O pastor

Quando vejo o entusiasmo com que o Marmota espera as Olimpíadas, fico pensando no meu próprio desinteresse.

Que provavelmente vem do fato de minhas habilidades esportivas se limitarem a xingar o juiz quando aquele ladrão não marca uma falta para o Flamengo. Jogos não são a minha praia.

Não é que eu não goste de competir; eu não gosto é da possibilidade de perder. Deve ser por isso que participei de relativamente poucas competições esportivas em minha vida.

A primeira de que me lembro foram Jogos da Primavera de 1982, em Aracaju. Eram uma competição interescolar nos moldes do torneio de mesmo nome criados pelo Mário Rodrigues Filho, no Rio. Eu tinha acabado de chegar à cidade e o clima olímpico me contagiou.

Como eu não tinha exatamente muitas aptidões esportivas, participei da competição na equipe de xadrez do meu colégio. E daí que o xadrez seja um jogo que serve apenas para desenvolver a capacidade das pessoas jogarem xadrez? Eu estava participando e perfeitamente integrado a uma cidade que não conhecia e que, cá para nós, detestava.

Eram 13 competidores. Fiquei em décimo-segundo lugar. A humilhação só não foi maior porque alguém ficou em décimo-terceiro. Eu, pelo menos, ganhei um jogo.

Na verdade fui a apenas três. Perdi o primeiro rapidinho. A gota d’água foi quando, no terceiro jogo, o sujeito me derrotou em 2 minutos. Com o “pastor”.

Para quem não conhece, essa é uma das jogadas mais básicas do xadrez. Uma das mais fáceis de se bloquear, também — basta mover o cavalo, se não me engano. A situação foi tão humilhante que meu oponente, penalizado, parou para me ensinar o que fazer, depois que ganhou.

(O sujeito era melhor que eu. No seu lugar eu teria tripudiado do idiota que se atrevia a encarar aquilo sem saber sequer o básico.)

Não voltei mais àquele antro de perversidades. Por isso minha surpresa quando vi que não era o último colocado, ao final dos Jogos.

Ganhei o segundo por W-O, de um sujeito que não deu as caras. E até hoje acho que tinham aplicado o pastor nele, um ano antes.

Start me up

Lendo a carta que os fundadores do Google enviaram aos seus prováveis investidores, precedendo seu IPO, vi alguns elementos que dão a impressão de que eles chegaram a um equilíbrio entre a maluquice das primeiras startups e um modelo racional de negócios. Como se fosse a mesma ideologia mas com táticas diferentes.

Como mais alguns pobres de Cristo espalhados pelo mundo, eu participei de uma “startup pontocom”: um cliente abriu uma e me ofereceu uma parcela pequena de ações (porque eles já começaram como sociedade anônima, tendo em vista um IPO que, naturalmente, iria render milhões).

Pelo que me diziam, aquela era uma oportunidade única. O CEO (é, eles usavam esses nomes e suas siglas; eu me tornei, sabe Deus como, o Chief Marketing Officer; ria disso na época como rio hoje) era um garoto novo, cuja noção de elegância era usar gravata com calças muito baratas de tergal e já puídas pelo uso, encimando sapatos Vulcabrás comprados na feira. Pelo que ele falava, iríamos todos ficar milionários.

Confesso, para minha vergonha, que eu também acreditei nesse delírio. E como as ações não me custaram absolutamente nada, embarquei no Andrea Doria.

Mas pelo menos não acreditei por muito tempo. Quando a AOL comprou a Time Warner, enquanto todo mundo via o estabelecimento da hegemonia do mundo pontocom, eu apontava aquilo como o início do fim. Para mim era claro que aquilo representava o esgotamento do modelo que chamavam de “pure play“. Para crescer, o mundo da Internet precisava de substância. Ninguém que eu conhecesse ou lesse, no entanto, achava isso. Paciência.

Achei que havia alguma coisa errada quando, numa visita aos escritórios da empresa, vi uma pilha de revistas Você S.A. e quase nenhuma publicação técnica. Foi quando decifrei a charada que a gravata propunha: o menino estava brincando de ser executivo, e aquilo não podia acabar bem. Estava mais preocupado em ser e parecer um yuppie bem sucedido, como aqueles que via nas revistas e nos filmes, do que em fazer o negócio andar. Tinha subido na vida e, com o dinheiro que recebia, comprado um Chevette 1837 — ou algum ano parecido.

A partir dali dei àquilo a importância devida: pouca. Dei algumas sugestões, participei de algumas reuniões. Diziam que iam abrir uma filial no México e eu perguntava que bobagem era aquela; eu dizia que não existia negócio baseado puramente na Internet e ninguém me ouvia. Falavam em oferecer conteúdo e eu achava que o negócio da empresa era desenvolver processos.

Enquanto isso ninguém fazia o básico, o mínimo esperado, que era prestar um serviço pelo menos medíocre ao seu principal cliente. Aquilo, decididamente, não valia a pena o esforço; me afastei, porque tinha mais o que fazer.

Por acaso, um ano depois acabei voltando a me aproximar. E então vi que o rapaz fazia política de escritório melhor do que cuidava da sua empresa, e percebi um certo nível de boicote. Se eu acreditasse naquilo teria encarado a brincadeira; seria educativo ver como eu me saía. Mas não valia a pena. Eles continuavam falando muito e fazendo pouco, porque na verdade não sabiam nada.

Em pouco mais de um ano, a única receita real daquela empresa foi a venda do domínio e-pronto.com.br para o Banco do Brasil — por um preço muito alto, mas que poderia ser ainda maior se soubéssemos que estávamos vendendo para o BB. Um dos sócios (ou acionistas), depois de ver a campanha do BB estourar na TV alguns dias depois da venda, ficava repetindo que “é, a gente se fodeu e-pronto”.

Logo depois deixei a cidade e aquelas empresas. A última notícia que tive de tudo aquilo é que a sociedade anônima virou limitada e não pretende mais ser a alternativa high-tech à mega-sena. Se limita a prestar serviços para a empresa-mãe e finalmente dar lucro ao seu novo dono (aquele que fez o trocadilho com o e-pronto).

O ex-CEO, posto com delicadeza para fora, anda procurando o que fazer. Ano passado achei o currículo do moço na internet. Dois currículos, na verdade, com um ano de intervalo entre os dois. Entre as pretensões salariais estava uma exigência, mais curiosa que a insistência em stock options: ele concedia à empresa que o contratasse a possibilidade de escolha entre lhe oferecer estacionamento gratuito ou vale-transporte. E os dois currículos prometiam para o ano seguinte o ingresso numa universidade.

Nessa sagrada colina, mansão da misericórdia

Passei rapidamente por Salvador há duas semanas. Queria ir ao Bonfim comprar um novo escapulário. Mas achei que minha filha não ia gostar muito dos ex-votos, e sabia que não conseguiria entrar na igreja sem que ela os notasse. Para ela a Igreja de S. Francisco (“Toda de ouro?!”, ela arregala os olhos) seria muito mais interessante.

Passei mais de 10 anos sem ir ali. A visão das pernas, braços e cabeças de parafina e plástico, as fotos de misérias humanas concebíveis e inconcebíveis, tudo aquilo não dava, a mim, a sensação de gratidão pela graça alcançada, e o conseqüente reforço da fé. Era justamente o contrário: a visão de um mundo de dor e sofrimento que desliga qualquer um da noção de Deus. A Sala dos Milagres me deixava com uma sensação que deve ser muito semelhante à claustrofobia.

Da última vez que fui lá ela tinha sido saneada; os ex-votos mais impressionantes tinham sido mudados para o andar de cima e, embaixo, ficaram apenas objetos e fotos quase inocentes.

Mas a lembrança dos ex-votos do Bonfim não sai da minha cabeça.

Não fosse por isso, de todas as igrejas da Bahia a do Bomfim estaria ali, no meio-termo. Para mim há igrejas mais interessantes; uma delas é a do Rosário das Mercês, cuja nave central tem uns poucos metros, mutilada quando abriram a Avenida Sete no início do século passado. É um dos poucos casos de igreja destruída por outra religião que não era deística, mas secular: a do progresso. (Há outro caso parecido, a da Igreja da Ajuda, construída na época de Tomé de Souza e demolida e reconstruída do outro lado da rua no começo do século XX; e Jorge Amado credita a demolição da antiga Sé, cujos alicerces são hoje sítio arqueológico ao lado do Belvedere, à ganância da empresa de bondes da época.)

Ou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, uma das mais conhecidas de Salvador por ficar no Pelourinho, e que abriga um cemitério de escravos.

O mais engraçado é que a maioria dos baianos sabe quase nada sobre suas igrejas. E o pouco que sei aprendi simplesmente me aproveitando dos grupos de turistas que contratavam guias: eu, menino, quando me batia com um desses grupos ficava por perto e ia aprendendo. Foi o meu modo de receber educação pública e gratuita de qualidade.

Eu devia ir mais ao Bonfim. Deveria ser obrigação de filhos pródigos de Oxalá como eu.

De um papel solto, esquecido em uma agenda velha

“Ora, mas que indecência, senhor Plumfield. Como o senhor pôde fazer isso? Deixe minhas calcinhas em paz. Sai! Vou contar ao meu marido. Eu sou uma senhora de respeito, o senhor não vê? Eu não me responsabilizo, senhor Plumfield. Não me responsabilizo pelo que o meu marido fizer com o senhor. Senhor Plumfield, ai… Eu sou uma senhora de respeito, senhor Plumfield… Por favor… Isso. Por favor, senhor… Ai… O que o senhor quer de mim, senhor Plumfield? Tão bom… Ah, senhor Plumfield, eu devia lhe dar um tapa, sabe? Não pára… O senhor é um velho indecente… Devagar… Assim… Ai, senhor Plumfield, que delícia… Mais… Mais…”

A estranha saga de uma carteira

Mal acordo, ainda zonzo da viagem, e a moça do banco me liga, dizendo que acharam minha carteira. Deve ter sido uma triangulação e tanto: ligaram para o Rio, onde deram o telefone daqui, e então me acharam.

À tarde fui no banco. Peguei a carteira e tenho uma surpresa: o dinheiro estava lá, pelo menos quase todo, não sei. Perguntei à moça o que era aquilo. Então ela me disse que uma senhora Maria de Lourdes tinha achado a carteira na rodoviária, mas tinha adoecido e só tinha podido entregar hoje.

Tudo bem. Eu fiquei sem saber se xingava a mulher ou agradecia: afinal, já tinha tirado outra carteira de identidade e cancelado cartões e bloqueado cheques. A essa altura, a volta da carteira não faria mais diferença nenhuma, além de uma certa tranqüilidade.

À noite a tal senhora me ligou. Sotaque sulista. Disse que não tinha podido entregar antes porque tinha adoecido, e viajado, e voltado a Aracaju só para me entregar a carteira. E aí a pulga pulou na minha orelha. Agradeci, e quando ela percebeu que não haveria recompensa ainda teve tempo de dizer um “certo”meio incrédulo com a minha ingratidão antes que eu desligasse.

O vacilo com a carteira não demorou 30 segundos. Ela sumiu assim, rapidinho, do balcão da lanchonete. Ninguém viu. Procurei em volta e fui no balcão de informações, que abriu o sistema de som e perguntou quem tinha achado uma carteira. Nada. Passei meia hora procurando a carteira, para ver se tinham tirado o dinheiro e jogado ali por perto. Nada. E agora aparece essa mulher com uma conversa estranha dessas.

Não sei qual o esquema, nem sequer se há algum, mesmo. Mas me pareceu estranho. Muito.

De qualquer forma, ainda que ela tenha sido bem intencionada, eu não daria recompensa nenhuma. Primeiro porque o proejuízo que tive com isso foi muito grande. Se ela achou a carteira, deveria ter levado ao balcão de informações, ou ao setor de achados e perdidos. Para não ter nos visto, nem ouvido que estávamos procurando uma carteira, ela teria que ter pego a danada e corrido. Não é o comportamento mais honesto do mundo. Além disso, ali dentro tinha duas passagens para dali a 15 minutos; ela deveria ter percebido que o dono estava ali ainda.

E finalmente é mais fácil eu acreditar em disco voador que em alguém que viaja para me devolver 20 reais e cartões e talões de cheques que certamente sabia cancelados.

Acho que estou ficando cético demais.

Diário de bordo III

Quando cheguei a Fortaleza a notícia do dia era a morte de cinco integrantes de uma tal banda Líbanos. Deus sabe que eu desejaria outro tipo de aposentadoria para os músicos, mas não pude deixar de pensar que o mesmo Ceará que deu tantas contribuições à cultura deste país, gente como Capistrano de Abreu e José de Alencar, para citar apenas dois, cometeu crime de lesa-pátria ao perpetrar bandas como Mastruz com Leite, Mel com Terra e Cu com Merda.

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Em frente à Fortaleza de N. Sra. de Assunção, onde nasceu a cidade, uma estátua de D. Pedro II esculpida e forjada em Paris data de 1912, “oferecida pela pátria agradecida”. Deve ser uma das primeiras homenagens republicanas ao imperador.

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Tarde de sábado sem nada para fazer e vou passear no centro. Ao contrário do resto do Nordeste, o centro de Fortaleza existe na tarde de sábado. Na 24 de Maio, duas lojas de artigos religiosos misturam Pombagiras, Zés Pelintras, Pretos Velhos, São Jorges e Iemanjás. Misturam umbanda e quimbanda, candomblé e catolicismo. São um retrato perfeito do Brasil. E me lembram a São João em Niterói, embora esta tenha um número estupidamente superior de lojas. Niterói, como se sabe, é terra de macumbeiro. Saravá.

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Um gringo passa de mãos dadas com uma nativa. Ante meu sorriso que diz, em qualquer língua, “Aí, hein?”, ele se desconcerta e tenta soltar, instintivamente, a mão de sua nova e efêmera namorada.

Também instintivamente, ela não o deixa soltar. E segura a mão dele com força, enquanto anda altiva, olhando firme para a frente.

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Motel Stylus, portinha pouco discreta em frente a um ponto de ônibus: 7 reais com vídeo, 6 reais sem.

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Passo por um camelô e lembro que, afinal de contas, eu não tenho mais carteira. E não me sinto exatamente inclinado a pagar 50 reais por uma nova, para outro desgraçado-miserável-infeliz-amaldiçoado levar.

Será a primeira carteira que compro na vida. Minha irmã sempre conta a história de como era obrigada a comprar carteira para mim porque eu usava o que me dessem. E durante muito tempo nem mesmo isso usei: meu dinheiro ia amassado no bolso como dinheiro de bêbado.

Pego uma e o camelô dá o preço: 7 reais. Compro. Vejo outra, agora com compartimento para as moedas que vivem caindo do meu bolso, e ele avisa que é mais cara, porque é couro de verdade. Mas vale a pena: é a que ele usa. Emocionado com o referencial estético, é essa que eu levo.

Quem quiser que reclame da minha carteira de camelô. Ela vai viver encostada à minha bunda, mesmo.

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Um casal de gringos — americanos, pelo sotaque — chega ao hotel enquanto faço meu check out. O guia conversa com eles, que querem algo naquela área. Quando são informados do preço, reclamam: “Too much. Too much“.

O hotel é barato, ou eu não estaria lá. Já fiquei em todos os hotéis daquela rua, com exceção do Holiday Inn, e posso afirmar que não vão encontrar nenhum mais barato. Os gringos é que são sovinas. São um desrespeito à classe de turistas dos países desenvolvidos, que vêm a um país com câmbio de 3 por 1 e salário mínimo de 80 dólares e ainda reclamam do preço. Devem estar decepcionados por não verem macacos raivosos na rua.

Penso em sugerir a eles o Motel Stylus, 7 reais com vídeo, 6 reais sem. Mas eles não entenderiam a piada.

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Eu estou um bagaço. E com saudades.

Porto da Barra

Eu não gosto de praia. Não consigo lembrar quando foi a última vez que fui a uma.

Não foi sempre assim, no entanto. Fui criado no Porto da Barra, e como estudava à tarde ia para lá todas as manhãs.

Porto da BarraA Barra é uma praia especial. É uma praia de baía, que ainda por cima fica numa enseada e tem, para completar, um velho ancoradouro que funciona como quebra-mar. É uma praia tranqüila, espremida entre rochas, e com uma concentração mais alta de sal; é por isso que é a única praia em que consigo boiar.

Foi lá que aprendi a nadar. Foi onde dei meus primeiros e últimos passos na chatíssima arte de pescar. Peguei um baiacu pequenininho, antes que uma moréia mastigasse meu anzol, e com exceção de umas traíras muitos anos depois, foi o único peixe que peguei até hoje.

Talvez tenha deixado de gostar de praia quando vim morar em Aracaju, começo da década de 80. Além da fealdade das praias sergipanas, Aracaju não tem a cultura de praia que se vê na Barra ou em Ipanema. Provavelmente por ser uma cidade que cresceu às margens de um rio, Aracaju não via a praia como uma coisa cotidiana, tão próxima. Na verdade, até há uns 50 anos aracajuanos iam veranear na praia de Atalaia. Ir à praia em Aracaju significa se preparar para passar a maior parte do dia fora, sentar numa mesa de bar, comer caranguejo ou qualquer outra coisa, e então voltar para casa com a sensação de que realmente aproveitou seu dia.

A minha cultura específica era sair de casa andando, passar algumas horas na praia, tomar um mate (no Rio; em Salvador não tinha mate gelado), uma limonada ou um picolé, e voltar aí pelas 11 da manhã. A diferença de abordagem deve ter tirado toda a graça da praia para mim. A praia deixou de ser uma parte do cotidiano para se tornar um evento semanal. Já não era a mesma coisa.

No Porto da Barra havia os pescadores que chegavam e me davam os peixes menores, com os quais eu inventava brincadeiras. Uma vez fiquei empolgado ao pedir e ganhar uma cabeça de tubarão. Peguei aquilo e levei para casa, junto ao peito, para no dia seguinte descobrir o estrago que a pele dele fez em mim. A cabeça, por minha insistência, ficou no congelador por alguns dias, até que alguém chegou à conclusão que mais valia me traumatizar do que continuar com aquela coisa inútil entulhando tudo.

E não, eu não fazia idéia do que fazer com aquela cabeça de tubarão. Acho que a melhor idéia que tive foi empalhar aquilo. Eu via filmes demais.

Nunca ganhei uma cabeça de tubarão em qualquer outra praia. E essa é outra explicação para o fato de eu não gostar delas.

Escravos de Jó

Admito ter uma tendência incontrolável a inventar bobagens.

Há alguns anos resolvi convencer uma moça, numa manhã meio tediosa, de que a música infantil “Escravos de Jó” era uma ode ao homossexualismo que já estava aí por mais de dois mil anos.

Segundo a minha explicação, a cantiga vinha dos acampamentos militares espartanos, famosos por incentivar namoros entre seus soldados, que assim lutariam com mais bravura. Esses soldados eram normalmente recrutados entre os escravos. Jó teria sido um famoso general, amante de Péricles numa das mais belas páginas da história antiga devido à rivalidade entre suas cidades. Ele escrevera alguns livros, hoje perdidos, estabelecendo a relação entre guerra e homossexualismo.

Era fácil. O verso “Escravos de Jó jogavam caxangá” significava que os escravos sexuais de Jó faziam brincadeiras entre eles. Caxangá, em grego vulgar arcaico, era uma dança sensual, vinda da Turquia, em que os órgãos sexuais dos dançarinos se tocavam.

“Tira, bota deixa o zabelê (ou Zé Pereira) entrar” — referência clara à penetração e à necessária permissão da parte passiva.

“Guerreiros com guerreiros fazem zig-zig-zá” — novamente, referências aos jogos sexuais; aqui está configurada uma orgia, realizada alegremente nos acampamentos dos valorosos espartanos.

Ela acreditou.

Por isso a minha tese de que é fácil convencer as pessoas de quaisquer absurdos que você queira. Basta que alguém não conheça o assunto e você reforce sua teoria com alguns dados pretensamente históricos: elas normalmente têm preguiça de checar. É mais fácil acreditar em você. As pessoas partem do princípio de que ninguém é tão idiota a ponto de inventar uma história dessas.

Tadinhas.

Esse foi o mais próximo da semiótica que já cheguei em toda a minha vida. Uma besteira combina com a outra.

B. O.

— Eu queria registrar uma ocorrência. Furtaram minha carteira, com todos os meus documentos.

— Certo. Nome, por favor?

— Rafael Galvão.

— Tem algum documento aí?

— Minha carteira…

— Ah, claro. Data de nascimento?

— 20/02/71.

— Idade?

— …

— Idade?

— 33 anos.

— Residência?

— Blá blá blá, Ed. Stephanie.

— E… S…

— Não. S-T-E-P-H-A-N-I-E.

— OK. O que tinha na carteira?

— Isso, aquilo, um cartão de crédito Diners, aquilo, isso.

— Eu não sei escrever Diners.

— D-I-N-E-R-S.

E digitando lentamente, lentamente, lentamente, as unhas muito sujas, aliança no anular direito, ele escreveu que moro no edifício Esphane.

Ossos do ofício

Há alguns anos, tive dificuldades para aprovar uma campanha que eu achava excelente. Não que o comercial, base da campanha, fosse absolutamente brilhante, mas era doce e extremamente pertinente. Eu sabia que ele era fundamental para o posicionamento que eu tentava dar ao cliente, que atendia há um ano e que atenderia por mais um.

Quando apresentei o roteiro, um dos diretores da empresa reclamou da faixa etária dos protagonistas do comercial. Queria adolescentes no lugar das crianças que eu tinha escolhido. Disse que eu já tinha usado crianças antes e que esse não era exatamente o público-alvo deles.

Eu bati pé — é imaturidade discutir do modo como eu discutia com clientes, mas eu era imaturo. Meu moral estava alto e eu podia ser.

O filme falava sobre primeiro amor e separação. Se eu fosse colocar adolescentes no lugar de crianças ele ficaria caricato — cá para nós, um sujeito que vive um primeiro amor ingênuo e absolutamente platônico aos 17 anos não é um modelo a ser seguido, é só um retardado emocional. Mas não teve jeito: o comercial só seria aprovado com os tais adolescentes. Não adiantou dizer que o comercial perderia toda a verdade: adolescentes.

Fui gravar o comercial em outro Estado e, naturalmente, fiz como achava que deveria ser feito. Com duas crianças.

O resultado foi que o comercial se tornou um sucesso. Sustentou com folga a (excelente, por sinal) estratégia de crescimento do anunciante, aumentou seu índice de recall, deu a eles uma aura de classe que antes não tinham. O sucesso foi tão grande que aquele diretor, satisfeito com o resultado, comentou que eu não fazia idéia do sucesso que o comercial iria alcançar.

Ao dizer isso não sabem das horas de desespero diante de fitas e mais fitas de agências de modelos que não tinham o que eu queria. Não fazem idéia do sacrifício que foi escolher uma nova música depois que me cobraram 25 mil dólares por uma canção desconhecida de Smokey Robinson. Ou das minhas ameaças de morte a São Pedro para que o bendito parasse a chuva.

Mas o ruim, mesmo, é que esse comentário passava por cima, conscientemente, da aposta que fiz e da minha desobediência. Ou teimosia, chame como quiser. Era um modo sutil de retirar a minha responsabilidade sobre os resultados.

O elogio não era um elogio. Se eu estivesse errado e aquilo não desse certo, eu podia ir procurar emprego como vendedor de sapatos, porque a culpa seria toda minha. Como deu certo, era porque eu não tinha idéia do que estava fazendo.

Tudo bem.

Há alguns dias me disseram que o comercial estava voltando ao ar. Razão: desde que deixei de atender o tal cliente não fizeram nada tão bom.

Acontece que reviver um comercial de 5 anos atrás é uma burrice sem tamanho, porque o momento é outro, o mercado é outro. Campanhas devem permanecer por muito tempo; peças isoladas, não. E a campanha deles mudou há muito tempo. Era impossível que aquele filme voltasse a fazer um décimo do sucesso original (“Ah, lá vêm aqueles meninos chatos de novo!”).

Por sorte, desistiram de veicular o comercial por causa dos direitos de imagem. Para eles foi bom, mas eu já estava esperando ver a falta de impacto e ouvir o comentário: “Eu sempre disse que deveríamos ter usado adolescentes”.