Bruna Lombardi

Fiquei velho.

E cheguei à conclusão de que a única certeza na vida é a Bruna Lombardi.

Uns tempos atrás — mentira; isso foi há oito anos, mas o tempo para mim não passa mais como passava antigamente, o passado não tem mais meio-termo: ou foi ontem ou foi há muito tempo, o passado agora pode ser o que eu quiser, como quiser — passei uma noite vendo as novelas da Globo, depois de uns dez anos sem sequer ter TV aberta em casa. Tomei um susto porque não conhecia os atores novos, e os que conhecia d’antanho, outros tempos de dois canais que entravam no ar às nove da manhã, esses estavam velhos, velhinhos cujo ápice tinha passado. E se o tempo tinha passado para eles, provavelmente tinha passado para mim, também.

Aquilo me lembrou que à medida que meus dias neste vale de lágrimas vão encurtando, o meu passado se torna mais longo que meu futuro. É uma sensação estranha.

Deve ser a idade; mas chega o momento em que a gente precisa admitir que tem menos tempo pela frente do que para trás, que os anos já vividos são mais numerosos do que os que ainda se vai viver. Percebi isso quando entendi que a maneira como eu contava o tempo tinha mudado.

Resumindo, isso foi em 2010. Foi quando percebi que 1990 tinha sido vinte anos atrás.

Antes disso, à medida que os anos passavam eu vinha me acostumando aos poucos, de maneira indolor, a números cada vez mais inflacionados. Ainda lembrava de quando 1977 tinha sido “o ano retrasado” — lembrava do momento exato em que me assustei ao perceber isso, numa manhã chuvosa na rua John Kennedy, na Barra (em frente ao bar do Chico que ainda está lá, com o mesmo cheiro único), e sabia que essa tinha sido a primeira vez em que me apercebi que o tempo, afinal, era e não era relativo. Mas enquanto 1977 tinha sido há cinco, dez, trinta anos, estava tudo bem, o mundo continuava o mesmo. Porque quando eu lembrava disso, lembrava de um momento em que ainda era criança, e havia uma diferença muito grande entre o adulto assustado com o tempo que tinha passado e aquele menino perambulando pela Vila Velha do Pereira.

Essa diferença permitia que aquele momento se congelasse para sempre, enquanto permitia uma elasticidade e conforto na percepção do tempo que outros dias não permitiriam. Porque enquanto o tempo passava eu mudava, aos poucos mas com constância, e isso criava um universo de distância entre um adulto e uma criança, algo que os separa e os torna independentes, uma ruptura que, paradoxalmente, estabilizava as coisas. É um universo que pode ser de dois, cinco, vinte, cinquenta anos; não faz diferença, porque são pessoas diferentes. Em 1987, em 1997 ou em 2007, 1977 continuava no mesmo lugar e eu era outra pessoa.

Ao mesmo tempo, enquanto 1990 era o ano retrasado, ele continuava próximo, e o tempo não tinha passado para mim. (As pessoas reclamam que o tempo está passando mais rápido. A verdade é que a memória tende a fixar apenas o que é novo; e o ser humano não lembra das coisas — lembra na verdade da última vez que lembrou das coisas, e por isso as memórias tendem a mudar com o tempo. Por isso, quando se tem oito anos, seis meses duram uma eternidade; é tudo novo e a mente tem que processar muita coisa. Mas quando ficamos adultos, e como há pouca coisa realmente nova entre o que acontece, a memória tende a processar apenas o inédito e o tempo parece mais curto.)

Mas quando 1990 se tornou vinte anos atrás, passei a lembrar de um Rafael adulto, ou quase. Era o Rafael de então, o mesmo de hoje; o Rafael que estava se tornando Rafael Galvão porque começava a ganhar a vida escrevendo e tinha que assinar com um nome diferente do nome do pai. Era o mesmo Rafael, só que vinte anos mais velho.

Há uma infinidade de experiências e percepções novas que constroem um abismo quase intransponível entre o Rafael de 1977 e o de 1990; mas quase nenhuma entre o de 1990 e o de 2017. Há experiências novas, sim; mas o que importa é a maneira como você reage a elas, e essa maneira já não muda.

Aparentemente, o mundo em que vivo é o mesmo em que vivi nos anos 70, nos 80, nos 90 ou no início deste milênio, quero crer. Internet, satélite, celular, saco plástico no supermercado, freio ABS e um bocado de eletrônica no carro? Isso não é nada. Balangandãs, só. Uma roupa diferente, o rayon que era moda e depois virou brega, os jeans verdes e as camisas verde-limão no intervalo, dos quais ficou apenas o orgulho por não tê-los usado. Balangandãs, bugigangas do tempo.

Mas ao mesmo tempo, tanta coisa ficou para trás, tanta coisa mudou. À medida que o tempo passa, entendo que lembro de tempos diferentes, que garotos de hoje não conseguem entender. De tempos piores e melhores, tempos em que as pessoas tinham aprendido a se comportar com medo do que os generais iriam dizer, mas também tempos em que as pessoas não se irritavam porque não conseguiam lhe encontrar ao celular. Tempos em que era educado oferecer um cigarro antes de fumar, de cinzeiros na mesa de trabalho, tempos de ler o jornal e ficar com as mãos sujas de tinta. Esses meninos, a quem o mundo vai jogar o fardo de lhe carregar, não podem ver a queda do muro de Berlim, não sabem o que foi o dia 15 de novembro de 1989, não viram a Challenger explodir a professorinha, não puderam acompanhar as mudanças que eu vi, não entendem o meu mundo. Não podem entender, e para eles o impeachment de Collor é tão distante quanto o suicídio de Vargas era para mim. A eles o mundo que para mim ainda está em construção lhes foi dado de porteira fechada.

Muita gente enfrenta isso dizendo que “minha infância foi melhor que a sua”, tentando disfarçar o fato singelo de que estão ficando obsoletos, de que a pele se torna mais flácida, de que as carnes despregam dos ossos, de que os cabelos cada vez mais brancos rareiam, e de que sua infância foi apenas a que ele pôde ter, assim como a de hoje é somente a infância possível a esses meninos. Mas não há enfrentamento possível. O tempo passa, você está mais perto da morte, e ela virá — embora eu insista que, ao menos no meu caso, isso não é garantido; embora às vezes desconfie de que há uma boa probabilidade de algo tão deselegante acontecer a mim, uma probabilidade talvez tão grande quanto a de eu, que não jogo, ganhar na Mega Sena.

O mais fascinante em tudo isso é que a mesma tecnologia que ressalta essas diferenças é a mesma que torna a velhice mais complexa.

40 anos atrás, o passado só existia na sua memória. Às vezes existia também na memória de um amigo com quem você conversasse eventualmente sobre os bons velhos tempos, lembra disso, lembra daquilo? Fulano, o que foi feito de fulano? O passado estava no seu lugar, agradavelmente distante mas guardado à sua disposição, e era tão pouco diante do presente, às vezes do futuro.

Mas então veio a internet e a humanidade passou a poder compartilhar com os outros as suas próprias lembranças, algo que jamais deveria ter sido permitido, como jamais deveriam ter aberto a caixa de Pandora. Para algumas pessoas, a principal mudança que a tecnologia trouxe não foi o futuro: foi o passado. Não é o YouTube que vejo na minha TV, e transforma a televisão em algo assíncrono, que faz essa mudança: são os programas que encontro nele, programas que vi há 40 anos e que agora posso ver de novo, iguais ao que eram e diferentes do que eu lembro. É essa onipresença de um passado que se recria diante de mim, essa subversão da passagem do tempo que incomoda e reforça essa sensação.

A chegada do que devia ser o futuro, seu rebaixamento a presente, fez com que o passado mudasse, e por isso ninguém esperava. Às vezes pode-se ter a impressão de que as pessoas mudaram. Gente que nos anos 80 conseguiu a proeza de programar seu videocassete para gravar um filme na TV hoje compartilha não os filmes, mas os comerciais que os mutilavam, porque são eles que se tornaram raros. Tudo isso em um espaço de tempo que, do ponto de vista histórico, é menor que um átimo.

O passado faz escândalo diante de você, o seriado que você viu há 40 anos está no YouTube, no Mercado Livre alguém tenta vender a coleção de revistinhas que você leu aos sete anos, a edição exata do livro que lhe deu uma nova visão de mundo. E tudo isso adquire uma grandiosidade ainda maior porque esteve ausente da sua vida durante tantas décadas, que é como as coisas devem ser. O passado deveria ficar lá, no passado, recriado apenas no momento em que você quer recriá-lo, da maneira como você quer recriá-lo; e não jogado na sua cara, com a objetividade estúpida da gravação magnética, agora digital.

Rever agora um dos primeiros episódios do Sítio do Picapau Amarelo, que você viu há exatos 41 anos, quando você ainda nem era você, é uma experiência perturbadora. Porque a cena que você lembrava de um jeito na verdade ocorreu de outro, a câmera estava à direita, não à esquerda de Pedrinho. Tudo isso lhe tira o conforto de ter o seu passado do seu jeito; agora, nem o seu passado você pode ter. E do futuro, se o presente lhe foi generoso e lhe ensinou alguma coisa, você nunca foi dono.

Mas ao mesmo tempo o resto está lá, imutável; a mesma música, os mesmos rostos, as mesmas vozes. Há uma familiaridade inevitável e irrecuperável nesse reencontro, e ele transforma o não em sim, o sim em não, e ambos são reais e não deveria ser assim.

Porque tudo isso ajuda a romper o fluxo normal do tempo, a maneira como ele seguiu durante tantos anos, anos que você viu passar. Mas o tempo não é o verdadeiro criminoso: esse é você, a maneira como você o enfrentou ou se abandonou a ele, a maneira como os significados mudaram quando você se tornou menos do que sonhava em ser.

Por isso olhar para Bruna Lombardi me acalenta e me dá a sensação ilusória de que não, o tempo não está passando, é tudo a mesma coisa. Olhar para uma mulher que é bela em 2017 como era em 1977 dá uma sensação de permanência que poucas outras coisas em todo mundo podem dar. E sua visão oferece um aconchego que o mundo tende a lhe negar, às vezes com violência, às vezes com a delicadeza cínica e hipócrita devida aos velhos e anciães.

É quase como se 40 anos não se tivessem passado para Bruna Lombardi. Ela é a casa antiga da sua rua que ainda não foi demolida. Os mesmos 40 anos que passaram para você, e deixaram cicatrizes, quando maus; aprendizados, quando justos; saudades, quando bons.

E isso lhe dá a impressão falsa, que você traduz em esperança, de que o mundo ainda é o mesmo. Que essencialmente a beleza do mundo é a mesma beleza, e você é a mesma pessoa, ou pelo menos pensa que é, e isso é suficiente, tem que ser suficiente, precisa ser suficiente.

Duas palavrinhas para o Serge

O Serge postou um comentário sobre o lamentável histórico deste blog, e em vez de comentar o comentário achei que ele merecia uma resposta mais elaborada. Obviamente, como qualquer post neste blog de um preguiçoso, isso fez com que ela demorasse muito mais para ser escrita do que devia. São os percalços da vida.

O comentário do Serge me lembrou de outros tempos, um período que era o auge não apenas deste blog, mas de toda a blogoseira. Os diarinhos, mais ou menos nos moldes de boa parte do Facebook de hoje, estavam dando lugar a abordagens mais complexas. Aos blogs do Hermenauta, do Alex, do Marcus, do Doni, do Idelber, do Milton, do Bia, do Ina, condomínios como o Verbeat, o Interney e O Pensador Solitário — um bocado de gente que tinha o que dizer e tentava fazê-lo de forma razoavelmente elaborada. Acho que ali se criou ao menos o embrião de uma comunidade heterogênea e eventualmente conflituosa, mas empolgante. Li muita gente boa ao longo daqueles anos; gente criativa, talentosa, engraçada e séria. Fiz alguns amigos para sempre. Mas, principalmente, ri muito.

Com o tempo, a maioria de nós cansou de escrever potoca e foi arranjar coisa melhor para fazer na vida. Virtualmente todos os blogs que compartilhavam o mesmo ecossistema deste desapareceram. A profissionalização da plataforma também fez com que a maior parte dos blogs se tornasse cada vez mais redundante. O fato é que há um bocado de gente falando de coisas com mais propriedade do que eu — menos Beatles, claro, mas tem gente boa o suficiente para me fazer pensar duas vezes antes de escrever qualquer coisa sobre o assunto (o melhor blog do mundo sobre os Fab Four, a propósito, é este aqui: A Moral to This Song). Mas acho que esses tempos passaram, mesmo, porque as tecnologias mudaram. Twitter e Facebook suplantaram os blogs.

Isso não é uma confissão de ludismo; porque reclamar disso é como o dono de cinema que reclama da Netflix, e porque embora use hoje muito pouco, já houve um tempo em que eu estava quase viciado naquela miséria. Mas não dá para negar que o Facebook tornou os blogs obsoletos. Blogs como este aqui — essencialmente ensaísticos, sem escopo definido, basicamente conversa jogada fora, uma espécie de bar virtual — foram perdendo o sentido, até porque Facebook e Twitter são muito mais eficientes nesse aspecto.

É por isso que a maior parte daquelas pessoas que escreviam blogs pode ser encontrada hoje no Facebook; mas num fenômeno curioso, poucas, pouquíssimas escrevendo algo remotamente bom quanto seus blogs d’antanho.

Acho que funciona assim: o sujeito pensa em algo sobre o que gostaria de escrever. Nos tempos do blog ele escreveria um texto mais longo e mais pensado. Hoje ele simplesmente joga imediatamente no Facebook ou no Twitter uma ideia concisa, excessivamente simplificada do que gostaria de dizer. E daí não há mais motivo para escrever.

A impressão que tenho é que o que se escreve no Facebook são essencialmente comentários que buscam o simplismo, links para alguma coisa, autopromoção descarada, essas coisas. Parece haver uma busca pela frase definitiva, o aforismo “lacrador” que vai ser compartilhado mais vezes, o que por si só condiciona qualquer debate a pouco mais que uma batalha de slogans. Posts — hoje chamados “textões”, o que já indica a má vontade com que são vistos — nem são raros, mas sofrem de um mal inevitável: estão soterrados em uma imensidão de outros textões e textinhos. Não têm a dignidade que sua posição de destaque em um blog lhe dava. Mais que isso, o grande problema é que ao mesmo tempo outras 10, 20 pessoas estão escrevendo essencialmente a mesma coisa, com maior ou menor grau de raiva.

Eu não tenho muitas dúvidas de que o Facebook é um dos responsáveis pelo estado psicológico atual do mundo, pelo aumento da ansiedade, da irritação, da intolerância: para o bem ou para o mal, uma certa hierarquia de vozes se perdeu, e o resultado, ao menos por enquanto, é um mal-estar generalizado, um recrudescimento de confrontos que eram apenas latentes ou estavam disfarçados.

Mas o pior, mesmo, é que ele acabou com os blogs.

Este blog mesmo “acabou” em 2010, e não pode culpar as redes sociais; tinha virado uma obrigação que passava a me incomodar, porque já não fazia tanto sentido. O fato de saber que há leitores exerce uma influência que pode ser positiva ou deletéria, porque por mais que a gente negue isso lhe obriga a escrever, de certa forma, e é positiva quando você está com vontade e deletéria quando o saco está cheio. Além disso, depois de quase dois mil posts é meio difícil achar algo que lhe interesse e que você não tenha escrito. Os comentários razoavelmente despretensiosos sobre quaisquer bobagens que eu fazia aqui no começo começaram a parecer insuficientes, à medida que gente que se levava mais a sério, com mais gana, começou a escrever o que eu teria escrito.

Finalmente, a “facebookização” do debate, o crescimento do processo de “guetização” impulsionado pela ascensão desses movimentos identitários de todos os tipos, quase invariavelmente infantilizados, ajuda. Dia desses teve uma passeata da mulher negra. Uma moça disse que, se você não fosse negra, que ficasse em casa. Tem discussão possível nesse caso? Eu não tenho tempo nem estômago para esse tipo de debate. Na verdade, não tenho mais para quase nenhum, nem os bons. Os tempos em que eu me divertia com as pseudo-feministas passaram.

Mas a verdade é que, depois de tantos anos, ele tinha passado a ser parte da minha vida; por isso voltei, mas sem a obrigação que eu mesmo me impunha. E ele vai ficar por aqui para sempre, acho (ou pelo menos até eu morrer, se é que vou morrer um dia, e deixar de reservar o domínio); às vezes com um texto, às vezes não. Não acho que precise de mais que isso. Ele já está vivendo em um tempo emprestado, mas que bom; a este blog, que me deu alegrias, raivas e amigos, basta apenas continuar existindo. Não porque é ou deixa de ser lido: mas porque é parte indissociável de minha história.

De volta aos manuais Disney

Eu sabia que não ia resistir quando vi o anúncio do relançamento do Manual do Escoteiro Mirim pela Abril, no ano passado. Sabia que ia comprar, porque esse foi um daqueles livros inesquecíveis da infância.

Em primeiro lugar um choque: descobri que minha vida era uma fraude, sempre foi uma fraude, eu vivi os últimos 40 anos numa grande ilusão. O Manual do Escoteiro Mirim que tive era a terceira edição, disso eu sempre soube; o que não sabia é que, para a Abril, uma nova edição significa relançar coisa velha mas mutilada, com várias páginas a menos. O manual relançado agora, em capa dura e papel reciclado (o meu era uma brochura com capa em couchê casca de ovo), tinha mais matérias que o que li e reli até que suas páginas se desfizessem. Ainda pior que algumas das matérias omitidas dissessem respeito ao mar, à navegação e a piratas.

Aquela foi a primeira vez que a editora Abril, aquela que mais tarde ajudaria a destruir o jornalismo brasileiro com uma certa revista semanal de informação que ela alega ser a quarta maior do mundo, passou a perna em mim. Passaria mais vezes depois, mas eu sou mulher de malandro, não tenho vergonha na cara. E como toda mulher de malandro, esperando Madalena voltar do mar, nem espero ela chorar o meu perdão, vou esquentar seu prato e abro meus braços para ela.

Por isso eu rezo em segredo para que, quando relançarem o Manual do Zé Carioca, que seja a 2ª edição, editada em 1978 para aproveitar a Copa da Argentina. Foi essa a que tive. E, sinceramente, não preciso descobrir agora, depois de velho e com o fígado bambeando, que o manual original de 74 tinha mais matérias do que as que li.

Além disso, são fac-símiles ma non troppo. As lombadas, que eram abauladas, agora são retas, e o papel (com exceção do papel agora reciclado do Manual do Escoteiro Mirim, um desdobramento quase lógico) é de melhor qualidade. A capa do Magirama, antes texturizada e fosca, agora é lisa e brilhante. Atividades que foram descritas normalmente agora trazem notas de rodapé informando aos retardadinhos que eles precisam da supervisão de um adulto — foi nisso que deu a evolução? Vocês se tornaram incapazes de fazer coisas que seus pais e avós faziam tranquilamente? —, e uma receita que levava álcool foi modificada. Os manuais precisaram ser adaptados a um mundo mais complexo.

À parte minha revolta com as práticas da editora, a verdade é que continuo achando que aqueles manuais eram pequenas enciclopédias fantásticas. Ainda lembro do impacto que o Manual do Escoteiro Mirim — mesmo com tantas páginas omitidas canalhamente pela editora — causou em mim, menino de cidade que, de repente, aprendia como andar no mato, identificar pegadas, escalar árvores e ler mapas.

Por isso eu sabia que ia comprar o danado do manual.

O que eu não sabia é que iria comprar cada um dos que seriam relançados em sua esteira; mas devia saber, porque meu respeito profundo a esses manuais está documentado neste post; e isso vale mesmo para aqueles que não me dizem nada porque não os tive, como o Manual do Tio Patinhas, do Professor Pardal ou do Mickey. Além desses, três manuais que tive e que foram importantes, o do Peninha sobre jornalismo, o Magirama sobre mágicas e truques de salão e o da Vovó Donalda sobre culinária (isso antes dessas coisas gourmet tão na moda, quando cozinhar era basicamente garantir comida decente na mesa, e não sobrevalorizar o medíocre como parece ser a norma hoje), mereciam um olhar saudoso. Agora, para mim, só falta relançarem três outros manuais: o do Zé Carioca sobre futebol, o dos Jogos Olímpicos sobre Olimpíadas com o Pateta, e o da Televisão, sobre, bem, televisão. O Autorama eu tenho, comprei num sebo uns 10 anos atrás para repor aquele que havia comprado em 1978 mas que me roubaram logo depois — fui passar férias em Aracaju e quando voltei o danado não estava lá. Vai ver é por isso que nunca liguei muito para carros: não deu tempo de reler o manual várias vezes.

De qualquer forma, até agora esse era um respeito, digamos, retrospectivo, quase um passar de mão condescendente na cabeça da criança que fui tantas décadas atrás. Porque o ponto de partida de qualquer julgamento que eu pudesse fazer era o quanto foram importantes para mim, e só por isso podia haver certa dúvida. Talvez eles não fossem tão bons assim, talvez fosse a minha memória cumprindo o seu papel de edulcorar o passado, o único papel decente que a memória pode ter.

Por isso, em primeiro lugar reler esses manuais é um reencontro com deslumbramentos antigos. O mais agradável não é tanto ler aquilo de que eu lembrava: a verdade é que nada supera a sensação de rever um texto ou uma ilustração de que eu já tinha esquecido, porque isso revive, ainda que por um átimo, o que senti naquele momento.

Mas é lendo os manuais que não tive, como o do Mickey e o do Pardal, que minha admiração por eles cresce. Os manuais mostravam de maneira simples, fácil, como era o mundo que me aguardava. Ofereciam um mundo diverso de informações, selecionadas com critério e uma seriedade que, vendo com a distância de mais de quatro décadas, me impressionam. Por exemplo, essa previsão no Manual do Pardal, de 1973:

Em futuro próximo, o aparelho de TV poderá estar ligado uma grande loja de cassetes. A pessoa então escolherá, entre milhares de títulos, simplesmente discando um determinado num teledial. A videofita escolhida aparecerá na tela, dentro de casa, e a conta virá no fim do mês, junto com a do gás ou da luz

35 anos antes, o Manual do Pardal descreveu a Netflix.

Claro, nada disso era exatamente algo do outro mundo. Não passava muito da simplificação de ideias até velhas entre estudiosos e futurólogos, nada que uma revista tipo a Popular Mechanics não previsse uns 20 anos antes. Mas só o fato de transmitir essa informação para crianças, de maneira perfeitamente compreensível, era algo fantástico. Milhares de bacuris brasileiros passaram a entender melhor o mundo em que viviam, as coisas que nos rodeavam, e acima de tudo as possibilidades que nos eram oferecidas.

Os manuais significam também uma consciência melancólica de que o seu tempo passou. Alguém poderia se perguntar por que, em vez de editar material novo para as crianças de hoje, a Abril prefere reimprimir material de quase meio século atrás, mirando no público de anciães como eu, que buscam um passado que já se foi há mais tempo do que gostariam de admitir. Deve haver uma razão para isso. E eu acho que ela é simples: porque as crianças deste século — que um dia achei que usariam roupas prateadas enquanto veraneavam em Marte — provavelmente não se interessariam por isso, porque não há mais necessidade desses “digests” da informação que encontram com abundância na internet.

Isso não é ruim. Mas tampouco é bom. Mais do que ninguém, eu sei que brigar com a evolução é perda de tempo. O que não me impede de sentir uma certa melancolia por isso.

Atavismo

Acabei de achar uma tese de doutorado que cita uma carta, de 1879, em que a Condessa de Barral conta os progressos do meu trisavô ao avô dele. “A carta é destinada a um amigo da Província de Sergipe, no norte do Brasil, e trata do ‘jovem V. Galvão’, que, sob os cuidados da escrevente, estuda em um internato francês”

Considerando que a Condessa de Barral era amante de D. Pedro II, e levando-se em consideração a proximidade dela com o jovem Valois Galvão, a conclusão é lógica e esperada, quase óbvia para quem conhece a história passada, e graças a Deus superada e esquecida, dessa família: esses Galvão sempre foram chegados numa quenga.

Porto da Barra

Só agora, mais de quatro décadas depois, eu descubro que o meu amor único, ciumento, exclusivista, neurótico-psicótico, é praga de mãe.

Então eu digo que as velhinhas têm razão: praga de mãe pega, pega de verdade, e lhe condena aos seus desejos e lhe dá a régua e o compasso com o qual você vai medir o mundo nos dias bons e ruins que se seguirão depois.

Foi assim que saí do Espanhol, onde sofri a primeira das tantas derrotas na minha vida e me trouxeram a este mundo. Acho que àquela altura o Carnaval que a cidade tinha feito para me receber já tinha acabado, porque demorei para sair do hospital. No táxi que me levaria ao apartamento na 8 de Dezembro, minha mãe me ergueu e mostrou para mim aquela nesguinha de praia entre dois fortes portugueses: “Olha, Rafael, essa vai ser a sua praia”. Minha avó Celeste, assustada, mandou que ela tivesse cuidado comigo, mas minha mãe sabia com quem estava falando, e de quem estava falando, e do que estava falando. Naquele dia de fevereiro ela me deu a posse daquela praia. Ela ainda é minha.

Não importa quanto tempo eu fique longe. O Porto da Barra é um daqueles poucos lugares onde lembro quem é Rafael Galvão. É a praia que tive inteira: perto do forte de São Diogo quando eu ia com Romário — e Tony, e Mário, e Magno, e onde Romário me ensinou a nadar —, no meio quando ia com meu pai porque ali havia um bar, mas principalmente perto do forte de Santa Maria quando ia com minha mãe, e via os barcos chegando para me darem manjubinhas com as quais eu criaria brincadeiras dignas de “Tubarão” — e um dia até mesmo uma cabeça de tubarão. No quebra-mar de onde, quando a idade se fez adequada e um vislumbre de coragem apareceu, passei a mergulhar. Na areia onde catei vidros do mar e fiz os meus primeiros castelos e recebi as primeiras lições sobre a efemeridade da vida, numa das tantas ondas que me jogaram no fundo e de novo na superfície e de novo no fundo, num rocambolear que durante aquele átimo sempre parecia infinito.

O amor à praia do Porto da Barra me fez cego para as belezas eventuais de outras praias. O mar cristalino e morno de Maceió, as águas geladas de Ipanema, o azul único do Mediterrâneo e do Egeu? Tudo tão pequeno, meu Deus, tudo tão menor que aquela praia onde as ondas batem com a cadência de uma canção de Caymmi.

Talvez sejam elas, as ondas. Talvez mais que tudo, mais que a água verde e o cheiro de maresia: as ondas. O Porto tem a calma do espírito da Bahia, a certeza de que o tempo é seu, e de que ali você pode enganar a vida. A praia dos velhinhos que a amam quase tanto quanto eu, das crianças que aprendem ali a perder o medo das ondas, das moças que ali se fazem mais bonitas para os homens que amam, ou daqueles que podem vir a amar. A praia daqueles que, ao contrário de mim, a têm como amante certa, que ainda têm a certeza de que amanhã ela ainda estará lá.

Nunca pude deixar de imaginar que deve ser por isso que, no dia dois de fevereiro, as pessoas vão para uma praia tão mais feia, coitada, dar presentes que Iemanjá quase sempre recusa; porque elas sabem que o Porto da Barra lhes é interditada, é a praia de Oxum. A Oxum que, como Iemanjá, oferece o seu regaço aos seus filhos, e isso é o máximo que o Rio Vermelho pode oferecer; mas que também oferece a beleza, a cadência das suas ondas como quadris que se movem apenas para você, com você, e junto ao espelho ela traz a sua espada.

Pode reparar. Na maior parte das praias do mundo o barulho das ondas é um rimbombar incessante, bruto, um big bang sem começo nem fim que nocauteia os sentidos e se perde na vulgaridade da oferta excessiva. Nas madrugadas caladas de Aracaju escuto da minha varando o troar constante das praias da capital e da Barra dos Coqueiros — diferentes apenas no nome, porque são a mesma praia, não há diferença.

Mas as ondas que batem na praia do Porto da Barra falam com a delicadeza da mulher que ama sem condições, sussurram no seu ouvido, e você já não as ouve 50, 100 metros depois. Elas dizem a você que tudo podem lhe dar, mas apenas se você não se afastar; o Porto da Barra é a praia de Oxum.

Por tudo isso olho para aquelas pessoas que usam a minha praia, sem a decência de pedir a minha permissão, com a condescendência de um senhor feudal magnânimo. Eles não sabem, mas a praia é minha. Podem se deitar em seu colo de areia, podem receber o abraço confortante de suas águas verdes. Eu não ligo. Você não sabe, mas a praia é minha. E, lá no fundo, eu sei que ela sabe disso.

A vida dos santos

E daí que hoje, às vésperas do All Hallows’ Eve, descubro que tenho um homônimo padre.

Padre. De todos os misteres humanos, padre.

Assim se confirma o que venho dizendo a ouvidos moucos há tanto e tanto tempo. São Frei Galvão, padre Rafael Galvão Barbosa e esta pobre alma contrita: somos mesmo uma família de homens santos.

João Barreto Neto

Vi agora a notícia da morte de João Barreto Neto, nestes tempos em que essas notícias ruins vêm pelo Facebook. E então bateu uma tristeza imensa, tristeza e aquela culpa difusa causada pela sensação de que você poderia ter dado um pouco mais de atenção àqueles que se foram.

Fazia alguns anos que não via Joãozinho. Da penúltima vez ele gritou meu nome no Calçadão da João Pessoa como quem acabou de avistar um fantasma — e tinha avistado mesmo. Confundira este Rafael, vaso ruim que a terra há de ter muito trabalho para engolir, com o Rafael Rodrigues, filho do Rômulo que tinha morrido pouco tempo antes em um acidente estúpido. Na época, maravilhado por poder fazer a crônica da minha própria morte, privilégio de poucos, escrevi sobre isso aqui.

Da última, em frente a um restaurante na Praça da Imprensa onde ele ia pegar sopa para dar aos assistidos pela Ação Social Santo Antônio, a herança que Barrinhos lhe deixou, eu vi um homem velho e cansado. Nem parecia aquele que me acompanhava aos cabarés da cidade, como o de Ciganinha — puteiro admirável porque parecia um terreiro de candomblé escondido no Santos Dumont, ainda melhor porque pertencia a uma cafetina que tinha perdido tudo por amor a um homem.

Ainda lembro das noites na varanda da casa de João com Yara, conversando coisas sérias e coisas bobas. Ou ainda uma noite em que, passando em frente à sua casa na rua Maruim, parei para conversar e encontrar um ombro amigo para chorar o fim de um namoro, xingar aquela desgraçada que não queria mais saber de mim — ou eu não queria mais saber dela, não lembro bem. Na verdade eu chorava pelo fim do namoro e pelo show de McCartney no Maracanã a que não iria assistir por não ter dinheiro. O que sei é que naquela noite uma garrafa de Natu Nobilis encontrou seu fim — porra, Joãozinho, se fosse sua mãe teria me servido um uísque melhor.

Ela era uma daquelas mulheres fortes, que inspiram respeito à primeira vista. Fosse umas décadas mais nova e eu uns anos mais velho, teria inspirado também uma daquelas paixões avassaladoras, imorais. O meu respeito era ainda maior porque eu sabia de coisas que pouca gente parecia saber. Sabia que Joãozinho era filho do tio, fruto de uma daquelas tragédias rodrigueanas que abalam as famílias, causam infelicidade para todos e resultam em mortes tristes; tragédias que se tenta esconder a todo custo, tentativa infrutífera sempre. 30, 40 anos depois tio Joffre me contava a história, que só conto agora porque, exatamente hoje, todos morreram. Foi tio Joffre quem me disse também que o pai real de Joãozinho conhecia o meu — real e oficial, deixe-me antes de mais nada esclarecer porque eu tenho cá minhas frescuras também.

O que ninguém sabe é que o pai dele foi um dos últimos, se não o último, taxista a levar meu pai a algum lugar, e num certo dia em que eu ia com tio Joffre para o seu sítio em Socorro ele desandou a falar do meu, como era inteligente, como bebia, como conhecia os piores botecos da cidade.

Saí do jornal e perdi o contato com Joãozinho. Mais tarde, olhando para trás, teria a impressão de que ele, gay, estava esperando apenas uma chance para me pegar. Meninos novos costumam ser alvos fáceis. No entanto, quando lembro da amizade tranquila e das longas conversas sobre jornalismo e sobre a história de Aracaju, fico pensando que não, que isso é maldade minha. Melhor assim.

E então eu não vou ao seu velório, Joãozinho. A maior homenagem que podemos fazer a um amigo é a lembrança. E eu, assim como tanta gente, lembro de você.