da metalinguagem nessa novela.

Nos anos 70, a Tupi era uma empresa que respondia pelos erros de julgamento (e familiares) de Assis Chateaubriand e estava condenada ao fim. Reclamem o quanto quiserem, apontem as teorias conspiracionistas que desejarem: a verdade é que Figueiredo só apressou o desenlace inevitável. Ela mal pagava seus funcionários, se pagava. As condições técnicas eram terríveis. A sensação de fim cada vez mais próximo era inevitável, apenas contrabalançada pela fé na força de sua história.

Em diversos lugres vejo pessoas lembrando dos bons tempos da Tupi, muito parecidas com as que lamentam o fim da PanAir. A verdade é que tudo aquilo era heróico, sim, mas também era trágico. Conheço bem o espírito de improviso que fez parte do universo da TV durante muito tempo, e acho que ele só é bonito em retrospecto. Imagino quantos comerciais não foram editados clandestinamente na TV Tupi, quando o jabá era praticamente institucionalizado. Imagino o clima de “cada um por si e Deus que se foda” que a situação decadente da TV propiciava.

Mas quando vejo a liberdade criativa que era possível na Tupi, tudo isso acaba parecendo valer a pena.

A Tupi já tinha inventado a telenovela moderna com “Beto Rockefeller”, quase 10 anos antes. Há alguns capítulos disponíveis no YouTube, tirados do site da Cinemateca Brasileira, e eles são fascinantes. A linguagem se assemelha, em vários momentos, à do Cinema Novo, e imagino que se deva à mesma falta de dinheiro e de tecnologia. Os atores trazem muitas vezes os vícios do teatro, as marcações rígidas, o apego excessivo aos rr ditos corrrrretamente. Mas conseguem passar a emoção necessária, ao contrário dos atores despreparados que se vê nas novelas de hoje em dia.

É por tudo isso que fico impressionado com a liberdade criativa de que uma novela como “Cinderela 77” pôde desfrutar. Uma novela feita para o público do início da noite com resultado é fascinante, e quem tem alguma familiaridade com as tragédias gregas vai encontrar um bocado de pontos de convergência. E depois, se não for pedir demais, compare com as novelas pasteurizadas e engessadas da Globo hoje.

Isso não quer dizer que eu ache que a Globo destruiu a criatividade na TV. Pelo contrário. Ao contrário de outros comunistas velhos de guerra, tenho uma admiração sem tamanho pela tal Vênus Platinada. Mas para mim, pessoalmente, rever essa novela significa rever padrões estéticos que definiram a base do meu modo de ver TV, e que já foram superados há mais tempo do que ouso contar. Mas representa acima de tudo um deslumbramento com o talento, a ousadia e o amor que você vê em cada frame. Não se faz mais TV aberta como antigamente.

(Este post é um oferecimento da Associação dos Leitores Revoltados com a Cagada na Cabeça de Rafael Naqueles que Falam que “Minha Infância Foi Melhor Que a Sua”.)